Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
23/13.0GDAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
LEITURA DO AUTO DE NOTÍCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 06/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE ANADIA, COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 119º B) E 389º Nº 2 CPP
Sumário: 1.- Em processo sumário o Ministério Público pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção;

2.- Tendo o Ministério Público, por despacho, aditado aos factos constantes do auto de notícia, o concreto crime imputado ao arguido, bem como a respetiva condenação na inibição de conduzir e ainda o elemento subjetivo do tipo de crime em causa, passaram os mesmos a fazer parte integrante da acusação e, como tal deveriam igualmente ter sido lidos ao arguido em audiência, aquando da leitura do auto de notícia;

3.- A falta de leitura desse segmento da acusação configura a nulidade insanável prevista no art.° 119°, al. b) do CPP.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

            1. Nos autos de processo sumário nº 23/13.0GDAND do Juízo de Instância Criminal de Anadia, comarca do Baixo Vouga, em que é arguido,

            A..., com a 4.ª classe de habilitações literárias, filho de (...) e de (...) , estado civil solteiro, nascido em 19-02-1966, natural de Ílhavo, polidor de profissão, nacional de Portugal, BI - (...) , com domicílio na (...) Sangalhos,


Foi o mesmo julgado e condenado como autor material de um crime p. e p. pelo art.º 292º, nº1, do Código. Penal,
- Na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis), num total de 600,00€,
e
- Na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 8 (oito) meses, nos termos do art.º 69º nº 1 al. a) do C. Penal.

            2. Da decisão recorre o arguido apresentando as seguintes conclusões:

            A) A Digna Magistrada do Ministério Público pediu para substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia, nos termos do disposto no artigo 389. ° n.° 2 do Código de Processo Penal;
            B) Contudo, no acto, não foram dados a conhecer ao arguido as normas legais, em que se enquadram os factos que lhe são imputados;
            C) Pelo que a redacção da acta da audiência de julgamento não corresponde, salvo melhor opinião e o devido respeito que muito é, ao que efectivamente se passou — ressalvando-se que não corresponde, no que diz respeito à questão da leitura das disposições legais aplicáveis (crime de condução de veículo em estado de embriaguez: artigo 292°, n° 1 do Código Penal e proibição de conduzir: artigo 69°, n° 1 do Código Penal. A acta é falsa nesta parte com a ressalva que se fez;
sentença recorrida, não foi tomada posição quanto aos factos que o arguido invocou e que têm relevância para a decisão da causa, nomeadamente que o teste de alcoolemia foi feito 15 minutos após a ingestão da bebida. Ora, estabelecendo-se no diploma de aprovação do alcoolímetro marca Drager, modelo 7110 MK III, publicado na III Série do Diário da República de 25 de Setembro de 1996, como norma de utilização do mesmo aparelho período de tempo não inferior a 20 minutos, tal circunstância assume relevância e deveria ter sido decidida, o que implica a nulidade da sentença por omissão de pronúncia (cfr. alínea c) do n.° 1 do artigo 379.° do Código de Processo Penal);

            D) A leitura do auto de notícia, ou da acusação, assume importância fulcral pois destina-se a dar conhecimento ao arguido dos factos e das disposições legais que do ponto de vista penal o
Ministério Público entendeu considerar relevantes para justificar a sua submissão a
julgamento;
            E) Essa leitura (dos factos e do direito) visa assegurar ao arguido a possibilidade do exercício efectivo dos seus direitos de defesa, pois, só com o pleno conhecimento das normas legais, em que se enquadram os factos que lhe são imputados, o arguido pode exercer plenamente os seus direitos de defesa;
            F) O direito de defesa, bem como o contraditório, são assegurados pela Lei Fundamental e um entendimento diverso do acima explanado implicará a violação das garantias do processo criminal previstos artigo 32° da Constituição da República;
            G) Ocorre, assim, a nulidade insanável de falta de promoção prevista na alínea b) do artigo
119.0 do Código de Processo Penal;
            H) Não obstante a ressalva que acima se fez, o Tribunal da Relação de Coimbra, em 26 de Setembro de 2012, no processo n.°
7112.5PTFIG.Cl, disponível in www.dgsi.pt, abordou questão que se considera similar: “(...) Ora, esta não leitura do auto de notícia corresponde a uma não promoção do processo pelo seu verdadeiro titular, o Ministério Público, faltando, por isso mesmo, a real e exacta acusação que define o âmbito do objecto processual a discutir. Trata-se sem dúvida de uma formalidade mas de uma formalidade essencial e insanável, que não se vê como possa ser ultrapassada uma vez que, manifestamente, não foi observada ou cumprida. A inobservância desta formalidade tem como “consequência fulminante’ a nulidade do processo, ao abrigo do artigo 119° alínea b), do Código de Processo Penal nulidade insanável v. ac. do TRPorto de 30 de Junho de 1993, in CJ, Tomo III, fls. 260.No mesmo sentido v. ac. do TREvora de 19.2.2002 in CJ, Tomo 1, lis. 276 e acs do TRPorto de 13.2.1991, proferido no proc. n° 0410001[1], de 21.10.1992, proferido no proc. n° 9230611(2] e de 27.1.1993, proferido no proc. n° 9210897[3]. (...)“;
            I) A interpretação segunda a qual se permita a dispensa de leitura do auto de notícia (peticionada nos termos do n.° 2 do artigo 389.° do Código de Processo Penal) e nesse acto, a dispensa de comunicação, ao arguido, das normas legais, em que se enquadram os factos que lhe são imputados viola as garantias de defesa (direito de defesa e o contraditório) previstas no artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
            J) A sentença recorrida é ainda nula
nos termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 379.° Código de Processo Penal por não terem sido elencados os factos dados como não provados (exigência prevista no n.° 2 do artigo 374.° do Código de Processo Penal e que não foi cumprida).
            K) Por outro lado, e não obstante o teor das declarações do arguido a verdade é que na
            L) As penas e as medidas aplicadas ao arguido recorrente são absolutamente exageradas;
            M) A pena concretamente aplicada situa-se, quase, no limite máximo da moldura abstracta permitido;
            N) O Recorrente é primário;
            O) Meritíssima Juíza não tomou correctamente em consideração qualquer das circunstâncias que depunham a favor do agora Recorrente — maxime, as suas condições pessoais e a sua conduta anterior ou posterior aos factos;
            P) Nomeadamente que o recorrente percorreu uma distância muitíssimo reduzida; que não foi interveniente em acidente de viação; que não costuma beber habitualmente (a não ser um copo de vinho ao jantar pois ao almoço bebe água); que o teste de álcool foi realizado sem terem decorrido os 20 minutos legalmente estabelecidos como condição para que o resultado não seja considerado adulterado; que não tinha consciência (por não ser habitual beber) da taxa (cfr. transcrições supra);
            Q) Depois, porque em concreto se não verifica qualquer das razões que a Douta Sentença releva em justificação de tão graves sanções: a conduta do Recorrente — mesmo na visão que dela é pretendida na Acusação (Auto de notícia) e na Sentença — não assumiu, dentro do próprio tipo concreto (da condução de veículo em estado de embriaguez), grau de ilicitude tão elevado que fizesse parecer as condenações em causa como adequadas.
            R) Verifica-se um erro de julgamento.

           
TERMOS EM QUE, COMO NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA E SER DECLARADO NULA A SENTENÇA E O PROCESSO, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDENDO, DEVERÃO SER REAVALIADAS A PENA DE MULTA E A PROIBIÇÃO DE CONDUZIR APLICADAS AO RECORRENTE.
            DESSE MODO SENDO FEITA A COSTUMADA JUSTIÇA!
           

            3. A este recurso responde o Ministério Público em 1ª instância, dizendo em síntese:

            1. O arguido pugna pela revogação da sentença e a sua declaração de nulidade por falsidade da acta, falta de promoção (cfr. art. 119.0, ai. b), do CPP), por não terem sido elencados os factos não provados e, subsidiariamente, a redução da pena de multa e da pena acessória de inibição de condução aplicadas, por entender exageradas, considerando existir erro de julgamento, alegações que merecem a nossa total discordância.
            2. No que diz respeito à falsidade da acta da audiência de discussão, tendo
sido concretizada a leitura do auto de notícia, não se verifica qualquer
falsidade, por ter sido relatado o que efectivamente ocorreu. Por outro lado,
a falta de referência às disposições legais incriminatórios em nada inquina
a acta do alegado vício de nulidade.
            3. Quanto à nulidade insanável de falta de promoção, a mesma também não se verifica, pois que, com a remessa pelo Ministério Público do expediente recebido para julgamento em processo sumário, com os necessários aditamentos, e com a substituição da acusação pela leitura do auto de notícia, documentada na acta da audiência de discussão e julgamento, esgota-se o poder de promoção do Ministério Público.
            4. Por outro lado, com a leitura do auto de notícia resultam os factos de que o arguido veio acusado, sendo certo que, quer o elemento subjectivo, quer as disposições legais aplicáveis foram aditadas por despacho, pelo que não pode ora o recorrente alegar que foram feridos os seus direitos de defesa, pois que o ocorrido não configura tal possibilidade.
            5. No que respeita à nulidade da sentença por não se encontrarem reproduzidos os factos não provados, nenhuma censura merece a sentença recorrida ao não elencar exaustivamente os diversos factos objecto de discussão, pois que, obedecendo aos princípios subjacentes a esta forma de processo especial, a sentença, ditada oralmente, apenas terá de conter uma indicação sumária dos factos provados e não provados com relevância para a decisão, o que em nada atinge os direitos ou garantias de defesa do arguido.
            6. Quanto à medida da pena e da sanção acessória, discordamos da
argumentação expedida, pois, não obstante o arguido ser primário ter confessado os factos, circunstâncias que foram consideradas, certo é que fazem-se sentir fortes exigências de prevenção           7. Conclui-se, desde modo, que não deverá vingar o recurso interposto pelo recorrente.
            Termos em que,
            Decidindo pela manutenção da douta sentença recorrida, nos seus exactos termos e fundamentos, farão V. Ex.as, como sempre, JUSTIÇA!
           
4. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer dizendo:

            Desde já se refere que quanto às demais questões concordamos em absoluto com a resposta do Ministério Público, afigurando-se-nos que não tem o recorrente qualquer razão na respectiva argumentação.
            Porém, a apreciação da primeira das nulidades invocadas pode ser prejudicial das restantes, caso a mesma seja julgada procedente.
            Assim, quanto à alegada existência de nulidade insanável por não ter sido lida ao arguido com a sua total abrangência a acusação feita, caberá desde logo dizer que não se verifica qualquer falsidade da acta. Só por manifesto e injusto exagero da defesa se pode apresentar tal afirmação nas alegações de recurso.
            Em boa verdade, o que a acta diz é que a apresentação da acusação pelo Ministério Público foi substituída pela leitura do auto de notícia, de acordo com o disposto no art.° 389°,
n.° 2 do CPP. E, resulta da gravação da audiência que a Mma. Juíza apresentou do auto de notícia todos os factos essenciais, em relação aos quais o arguido exerceu o seu direito de defesa, confessando, aliás, integralmente todos esses actos, traduzidos na condução sobre o efeito do álcool.
            Mas o que se verifica ainda da mesma gravação da audiência, logo no seu início, - e isso não consta da acta da audiência, não sendo por isso falsa — é a indicação ao arguido em leitura, dos elementos que o Ministério Público acrescenta a fls. 28 dos autos, o que faz parte integrante da acusação.
            Com efeito, este Tribunal da Relação de Coimbra tem analisado esta questão através de recursos instaurados a propósito, tendo considerado que a falta de leitura do auto de notícia em julgamento sumário constitui uma nulidade insanável prevista no art.° 119°, al. b) do CPP. Neste sentido, decidiu o recente acórdão de 26-9-2012, no proc. n.° 7/12.5PTFIG.C1, no qual foi Relator o Exm. ° Desembargador, Dr. Luís Teixeira.
            Acontece que no presente caso não tratamos de uma omissão pura e simples de leitura do auto de notícia, mas sim de uma falta parcial da leitura da acusação, designadamente, dos elementos que o Ministério Público aditou àquela a fls. 28.

            Parece-nos, salvo o devido respeito por diferente opinião que também nesta situação incorrerá a audiência de julgamento em nulidade, prevista no art.° 119°, ai. c) do CPP.
            Neste contexto também este Tribunal da Relação, referindo-se ao elemento subjectivo da infracção, defende que cabe ao Ministério Público acrescentar ao auto de notícia esses factos integradores da infracção que também deverão ser objecto de leitura na audiência ao arguido. Assim decidiu, em situação em que não fora aditado, nem lido o elemento subjectivo da infracção, considerando haver nulidade de sentença, o acórdão da Relação de Coimbra de 21-10-2009, no proc. n.° 69/09.2GTCBR.C1., relatado pelo Exm. ° Desembargador Dr.° Jorge
Jacob:
            Assim, e tratando-se de crime doloso, da acusação deveria constar, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente. e segundo a fórmula que se segue ou outra equivalente mas inequívoca, que
o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
            Tais elementos não constavam da acusação deduzida (não constam do auto de notícia lido em audiência), não lhe foram aditados por despacho do M.P. nem foram comunicados ao arguido em audiência, aquando da leitura do auto de notícia (a acta de audiência não o menciona); e também não se mostra que tenha sido cumprido o disposto no art.
358°, 3. Contudo, na sentença que veio a ser proferida, sob os n° 111. A. 3. e 4., considerou provado que o arguido “agiu livre, voluntária e conscientemente” e que sabia a sua conduta proibida e punida por lei”. Tanto basta para que se conclua pela nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, al. a). b), por ter condenado por factos diversos dos descritos na acusação fora das condições legalmente previstas.
            Através da apontada jurisprudência e, tendo no caso em apreço sido lida apenas a factualidade objectiva constante do auto de notícia, tal não será suficiente para se considerar cumprida a formalidade legal do art.° 389°, n.° 2 do CPP com a inerente consequência
            Se assim, não for entendido e se for considerado não existir qualquer nulidade sobre esta matéria, quanto às demais questões não tem razão o recorrente, conforme bem fundamenta o Ministério Público na sua resposta.
            Desde logo, quanto à alegada nulidade pela não indicação dos factos não provados, acrescentar-se-á toda a matéria alegada foi dada como provada e não havendo contestação, não existem factos alegados em relação aos quais se impusesse pronunciamento, não se
verificando a apontada omissão.

            5. Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.

                                                           II

            Questões a apreciar:

            1. A nulidade insanável por falta de leitura do auto de notícia em audiência.

            2. A nulidade por omissão de pronúncia em virtude de o tribunal a quo não ter apreciado factos suscitados pelo arguido na sua contestação.

            3. A medida das penas, principal e acessória.

                                                                III

Cumpre decidir:

            1ª Questão: a nulidade insanável por falta de leitura do auto de notícia em audiência.

            1. Estamos perante o julgamento de arguido pela prática do crime de condução em estado de embriaguez que seguiu, no presente caso, a tramitação do processo sumário dos artigos 381º e seguintes do Código de Processo Penal.

            E segundo esta forma processual, nos termos do artigo 389º, nº 2, do respectivo diploma[1], o Ministério Público pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção.

            E foi precisamente esta a posição e pretensão do Ministério Público ao dar o despacho de fls. 28 dos autos, onde o refere expressamente.

            E como se pode verificar através do conteúdo desse despacho, o Ministério público diz que substitui a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia, acrescentando-se que:

             “ …o arguido conhecia as características da viatura e do local onde conduzia, sabendo que tinha uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l no sangue e, não obstante, decidiu conduzir a viatura nessas circunstâncias.

            Sabia igualmente que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

            Pelo que cometeu como autor material, um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal”.

            Ou seja, através deste despacho, o Ministério público como titular da acção penal, para além do objecto factual (os concretos factos ocorridos), imputou ao arguido o concreto crime praticado (artigo 292º, nº 1, CP) bem como a respectiva condenação na inibição de conduzir (art. 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal) e ainda o elemento subjectivo do tipo de crime em causa ou seja, o conhecimento e a consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

            2. Importa esclarecer que a dedução da acusação no processo é imprescindível e fundamental porquanto no nosso ordenamento jurídico-constitucional vigora o princípio do acusatório – art. 32º, nº 5, da CRP.

            A acusação tem, pois, por função, a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo; é ela que define o conjunto de factos que se entende constituírem um crime, estabelecendo assim os limites dos poderes cognitivos do tribunal[2].

Segundo Figueiredo Dias, nisto se traduz o princípio da vinculação temática do tribunal.

Este processo penal de estrutura acusatória existe para assegurar sobretudo e na plenitude, as garantidas de defesa do arguido. O que implica a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constem do seu objecto, uma vez definido este pela acusação.

3. Tendo por base estes considerandos, significa que a dita substituição da acusação pela leitura do auto de notícia, ao abrigo do artigo 389º, nº 2, do CPP, tem que efectivamente ser feita.

A este propósito decidimos em ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 26-9-2012, proferido no proc. n.° 7/12.5PTFIG.C1[3], a propósito de uma situação em que simplesmente existiu pura omissão ou não leitura do auto de notícia o seguinte:

“Ora, esta não leitura do auto de notícia corresponde a uma não promoção do processo pelo seu verdadeiro titular, o Ministério Público, faltando, por isso mesmo, a real e exacta acusação que define o âmbito do objecto processual a discutir. Trata-se sem dúvida de uma formalidade mas de uma formalidade essencial e insanável, que não se vê como possa ser ultrapassada uma vez que, manifestamente, não foi observada ou cumprida.

 A inobservância desta formalidade tem como “consequência fulminante” a nulidade do processo, ao abrigo do artigo 119º alínea b), do Código de Processo Penal – nulidade insanável – v. ac. do TRPorto de 30 de Junho de 1993, in CJ, Tomo III, fls. 260.

No mesmo sentido v. ac. do TREvora de 19.2.2002 in CJ, Tomo I, fls. 276 e acs do TRPorto de 13.2.1991, proferido no proc. nº 0410001[4], de 21.10.1992, proferido no proc. nº 9230611[5] e de 27.1.1993, proferido no proc. nº 9210897[6]”.

            É certo que, no presente caso, como observa e bem o Exmº Sr. PGA no seu parecer, não tratamos ou não estamos perante uma omissão pura e simples de leitura do auto de notícia, mas sim e apenas de uma falta parcial da leitura da acusação, designadamente, dos elementos que o Ministério Público aditou àquela a fls. 28, ou seja, a incriminação ou qualificação jurídica dos factos quer quanto ao crime quer quanto à pena acessória, quer quanto ao elemento subjectivo do tipo[7].

            Concordando com o douto parecer, também nós entendemos que “também nesta situação incorrerá a audiência de julgamento em nulidade, prevista no art.° 119°, al. c) do CPP”.
            Sobre o elemento subjectivo, é referenciado no dito parecer, o ac. deste Tribunal da Relação da Relação de Coimbra de 21-10-2009, proferido no proc. n.° 69/09.2GTCBR.C1
[8], referindo-se ao elemento subjectivo da infracção, onde se defende que cabe ao Ministério Público acrescentar ao auto de notícia esses factos integradores da infracção que também deverão ser objecto de leitura na audiência ao arguido.

             Pelo que aí se decidiu, “em situação em que não fora aditado, nem lido o elemento subjectivo da infracção, considerando haver nulidade de sentença, o acórdão.,     Assim, e tratando-se de crime doloso, da acusação deveria constar, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente. e segundo a fórmula que se segue ou outra equivalente mas inequívoca, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
           
4. No presente caso, pese embora tais elementos tenham sido aditados pelo Ministério Público no despacho de fls. 28, passando a fazer parte integrante da acusação (auto de notícia, face à possibilidade da apresentação daquela pela leitura daquele), a verdade é que os mesmos não foram lidos, logo comunicados ao arguido em audiência, aquando da leitura do auto de notícia.

            O legislador quer um processo sumário célere e simplificado, mas observador das elementares regras processuais e direitos do arguido.

            Que no caso não foram manifestamente observados como se impõe.

            5. Fazemos aqui um parêntesis apenas para referir que, face à actual redacção do artigo 389º, nº 2, do CPP, dada pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro (ainda não em vigor à data da realização do presente julgamento), foi dada nova redacção ao dito artigo e alínea, passando esta a ter o seguinte teor:

            “ Caso seja insuficiente, a factualidade constante do auto de notícia pode ser completada por despacho do Ministério Público proferido antes da apresentação a julgamento, sendo tal despacho igualmente lido em audiência”.

            Trata-se, em nosso entender, a tradução expressa naquela disposição legal, o que já anteriormente resultava dos princípios e demais observâncias legais sobre esta questão.

            6. Com a verificação e procedência desta nulidade insanável - do artigo 119º alínea b), do Código de Processo Penal – fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas também pelo recorrente, pelo que as mesmas não serão objecto de conhecimento por este tribunal de recurso.


IV

Decisão

Por todo o exposto, julgando procedente o recurso, decide-se julgar verificada a nulidade insanável do artigo 119º alínea b), do Código de Processo Penal e, consequentemente, decreta-se a nulidade do julgamento e respectiva sentença, devendo os autos ser remetidos ao Ministério Público (em primeira instância e junto do Tribunal recorrido), para efectivação do respectivo inquérito dada a inviabilidade legal da realização do julgamento ainda sob a forma de processo sumário atentos os prazos consignados no artigo 387º, do CPP.

Sem custas.

            (Luís Teixeira, Relator)

            (Calvário Antunes, Adjunto)


[1] Então em vigor à data da prática dos factos e consequente data da realização da audiência, que ocorreu em 8.2.2013,
[2] Abrangendo esse âmbito quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo quer a incriminação ou qualificação dos factos praticados.

[3] Consultável na base de dados informáticos do ITIJ desta Relação e do qual somos Relator.

[4] Com o seguinte sumário:

1- A nulidade da sentença decorrente da não enumeração dos factos provados ou da não indicação das provas que tenham servido para formar a convicção do tribunal - Arts. 379, a) e 374, n. 2, do C.P.P. - esta dependente de arguição antes do encerramento da audiência.
2- Não constando da acta referente a julgamento em processo sumário que o Ministério Publico apresentou a sua acusação na audiência ou que a substituiu pela
leitura do auto-de-notícia, há-de concluir-se que o Ministério Publico não promoveu o processo, com que foi cometida a nulidade insanável prevista na al. b) do Art. 119 do C.P.P..

[5] Com o seguinte sumário:

I - Em processo sumário, não figurando nos autos qualquer acusação, nem constando da acta de audiência que se haja procedido à leitura do auto de notícia, não podendo entender-se por tal a indicação sumária dos factos que se propunham provar, que, aliás, também não foi feita, verifica-se a falta de promoção do processo pelo Ministério Público referida no artigo 48 do Código de Processo Penal.
II - Tal falta configura nulidade insanável que torna inválido o julgamento e actos posteriores, devendo o processo ser remetido para a forma comum e julgado por juiz singular.

[6] Com o seguinte sumário:

Competindo ao Ministério Público promover o processo, nos termos do artigo 48, do Código de Processo Penal, e sendo a acusação (ou a sua substituição pela leitura do auto de notícia, no caso particular do processo sumário) a forma válida ou único meio de introdução dos autos em juízo (cfr. artigos 283, 389, nº 3, e 311 e seguintes, daquele diploma), sem ela não pode haver julgamento.
Tendo-se procedido a este apesar da sua falta, deverá o mesmo ser anulado, de harmonia com o disposto nos artigos 119, alínea b), e 122, do citado Código.

[7] Confirmação feita com a audição do CD de gravação de prova junto aos autos onde apenas foi lido ao arguido que “ no dia 2 de Fevereiro de 2013, pelas 4,14 horas conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...) , em Sangalhos, com uma taxa de álcool no sangue de 2,76 g/l no sangue”. Sendo-lhe perguntado logo de seguida se pretendia falar sobre estes factos.

[8] Relatado pelo Exm. ° Desembargador Dr.° Jorge Jacob.