Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
226/12.4TBACN-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: DECISÃO JUDICIAL
OPOSIÇÃO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
EXCEPÇÃO SUPERVENIENTE
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 334º DO C. CIVIL; 916º E SS. DO CPC DE 1961 E 846º E SS. DO NCPC.
Sumário: I – Na oposição a uma decisão judicial, para que qualquer excepção peremptória servir como fundamento da oposição é necessária a sua superveniência, i.e., que se tenha verificado, depois do encerramento da discussão em 1ª instância e – com excepção da prescrição – se prove por documento.

II - A improcedência do recurso, e a consequente confirmação da decisão impugnada, podem resultar da modificação pelo tribunal superior do fundamento dessa mesma decisão.

III - Os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis, e qualquer questão que seja igualmente de conhecimento oficioso, constituem sempre objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente.

IV - Como o direito de execução não dispensa o interesse processual do exequente, a falta deste interesse torna inadmissível, por desnecessidade, a acção executiva.

V - Actua em abuso do direito, na modalidade de venire contra facta propria, o exequente que, depois de se apossar da coisa que, em qualquer caso, já se considera ter-lhe sido entregue, pede, posteriormente, a realização coactiva dessa mesma prestação.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


1. Relatório.
O exequente, S…, interpôs recurso ordinário de apelação da sentença da Sra. Juíza de Direito do Tribunal Judicial de Alcanena que – designadamente, com fundamento em que a executada, M…, cumpriu a sua obrigação de entrega do locado, em data anterior à da apresentação do requerimento executivo – julgou procedente oposição à execução para entrega de coisa certa – instaurada em 7 de Novembro de 2012 - deduzida pela última contra o primeiro.
O recorrente – que pede no recurso a revogação desta sentença – rematou a sua alegação com estas conclusões:

2. Factos provados.
O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os seguintes factos:

      3. Fundamentos.
      3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada, expressa ou tacitamente, no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, 3 e 4 do NCPC).
      Nestas condições, tendo em conta os parâmetros da competência decisória desta Relação representados pelo conteúdo da decisão impugnada e da alegação do recorrente, a questão concreta controversa que importava resolver era, em princípio, só esta: a de saber se, na execução para entrega de coisa, cujo título executivo seja constituído por uma sentença, constitui idóneo fundamento da oposição, a entrega voluntária, pelo executado, da coisa cuja entrega coactiva lhe é pedida na execução, ocorrida em data anterior à da instauração da execução.
Este problema – que deve ser resolvido à luz do Código de Processo Civil de 1961, dado que, tendo a oposição sido deduzida em momento anterior a 1 de Setembro de 2013, por força da norma de direito transitório de que o NCPC se fez acompanhar, este lhe não é aplicável – vincula ao exame, leve, mas minimamente estruturado, das condições de relevância, na oposição a execução fundada em sentença judicial, de qualquer excepção peremptória superveniente (artºs 6 nº 4 e 8 da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho).

No julgamento do recurso – como o Relator logo salientou no despacho que determinou a audição prévia das partes - importa, no entanto, ter presente, duas coisas.

A primeira é que a improcedência do recurso, e a consequente confirmação da decisão impugnada, podem resultar da modificação pelo tribunal superior, do fundamento dessa mesma decisão. Sempre que a decisão possa comportar vários fundamentos, o tribunal ad quem pode aceitar a procedência do recurso, mas encontrar um fundamento, distinto daquele que foi utilizado pelo tribunal a quo, para confirmar a decisão impugnada.

A segunda consiste nisto: apesar de no nosso direito os recursos ordinários visarem a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, está sempre salvaguarda a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[1], pelo que ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida.

 É o que sucede com os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis, como, por exemplo, o interesse processual, e com o abuso do direito: apesar de não terem sido alegadas na instância recorrida, qualquer destas questões, por serem de conhecimento oficioso, constituem sempre objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente.

A sentença apelada julgou a oposição è execução para entrega de coisa certa procedente, por virtude de se ter provado que a executada, M…, cumpriu a sua obrigação de entrega do locado, em data anterior à da apresentação do requerimento executivo.

O recorrente não discute a exactidão do facto da entrega, antes se limita a controverter a idoneidade dele – considerada a data da sua ocorrência, a ausência de prova documental da sua verificação e a natureza do título executivo – uma sentença judicial – para servir de fundamento à oposição à execução.

Sendo isto exacto, então é incontornável a exigência da aferição da bondade do recurso à luz do abuso do direito e do interesse processual.
      3.2. Condições de relevância na oposição a sentença judicial de excepção peremptória superveniente.
      Atendendo à prestação que se executa, a acção executiva classifica-se, designadamente, em execução para entrega de coisa certa (artºs 45 nº 2 do CPC de 1961 e 10 nº 6 do NCPC).
      A execução para entrega de coisa certa é utilizável para efectivar o direito à prestação de uma coisa (artºs 827 do Código Civil, 928 nº 1 do CPC de 1961 e 859 do NCPC). A execução para entrega de coisa certa é também aplicável, sem prejuízo de algumas reconformações exigidas pela importância jurídica e social da relação de arrendamento, à execução da obrigação de entrega de coisa arrendada (artºs 930-A do CPC de 1961 e 862 do NCPC).
      A prestação referida à entrega de uma coisa é susceptível de execução específica, dado que a execução visa a realização da própria prestação não cumprida e não a obtenção de um valor patrimonial sucedâneo da prestação não realizada (artº 827 do Código Civil). Consistindo a prestação devida na entrega de uma coisa, o credor tem a faculdade de requerer, através da respectiva acção executiva, a sua entrega judicial: o objecto desta execução específica consiste assim, na entrega, ainda que simbólica, da coisa ao titular do ius possidendi sobre ela (artºs 930 nºs 3 e 4 do CPC de 1961 e 861 nºs 3 e 4 do NCPC).
      O executado pode proceder, voluntariamente, a entrega da coisa (artº 929 nº 1, 1ª parte, do CPC de 1961). Se o executado não realizar voluntariamente a entrega da coisa, o tribunal procede às buscas e demais diligências necessárias para efectivar essa entrega (artºs 930 nº 1 do CPC de 1961 e 861 nº 1 do NCPC). À apreensão da coisa imóvel são subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições referentes à realização da penhora de bens imóveis (artº 930 nº 1, 1ª parte, do CPC De 1961, e 861 nº 1, 1ª parte, do NCPC). Depois de apreendido, o imóvel é entregue, através de investidura, realizada pelo agente de execução, do exequente na sua posse, mediante a entrega dos documentos e das respectivas chaves, se as houver, notificando-se o executado, o arrendatário ou quaisquer detentores para que respeitem e reconheçam o direito do exequente (artº 930 nº 3 do CPC de 1961 e 861 nº 3 do NCPC).
      O executado pode, porém, opor-se à execução (artº 929 nº 1, 1ª parte, do CPC de 1961). A oposição pode basear-se num fundamento específico – direito ao pagamento das benfeitorias realizadas na coisa – e nos fundamentos gerais (artº 929 nº 1, 2ª parte, do CPC)

A oposição à execução constitui o meio de contestação desta (artº 813 nº 1 do CPC de 1961).

A oposição é um processo declarativo instaurado pelo executado contra o exequente, que corre por apenso à execução, constituindo um incidente desta (artº 817 nº 1 do CPC de 1961).             

A oposição fundamenta-se num vício que afecta a execução. Se for julgada procedente, a acção executiva deve ser julgada extinta, no todo ou em parte (artº 817 nº 4 do CPC de 1961).

A oposição dá lugar à constituição de uma instância – declarativa - distinta da constituída pela instauração da acção executiva, mas desta dependente. Apesar do carácter diferenciado de uma e de outra instância, entre ambas intercede uma relação de recíproca prejudicialidade, dado que as vicissitudes de uma instância são susceptíveis de se repercutir na outra.

Na execução baseada numa sentença judicial constitui fundamento de oposição qualquer facto extintivo da obrigação exequenda – como por exemplo, no caso de execução para entrega de coisa certa, a entrega dessa coisa – desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento (artº 812 g), 1ª parte, do CPC de 1961).

Dado que o título executivo é uma sentença judicial, é indispensável que o facto extintivo – ou modificativo – seja posterior ao encerramento da discussão na anterior acção declarativa, porque é até esse momento que, nessa acção, podem ser alegados os factos supervenientes (artº 506 nº 1 do CPC de 1961 e 588 nº 1 do NCPC).

Na oposição a uma decisão judicial está necessariamente precludida a invocação de factos que foram ou podiam ter sido alegados no anterior processo declarativo[2]. Como exemplo de facto extintivo pode referir-se, além da prescrição, que é sempre a ordinária, qualquer das causas de extinção das obrigações, maxime, o cumprimento.

Todavia, para que qualquer facto extintivo, que se realize ope legis, possa servir como fundamento da oposição é necessário que se tenha verificado depois do encerramento da discussão em 1ª instância e antes da instauração da execução: se se tiver verificado depois da promoção da execução, não é susceptível de servir de fundamento à oposição – dando, diferentemente, lugar à extinção da execução, no todo ou em parte (artºs 916 e ss. do CPC de 1961 e 846 e ss. do NCPC)[3].

                Na oposição à execução são aceites, em princípio, todos os meios de prova, legal ou convencionalmente admissíveis. Mas a regra comporta uma excepção notável, dado que se exige que os factos extintivos – com excepção da prescrição - ou modificativos, invocados pelo executado sejam provados por documentos (artº 813, g), 1ª parte, do CPC de 1961)[4]. Trata-se, nitidamente, de uma manifestação extrema da autonomia do título relativamente à obrigação exequenda: a presunção estabelecida pelo título judicial quanto à existência da obrigação só poder ser destruída, na oposição à execução, por prova documental[5].

                Assim, por exemplo, no caso de execução para entrega de coisa certa, se o facto extintivo – a entrega da coisa – que se produz ope legis, ocorreu posteriormente à instauração da acção executiva, aquela excepção peremptória não constitui adequado fundamento de oposição à execução – mas de extinção desta mesma execução.

                Na espécie do recurso, de harmonia com a matéria de facto apurada na instância recorrida, a executada procedeu à entrega da coisa imóvel cuja entrega que é exigida, coactivamente, na execução, antes mesmo do proferimento da sentença que a vinculou à realização daquela prestação – facto que, aliás, era do inteiro conhecimento do exequente.

                É exacto que essa entrega não foi feita ao exequente – mas ao seu ex-cônjuge, L... Mas também não o é menos, de um aspecto, que, tratando-se de coisa integrada no património conjugal, arrendada na constância do casamento, a posição jurídica de locador é ocupada por ambos e, por isso, a realização da prestação de entrega do bem arrendado a qualquer deles – tratando-se de uma prestação naturalmente indivisível – exonera o devedor da obrigação dessa mesma entrega, e de outro, que antes de L… lhe entregar a chave referida em 1, o exequente entrou na casa e mudou a fechadura (artºs 538, por interpretação restritiva, e 1717, 1721, 1724, 1725 e 1732 do Código Civil)[6].

                Simplesmente, o facto daquela entrega, dado que não é superveniente, no tocante ao momento relevante apontado, nem se mostra provado por documento – é, de todo, inidóneo para servir de fundamento de oposição à execução.

                Neste sentido, as razões invocadas pelo recorrente para demonstrar a incorrecção da decisão impugnada são, realmente, justas e procedentes.

                Mas a verdade é que, a revogação da decisão impugnada – com o consequentemente prosseguimento da execução – conduziria a uma situação deveras desrazoável, senão mesmo absurda: a realização coactiva de uma prestação de entrega e a investidura do exequente na posse de um bem, que já deve considerar-se entregue e de aquele já tem aquela mesma posse.

                Para evitar esta consequência, materialmente injustificável, importa convocar para a discussão o pressuposto processual do interesse em agir e o instituto do abuso do direito.

                3.3. Interesse em agir.
      Entre os pressupostos processuais relativos às partes deve incluir-se - de harmonia com o entendimento que se tem por preferível - o interesse processual ou interesse em agir. Pressuposto que, de forma deliberadamente simplificadora, pode enunciar-se como o interesse do autor, requerente ou exequente, em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um meio processual – e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão dessa tutela. O autor ou exequente tem interesse processual se, da situação descrita, resultar que essa parte necessita de tutela judicial para realizar ou impor o seu direito[7].
      Como o Relator oportunamente fez notar, o direito de execução não dispensa o interesse processual do exequente. Na acção executiva, este interesse configura-se mais como um pressuposto de actos do que como um pressuposto processual, i.e., surge mais frequentemente como condição e eficácia de um acto processual do que como uma condição para a realização coactiva da prestação. Mas embora rara, não se excluiu, por inteiro, a inadmissibilidade da execução pela sua desnecessidade. 
      A acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação de uma prestação não cumprida (artº 4 nº 3 do CPC de 1961 e 10 nº 5 do NCPC). Mas como é claro, a promoção, com o recurso ao ius imperii do tribunal, da realização coactiva dessa prestação, através de certos materiais – como por exemplo, a entrega da coisa devida – só se justifica se se puder identificar um interesse – atendível - do exequente naquela realização coactiva.
      Ora, no caso do recurso, sendo patente que a coisa cuja entrega é pedida já se deve considerar entregue e que o exequente já está na posse dela, é evidente que aquele nenhum interesse tem no recurso à função jurisdicional e aos poderes de soberania do tribunal da execução. A execução é, neste caso, desnecessária e, ergo, inadmissível.
      Nesta conjuntura, outra coisa não restaria que concluir, por força da falta qualquer pressuposto processual subjectivo, pela verificação da correspondente excepção dilatória inominada imprópria, oficiosamente cognoscível, com as consequentes absolvição da executada da instância executiva e confirmação, ainda que por fundamento diverso, da decisão impugnada no recurso (artºs 288 nº 1 e), 487 nºs 1 e 2, 494 e 495 do CPC de 1961 e 278 nº 1 e), 576 nºs 1 e 2, 577 e 578 do NCPC).
      Mas vamos que o recorrente não seria permeável a este entendimento do problema. Nesse caso, importaria apelar, como ultima ratio, ao abuso do direito.
      3.4. Abuso do direito.

O abuso do direito exige sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[8]. Mas ele deve ser usado sempre que necessário.

De outro aspecto, o abuso do direito, exprimindo um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos à realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente.

Assim, são reconduzidos ao abuso do direito, por exemplo, o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório.

Na doutrina portuguesa, a proibição do venire contra factum próprio tem sido localizada dentro dos quadros do abuso do direito[9]. Mas não falta quem o situe na tutela da confiança - formulando como requisitos para a proibição do comportamento contraditório a existência de uma situação objectiva de confiança, o investimento de confiança do lado da pessoa a proteger e a imputabilidade ao agente daquela situação[10] - ou o análise no quadro das regulações típicas de comportamentos abusivos[11]. Neste último enquadramento, a locução venire conta factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Reclama, portanto, dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo - o primeiro - o factum proprium - é contrariado pelo segundo[12]. Trata-se de tutelar uma situação de confiança, enquanto factor material da boa fé[13]. Deste modo, há venire contra factum proprium, por exemplo, quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifesta a intenção de não praticar determinado acto e, depois, pratica-o, violando a confiança da contraparte de que isso não ocorreria.

 Assim, por exemplo, uma pessoa que manifeste, por qualquer modo, a intenção de não exercer um direito potestativo ou um simples direito subjectivo, mas que acaba por exercê-lo, actua contra facta propria. O exercício do direito, nestas condições, é inadmissível. Haveria abuso do direito (artº 344 do Código Civil)[14].

Na jurisprudência, a proibição do venire é também reconduzida ao abuso de direito. Faz-se notar, aliás, que dentro da boa fé em sentido objectivo, o instituto com que com mais frequência se depara na jurisprudência é o venire contra factum proprium[15]. Está nessas condições, por exemplo, a possibilidade de obstar à invocação de nulidade resultante de vício de forma, através do abuso de direito[16].

O venire contra factum proprium - que constitui reflexo do afinamento ético do Direito moderno - é um tipo não compreensivo de exercício inadmissível de direitos e, como tal, tem uma grande extensão.

Mas nem toda conduta contraditória do exercente lhe é redutível. Exige-se, para que essa redução seja possível, um investimento de confiança realizado pela contraparte contra quem o direito é exercido, fundado na expectativa, lícita ou legítima, de que tal exercício não ocorreria, uma qualquer situação de confiança que deva ser protegida contra o exercício do direito pela contraparte.

Assim, em primeiro lugar, reclama-se um comportamento anterior do exercente do direito que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; exige-se, depois, a imputabilidade aquele quer do comportamento anterior quer do comportamento actual; de seguida, há que verificar a necessidade e o merecimento do prejudicado com o comportamento contraditório; por último, há que averiguar a existência do investimento de confiança ou baseado na confiança, causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada.
O principal efeito do venire é, naturalmente, o da inibição do exercício de poderes jurídicos ou de direitos, em contradição com o comportamento anterior.
      O caso do recurso é – repete-se – este: o de pedido de uma realização coactiva da obrigação de entrega de uma coisa imóvel que já se considera entregue e de que o exequente já tem a posse.

Portanto, o exequente depois de se investir, pela sua mão, na posse do bem, pede, executivamente, essa mesma investidura. Esta última conduta é nitidamente contraditória com a primeira.

Uma pessoa média, normal, colocada na posição da recorrida, podia objectivamente confiar que o recorrente, depois de se investir na posse do bem não lhe pediria depois a investidura e, na falta de entrega voluntária – que, nem sequer é possível – a realização dessa entrega manu militari.

Neste contexto, a pretensão executiva, deve ter-se, por actuação do venire, por inadmissível. E face a essa inadmissibilidade, não restaria outra saída que não a confirmação da sentença impugnada.

Por estas razões – e não pelas indicadas na sentença impugnada – o recurso deve, pois, ser julgado improcedente.

Síntese recapitulativa:

a) Na oposição a uma decisão judicial, para que qualquer excepção peremptória servir como fundamento da oposição é necessária a sua superveniência, i.e., que se tenha verificado, depois do encerramento da discussão em 1ª instância e – com excepção da prescrição – se prove por documento;

b) A improcedência do recurso, e a consequente confirmação da decisão impugnada, podem resultar da modificação pelo tribunal superior, do fundamento dessa mesma decisão;

c) Os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis, e qualquer questão que seja igualmente de conhecimento oficioso, constituem sempre objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente;

d) Como o direito de execução não dispensa o interesse processual do exequente, a falta deste interesse torna inadmissível, por desnecessidade, a acção executiva;

e) Actua em abuso do direito, na modalidade de venire contra facta propria, o exequente que, depois de se apossar da coisa que, em qualquer caso, já se considera ter-lhe sido entregue, pede, posteriormente, a realização coactiva dessa mesma prestação.

O recorrente deverá suportar, porque sucumbe no recurso, as custas dele (artº 527 nºs 1 e 2 do NCPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

                                                                                            14.05.13

Henrique Antunes
José Avelino Gonçalves
Regina Rosa                                                                                                


[1] Ac. STJ de 23.03.96, CJ, 96, II, pág. 86.
[2] Acs. do STJ de 27.01.89, BMJ nº 383, pág. 501, da RC de 05.06.90, CJ; 90, III, pág. 54 e da RP de 16.09.97, CJ, 97, IV, pág. 189.
[3] Eurico Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª edição, pág. 290.
[4] Acs. do STJ de 06.10.97, BMJ nº 370, pág. 496, e da RP de 16.07.97, CJ, 97, IV, pág. 189,
[5] José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Depois da Reforma da Reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, 2009, págs. 175 e 176 e nota 18; contra, restringindo a exigência a prova documental aos casos em que esse meio de prova corresponda a uma imposição legal - como a estabelecida nos artºs 394 e 395 do Código Civil – ou em que, pelo menos, ela seja usual no comércio jurídico, Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lisboa, Lex, 1998, págs. 178 e 179.
[6] Maria Olinda Garcia, O Arrendamento Plural, Quadro Normativo e Natureza Jurídica, Cimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 111 a 113. Realmente, a entrega de um imóvel, sendo feita de modo simbólico, nomeadamente através da entrega da respectiva chave, sempre implicará, pela sua própria natureza, um comportamento dirigido a um só sujeito. De outro aspecto, não é o devedor que deve suportar as consequências, por exemplo, de eventuais dificuldades em contactar todos os credores ou dos conflitos entre estes.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, O interesse Processual na Acção Declarativa, 1989, págs. 9 a 11, Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio da Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 179 e 180, e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, págs. 79 e 80; Acs. do STJ de 18.05.13, 11.04.13, 05.02.13 e 15.03.12, www.dgsi.pt.
[8] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 2ª edição, Almedina, 2000, págs. 247 e 248.
[9] A proibição era já conhecida antes do actual Código Civil. Cfr. Manuel de Andrade, Algumas questões em matéria de injúrias graves como fundamento do divórcio, Coimbra, 1956, pág. 73, e Adriano Vaz Serra, Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil) BMJ nº 85, pág. 331.
[10] Baptista Machado, Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Obra Dispersa, Braga, 1991, págs. 345 a 420.
[11] António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1984, vol. II, Coimbra, § 28.
[12] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, pág. 742 e 745, Baptista Machado, Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, RLJ ano 118, págs. 9, 101, 169 e 227 e Acs. do STJ de 22.11.94, BMJ nº 441, pág. 305, de 04.10.79, BMJ nº 290, pág. 352, de 03.05.90, BMJ nº 397, pág. 454, de 03.10.91, BMJ nº 410, pág. 776, da RC de 03.12.91, CJ, V, pág. 79, da RL de 17.06.86, CJ, IV, 143 e da RC de 11.05.89, CJ 89, III, pág. 192 e de 18.11.93, CJ, V, pág. 219.
[13] Acs. da RP de 19.12.96, CJ, V, pág. 226, da RL de 29.11.94, CJ, V, pág. 50, da RP de 18.11.93, CJ, V, pág. 219, da RC de 3.12.91, CJ, V, pág. 79, e da RP de 15.5.90, CJ, III, pág. 194.
[14] Acs. da RP de 29.09.97, CJ, V, pág. 200 e do STJ de 3.05.90, BMJ nº 397, pág. 454. Para uma definição doutrinária de abuso de direito, cfr. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, Almedina, Coimbra, 1983, pág. 43.
[15] Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no Direito Civil”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, volume comemorativo, Coimbra, 2003, págs. 294 e 295.
[16] Trata-se, aliás, de um domínio em que a invocação do venire é feita de forma intensiva. Cfr., v.g., Acs. da RE de 11.11.93, da RC de 16.01.90, da RL de 26.11.87, RP de 11.05.89 e de 29.9.97, CJ, V, pág. 283, I, pág. 87, V, pág. 128, III, pág. 192 e IV, 200, respectivamente.