Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
502/16.7T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ENERGIA ELÉCTRICA
CONSUMO FRAUDULENTO
SISTEMA ELÉCTRICO NACIONAL
SEN
Data do Acordão: 11/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JC CÍVEL E CRIMINAL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL Nº 328/90 DE 22/10, DL Nº 29/2006 DE 15/2, DL Nº 172/2006 DE 23/8
Sumário: 1. Face ao quadro legislativo em vigor [maxime, ao preceituado nos art.ºs 3º o), p) e aa), 31º, 35º, 70º e 71º do DL n.º 29/2006, de 15/02; 38º e 42º do DL n.º 172/2006, de 23.8; 1º, 2º e 3º do DL n.º 328/90 de 22.10; Regulamento da Qualidade de Serviço (RQS), aprovado pelo Regulamento n.º 455/2013; Pontos 15, 31. 1, e 31. 3, do Guia de Mediação, Leitura e Disponibilização de Dados para Portugal Continental (GMLDD), aprovado através DP n.º 4591-A/2007, de 13.3, da ERSE e revisto em 2016 pela Directiva 5/2016); 56º e seguintes, 62º, 239º e 269º do Regulamento das Relações Comerciais (RRC), aprovado pelo Regulamento n.º 561/2014, da ERSE], a única entidade com capacidade para gerir os fluxos de electricidade na rede eléctrica nacional e a energia consumida sem facturação é a EDP- Distribuição, cabendo-lhe ainda detectar as situações de consumo ilícito de energia por terceiros sem contrato de fornecimento.

2. A energia eléctrica associada a procedimentos fraudulentos não deve ser imputada a carteiras de comercializadores (cf. o Ponto 31.3 do GMLDD), naturalmente, porque os comercializadores dos consumidores em fraude não compraram a energia consumida ilicitamente e, assim, e tendo presente o estatuído no DL n.º 328/90, de 22.10, só o Distribuidor, em benefício do Sector Eléctrico Nacional (SEN), terá competência para exigir do consumidor final o ressarcimento do valor da energia consumida ilicitamente, e nunca o comercializador (ou, no limite, o produtor/múltiplos produtores a operar actualmente no SEN).

Decisão Texto Integral:    






        
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:        

            I. Em 01.4.2016, EDP, Distribuição - Energia, S. A. ( EDP, Distribuição) intentou a presente acção declarativa comum contra T (…) , Lda., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 86 946,88, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento.

            Alegou, nomeadamente: exerce em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica em alta, média e baixa tensão no concelho de x(...) e foi ali a entidade responsável pelo fornecimento, instalação, conservação e manutenção dos equipamentos de medição, o que sucedia nomeadamente relativamente à Ré; terem sido praticados vários ilícitos (que configura como crimes de furto de electricidade, quebra de selos, dano e perturbação de serviços), donde resultaram prejuízos de natureza patrimonial pelos danos provocados nas instalações e pela energia “desviada” para as instalações da Ré.

            A Ré contestou, por excepção, invocando a incompetência territorial do Tribunal e a prescrição (nos termos do art.º 10º da Lei n.º 12/2008, de 26.02), e, por impugnação, afastando o alegado na petição inicial (p. i.) e referindo, nomeadamente, que a existir “subtracção” de energia, a mesma não pode ser da responsabilidade da Ré, mas tão-só de problemas técnicos ou logísticos da A.. Concluiu pela improcedência da acção.

            A A. respondeu à matéria de excepção, concluindo pela sua improcedência e como na p. i..

            Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de incompetência territorial, relegou para momento ulterior o conhecimento da prescrição, firmou o objecto do litígio e enunciou os temas de prova.

            Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 28.3.2017, julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu condenar a Ré a pagar à A. a quantia de € 4 219,28 (quatro mil duzentos e dezanove euros e vinte e oito cêntimos), acrescida de juros vencidos à taxa legal por reporte e desde as datas de vencimento das facturas juntas de fls. 32 a 35 (no montante, cada uma, de € 105,78) e de juros de mora vincendos, à taxa legal, a contar da citação até integral pagamento, absolvendo-a do demais pedido.
Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            (…)

            Face ao exposto, e à interpretação dada pelo Tribunal a quo, foram violadas, ou incorrectamente interpretadas, entre outras, as normas e diplomas seguintes: art.ºs 3º aa), 3º o), 3º p), 31º, 35º, 70º e 71º do DL n.º 29/2006, de 15/02 (republicado pelo DL 215-A/2012, de 08.1) (que se junta como doc. 1)[1]; 38º, 42º do DL n.º 172/2006, de 23.8, republicado pelo DL 215-B/2012, de 08/10 (que se junta como doc. 2); 1º do DL n.º 344-B/82, de 1/9 (que se junta como doc. 3); 1º, 2º e 3º do DL n.º 328/90 de 22.10 (que se junta como doc. 4); Regulamento da Qualidade de Serviço (RQS), aprovado pelo Regulamento n.º 455/2013, publicado no DR-2ª Série, n.º 232, de 29.11.2013 (que se junta como doc. 5); Pontos 15, 31. 1, e 31. 3, do Guia de Mediação, Leitura e Disponibilização de Dados para Portugal Continental (GMLDD), aprovado, pela primeira vez, em 2007, através DP n.º 4591-A/2007, de 13.3, da ERSE e revisto em 2016 pela Directiva 5/2016, publicada no DR-2ª Série, n.º 40 de 26/02/2016 (que se junta como doc. 6); 56ºss, 62º, 239º e 269º do Regulamento das Relações Comerciais (RRC), aprovado pelo Reg. n.º 561/2014, da ERSE, publicado no DR, II Série n.º 246, de 22.12.2014 (que se junta como doc. 7); Regulamento Tarifário do Sector Eléctrico (RTSE), aprovado pelo Regulamento n.º 551/2014 da ERSE, publicado no DR, 2ª Série – n.º 241 de 15.12.2014 (doc. 8); e Perdas nas Redes de Distribuição – Portal ERSE (doc. 9).

            Remata dizendo que deverá revogar-se a sentença recorrida, reconhecendo, igualmente, legitimidade à A. quanto aos montantes peticionados da energia consumida ilicitamente pela recorrida.

            A Ré não respondeu.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, e apurados que estão os prejuízos decorrentes da actuação ilícita e culposa da Ré, surgindo a EDP- Distribuição como única autora, importa, pois, verificar e decidir se o direito aplicável consente, ou não, a declarada absolvição da Ré quanto à energia consumida por via ilícita e fraudulenta.  


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1. A Autora exerce em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica em alta, média e baixa tensão no concelho de x(...) . 

            2. Na qualidade de operador da rede de distribuição, a Autora é a entidade responsável pelo fornecimento, instalação, conservação e manutenção dos equipamentos de medição.

            3. A Autora é ainda responsável pela leitura das grandezas registadas e medidas nos equipamentos de contagem. 

            4. Os novos equipamentos de medição procedem à contagem e registo dos consumos de energia eléctrica à distância (telecontagem), para efeitos, além do mais, da facturação dos consumos a efectuar pelos comercializadores dos respectivos clientes. 

            5. A telecontagem permite ainda recolher informações sobre a ausência ou não das tensões e intensidades das correntes em cada fase disponibilizadas aos clientes, detectar consumos ilícitos e acautelar eventuais perturbações de rede.

            6. Os equipamentos de contagem aplicados nos diversos locais de consumo fazem parte integrante da rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão de serviço público, pelo que são considerados de utilidade pública.

            7. Razão pela qual a Autora efectua habituais rondas de leituras (a que alude o art. º 269º do RRC) e procede periodicamente, através de técnicos habilitados a vistoriar contadores, à fiscalização das instalações de consumo ligadas à rede eléctrica pública, tendo em vista despistar a existência de irregularidades, designadamente ao nível das chegadas e dos equipamentos de contagem.

            8. Nas instalações da Ré encontra-se instalada desde 09.12.2012 uma equipa de contagem com as características supra referidas. 

            9. Por força de sucessivos contratos de fornecimento celebrados entre o (…) e diversos comercializadores de energia a Autora abastece, pelo menos desde 15.11.1995, de energia eléctrica o local de consumo, sito na Avenida (...) , (CIL 69428915), em regime de Baixa Tensão Especial, a uma potência contratada de 50,00 KW.

            10. Em 09.02.2012 a Autora quando por questões técnicas procedia à substituição da equipa de contagem por outra de leitura à distância verificou que a instalação da Ré tinha duas correntes interrompidas, instalados dois TI,s (Transformadores de Intensidade) de 300/5 e um de 500/5 desselados, e um cabo de alimentação que não era abrangido por qualquer dos TI,s.

            11. Alguém a mando da Ré e no seu interesse procedeu à interrupção de duas correntes, alterou um dos TI,s para 500/5 e efectuou uma ligação directa à caixa de coluna a montante da equipa de contagem de energia eléctrica, apoderando-se deste bem sem registo e contra a vontade da operadora de rede, situação que foi verificada em 09.02.2012.

            12. Efectuada a vistoria acima referida e elaborado o respectivo Auto, a Autora procedeu à desligação à rede pública e ligou os TI,s correctamente, tendo informado a Ré da situação, bem como de que se encontrava a consumir energia subfacturada.

            13. Em 14/02/2012, na sequência de nova intervenção na instalação da Ré para substituição do TI 500/5 por 300/5, os técnicos da Autora constataram que estavam uma vez mais interrompidas duas correntes, tendo de novo informado a cliente da situação e elaborado o respectivo auto (cf. auto de inspecção de fls. 19 a 21). 

            14. Em 04.5.2012, em virtude de se tratar de uma instalação alvo de reincidência de fraude, a Autora mantendo a equipa de telecontagem sob vigilância remota detectou a alta de uma corrente.

            15. Assim, em 07.5.2012, os técnicos da Autora efectuaram nova intervenção na instalação da cliente, para reposição do TI em funcionamento, tendo verificado que o selo da caixa de TI,s havia sido cortado e colado e uma das correntes estava novamente cortada (cf. auto de inspecção junto a fls. 22 e 23. 

            16. A Ré, com a referida conduta demonstrou total desprezo e desrespeito por bens alheios, repetindo ao longo dos tempos a violação de selos e instalações de propriedade da EDP- Distribuição com intuito de se apoderar de energia eléctrica, contra a vontade da respectiva proprietária, e não atendeu às recomendações que lhe foram dadas pela Autora no sentido de pôr termo à situação.

            17. A Autora procedeu a uma análise do histórico dos consumos da instalação em causa e verificou que houve uma quebra significativa dos consumos efectuados em termos de facturação.

            18. Pelo sucedido, corrigiu os cálculos, procedeu à regularização da facturação e enviou à Ré, respectivamente, as facturas n.º 10474763559, no montante de € 55 098,94, n.º 10474763552, no montante de € 946,13, n.º 1044763555, no montante de € 105,78 e n.º 10474763550, no montante de € 105,78 (cf. documentos de fls. 28 a 35). 

            19. O referido consumo de energia não facturada pela Ré e o exame de verificação e rectificação das ligações na equipa de contagem que esta obrigou a Autora a fazer, apurou-se no valor global de € 56 256,63. 

            20. Em 28.9.2013 a Ré celebrou novo contrato de fornecimento de energia eléctrica, desta feita, em mercado liberalizado (com a “(…), SL”).  

            21. A partir do dia 28.9.2013, a informação remota disponibilizada pela equipa de contagem instalada na unidade hoteleira, volta a indiciar desequilíbrios nos consumos e percas significativas de energia fornecida através das três fases que compõem o cabo subterrâneo pelo qual é alimentado, a partir do PT n.º 065 de x(...) , o referido local de consumo. 

            22. Em 12.12.2013 os técnicos da Autora, uma vez que a Ré é alimentada a partir de um cabo subterrâneo que sai directo do PT para o Hotel, na tentativa de identificar a anomalia, montaram uma segunda equipa de contagem, igual à instalada na cliente, na saída do posto de transformação. 

            23. O referido equipamento de contagem instalado no PT, entre 12/12/2013 e 08/4/2014, registava leituras diferentes das leituras registadas pelo equipamento instalado na cliente, o que resultava da “subtracção” ou “passagem à terra” de energia a partir do cabo de alimentação do hotel.

            24. Podendo estar em causa a segurança de pessoas e bens a Autora decidiu na manhã do dia 08.4.2014 analisar minuciosamente o referido cabo eléctrico a partir do PT, não tendo o responsável da unidade hoteleira, aqui Ré, J (…), permitido que os técnicos de serviço da EDP verificassem o estado do respectivo cabo eléctrico bem como dos equipamentos de chegada e contagem existentes no hotel. 

            25. Revelando-se imprescindível e urgente proceder ao corte de energia para efectuar a substituição ou reparação do respectivo cabo de chegada, o responsável pelos trabalhos da Autora contactou por diversas vezes o dito J (…)  no sentido de garantir o fornecimento ao hotel através de gerador porquanto durassem os trabalhos, não tendo este aceite. 

            26. O responsável da referida unidade hoteleira, após ter recusado por diversas vezes a entrada dos colaboradores da EDP- Distribuição nas instalações, encontrando-se sem energia, informou a Autora que autorizava a substituição do respectivo cabo eléctrico na manhã do dia seguinte e conforme então combinado, a Autora decidiu suspender os trabalhos e retomá-los nessa manhã.

            27. A EDP- Distribuição deu conhecimento da ocorrência, designadamente à Direcção Regional de Economia e ao Comercializador da cliente, sendo que a GNR do Posto Territorial de x(...) esteve presente no local.

            28. Na manhã do dia 09.4.2014, os técnicos da Autora retiraram o respectivo cabo e verificaram que este havia sido intervencionado (sem o seu conhecimento ou consentimento) a cerca de um metro do local onde se encontrava a equipa de contagem.

            29. O referido cabo apresentava o revestimento de protecção dos condutores descarnado em vários pontos e sinais inequívocos de derivação para alimentação de um cabo alternativo de alimentação às referidas instalações, sem passar pelo contador. 

            30. Verificando-se, assim, que a referida instalação se encontrava ligada à rede eléctrica pública, através de uma ligação directa, sem contagem.

            31. Em consequência dos referidos factos, a Autora teve de proceder à reparação dos elementos de rede, onde despendeu, tendo em conta apenas os principais bens estragados/repostos, € 2 664,67 (€ 1 566,67 encargos com o PSE + € 1070 encargos com pessoal da EDP+ € 28 custos diversos), cf. doc. de fls. 56.

            32. Comparando a energia medida desde o dia 12/12/2013 até ao dia 08/4/2014, pelo contador de verificação então instalado à saída da PT com o instalado na Ré, resulta que a energia total fornecida ao hotel no referido período foi de 71.136,75KWh (cf. doc. de fls. 57). 

            33. Devido à conduta da Ré o contador de facturação instalado na cliente apenas registou para o referido período 28.729,25 KWh.

            34. A Ré consumiu, além do mais, energia não facturada entre 11.9.2013 e 08.4.2014, nos termos vertidos no gráfico de potência tomada após a implementação do serviço de telecontagem no referido hotel transmontano, junto de fls. 58 a 60.

            35. A energia consumida (e não contabilizada) pela Ré, no referido período de 11.9.2013 a 08.4.2014, perfaz o montante de € 5 353,30 (cf. folha de cálculo/acertos de facturação juntas de fls. 61 a 63).

            36. O referido consumo de energia (não facturada) pela Ré e o exame de verificação e rectificação das ligações na equipa de contagem que esta obrigou a Autora a fazer, apurou-se no valor global de € 8 017,97 (€ 2 664,67 + € 5 353,30).

            37. Entre o dia 26.4.2014 e o dia 25.6.2014, a equipa de contagem instalada no Posto de Transformação registou, de novo, leituras diferentes das leituras registadas pelo equipamento de contagem instalado no H (…), maxime a equipa instalada no PT registou 23.270 KWh e a equipa instalada no Hotel 12.804,25 KWh - menos 10.466,25KWh que o fornecido (cf. entre outros os documentos juntos a fls. 64 e 65).

            38. Entre o dia 25.6.2014 e o dia 17.7.2014, a equipa instalada no PT registou 9.459 KWh e a equipa instalado no Hotel 4316 KWh - menos 5.143,5KWh que o fornecido (cf., entre outros, os documentos juntos a fls. 66 e 67). 

            39. A Autora na tentativa de resolver o problema, evitando o corte de fornecimento ao H (…), propôs por carta 817/14RCMDA, de 18.7.2014, à gerência do hotel, tendo esta aceite, a remoção da equipa de contagem para o exterior do edifício.

            40. No final do dia 25.8.2014, quando os técnicos ao serviço da Autora procediam aos respectivos trabalhos, ao retirar o cabo que alimentava a cliente, verificaram que este havia sido, uma vez mais, intervencionado (sem o seu conhecimento ou consentimento) a cerca de 20 cm do local onde então se encontrava instalada a equipa de contagem.

            41. O referido cabo apresentava, de novo, o revestimento de protecção dos condutores descarnado em vários pontos e sinais inequívocos de derivação para a alimentação de um cabo alternativo de alimentação às referidas instalações sem passar pelo contador, verificando-se que a referida instalação se encontrava de novo ligada à rede eléctrica pública, desta forma.

            42. Entre o dia 17.7.2014, e o dia 25.8.2014, a equipa de contagem instalada no Posto de Transformação registou, de novo, leituras diferentes das leituras registadas pelo equipamento de contagem instalado no H (…), maxime a equipa instalada no Posto de Transformação registou 12 841 KWh e a equipa instalada no H (…) 9.110KWk - menos 3.730KWh que o fornecido.

            43. Em consequência dos referidos factos, a Autora teve de proceder à reparação dos elementos de rede e à colocação da equipa de contagem no exterior, tendo em conta apenas os principais bens danificados/reposição, no que despendeu € 546,92 acrescido de IVA à taxa legal em vigor (cf. nota discriminativa dos trabalhos realizados junta a fls. 68). 

            44. A energia consumida (e não contabilizada) pela Ré no período de 26.4.2014 a 25.8.2014 perfaz o montante de € 2 945,17 (cf. folha de cálculo/acertos de facturação juntas a fls. 73 e 74).

            45. O referido consumo de energia não facturada pela Ré e o exame de verificação e rectificação das ligações na equipa de contagem que esta obrigou a Autora a fazer, apurou-se no valor global de € 3 492,09 (€ 2 945,17 + € 546,92).

            46. A Autora, na sequência de uma acção de manutenção preventiva sistemática efectuada à rede eléctrica, em x(...) , verificou a existência de uma ligação directa à rede com origem na rede eléctrica estabelecida ao longo da fachada anexa ao edifício onde opera a Ré, com vista a abastecer o referido estabelecimento sem contagem.

            47. Por tal facto, no dia 11.5.2015, cerca das 11:00h, os técnicos da Autora acompanhados pela GNR de x(...) , deslocaram-se ao local e verificaram a existência de uma ligação naqueles moldes, registaram as intensidades no início e fim dos trabalhos, desligaram e cortaram os cabos que alimentavam o referido estabelecimento, verificando-se, uma vez mais, que a instalação se encontrava ligada à rede eléctrica pública desta forma.

            48. Em consequência dos referidos factos, a Autora teve de proceder à reparação dos elementos de rede e custos com autoridades no que despendeu, tendo em conta apenas os principais bens danificados/reposição, um valor de € 796,13 (cf. documentos juntos de fls. 82, 83 e 94).

            49. A energia consumida (e não contabilizada) pela Ré, no período de 26.8.2014 a 11.5.2015, perfaz o montante de € 3 754,06 (cf. folha de cálculo/acertos de facturação junto a fls. 95).

            50. O referido consumo de energia não facturada pela Ré e o exame de verificação e rectificação das ligações na equipa de contagem que esta obrigou a Autora a fazer, apurou-se no valor global de € 4 550,19 (€ 3 754,06 + € 796,13).

            51. Com as referidas condutas, a Ré actuou, de forma continuada, com intuito de se apoderar de energia eléctrica, contra a vontade da legítima proprietária deste bem, bem sabendo que tais condutas eram proibidas por lei. 

            52. A energia eléctrica fornecida à Ré foi consumida por esta no âmbito da actividade hoteleira.

            53. A Ré é uma sociedade por quotas que tem por objecto o “Exercício de actividades turísticas, designadamente de hotelaria e similares, prestação de serviços de animação turística, bem como o exercício de actividades de formação hoteleira”. 

            54. Os serviços da A. procediam, mensalmente, à leitura do contador. 

            55. A Autora apresentou junto do Ministério Público de x(...) , diversas queixas-crime contra a Ré que deram origem, respectivamente, aos Processos-crime n.ºs 49/12.0TAFCR e 53/14.TAFCR, os quais foram arquivados.

            56. Todos os eventos descritos na petição inicial foram da autoria de alguém a mando da Ré. (resposta ao convite de aperfeiçoamento formulado em audiência prévia)

            2. E deu como não provado:

            a) A contagem mensal e o acesso dos técnicos da Autora contou sempre com a total colaboração dos legais representantes da Ré;

            b) A existir “subtracção” ou “passagem à terra” de energia, as mesmas podem ser, tão-só, de problemas técnicos ou logísticos da Autora.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Face ao peticionado pela A., a 1ª instância atendeu ao prejuízo (“imediato”) decorrente dos danos e intervenções provocados pelas manobras fraudulentas executadas a mando da Ré (quantificados em II. 1. 18., 2ª parte; 31, 43 e 48, supra) mas desconsiderou/desatendeu todo o (demais) consequente prejuízo atinente ao consumo fraudulento de energia por parte da Ré (solertemente desviada de qualquer procedimento de medição e/ou verificação), por entender, no que se refere à energia consumida ilicitamente, que apenas o(s) comercializador(es) EDP- Serviço Universal, S. A., e K... , SL, têm o direito de demandar a Ré, no sentido de cobrar a energia devida, cabendo à A./ EDP- Distribuição, enquanto Operador de Rede de Distribuição (ORD), apenas o direito de exigir a tarifa do uso de rede da energia real consumida dos respectivos comercializadores.

            Esta a matéria que importa reapreciar.

            4. O Mm.º Juiz a quo, partindo do instituto da responsabilidade civil extracontratual (art.º 483º, n.º 1 do Código Civil/CC), na parte atendida/“primeiro plano” de abordagem, dúvidas não teve em afirmar a existência dos correspondentes pressupostos, desde logo, a existência de um comportamento humano (cf., sobretudo, os factos provados 10., 11., 13. a 16., 28. a 31., 40., 41., 43., 46. a 48., 51. e 56.) violador de direitos alheios, entre outros, o direito à propriedade e os inerentes à actividade de distribuição de energia eléctrica a cargo da A.. (cf. os factos 1. a 3., 6., 8., 10., 12. a 17., 19., 21., 23., 28. a 31., 40., 41., 43. e 46. a 48.), e nessa medida ilícito. Concluiu, ainda, que a conduta da demandada foi a causa adequada à produção dos sobrevindos prejuízos (ou seja, aqueles danos e intervenções não teriam ocorrido se não fosse pela actuação da Ré), a qual se reputa como culposa, e nessa medida imputável civilmente à demandada que, por isso, responde pelos danos por si provocados.

            E numa perspectiva tendencialmente inserida já num plano de violação contratual (art.º 1º, n.º 1 do DL n.º 328/90, de 22.10) mas ainda no contexto daquele “primeiro” enquadramento de análise, concluiu igualmente pela procedência da pretensão da A..

            Porém, no tocante ao demais peticionado, inserido no denominado “segundo plano” de análise, veio a concluir pela falta de legitimidade da A. em demandar a Ré (“no que ao valor dessa energia respeita, este não é devido a esta Autora, mas a terceiros, que podem reclamar o seu pagamento”), ainda que tenha rematado que “não se deve (ou pode) pois daqui retirar que a Ré, depois de protagonizar tão grave e inaudita conduta, está isenta ou dispensada de proceder ao pagamento da energia que efectivamente consumiu através dos esquemas de fraude na contagem provados nos autos”…

            Esta, como se referiu, a parte objecto da presente impugnação.

            - Constitui violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica qualquer procedimento fraudulento susceptível de falsear a medição da energia eléctrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo de potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra de selos ou por violação dos fechos ou fechaduras (art.º 1º, n.º 1). Qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor (n.º 2).

            - Se da inspecção referida no artigo anterior [inspecção da instalação eléctrica sempre que haja indícios ou se suspeite da prática de qualquer procedimento fraudulento] se concluir pela existência de violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica por fraude imputável ao consumidor, o distribuidor goza dos seguintes direitos: a) Interromper o fornecimento de energia eléctrica, selando a respectiva entrada; b) Ser ressarcido do valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude e dos juros que estiverem estabelecidos para as dívidas activas do distribuidor (art.º 3º, n.º 1).

            - Para a determinação do valor do consumo irregularmente feito ter-se-á em conta o tarifário aplicável, bem como todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o acto fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário (art.º 6º, n.º 1)[3].

            6. Podemos dizer que o Mm.º Juiz a quo considerou tacitamente revogado em múltiplos aspectos o regime instituído pelo DL n.º 328/90, de 22.10, invocando para o efeito o princípio da actualidade da interpretação jurídica plasmado no n.º 1 do art.º 9º do CC: A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

            No entendimento do Mm.º Juiz a quo, a solução encontrada para a questão a reapreciar decorrerá daquela perspectiva.

            Porém, salvo o devido respeito por opinião em contrário, cremos que a mesma poderá conduzir a uma resposta contrária ao princípio da justiça, passando a Ré a dispor de novas “condições”/”prerrogativas” para evitar o pagamento de quantias inequivocamente devidas pelo consumo fraudulento de energia eléctrica, o que, em derradeira análise, se repercutirá sobre as demais empresas (entre as quais, a própria A.) e os cidadãos em geral.

            Ao contrário da perspectiva defendida na decisão sob censura, afigura-se que o quadro normativo vigente não afasta, antes reclama, a aplicação do DL n.º 328/90, de 22.10 (conjugado com as demais normas depois publicadas, conforme se referirá infra), de resto, o único diploma vigente especialmente talhado para dar resposta à situação ilícita, culposa e danosa que subsiste…

            7. O referido diploma, à luz da posição actualista, mantém, pois, o seu sentido e alcance enquanto harmonicamente integrado na “unidade do sistema jurídico”; o ponto de vista valorativo que presidiu à feitura da lei mantém plena actualidade! Aplicando-o, ficará salvaguardado o princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica.

            8. A ´ratio legis` é a razão ou fim que ´razoavelmente` deve atribuir-se à lei; inquirir da ´ratio legis` redunda em investigar qual seja a melhor solução - mais justa e mais útil - dentre as que a lei pode comportar.

            Para todo e qualquer caso, importa encontrar uma solução exigida pelo direito enquanto validade normativa, uma solução normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto e aos interesses em presença, a que melhor corresponda aos interesses da vida.[4]

            Sabemos que “toda a interpretação jurisdicional de uma lei implica uma correcção ou um aperfeiçoamento do direito[5]; “o objecto problemático da interpretação jurídica não é a norma como objectivação cultural (…), mas o caso decidendo, o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo (…), o que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o ´prius` problemático-intencional e metódico[6]; o intérprete deverá “adaptar a norma jurídica ao ambiente social, económico e jurídico do tempo presente, no respeito pela sua ´ratio` e pela unidade do direito[7].

            Assim se prosseguirá e materializará a pretensão de realizar uma concreta justiça material, superando um entendimento formalista e geral-abstracto por uma intenção normativa material e concreta, “pois verdadeira justiça só será a que se recusa a cobrir com o equilíbrio aparente das justificações formais, as manifestas injustiças dos desequilíbrios reais[8] - “verdadeiro jurista não é aquele que ´conhece` o direito conseguido, mas aquele que, assumindo a intenção do direito, colabora no acto do seu histórico constituir-se”.[9]

            9. Ressalvado o devido respeito por diverso entendimento, dir-se-á, desde já, que se antolha correcto o entendimento levado às alegações de recurso no que concerne ao pagamento das quantias devidas pela Ré em razão da energia ilicitamente consumida e não medida (o que difere em muito da situação de consumo regular de energia no âmbito de um contrato de fornecimento celebrado com um comercializador).

            Para o correcto enquadramento normativo da situação em análise, importa considerar, desde logo, o regime jurídico instituído pelo DL 29/2006, de 15.02 (com as alterações introduzidas pelo DL 215-A/2012, de 08/.10), que veio introduzir profundas alterações ao Sistema Eléctrico Nacional (SEN), estabelecendo as bases gerais da sua organização e funcionamento (art.º 1º) e que determinaram a separação das actividades de produção, comercialização e de distribuição de energia, bem como o disposto no DL 172/2006, de 23.8 (com as alterações conferidas pelo DL 215-B/2012, de 08.10), que veio estabelecer o regime jurídico aplicável a estas mesmas actividades.

            10. Em matéria de fraudes e furtos relacionadas com o consumo de energia eléctrica mantém-se, até hoje, em vigor o regime especial previsto no DL n.º 328/90 de 22.10.

            À data da sua publicação, o sector eléctrico apresentava uma estrutura orgânica diferente da actual - a produção, transporte, distribuição e comercialização de energia pertenciam a uma empresa única (Electricidade de Portugal, S. A.) -, e o legislador conferiu nos termos do DL n.º 328/90, de 22.10, à Distribuição, e não aos outros sectores de actividade, o combate à fraude de energia, que começava a ser preocupante e representava, tal como hoje, um problema económico grave para o sector e para o País.[10]

            11. A A./recorrente detectou sucessivos procedimentos fraudulentos nas infra-estruturas eléctricas de chegada e nos equipamentos de medida instalados no interior do estabelecimento comercial da Ré, que impediam o registo total dos consumos de energia efectuados. E era a Recorrente, enquanto ORD (Operador da Rede de Distribuição), e nunca os Comercializadores ou os Produtores de energia, que tinha legitimidade e competência para gerir a rede eléctrica, designadamente, minimizando as perdas, através da detecção de práticas fraudulentas inerentes ao consumo ilícito de energia.

            Assim, e designadamente:

            - A recorrente é a única entidade do SEN (Serviço Eléctrico Nacional) a exercer em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica em alta, média e baixa tensão (cf. II. 1. 1., supra e, nomeadamente, os art.ºs 31º, 35º, 70º e 71º do DL n.º 29/2006, de 15.02, e art.ºs 38º, 42º do DL n.º 172/2006, de 23.8, republicado pelo DL 215-B/2012, de 08.10).

            - Na qualidade de ORD, a recorrente é a responsável pelo fornecimento de energia, no quadro do Regulamento da Qualidade de Serviço (RQS) do SE, aprovado pelo Regulamento n.º 455/2013 (publicado no DR, 2ª série, de 29.11) e pela instalação, conservação e manutenção dos equipamentos de medição, conforme o disposto no art.º 239º do Regulamento das Relações Comerciais (RRC) do SE aprovado pelo Regulamento n.º 561/2014, da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) (publicado no DR, 2ª série, de 22.12) e o disposto na Secção I, do Capítulo VI, do Guia de Mediação, Leitura e Disponibilização de Dados para Portugal Continental (GMLDD), aprovado através DP n.º 4591-A/2007, de 13.3, da ERSE e revisto em 2016 pela Directiva 5/2016 da ERSE, publicada no DR, 2ª série, 26.02.

            - Nos termos do disposto no Ponto 15, Secção IV, do GMLDD, é também responsável pela leitura das grandezas registadas e medidas nos diversos equipamentos de contagem instalados nos locais de consumo (LC), pertença dos clientes, razão pela qual a recorrente efectua rondas de leituras (art.º 269º do RRC), e procede periodicamente à fiscalização das instalações de consumo ligadas à rede eléctrica pública, tendo em vista despistar a existência de irregularidades, designadamente adulteração dos equipamentos eléctricos e de contagem.

            - Face ao quadro legislativo em vigor, a A. EDP- Distribuição apresenta-se assim como a única entidade com capacidade para gerir os fluxos de electricidade na rede eléctrica nacional e verificar a energia consumida sem facturação, bem como a energia consumida ilicitamente por terceiros sem contrato de fornecimento.

            12. O DL 29/2006, de 15.02 (na redacção do DL 215-A/2012, de 08.10), define como Operador de Rede de Distribuição a pessoa singular ou colectiva que exerce a actividade de distribuição e é responsável, numa área específica, pelo desenvolvimento, pela exploração e pela manutenção da rede de distribuição e, quando aplicável, das suas interligações com outras redes, bem como por assegurar a garantia de capacidade da rede a longo prazo (art.º 3º aa)). O mesmo diploma define a actividade de “Distribuição” como sendo a veiculação de electricidade em redes de distribuição de alta, média, e baixa tensões para entrega ao cliente, excluindo a comercialização (art.º 3º o)) e define “distribuidor” como sendo a entidade titular de uma concessão de distribuição de electricidade (art.º 3º p)).

            Segundo o Ponto 31.1 do GMLDD a verificação do procedimento fraudulento e o apuramento do período temporal, da potência e da energia que lhe possam estar associados compete ao operador da rede a cuja rede a instalação em fraude esteja ligada e obedecem às regras constantes da legislação específica aplicável, sem prejuízo da observação dos princípios gerais estabelecidos no presente Guia de Medição e em documento complementar.[11]

            Resulta do Ponto 31.3 do GMLDD, que a energia eléctrica associada a procedimentos fraudulentos não deve ser imputada a carteiras de comercializadores, naturalmente, porque os comercializadores dos consumidores em fraude não compraram a energia consumida ilicitamente e, assim, e tendo presente o estatuído no DL n.º 328/90, de 22.10, só o Distribuidor, em benefício do SEN, terá competência para exigir do consumidor final o ressarcimento do valor da energia consumida ilicitamente, e nunca o comercializador (ou, no limite, o produtor/múltiplos produtores a operar actualmente no SEN).

            E nos termos do ponto 31.2.2.1., Quando existirem evidências claras e registos fiáveis nos equipamentos de medição da energia eléctrica consumida associada ao procedimento fraudulento, serão considerados os dados assim apurados e o respectivo histórico, pelo que os critérios para a determinação do valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude são assim os previstos no referido ponto e antes no art.º 6º do DL n.º 328/90, de 22.10.

            13. Por conseguinte, como também se refere na alegação de recurso, podemos afirmar a obrigação e legitimidade do operador de rede de distribuição, para a acção, por um lado, para peticionar os prejuízos decorrentes da violação dos equipamentos eléctricos e da adulteração da equipa de medida existentes nas instalações da Ré (pretensão já atendida na decisão sob censura), e, por outro lado, na salvaguarda do interesse público, para peticionar o consequente consumo ilícito de energia ocorrido e não facturado no referido LC, propriedade da Ré.

            E também não vemos como não afirmar que o valor devido em virtude deste consumo ilícito, aqui reclamado pela A., enquanto concessionária de serviço público (art.º 31º, n.º 1 do DL 29/2006, de 15.02)[12], não respeita a qualquer cobrança de valores relativos ao pagamento da prestação regular do serviço de fornecimento de energia eléctrica, mas antes à indemnização devida ao SEN (e que nele deverá ser revertida/repercutida) pelo valor correspondente à energia eléctrica ilicitamente consumida, em virtude da referida actuação fraudulenta e que não foi facturada pelos comercializadores contratualizados - numa primeira fase, a EDP - Serviço Universal e, depois, a K... , SL, apenas facturaram e cobraram os consumos de energia que foram medidos e registados pelo contador instalado no referido LC (local de consumo), pelo operador de rede de distribuição, no âmbito dos respectivos contratos de fornecimento celebrados entre a Ré e os referidos comercializadores de energia.

            Foi essa energia, subtraída da rede eléctrica nacional, e não dos comercializadores contratualizados - pois nunca chegou a ser medida pelo equipamento de contagem, propriedade da A., instalado no referido LC, nem desta energia foi dado conhecimento aos respectivos comercializadores, para efeitos de facturação -, que a Ré integrou no seu património e não pagou. E a A., na qualidade de ORD, não foi desde logo remunerada pela totalidade dos encargos de uso rede e de potência efectivamente devidos, pois os comercializadores em causa apenas cobraram parte da energia que a Ré consumiu.

            14. Como a acção se acha configurada, a A./recorrente é a única entidade do SEN com competência e legitimidade para os presentes autos, sob pena de, como também foi alegado, poder ser inexigível toda a energia consumida ilicitamente, e cujo custo foi suportado de forma difusa pela recorrente, por todos os comercializadores, por todos os consumidores no activo em cada dia de cada período do consumo ilícito, em benefício dos infractores e em prejuízo de todos os consumidores cumpridores e do são funcionamento do mercado de electricidade.

            15. Toda a matéria alegada pela A./Recorrente quanto aos prejuízos sofridos por via das manobras fraudulentas de contagem efectuadas pela Ré, foi dada como provada pelo tribunal a quo.

            É por demais evidente a insubsistência da invocada excepção de prescrição suscitada pela Ré, também para o dito “segundo plano” de análise, e que o Tribunal a quo declarou improcedente relativamente ao pedido já conhecido.[13]

            Perante a factualidade dada como provada, conclui-se que a Ré violou o contrato de fornecimento de energia eléctrica (por fraude imputável ao consumidor) - não se mostrando ilidida a presunção do n.º 2 do art.º 1 do DL n.º 328/90, de 22.10 -, a que se contrapõe o direito ao ressarcimento do valor do consumo irregularmente feito (bem como dos juros e eventuais despesas), segundo os critérios supra referidos e cujo cômputo não suscita qualquer reparo.

             Dir-se-á, ainda, que a descrita actuação da Ré, abusiva e contrária aos mais elementares princípios de boa fé, não se restringe ao domínio “contratual”, desde logo, em virtude da múltipla e ostensiva violação do direito de propriedade, a reclamar adequada indemnização, porquanto a propriedade, assim como os direitos absolutos de aproveitamento económico exclusivo e os direitos de personalidade, estão, como sabemos, no cerne da protecção decorrente da responsabilidade civil por actos ilícitos, sendo que o ressarcimento dos danos correspondentes é imposto pela norma do art.º 483º, n.º 1 do CC, verificando-se, in casu, os correspondentes pressupostos, maxime, a prática, pela Ré, de um facto (ilícito e culposo) que foi causa adequada do alegado e demonstrado dano.[14]

            16. Os prejuízos derivados de um tal comportamento, ilícito e culposo, são os decorrentes da danificação dos equipamentos e de todo o processo de verificação e eliminação da fraude (já atendido, no montante de € 4 219,28), bem como o acréscimo de preço devido correspondente à ilícita e definitiva apropriação de determinado bem (electricidade), no montante global de € 68 097,60 (cf. II. 1. 18.-1ª parte/duas primeiras facturas, 35., 44. e 49., supra).

            Quanto aos juros moratórios mantém-se o decidido em 1ª instância: importa atender à data de vencimento das facturas aludidas em II. 1. 18., juntas de fls. 28 e seguintes; sobre o demais peticionado serão devidos juros, à taxa legal, desde a citação.

            17. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Pelo exposto, revogando-se a decisão recorrida, condena-se a Ré a pagar à A. a quantia de € 72 316,88 (setenta e dois mil, trezentos e dezasseis euros e oitenta e oito cêntimos), acrescida de juros moratórios à taxa legal desde as datas de vencimento das facturas dita em II. 1. 18., supra, e, quanto ao valor remanescente, a contar da citação, até integral pagamento.

            Custas (nas instâncias) pela Ré/apelada.


*

21.11.2017

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Alberto Ruço


           


[1] A junção destes documentos com a alegação de recurso (os oito primeiros referentes ao vasto quadro normativo do sector energético; o último, relativo às “perdas nas redes de distribuição” de 1997 a 2015) justifica-se à luz do disposto no art.º 651º, n.º 1 do CPC, contribuindo, desde logo, para uma mais fácil/expedita consulta das inúmeras normas que regulam o Sistema Eléctrico Nacional

[2] Refere-se, no preâmbulo deste diploma, nomeadamente, que “a medida e controlo dos consumos de energia eléctrica e da potência tomada são alvo de práticas fraudulentas assaz generalizadas a nível internacional, visando a redução dos valores facturados, com a consequente fuga ao pagamento dos consumos reais”, constituindo “exemplo disso a captação de energia sem aparelhos de medição ou a montante destes e a viciação desses aparelhos ou dos dispositivos de segurança e de controlo”, pelo que, “estando em causa um bem essencial - a energia eléctrica - e o serviço público da sua distribuição, as práticas referidas, além de constituírem uma violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica, por fuga ao pagamento devido, configuram ainda um ilícito social”, mostrando-se “indispensável e urgente tomar medidas que sejam adequadas à erradicação de tais práticas e, ao mesmo tempo, permitir que os distribuidores se possam ressarcir do valor dos consumos verificados durante a existência da fraude e das despesas dela emergentes”.
[3] Cf., no entanto, “ponto II. 12., in fine”, infra.
[4] Vide Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, Arménio Amado-Editor Sucessor, Coimbra, 1987, págs. 17, nota 1; 43 e segs. e 105 e seguinte; J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador (17ª reimpressão), Almedina, 2008, pág. 191 e A. Castanheira Neves, O direito como validade, in RLJ, 143º, 175.
[5] Becker, apud António Pinto Monteiro, Interpretação e o protagonismo da doutrina, RLJ, 145º, 67.

[6] Vide A. Castanheira Neves, O Actual Problema da Interpretação Jurídica, in RLJ, 118º, págs. 257 e seguinte.
[7] Vide António Pinto Monteiro, estudo cit., RLJ, 145º, 67.
[8] Vide A. Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, ed. policopiada, Coimbra, 1968-69, pág. 79.
[9] Ibidem, pág. 18.
[10] Cf. a “nota 2”, supra.

[11] Como resulta do art.º 266º, n.º 4 do RRC, os erros de medição da energia e da potência resultantes de qualquer anomalia verificada no equipamento de medição, com origem em procedimento fraudulento, são tratados nos termos definidos no Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados, previsto nos art.ºs 274º e seguintes do RRC e emitido pela ERSE (cuja actual redacção é a aprovada pelo Regulamento n.º 561/2014, de 22.9).

   Nos termos deste GMLDD, em particular da “secção IV”, a verificação do procedimento fraudulento e o apuramento do período temporal, da potência e da energia que lhe possam estar associados compete ao operador da rede a cuja rede a instalação em fraude esteja ligada e obedecem às regras constantes da legislação especial aplicável, sem prejuízo da observação dos princípios gerais estabelecidos no presente Guia de Medição e em documento complementar, nos termos previstos no ponto 5.

[12] Consta do preâmbulo do DL n.º 29/2006, de 15.02, nomeadamente: Considerando que a rede nacional de transporte assume um papel crucial no sistema eléctrico nacional, a sua exploração integra a função de gestão técnica global do sistema, assegurando a coordenação sistémica das instalações de produção e de distribuição, tendo em vista a continuidade e a segurança do abastecimento e o funcionamento integrado e eficiente do sistema, e bem assim que a rede nacional de distribuição é explorada mediante uma única concessão do Estado, exercida em exclusivo e em regime de serviço público.
[13] Cf., a propósito, o acórdão da RC de 09.5.2017-processo 462/15.1T8VIS.C1 [onde se concluiu: “Provado que, num contrato de fornecimento de energia eléctrica, o Réu/utente violou a integridade do contador visando beneficiar e apropriar-se da energia eléctrica consumida e não facturada, contra a vontade da legítima proprietária deste bem (A.), bem sabendo que tal conduta era proibida por lei, a correspondente pretensão indemnizatória da A. está sujeita ao prazo prescricional do art.º 498 do CC”], subscrito pelos aqui relator e 1ª adjunta, publicado no “site” da dgsi.
[14] Cf. o mesmo acórdão.


            5. O DL n.º 328/90, de 22.10, que estabelece diversas medidas tendentes a evitar o consumo fraudulento de energia eléctrica[2], prevê: