Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
596/09.1TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
QUINHÃO HEREDITÁRIO
PEDIDOS INCOMPATÍVEIS
Data do Acordão: 10/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 2130º, Nº 1, CC; 470º, Nº 1, E 494º, AL. B), DO CPC
Sumário: I – O artº 2130º, nº 1, do CC reconhece o direito de preferência no caso de venda ou dação em cumprimento de um quinhão hereditário a estranhos e atribui tal direito aos co-herdeiros nos termos em que ele assiste aos comproprietários.

II - O autor de uma acção judicial pode formular diversos pedidos cumulativos contra o réus/réus desde que sejam substancialmente compatíveis – artº 470º, nº 1, do CPC.

III – A incompatibilidade substancial dos pedidos verifica-se quando os efeitos jurídicos que com eles se pretendem obter estão, entre si, numa relação de oposição ou contrariedade, de tal modo que o reconhecimento de um é a negação dos demais.

IV - Os pedidos, a par, de reconhecimento do direito de preferência e o de nulidade do contrato sobre o qual recai o exercício de tal direito são substancialmente incompatíveis.

V – Essa incompatibilidade conduz à ineptidão da petição, doença infantil da petição que diagnosticada em sede de despacho saneador a torna insanável e insuprível e, portanto, insusceptível de correcção, a convite, pelo autor.

Decisão Texto Integral:                    ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

I.

A..., residente..., intentou a presente acção declarativa comum sob a forma de processo sumário contra B..., ..., contra C..., ..., residente ..., contra D..., ..., residente ..., e contra E..., residente em ....

Alegou, em síntese, ser filho da Ré B... e do falecido marido desta F..., bem como irmão da Ré E...; a determinada altura, teria celebrado com esta um determinado contrato que denominaram de “contrato promessa de partilha” e que se encontra junto, para partilha de bens deixados por óbito de F..., o qual teria sido do conhecimento e obtido a concordância da Ré B..., mãe de ambos os contraentes; no âmbito de tal contrato, Autor e Ré E... teriam convencionado que determinado prédio urbano e que seria a partilhar ficaria dividido em duas partes (“os baixos” e a “parte de cima”) até que se constituísse a respectiva propriedade horizontal, de acordo, aliás, com a vontade ainda em vida do falecido F... e o entendimento de todos, de tal forma que o Autor tem vivido na aludida parte de cima desde o seu casamento em 1977, daí retirando todas as utilidades, fazendo reparações e melhoramentos, pacificamente, à vista de toda a gente e na convicção de estar a exercer um direito próprio, existindo separação física entre ambas as partes do prédio.

Sucede, no entanto que, em 2004, a Ré B... declarou vender à Ré C... e ao seu marido, o co-Réu D... (os quais declararam comprar), o quinhão hereditário que lhe cabe por óbito de F..., tudo com o conhecimento da Ré E.... Por seu turno, em 2008, a Ré E..., agindo em representação dos Réus C... e D..., declarou vender a si mesma (e declarou comprar) o mesmo quinhão hereditário.

Tais negócios teriam ocorrido sem o conhecimento do Autor e sem que lhe tivessem sido efectuadas as necessárias comunicações para preferência, sendo certo que na realidade nenhuma quantia foi paga ou recebida por quem quer que fosse a quem quer que fosse em qualquer dos negócios acabados de referir, nunca tendo a Ré C... tomado posse de quaisquer prédios que são parte da herança. Por seu turno, a Ré E... veio a registar em seu nome e a arrogar-se proprietária de 5/6 dos prédios que compõem a herança do pai dela e do Autor, bem como da meação da Ré B..., viúva do falecido.

Com a sua actuação, teriam as Rés B... e E... pretendido prejudicar o Autor na parte que lhe cabia na herança do seu pai F..., assim como tornear limitações legais decorrentes da venda a filhos ou netos ou à futura possibilidade de redução de liberalidades, dissimulando o único e verdadeiro negócio que teria sido a doação efectuada pela Ré B... à Ré E... do seu quinhão hereditário e da sua meação na herança aberta por óbito de F....

Alegou ainda o Autor que o prédio em cuja parte de cima reside corresponde a mais do que o restante 1/6 da herança e do valor da meação da Ré B..., assim ficando violado o direito de propriedade do Autor quanto ao prédio em que habita e a legítima que lhe caberá por óbito de seu pai. Quando soube, sentiu-se ainda o Autor desapontado e com grave depressão, sendo doente cardíaco, tendo perdido sono e apetite em consequência dos factos.

Culminou pedindo a declaração da sua propriedade sobre o prédio em que habita por usucapião, que os Réus fossem condenados a reconhecer o seu direito de preferência na alienação de quinhão efectuada em 2004 e ser em consequência anulada a venda e declarado o direito do Autor em haver para si a quota alienada na parte restante ou em alternativa ser declarado o seu direito de preferência na totalidade do quinhão caso não prove a sua aquisição por usucapião, que seja declarada a nulidade da alienação do quinhão efectuada em 2008, que sejam cancelados os registos efectuados em consequência das alienações efectuadas, que sejam os Réus condenados solidariamente a pagar-lhe a quantia de €4.000,00, a título de danos não patrimoniais, e que seja a Ré E... condenada nos danos que lhe haja causado por incumprimento do contrato promessa de partilha mencionado nos autos em quantia a liquidar em execução de sentença.

A acção não foi contestada e levando em conta a matéria alegada pelos AA, no despacho saneador, o Senhor Juiz, julgou a acção parcialmente procedente e em consequência:

a) declarou o Autor A... como proprietário, por usucapião, desde o ano de 1977, da parte de cima da casa de habitação sita na ..., limite da freguesia de ..., a confrontar de norte com rua, de sul com rua e F..., de nascente com rua e poente com ..., prédio inscrito na matriz da dita freguesia sob o artigo nº ...;

b) Não tomou conhecimento do pedido constante da última parte do ponto 2 do petitório (de “ou em alternativa” em diante) por o mesmo ser meramente subsidiário;

c) Por incompatibilidade de pedidos, absolveu os Réus da instância quanto aos pedidos formulados sob os pontos 2 (até “na parte restante”) a 6 do petitório constante da petição inicial.

Inconformado, o Autor recorreu de tal saneador sentença apenas no tocante à absolvição da instância que recaiu sobre os pontos dois a seis do petitório, concluindo a sua alegação nos termos seguintes:

1. Antes de decidir pela absolvição da instância relativamente aos pedidos 2 a 6, por aparente incompatibilidade entre os mesmos, deveria o MM. Juiz ter convidado o autor a corrigir a formulação dos pedidos ou a esclarecer a sua pretensão.

2. De qualquer modo. é evidente que aquilo que o autor pretendia era haver para si a quota hereditária vendida, através do exercício do direito de preferência no primeiro negócio e a declaração de nulidade do segundo, devendo esses pedidos ser por isso, atenta a matéria de facto provada, ser julgados procedentes.

3. Caso se entenda que é o conjunto dos dois negócios que configura uma nulidade, por simulação, então deveria essa nulidade ter sido declarada - e deveria também ter procedido o pedido de indernnização.

…deverá ser a sentença recorrida revogada, condenando-se os réus conforme peticionado; caso assim se não entenda, deverá o autor ser convidado a corrigir o pedido ou ser declarada a nulidade dos negócios em causa nos autos, sendo em qualquer dos casos os réus condenados no pedido indemnizatório.

Não foi oferecida contra-alegação.

Colhidos os vistos legais, cumpre, ora, apreciar e decidir.

II.

O contexto fáctico-descritivo do recurso vai atrás descrito, dispensando-nos, pois, de o repetir.

Na instância recorrida considerou-se que os pedidos de reconhecimento do direito de preferência e o de declaração de nulidade do negócio sobre que incidia aquele direito eram incompatíveis. Mediante esse fundamento julgaram-se prejudicados os restantes pedidos com eles relacionados, e nessa parte, foram os RR absolvidos da instância, de harmonia com o disposto nos artº193º,1 e 2, 288º, n.º 1, b), 494º, al. b) e 495º, todos do Cód. de Proc. Civil.

Sustentam os Recorrentes que a aludida incompatibilidade se não verifica pois o que pretendiam era exercer o direito de preferência sobre a compra e venda de 2004 e arguir a nulidade por simulação do negócio de 2008 mas mesmo que se entendesse que ambos os negócios eram simulados, deveria ter sido declarada a sua nulidade e dado provimento ao pedido de indemnização; e de qualquer modo, deveria ter sido convidado a corrigir a formulação dos pedidos em apreço.

Importa começar por dizer que ao autor compete formular o pedido que corresponde grosso modo à providência que tenha por adequada e seja garantia de protecção de determinada situação jurídica ou de defesa de interesse juridicamente salvaguardado.

Nesse exercício, pode o Autor formular diversos pedidos cumulativos contra o Réu ou Réus em coligação desde que sejam substancialmente compatíveis (artº470º, 1 do CPC).

Segundo Rodrigues Bastos – cfr Notas ao CPC, I, 388- a incompatibilidade substancial dos pedidos verifica-se quando os efeitos jurídicos que com eles se pretendem obter estão, entre si, numa relação de oposição ou contrariedade, de tal modo que o reconhecimento de um  é a negação dos demais.

No caso vertente, se bem interpretamos a petição,pretendeu o Autor, no que para aqui interessa, reclamar e exercer o seu pretenso direito de preferência sobre a venda do quinhão hereditário de sua mãe e simultaneamente atacar de simulados os negócios em que, sucessivamente, essa transmissão teve lugar.

Em consonância com esse propósito pediu ele que sejam os réus condenados a reconhecer o direito de preferência do autor no negócio celebrado em Setembro de 2004 e ser em consequência anulada a venda e declarado o direito do autor em haver para si a quota alienada, ou, em alternativa,  ser declarado o seu direito de preferência na totalidade do quinhão caso não prove a sua aquisição por usucapião, que seja declarada a nulidade da alienação do quinhão efectuada em 2008.

O direito de preferência em questão tem fundamentação no disposto no artº2130º,1 do Código Civil que o reconhece no caso de venda ou dação em cumprimento de um quinhão hereditário a estranhos e o atribui aos co-herdeiros nos termos em que ele assiste aos comproprietários.

Com o seu exercício  tem o preferente por desígnio haver para si a quota alienada (artº1410º,1 do mesmo diploma) e, procedendo a acção, opera-se a substituição retroactiva ( à data da alienação) desse mesmo preferente na posição jurídica que o terceiro adquirente ocupe na relação contratual em causa (Carlos Lacerda Barata, Da Obrigação de Preferência, 149) ou como refere A. Varela, Das Obrigações em Geral, I, 359, confere-se àquele uma “verdadeira execução específica da prestação positiva a que o inadimplente se encontrava vinculado” sem que para isso seja necessária a destruição da alienação feita a terceiro.

Acrescente-se, aliás, que esta destruição não teria qualquer sentido lógico, pois que, como é bom de ver, inviabilizando todo o negócio jurídico a transferência da propriedade da coisa não teria lugar  e sem ela o preferente não se podia fazer substituir ao adquirente que figura no título (Rodrigues Basto, a obra e local citados).

Não é consequência da procedência da preferência a nulidade da compra e venda de 2004 e daí que se não possa conciliar, como o Autor pretende, o pedido de reconhecimento do direito de preferência sobre ele e o da sua destruição simultânea.

O mesmo sucede com a outra versão do petitório em  que se volta a pretender o reconhecimento do mesmo direito de preferêrencia e se ataca ambos os negócios de simulação, pedindo-se que se declare a correspondente nulidade.

Só que neste segmento não são apenas os pedidos que, mutuamente, se excluem, as causas de pedir em que assentam, pese embora a confusão e certa ininteligibilidade inerentes, são, senão inconsistentes do ponto de vista do mérito (apreciação que, aqui, está fora de questão por conduzir a solução mais desfavorável para o Recorrente – artº684º,4 do CPC)), também, substancialmente, inconciliáveis.

Vejamos: alega o Autor que os negócios em que foi transferida a propriedade da quota hereditária em apreço são nulos porque no primeiro se verificou a interposição fictícia dos respectivo compradores e em ambos não houve, efectivamente, a entrega de quaisquer quantias, a título de preço.

Abstractamente, pois, configura-se no caso a chamada simulação relativa cujos efeitos passam pela nulidade do primeiro negócio e pela validade, em princípio, do negócio dissimulado (artº241º do CC) que encobrirá uma doação.

Ora, como esta se não inclui no número e tipo de contratos ( o citado artº2130º do CC limita-o à compra e venda e à dação em pagamento, como já se viu) face aos quais o direito de preferência que incide sobre o quinhão hereditário pode ser exercido, da colisão de tais causas de pedir resulta a sua exclusão (negação) recíproca.

Queixa-se o Recorrente dizendo que mesmo que se entendesse que ambos os negócios eram simulados, deveria ter sido declarada a sua nulidade e dado provimento ao pedido de indemnização.

Não tem razão.

A dedução cumulativa de pedidos entre si incompatíveis, como é o caso, implica contradição no objecto do processo que impede a sua necessária identificação (Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, CPC Anotado, I, 326, 1999), ideia que Rodrigues Bastos parece traduzir escrevendo: “como o Autor os (pedidos) apresenta a todos simultaneamente, e no mesmo plano, torna-se impossível discernir qual é, na realidade, a pretensão que pretende ver judicialmente reconhecida”. Ou seja, e em última análise, não podia nem cabia ao tribunal substituir-se ao Recorrente na reformulação do petitório sem perda evidente para o princípio dispositivo que é estruturante do processo.

É, também, um pouco por razões desta natureza (ordem pública) e importância que o Recorrente volta a não ter razão quando defende que deveria ter sido convidado a corrigir a formulação dos pedidos em apreço.

O convite a que se refere o artº508º, nº1, al b), 3 e 5 do CPC só é viável no caso de petição meramente deficiente. Não é esse o diagnóstico acima lavrado: a incompatibilidade verificada integra a sua ineptidão que consubstancia uma excepção dilatória (artº193º,1, c) e 494º, b) do CPC. Como se ponderou no Ac STJ de 21.11.06, proc nº06A3636, publicado no site da DGSI, a ineptidão da petição inicial conducente à nulidade de todo o processo, tem por escopo estabelecer a segurança jurídica quanto ao objecto do processo conformado pelo pedido e pela causa de pedir, sendo de natureza insuprível, levando mesmo ao indeferimento liminar do petitório (artº234º - A daquele Código), assentando a sua justificação em interesses de ordem pública e não em simples interesses das partes.

Insuprível e insanável o aludido vício da ineptidão o que há que concluir, tal como se fez em outro aresto do STJ (ac de 04.06.2008, Agravo nº08S937), é que seu reconhecimento nesta fase processual torna a petição sem remédio.

Sumariando:

Os pedidos, a par, de reconhecimento do direito de preferência e o de nulidade do contrato sobre o qual recai o exercício de tal direito são substancialmente incompatíveis.

Essa incompatibilidade conduz à ineptidão da petição, doença infantil da petição que diagnosticada em sede de despacho saneador a torna insanável e insuprível e, portanto, insusceptível de correcção, a convite, pelo Autor.

III.

Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida quanto ao objecto desse mesmo recurso.

Custas pelo Recorrente.


JOÃO JOSÉ MARTINS DE SOUSA (Relator)
MARIA REGINA COSTA DE ALMEIDA ROSA
MANUEL ARTUR DIAS