Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HENRIQUE ANTUNES | ||
Descritores: | DECISÃO JUDICIAL OPOSIÇÃO EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA EXCEPÇÃO SUPERVENIENTE ABUSO DE DIREITO | ||
Data do Acordão: | 05/13/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCANENA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTº 334º DO C. CIVIL; 916º E SS. DO CPC DE 1961 E 846º E SS. DO NCPC. | ||
Sumário: | I – Na oposição a uma decisão judicial, para que qualquer excepção peremptória servir como fundamento da oposição é necessária a sua superveniência, i.e., que se tenha verificado, depois do encerramento da discussão em 1ª instância e – com excepção da prescrição – se prove por documento. II - A improcedência do recurso, e a consequente confirmação da decisão impugnada, podem resultar da modificação pelo tribunal superior do fundamento dessa mesma decisão. III - Os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis, e qualquer questão que seja igualmente de conhecimento oficioso, constituem sempre objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente. IV - Como o direito de execução não dispensa o interesse processual do exequente, a falta deste interesse torna inadmissível, por desnecessidade, a acção executiva. V - Actua em abuso do direito, na modalidade de venire contra facta propria, o exequente que, depois de se apossar da coisa que, em qualquer caso, já se considera ter-lhe sido entregue, pede, posteriormente, a realização coactiva dessa mesma prestação. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada, expressa ou tacitamente, no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, 3 e 4 do NCPC). No julgamento do recurso – como o Relator logo salientou no despacho que determinou a audição prévia das partes - importa, no entanto, ter presente, duas coisas. A primeira é que a improcedência do recurso, e a consequente confirmação da decisão impugnada, podem resultar da modificação pelo tribunal superior, do fundamento dessa mesma decisão. Sempre que a decisão possa comportar vários fundamentos, o tribunal ad quem pode aceitar a procedência do recurso, mas encontrar um fundamento, distinto daquele que foi utilizado pelo tribunal a quo, para confirmar a decisão impugnada. A segunda consiste nisto: apesar de no nosso direito os recursos ordinários visarem a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, está sempre salvaguarda a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[1], pelo que ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. É o que sucede com os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis, como, por exemplo, o interesse processual, e com o abuso do direito: apesar de não terem sido alegadas na instância recorrida, qualquer destas questões, por serem de conhecimento oficioso, constituem sempre objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente. A sentença apelada julgou a oposição è execução para entrega de coisa certa procedente, por virtude de se ter provado que a executada, M…, cumpriu a sua obrigação de entrega do locado, em data anterior à da apresentação do requerimento executivo. O recorrente não discute a exactidão do facto da entrega, antes se limita a controverter a idoneidade dele – considerada a data da sua ocorrência, a ausência de prova documental da sua verificação e a natureza do título executivo – uma sentença judicial – para servir de fundamento à oposição à execução. Sendo isto exacto, então é incontornável a exigência da aferição da bondade do recurso à luz do abuso do direito e do interesse processual. A oposição à execução constitui o meio de contestação desta (artº 813 nº 1 do CPC de 1961). A oposição é um processo declarativo instaurado pelo executado contra o exequente, que corre por apenso à execução, constituindo um incidente desta (artº 817 nº 1 do CPC de 1961). A oposição fundamenta-se num vício que afecta a execução. Se for julgada procedente, a acção executiva deve ser julgada extinta, no todo ou em parte (artº 817 nº 4 do CPC de 1961). A oposição dá lugar à constituição de uma instância – declarativa - distinta da constituída pela instauração da acção executiva, mas desta dependente. Apesar do carácter diferenciado de uma e de outra instância, entre ambas intercede uma relação de recíproca prejudicialidade, dado que as vicissitudes de uma instância são susceptíveis de se repercutir na outra. Na execução baseada numa sentença judicial constitui fundamento de oposição qualquer facto extintivo da obrigação exequenda – como por exemplo, no caso de execução para entrega de coisa certa, a entrega dessa coisa – desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento (artº 812 g), 1ª parte, do CPC de 1961). Dado que o título executivo é uma sentença judicial, é indispensável que o facto extintivo – ou modificativo – seja posterior ao encerramento da discussão na anterior acção declarativa, porque é até esse momento que, nessa acção, podem ser alegados os factos supervenientes (artº 506 nº 1 do CPC de 1961 e 588 nº 1 do NCPC). Na oposição a uma decisão judicial está necessariamente precludida a invocação de factos que foram ou podiam ter sido alegados no anterior processo declarativo[2]. Como exemplo de facto extintivo pode referir-se, além da prescrição, que é sempre a ordinária, qualquer das causas de extinção das obrigações, maxime, o cumprimento. Todavia, para que qualquer facto extintivo, que se realize ope legis, possa servir como fundamento da oposição é necessário que se tenha verificado depois do encerramento da discussão em 1ª instância e antes da instauração da execução: se se tiver verificado depois da promoção da execução, não é susceptível de servir de fundamento à oposição – dando, diferentemente, lugar à extinção da execução, no todo ou em parte (artºs 916 e ss. do CPC de 1961 e 846 e ss. do NCPC)[3]. Na oposição à execução são aceites, em princípio, todos os meios de prova, legal ou convencionalmente admissíveis. Mas a regra comporta uma excepção notável, dado que se exige que os factos extintivos – com excepção da prescrição - ou modificativos, invocados pelo executado sejam provados por documentos (artº 813, g), 1ª parte, do CPC de 1961)[4]. Trata-se, nitidamente, de uma manifestação extrema da autonomia do título relativamente à obrigação exequenda: a presunção estabelecida pelo título judicial quanto à existência da obrigação só poder ser destruída, na oposição à execução, por prova documental[5]. Assim, por exemplo, no caso de execução para entrega de coisa certa, se o facto extintivo – a entrega da coisa – que se produz ope legis, ocorreu posteriormente à instauração da acção executiva, aquela excepção peremptória não constitui adequado fundamento de oposição à execução – mas de extinção desta mesma execução. Na espécie do recurso, de harmonia com a matéria de facto apurada na instância recorrida, a executada procedeu à entrega da coisa imóvel cuja entrega que é exigida, coactivamente, na execução, antes mesmo do proferimento da sentença que a vinculou à realização daquela prestação – facto que, aliás, era do inteiro conhecimento do exequente. É exacto que essa entrega não foi feita ao exequente – mas ao seu ex-cônjuge, L... Mas também não o é menos, de um aspecto, que, tratando-se de coisa integrada no património conjugal, arrendada na constância do casamento, a posição jurídica de locador é ocupada por ambos e, por isso, a realização da prestação de entrega do bem arrendado a qualquer deles – tratando-se de uma prestação naturalmente indivisível – exonera o devedor da obrigação dessa mesma entrega, e de outro, que antes de L… lhe entregar a chave referida em 1, o exequente entrou na casa e mudou a fechadura (artºs 538, por interpretação restritiva, e 1717, 1721, 1724, 1725 e 1732 do Código Civil)[6]. Simplesmente, o facto daquela entrega, dado que não é superveniente, no tocante ao momento relevante apontado, nem se mostra provado por documento – é, de todo, inidóneo para servir de fundamento de oposição à execução. Neste sentido, as razões invocadas pelo recorrente para demonstrar a incorrecção da decisão impugnada são, realmente, justas e procedentes. Mas a verdade é que, a revogação da decisão impugnada – com o consequentemente prosseguimento da execução – conduziria a uma situação deveras desrazoável, senão mesmo absurda: a realização coactiva de uma prestação de entrega e a investidura do exequente na posse de um bem, que já deve considerar-se entregue e de aquele já tem aquela mesma posse. Para evitar esta consequência, materialmente injustificável, importa convocar para a discussão o pressuposto processual do interesse em agir e o instituto do abuso do direito. 3.3. Interesse em agir. O abuso do direito exige sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[8]. Mas ele deve ser usado sempre que necessário. De outro aspecto, o abuso do direito, exprimindo um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos à realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente. Assim, são reconduzidos ao abuso do direito, por exemplo, o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório. Na doutrina portuguesa, a proibição do venire contra factum próprio tem sido localizada dentro dos quadros do abuso do direito[9]. Mas não falta quem o situe na tutela da confiança - formulando como requisitos para a proibição do comportamento contraditório a existência de uma situação objectiva de confiança, o investimento de confiança do lado da pessoa a proteger e a imputabilidade ao agente daquela situação[10] - ou o análise no quadro das regulações típicas de comportamentos abusivos[11]. Neste último enquadramento, a locução venire conta factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Reclama, portanto, dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo - o primeiro - o factum proprium - é contrariado pelo segundo[12]. Trata-se de tutelar uma situação de confiança, enquanto factor material da boa fé[13]. Deste modo, há venire contra factum proprium, por exemplo, quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifesta a intenção de não praticar determinado acto e, depois, pratica-o, violando a confiança da contraparte de que isso não ocorreria. Assim, por exemplo, uma pessoa que manifeste, por qualquer modo, a intenção de não exercer um direito potestativo ou um simples direito subjectivo, mas que acaba por exercê-lo, actua contra facta propria. O exercício do direito, nestas condições, é inadmissível. Haveria abuso do direito (artº 344 do Código Civil)[14]. Na jurisprudência, a proibição do venire é também reconduzida ao abuso de direito. Faz-se notar, aliás, que dentro da boa fé em sentido objectivo, o instituto com que com mais frequência se depara na jurisprudência é o venire contra factum proprium[15]. Está nessas condições, por exemplo, a possibilidade de obstar à invocação de nulidade resultante de vício de forma, através do abuso de direito[16]. O venire contra factum proprium - que constitui reflexo do afinamento ético do Direito moderno - é um tipo não compreensivo de exercício inadmissível de direitos e, como tal, tem uma grande extensão. Mas nem toda conduta contraditória do exercente lhe é redutível. Exige-se, para que essa redução seja possível, um investimento de confiança realizado pela contraparte contra quem o direito é exercido, fundado na expectativa, lícita ou legítima, de que tal exercício não ocorreria, uma qualquer situação de confiança que deva ser protegida contra o exercício do direito pela contraparte. Assim, em primeiro lugar, reclama-se um comportamento anterior do exercente do direito que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; exige-se, depois, a imputabilidade aquele quer do comportamento anterior quer do comportamento actual; de seguida, há que verificar a necessidade e o merecimento do prejudicado com o comportamento contraditório; por último, há que averiguar a existência do investimento de confiança ou baseado na confiança, causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada. Portanto, o exequente depois de se investir, pela sua mão, na posse do bem, pede, executivamente, essa mesma investidura. Esta última conduta é nitidamente contraditória com a primeira. Uma pessoa média, normal, colocada na posição da recorrida, podia objectivamente confiar que o recorrente, depois de se investir na posse do bem não lhe pediria depois a investidura e, na falta de entrega voluntária – que, nem sequer é possível – a realização dessa entrega manu militari. Neste contexto, a pretensão executiva, deve ter-se, por actuação do venire, por inadmissível. E face a essa inadmissibilidade, não restaria outra saída que não a confirmação da sentença impugnada. Por estas razões – e não pelas indicadas na sentença impugnada – o recurso deve, pois, ser julgado improcedente. Síntese recapitulativa: a) Na oposição a uma decisão judicial, para que qualquer excepção peremptória servir como fundamento da oposição é necessária a sua superveniência, i.e., que se tenha verificado, depois do encerramento da discussão em 1ª instância e – com excepção da prescrição – se prove por documento; b) A improcedência do recurso, e a consequente confirmação da decisão impugnada, podem resultar da modificação pelo tribunal superior, do fundamento dessa mesma decisão; c) Os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis, e qualquer questão que seja igualmente de conhecimento oficioso, constituem sempre objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente; d) Como o direito de execução não dispensa o interesse processual do exequente, a falta deste interesse torna inadmissível, por desnecessidade, a acção executiva; e) Actua em abuso do direito, na modalidade de venire contra facta propria, o exequente que, depois de se apossar da coisa que, em qualquer caso, já se considera ter-lhe sido entregue, pede, posteriormente, a realização coactiva dessa mesma prestação. O recorrente deverá suportar, porque sucumbe no recurso, as custas dele (artº 527 nºs 1 e 2 do NCPC). 4. Decisão. Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso. Custas pelo recorrente. 14.05.13 Henrique Antunes
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