Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8349/18.0T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: AÇÃO DE DIVÓRCIO
ÓBITO DO CÔNJUGE AUTOR NA PENDÊNCIA DA AÇÃO
HABILITAÇÕES SUCESSIVAS DE HERDEIROS
PROSSEGUIMENTO DA INSTÂNCIA
CASO JULGADO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1785.º, N.º 3, 1788.º, 2133.º, N.ºS 1 E 3, E 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A especial natureza do direito ao divórcio só exclui que a acção correspondente seja proposta pelos herdeiros do cônjuge falecido, mas não obsta que, uma vez a acção proposta por este – evidenciando o propósito de promover a dissolução, por divórcio, do casamento – venha a ser continuada pelos respectivos herdeiros, ou outros familiar, uma vez que não seria razoável que o facto fortuito da morte de um dos cônjuges na pendência da acção alterasse significativamente a partilha dos bens do casal e a sucessão do cônjuge sobrevivo.
II – A habilitação consiste na prova da aquisição, designadamente por sucessão, da titularidade de um direito ou complexo de direitos ou de outra situação jurídica ou complexo de situações jurídicas, habilitação que permite a mudança da parte inicial por uma parte subsequente.
III – A habilitação permite, também, a substituição de uma parte subsequente falecida por outra parte subsequente, desde que esta última seja também sucessora da parte inicial.
IV – O caso julgado, material e formal, formado sobre a decisão que habilitou uma parte subsequente não obsta, no caso de falecimento desta última, à habilitação dos seus sucessores, sucessores também da parte inicial.
V – Os sucessores da parte subsequente habilitada falecida que requeiram a sua habilitação para com eles prosseguir a causa na pendência da qual faleceu a parte de que aquela era e estes são, agora, sucessores, não agem, pelo simples facto de promoverem essa habilitação, em abuso do direito.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: Henrique Antunes
Adjuntos:
Cristina Neves
Sílvia Pires

                      Proc. n.º 8349/18.0T8CBR-B.C1

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

 1. Relatório.

AA propôs contra o seu cônjuge, BB, acção declarativa constitutiva de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, com processo especial – que corre termos no Juízo de Família e Menores ..., do Tribunal Judicial da Comarca ... – pedindo o decretamento do divórcio entre ambos.

A ré contestou e reconveio, pedindo, além do decretamento do divórcio, a condenação do autor a pagar-lhe alimentos no valor mensal de € 400,00.

Falecida a ré na pendência da causa, foi habilitada, por sentença transitada em julgado, para, em sua substituição, com ela prosseguir, a acção para efeitos patrimoniais, a sua irmã, CC, que, por sua vez, faleceu também na constância da mesma causa.

DD e EE deduziram, contra o autor, o incidente da sua habilitação, pedindo que sejam declarados únicos herdeiros de CC, e o prosseguimento da causa.

Fundamentaram esta pretensão no facto de, como resulta da habilitação notarial, outorgada no dia 1 de Julho de 2022, serem os únicos sucessores de CC, na qualidade de herdeiros legitimários, situação que lhes confere legitimidade para que a causa possa prosseguir contra o autor, pelo que, como seus únicos representantes, devem os autos prosseguir contra aquele, face ao pedido reconvencional admitido nos autos.

O autor, requerido, contestou alegando a excepção dilatória do caso julgado, formal e material, uma vez que a substituição da primitiva ré já se operou através do incidente de habilitação já decidido e transitado em julgado, não podendo ser contrariado por outro, sendo que a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensa a identidade de pedido e causa de pedir, e a excepção peremptória do abuso de direito, pois a conceder-se provimento à pretensão dos requerentes se iria permitir que, em última instância, até o Estado na sequência de habilitações sobre habilitações, poderia vir a ocupar a posição da primitiva ré, BB.

Porém, a Sra. Juíza de Direito, oferecidos dois outros articulados, depois de, como questão prévia, concluir que não se verifica a invocada excepção do caso julgado, que julgou improcedente, com fundamento, designadamente, em que resultando da lei a possibilidade de a acção de divórcio poder prosseguir nos termos do art.º 1795º, n.º 3, do CC, não se pode falar em abuso do direito por parte dos requerentes, decidiu julgar procedente o presente incidente de habilitação de herdeiros, julgando DD e EE, como sucessores e representantes da falecida CC e consequentemente como habilitados para prosseguir a ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.

É esta sentença que o autor, requerido, impugna no recurso – no qual pede a sua revogação e se julgue improcedente o incidente de habilitação –  tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

I. Resulta da contestação apresentada que o Recorrente invocou expressamente o caso julgado formal, material e a autoridade do caso julgado, sem que o tribunal se tenha pronunciado sobre a questão. Padece de nulidade a decisão em que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, como dispõe o artigo 615º n.º 1 d) do C.P.C. Pelo que a decisão ora proferida é nula nos termos da norma citada, já que não foi apreciada a questão indicada. O que se invoca. Sem prejuízo, e reproduzindo-se na íntegra a matéria de direito, invocada na contestação, uma vez que não foi apreciada e a que foi padece de errada interpretação,

II. A habilitação incidental tem por finalidade permitir o andamento de um processo - evitando a sua suspensão indefinida -, colocando no lugar da parte primitiva o seu sucessor, operando em relação àqueles que, no momento, se apresentam como os sucessores do falecido, ainda que estes percam posteriormente esta qualidade.

III. In casu, a relação processual primitiva estabeleceu-se entre o aqui Autor e a falecida Ré, BB, sendo que, por falecimento desta, foi habilitada sua irmã CC, que nesse momento, com excepção do Autor, se apresentou como sucessora, substituindo assim a parte primitiva e estabilizando a relação processual. Por outro, a habilitação de herdeiros visa apenas o prosseguimento da lide e não torna as habilitadas em titulares da relação material controvertida.

IV. O incidente de habilitação, como se disse, visa a substituição da parte primitiva falecida, não adquirindo o habilitado, a titularidade da relação material controvertida, ou seja, a habilitada CC não adquiriu qualquer direito na relação material controvertida entre A e primitiva R, e como tal, essa relação não se transmite aos seus herdeiros.

V. Nessa medida, não podem os mesmos suceder-lhe, numa relação jurídica que não adquiriu, não operando sequer aqui qualquer direito de representação. Os Requerentes, relativamente à primitiva relação processual são terceiros, sem legitimidade de serem nela habilitados, não operando a habilitação em relação ao habilitado falecido, por contra legem. Por outro, ao abrigo do artigo 620º do Código de Processo Civil: «1. As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força, obrigatória dentro do processo.

VI. Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão».

VII. Por outro lado, o caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.

2. Quando o objecto da segunda acção é idêntico e coincide com o objecto da decisão proferida na primeira acção, o caso julgado opera por via de excepção (a excepção de caso julgado), impedindo o Tribunal de proferir nova decisão sobre a matéria (nesse caso, o Tribunal limitar-se-á a julgar procedente a excepção, abstendo-se de apreciar o mérito da causa que já foi definido por anterior decisão).

3. O caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão). Sucede ainda, que a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir.

VIII. Tendo em conta a pretensão dos Requerentes, prossecução dos autos em substituição da parte primitiva, opera a exceção de caso julgado, não só formal como material. O que expressamente se invoca.

IX. Ou seja, a pretensão jurídica dos requerentes, já foi decidida nestes autos, com força obrigatória geral intra e extra processualmente, na medida, no que a este processo diz respeito, não pode a parte BB, ser substituída por outra, que à data do seu falecimento não era seu sucessor ou tivesse sido habilitado para o efeito. Pois, se assim não fosse, até o Estado Português poderia em última instância ser habilitado a prosseguir os presentes autos. O que obviamente não tem merecimento de tutela legal. E nem é o escopo da lei.

X. O artigo 334.º do C.C., primeira fonte do instituto do Abuso de Direito, estipula que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, que é o caso, e o que se invoca.

XI. Esta situação, contraria claramente os princípios da boa-fé, da proporcionalidade e dos bons costumes, não merecendo qualquer tutela legal, pois a conceder provimento à pretensão dos requerentes era permitir a eternização de um processo de divórcio, em que em última instância, até o Estado, na sequência de sucessivas habilitações sobre habilitações, poderia vir a ocupar a posição primitiva da Ré BB.

XII. Há por isso erro na interpretação e aplicação do Direito.

XIII. Na sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Senhor Juiz a quo violou os artigos 581º, 615º n.º 1 d), 619º, 620º n.º 1, 628º do C.P.C, e 334º, 1785 n.º 3 e 2133 º n.º 2 do C.C, artigo 20º da C.R.P, entre outros.

                Na resposta, os apelados concluíram, naturalmente, pela improcedência do recurso.

                2. Factos provados.

                O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os factos seguintes:

1. Em .../.../2018 FF instaurou ação de divórcio contra BB e em 30/4/2019 a ré contestou, tendo deduzido pedido reconvencional contra o autor, pedindo que fosse decretado o divórcio e que este fosse condenado a pagar-lhe a título de alimentos o valor mensal de €400,00.

2. GG faleceu no dia .../.../2019, no estado de casada com o autor, tendo-se habilitado por sentença proferida em 24/3/2020 no apenso A, transitada em julgado, para prosseguir com os autos para efeitos patrimoniais, em sua representação, CC, sua irmã.

3. A habilitada CC faleceu em .../.../2022 no estado de divorciada na pendência da presente ação.

4. Como únicos herdeiros de CC, sucederam-lhe os filhos DD e EE.

                3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º nºs 2, 1ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC).

Maneira que, considerando os parâmetros, assim definidos, da competência decisória ou funcional desta Relação, é uma só a questão concreta controversa que importa resolver: a  de saber se a decisão que julgou os apelados habilitados para com eles prosseguir a acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, em substituição do sucessor habilitado da primitiva demandada e daquele cônjuge,  é substancialmente nula, por omissão de pronúncia e, em qualquer caso, se deve ser revogada e logo substituída por acórdão que julgue o seu pedido de habilitação improcedente.

A decisão impugnada no recurso foi proferida no incidente de habilitação no qual os apelados foram habilitados como sucessores de uma outra habilitada e da primitiva ré reconvinte, falecida na pendência da acção declarativa constitutiva de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, e de quem os recorridos são herdeiros, para em substituição daquele cônjuge falecido prosseguirem, contra o autor, os ulteriores termos daquela causa.

Regra geral, a morte de parte na pendência do processo dá lugar à suspensão da instância (art.ºs 269.º, n.º 1, a), e 270.º, n.º 1, do CPC).

Há casos, porém, em que a morte da parte tem como consequência, não a suspensão, mas a extinção da instância. É o que ocorre quanto a morte da parte torne impossível ou inútil a continuação da lide, como sucederá, v.g., quando a parte falecida era titular de interesse pessoal e intransmissível (art.º 269.º, n.º 3, do CPC).

A reforma do Código Civil de 1977, instrumentalizada através do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, ao contrário do que se entendia na legislação anterior, permitiu que a acção de divórcio – ou de separação judicial de pessoas e bens – possa ser continuada pelos herdeiros do cônjuge autor ou do cônjuge réu reconvinte ou prosseguir contra os herdeiros do cônjuge réu ou do cônjuge autor reconvindo para efeitos patrimoniais (art.º 1785.º, n.º 3, do Código Civil).

Contra a solução da lei não vale argumentar que não tem sentido o prosseguimento de uma acção tendente a dissolver um casamento – já dissolvido, dado que os efeitos do divórcio não são os mesmos da dissolução por morte (art.º 1788.º do Código Civil). Mais ponderosa é a objecção fundada na natureza do direito ao divórcio, cujo exercício depende de uma opção pessoalíssima do respectivo cônjuge, que exclui, por princípio, a hereditabilidade desse direito.

Bem vistas as coisas, a verdade é que a especial natureza do direito ao divórcio só exclui que a acção correspondente seja proposta pelos herdeiros do cônjuge falecido, mas não obsta que, uma vez a acção proposta por este – evidenciando o propósito de promover a dissolução, por divórcio, do casamento – venha a ser continuada pelos respectivos herdeiros, ou outros familiares, como, de resto, sucede v.g. com a acção de anulação do casamento fundada em falta ou vício de vontade, cuja natureza pessoal é também indiscutível (art.ºs 1640.º, n.º 2, e 1641.º do Código Civil). De resto, não seria razoável que o facto fortuito da morte de um dos cônjuges na pendência da acção alterasse significativamente a partilha dos bens do casal e a sucessão do cônjuge sobrevivo.

Se se tiverem presentes os interesses que justificam que a acção de divórcio seja continuada pelos herdeiros do autor ou do réu reconvinte, resulta claro que como tais só podem ser havidos os sucessíveis que, no caso de acção proceder e o divórcio vier a ser decretado, serão chamados à sucessão do cônjuge falecido como seus herdeiros, legais ou testamentários.

Pretendeu-se, efectivamente, desde logo, possibilitar a exclusão do cônjuge como sucessor da herança do cônjuge falecido, da mesma maneira que seria excluído se o falecimento tivesse ocorrido depois de decretado o divórcio, i.e., trata-se de deferir a herança tal como o seria se o falecimento do cônjuge autor se tivesse verificado depois de ter sido proferida a sentença que decretou o divórcio (artº 2133.º, n.º 3, do Código Civil). Visou-se, depois, limitar o acervo dos bens a que cônjuge sobrevivo eventualmente tenha direito como meeiro dos bens do casal, já que em caso de divórcio o cônjuge, casado sob o regime de comunhão geral de bens, não pode, na partilha, receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos (art.º 1790.º do Código Civil). O divórcio releva ainda para a perda de benefícios recebidos em vista do casamento ou em consideração do estado de casado (art.º 1791.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

Note-se, porém, que os herdeiros do autor ou do réu reconvinte não são todos os seus possíveis herdeiros e, portanto, a habilitação não pode ser promovida por todos os sucessíveis (art.º 2133.º, n.º 1, do Código Civil). Os herdeiros do autor ou do réu reconvinte, para o fim considerado, são apenas os sucessíveis que sejam chamados à sucessão do cônjuge falecido como seus herdeiros, legais ou testamentários, no caso de a acção proceder e o divórcio ser decretado, sendo apenas a estes sucessíveis que deve ser reconhecida legitimidade para a dedução do incidente de habilitação para o prosseguimento da acção de divórcio[1].

Assim, na sucessão legítima, se o cônjuge autor ou réu reconvinte falecer e deixar cônjuge, ascendentes e descendentes, apenas os últimos devem ser admitidos a continuar a acção para que, se a acção proceder e o cônjuge for afastado da sucessão, não sofram a concorrência desse cônjuge e, não havendo herdeiros testamentários, a herança lhes pertença por inteiro; se o cônjuge autor ou réu reconvinte falecer e deixar cônjuge, mas não ascendentes nem descendentes apenas devem ser admitidos os irmãos e seus descendentes de modo a que, caso a acção ou a reconvenção, conforme o caso, procedam, e o cônjuge sobrevivo seja afastado da sucessão, a herança do cônjuge falecido lhes seja devolvida por inteiro.

Diz-se habilitação a prova da aquisição, designadamente por sucessão, da titularidade de um direito ou complexo de direitos ou de outra situação jurídica ou complexo de situações jurídicas, habilitação que permite a mudança da parte inicial por uma parte subsequente ou de uma parte subsequente por outra parte subsequente. Realmente, pode acontecer que uma parte subsequente, i.e., uma parte habilitada para substituir outra na pendência da acção, faleça também na pendência dessa mesma acção. Neste caso, permanece também a necessidade de habilitação, dado que também nesta hipótese se verifica a eventualidade quanto ao objecto do processo – a sucessão – que a justifica. Isto é evidente na sucessão legítima, por força dos princípios da preferência de classe e da preferência de grau de parentesco dentro da mesma classe: os herdeiros de cada uma das classes de sucessíveis preferem aos as classes imediatas; dentro de cada classe, os parentes de grau mais próximo, preferem os de grau mais afastado, embora o direito de representação introduza excepções importantes a esta última regra (art.ºs 2134.º e 2135.º). Assim na falta do cônjuge, descendentes ou ascendentes, são chamados à sucessão os irmãos e representativamente os descendentes destes, qualquer seja o grau de parentesco (art.ºs 2044.º e 2145.º do Código Civil). Como é claro, na falta dos irmãos, são chamados à sucessão os descendentes destes. Para esse chamamento – e para a habilitação correspondente – é indiferente que a parte falecida seja ela mesma uma parte subsequente, dado que não há razão material válida para tratar diferentemente o caso de um sucessor habilitado que, entretanto, faleceu na pendência da causa, e da morte desse mesmo sucessor não habilitado: em qualquer dos casos impõe-se a habilitação, no caso da sucessão legítima, de harmonia com a regra do chamamento sucessivo das diversas classes de sucessíveis.

Em caso de morte a lei pretende que o processo não continue nem finde sem que se dê a habilitação, condição da admissibilidade desse mesmo processo.

Se a qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando a substituir a parte falecida estiver reconhecida em habilitação notarial, a habilitação demonstra-se ou tem por base certidão da escritura (art.º 353.º, n.º 1, do CPC). A habilitação notarial outra coisa não é que a declaração, feita em escritura pública, por três pessoas que o notário considere dignas de crédito, de que os habilitandos são herdeiros do falecido e não há quem lhes prefira na sucessão ou quem concorra com eles; a habilitação notarial tem os mesmos efeitos da habilitação judicial, i.e., daquela que é realizada em processo, naturalmente não vinculante para aqueles que a não promoveram ou a não aceitaram (artºs 82.º a 85.º e 86.º, n.º 1, do Código do  Notariado). Aquela declaração pode, de modo alternativo, ser feita por quem desempenhar o cargo de cabeça-de-casal (art.º 83.º n.º 2, do Código do Notariado).

Segundo o apelante, a sentença impugnada é substancialmente nula por não se ter pronunciado sobre a excepção do caso julgado, formal e material, que alegou na contestação do incidente e, em qualquer caso, que se verifica aquela excepção dilatória, consequente ao trânsito em julgada da decisão que julgou habilitada a herdeira da reconvinte na acção de divórcio, e que os apelantes agem em abuso do direito.

A apreciação destes objectos do recurso exige, naturalmente, o exame, ainda que leve, da causa do valor negativo da nulidade substancial da sentença representada pela omissão de pronúncia, do pressuposto processual negativo, que se resolve numa excepção dilatória própria, do caso julgado, e dos pressupostos e consequência jurídica do abuso do direito.

3.2. Nulidade substancial da sentença por omissão de pronúncia.

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuando-se aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, do CPC).  Este corolário do princípio da disponibilidade objectiva do objecto do processo impõe ao tribunal o dever de examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos ou excepções que formularam, com ressalva das matérias ou dos pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se torne inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. Por isso que é nula a decisão na qual o tribunal deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, portanto, quando se verifique uma omissão de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1 d), 1.ª parte, do CPC).

Uma leitura, ainda que meramente oblíqua, da sentença impugnada, permite encontrar no seu texto, a título de questão prévia, os seguintes dizeres: não se verifica a invocada excepção do caso julgado, excepção que julgou improcedente. É, portanto, claro, evidente, patente, manifesto, ostensivo, que a Sra. Juíza de Direito se pronunciou – para o caso não interessa se bem se mal –  sobre a excepção dilatória da res judicata alegada pela apelante na contestação e a julgou improcedente. Dizer, em face daquele enunciado, claro e expresso, da sentença impugnada, que aquela Magistrada se absteve, injustificadamente, de apreciar tal excepção é, a um tempo, profundamente injusto e exasperadamente infundado.

Quanto a este fundamento do recurso, decisivamente, só uma decisão se impõe: a de improcedência.

 3.3. Excepção dilatória própria do caso julgado.

A nossa lei adjectiva define o caso julgado a partir da preclusão dos meios de impugnação da decisão: o caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão – despacho, sentença ou acórdão – decorrente do seu trânsito em julgado (art.º 628.º do CPC).

O caso julgado é, evidentemente, uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver[2].

A partir do âmbito da sua eficácia, há que fazer um distinguo entre o caso julgado formal e o caso julgado material: o primeiro tem um valor estritamente intraprocessual, dado que só vincula no próprio processo em que a decisão que o adquiriu foi proferida; o segundo é sempre vinculativo no processo em que foi proferida a decisão, mas também pode sê-lo em processo distinto (artºs 620.º, nº 1 e 621.º do CPC).

O caso julgado resolve-se na inadmissibilidade da substituição ou da modificação da decisão por qualquer tribunal – mesmo por aquele que proferiu a decisão. Todavia, o caso julgado não se limita a produzir um efeito processual negativo – traduzido na insusceptibilidade de qualquer tribunal, mesmo também daquele que é o autor da decisão, se voltar a pronunciar sobre essa mesma decisão. Ao caso julgado deve também associar-se um efeito processual positivo: a vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais, ao resultado da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada por aquele tribunal, ou seja, ao conteúdo da decisão desse mesmo tribunal.

A eficácia do caso julgado material varia, porém, em função da relação entre o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada e o âmbito subjectivo e o objecto do processo posterior.

Se o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i.e., se ambas as acções possuem o mesmo âmbito subjectivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como excepção do caso julgado – excepção que tem por finalidade evitar que o tribunal da acção posterior seja colocado na desagradável alternativa de reproduzir ou de contradizer a decisão transitada (artºs 580.º n.ºs 1, in fine, e 2, e 581.º, n.ºs 3 e 4 do CPC). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria (art.º 577.º, i), do CPC).

Se, porém, a relação entre o objecto da decisão transitada e o da acção subsequente, não for de identidade, mas de prejudicialidade, nem por isso, o caso julgado deixa de ser relevante: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial – i.e., que constitui pressuposto ou condição de julgamento de outro objecto – vale como autoridade de caso julgado na acção que no qual se discuta o objecto dependente. Quando isso suceda, o tribunal da acção posterior – acção dependente – está vinculado à decisão proferida na causa anterior – acção prejudicial.

Realmente – como é corrente na doutrina[3] e na jurisprudência[4] – neste domínio há que fazer um distinguo entre a excepção do caso julgado – e a autoridade do caso julgado. E a distinção é de extraordinária relevância, dado que, não se tratando da excepção do caso julgado, mas da autoridade do caso julgado, não é exigível a apontada relação de identidade, i.e., a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa petendi.  Na verdade, só no tocante à excepção do caso julgado – dado que assenta na ideia de repetição de causas – deve reclamar-se uma identidade quanto aos elementos subjectivos – partes – e objectivos – pedido e causa de pedir – da instância (art.º 580.º, n.º 1, do CPC).

No tocante a identidade de sujeitos, cumpre notar que a parte processual é entendida pela sua qualidade jurídica perante o objecto da causa: a identidade jurídica não tem que coincidir com a identidade física, apenas se exigindo que actuem como titulares da mesma relação jurídica substancial – abrangendo o primitivo titular e o respectivo sucessor. Da mesma maneira, essa identidade não é excluída pela diversidade da sua posição processual (art.º 581.º, n.º 2, do CPC). A identidade relevante é, portanto, a identidade jurídica, do que resulta a vinculação ao caso julgado de todos aqueles que, perante o objecto apreciado, possam se equiparados, atendendo à sua qualidade jurídica, às partes na acção. Assim, a essas partes são equiparados, por exemplo, todos os terceiros que sucedam, inter vivos ou mortis causa, na titularidade do objecto processual apreciado.

Relativamente à identidade de pedido, há que atender ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem[5]. É, portanto, suficiente uma identidade meramente relativa, dado que fica abrangido não só o efeito jurídico obtido no primeiro processo – como qualquer outro efeito jurídico que houvesse estado implícita mas necessariamente em causa[6].

Efectivamente, a identidade de pedido deve ter-se por verificada quanto sejam coincidentes os enunciados da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e o conteúdo e objecto do direito para o qual se reclama aquela tutela e na concretização do efeito jurídico que, pela acção, se pretende obter - mas a enunciação da tutela jurisdicional relevante não é apenas a explicitada, mas também a que lhe esteja necessariamente implícita[7].  O pedido, enquanto efeito jurídico que o autor pretende obter não deve, portanto, ser entendido ou interpretado de modo puramente literal, mas com o alcance que decorre da sua conjugação com os seus fundamentos, de modo a que se individualize a forma específica de tutela visada[8]. É, assim, suficiente que as partes tenham conhecimento do efeito prático que pretendam alcançar, embora careçam da representação do efeito jurídico, pelo o que interessará não o efeito jurídico que as partes formulem; o objecto mediato deve entender-se como o efeito prático que o autor pretende obter e não como a qualificação jurídica que dá a sua pretensão[9].

Entendendo-se - como se deve – por causa de pedir os factos – necessários – dos quais deriva a pretensão material ou o direito invocado pelo autor ou réu reconvinte, haverá identidade de causas petendi sempre o facto jurídico concreto de que procede o direito ou interesse alegado pela parte seja o mesmo[10]. Note-se, porém, que o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objecto apreciado, dado que o releva é a identidade de causa de pedir – i.e., os factos concretos com relevância jurídica – e não a identidade das qualificações jurídicas que a esse fundamento comporte (artºs 580.º, n.º 1, e 581.º, n.º 4 do CPC).

O caso julgado está, porém, sujeito a limites, designadamente objectivos, temporais e subjectivos.

No tocante aos limites objectivos – i.e., ao quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado – este abrange, decerto, a parte decisória do despacho, da sentença ou do acórdão, i.e., a conclusão extraída dos seus fundamentos (art.º 607.º, n.º 3, do CPC).

O problema está, porém, em saber se - de harmonia com uma concepção restritiva[11] - apenas cobre a parte decisória da sentença ou antes se estende – de acordo com uma concepção ampla - a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão. Apesar do carácter espinhoso do problema, tem-se por preferível uma concepção intermédia, para o qual se orienta, ao menos maioritariamente, a jurisprudência[12]: o caso julgado abrange todas as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença[13]. Realmente, como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado, não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos – e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão[14]. Ou noutra formulação: os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado – enquanto pressupostos da decisão, ficando fora do caso julgado tudo o que esteja contido na sentença, mas que não seja essencial ao iter iudicandi[15].

No plano dos limites temporais, importa observar que o caso julgado incide sobre uma decisão concreta, que deve considerar a matéria de facto tal como ela se apresenta no momento do encerramento da discussão, pelo que lhe não pode ser indiferente uma alteração ocorrida posteriormente. Dito doutro modo: o caso encontra-se submetido ao princípio rebus sic stantibus e, por isso, deixa de valer quando ocorre uma alteração dos circunstancialismos de facto em que a decisão foi proferida, pelo que pode perder a sua eficácia por caducidade ou por substituição da decisão transitada. A caducidade do caso julgado dá-se quando deixa de se verificar a situação de facto subjacente à decisão; como reflexo da regra rebus sic stantibus sobre o caso julgado, a substituição da decisão transitada por uma outra pode ser requerida quando se altera a situação de facto a ela subjacente.
Por último, o caso julgado está sujeito a limites subjectivos, que definem quem fica vinculado por uma decisão transitada em julgado.
O caso julgado, de harmonia com o princípio da eficácia inter partes, produz sempre efeitos processuais entre as partes que o provocaram. Mas, como regra, não pode prejudicar terceiros que não intervieram no processo. Portanto, quanto ao âmbito subjectivo, o caso julgado tem, em geral, uma eficácia meramente relativa, regra que é o reflexo do princípio estruturante do contraditório: quem não pode defender os seus interesses num processo pendente, não pode ser afectado pela decisão nele proferida. Os terceiros não podem ser prejudicados, nem beneficiados, pelo caso julgado de uma decisão proferida numa acção em que não foram partes.
 Face a estes enunciados é bem de ver que a excepção do caso julgado oposta pela apelante aos apelados deve julgar-se improcedente.
Desde logo, porque não se verifica no caso, a identidade de partes, considerada a partir da sua qualidade jurídica relativamente ao objecto da causa: no primeiro incidente de habilitação era parte, do lado, activo a primitiva habilitada, por força da sua qualidade de herdeira prevalente ou preferente da ré reconvinte, falecida na pendência da acção de divórcio; no incidente em que foi proferida a decisão contestada no recurso, são parte os apelados por, em consequência do facto da morte da primitiva habilitada, serem eles, agora, os herdeiros preferentes, quer desta, quer da demandada originária na causa de divórcio.
A decisão transitada em julgado, com fundamento em que CC, era a herdeira da primitiva ré reconvinte e não havia quem lhe preferisse na sua sucessão ou quem concorresse com ela, julgou-a habilitada para, em substituição daquela parte, prosseguir com aquela causa; a decisão impugnada no recurso, por aplicação das regras da sucessão legítima, com fundamento em que os apelantes são os únicos herdeiros daquela parte subsequente e, consequentemente, também únicos herdeiros da primitiva ré reconvinte, julgou-os habilitados para contra o autor, apelado, prosseguirem essa mesma acção de divórcio. Sendo isto assim, é claro que entre uma e outra decisão não existe desde logo sequer uma identidade de objecto: no primeiro incidente da habilitação, a causa de pedir era constituída pelo facto de a habilitanda ser herdeira da ré reconvinte, falecida na pendência da causa, e de não haver quem lhe preferisse na sucessão da última; no incidente no qual foi proferida a decisão impugnada, a causa petendi é integrada pelos factos da morte da habilitanda e da consequente perda por esta da perda da sua vocação sucessória de herdeira prevalente e de os apelados, habilitandos, serem, actualmente, os únicos herdeiros da habilitada e, necessária e logicamente, da primitiva ré reconvinte da acção de divórcio.
Os pedidos formulados neste incidente e no anterior também não se caracterizam pela isonomia: no primeiro pediu-se o reconhecimento de a primitiva habilitada era a herdeira preferente da primitiva ré reconvinte; no segundo pede-se a declaração de os apelados são, por virtude da morte daquela parte subsequente, herdeiros prevalentes tanto desta como do cônjuge que faleceu na acção de divórcio.
Ainda que estes argumentos, ex-adverso, se não tenham por procedentes, julga-se que é irrecusável a caducidade do caso julgado formado sobre a primeira decisão de habilitação da sucessora do cônjuge reconvinte falecido na constância da acção de divórcio, por alteração evidente dos condicionalismos de facto em que assentou: a morte da habilitada e a aquisição pelos apelantes da qualidade de sucessores quer da habilitada quer do cônjuge falecido na pendência da acção constitutiva de divórcio.  Face a esta alteração conspícua da situação de facto subjacente à primeira decisão de habilitação, nada obsta a que os apelantes possam – com fundamento no princípio rebus sic stantibus – pedir a sua substituição com fundamento em que posteriormente ao seu proferimento, a habilitada, com a sua morte, perdeu a qualidade de herdeira da primitiva ré e de não existir quem lhe preferisse na respectiva sucessão, qualidade que, pelo mesmo facto, radica agora na sua esfera jurídica.
A relação de prejudicialidade entre objectos processuais ocorre quando a apreciação de um objecto – o prejudicial – constitui o pressuposto do julgamento de um outro – o dependente. Nas situações de prejudicialidade entre objectos processuais, o caso julgado é também relevante, dado que a decisão proferida sobre o objecto processual vale como autoridade do caso julgado na acção em que se aprecia o objecto dependente, hipótese em que o tribunal da acção dependente está vinculado à decisão proferida na causa prejudicial. Tem-se por evidente que entre o anterior incidente de habilitação e aquele em que foi proferida a decisão impugnada no recurso não existe qualquer relação de prejudicialidade, uma vez o objecto apreciado naquele – a qualidade de sucessora preferente da habilitada entretanto falecida – não é condição ou pressuposto do julgamento do objecto do incidente no qual foi proferida a decisão contestada no recurso: a qualidade dos apelantes, de harmonia com as regras da sucessão legítima, como únicos sucessores quer da habilitada falecida quer, até por simples corolário lógico, do cônjuge falecido na pendência da acção de divórcio. A relação entre o objecto de um e de outro incidente não é de prejudicialidade, mas de compatibilidade consequente à escala ou hierarquia das designações sucessórias - e à sua instabilidade – por força da qual só será chamado a suceder o titular de designação sucessória prevalente, prevalência duma designação sobre as outras que é apreciada no momento da morte do autor da sucessão: se a primitiva habilitada, parte subsequente, era a sucessora preferente ou prevalente do cônjuge falecido, parte inicial, é porque os apelados, naquele momento, o não eram; se os apelados são na actualidade os sucessores preferentes daquele cônjuge é porque aquela habilitada, parte subsequente, deixou de o ser. Do que decorre que a decisão proferida no primeiro incidente de habilitação não vale como autoridade de caso julgado no segundo e, portanto, o juiz deste último incidente não está vinculado, em consequência de uma relação de prejudicialidade entre objectos processuais, á decisão proferida no primeiro, que o impeça de apreciar o pedido de habilitação dos apelados.
Não se verifica, deste modo, a excepção dilatória do caso julgado material, nem, pelos mesmos motivos, do caso julgado meramente formal, dado que a questão processual decidida no primeiro incidente e a decidida neste não são homótropas.
Estas considerações são mais que suficientes para julgar improcedente o fundamento do recurso referido ao caso julgado.
Resta, por isso, apreciar o último fundamento desse mesmo recurso - a excepção peremptória do abuso do direito.
                3.4. Excepção peremptória do abuso do direito.

Apesar de o abuso do direito ser de conhecimento oficioso[16] - de que decorre a admissibilidade da sua invocação na instância de recurso apesar de não ter siso alegado na instância de que esse recurso procede - o mais distraído dos operadores ou observadores judiciários não pode deixar de notar que quase não há processo em que as partes, per abundantiam, ou à míngua de outros argumentos, não invoquem o abuso de direito. Por contraste – e por certo também em consequência da erosão que o instituto sofre com a sua indevida convocação - há casos em que tal arguição de todo se justificaria, mas em que, inexplicavelmente, se omite a sua invocação.

O abuso do direito deve ser usado sempre que necessário. O que não deve é ser banalizado, exigindo-se sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[17].

De harmonia com a previsão legal, o exercício de um direito é ilegítimo sempre que o titular exceda os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334.º do Código Civil). De modo amplo, o abuso do direito consiste, pois, no exercício ilegítimo -  ilícito - de direitos ou posições jurídicas.

O abuso do direito, exprimindo o afinamento ético do direito moderno e um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos á realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente.

Assim, são reconduzidos ao abuso do direito, por exemplo, o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório; a supressio (supressão)[18], ou seja, a neutralização de um direito que durante muito tempo se não exerceu, tendo-se criado, pela própria conduta, uma expectativa legítima de que não iria ser exercido, e a surrectio, i.e., o surgimento de um direito por força de um comportamento contraditório qualificado pelo decurso do tempo, o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, v.g., por desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular do direito e o sacrifício imposto por esse exercício a outrem[19].

É natural, por isso, que a concreta consequência jurídica que se deve assinalar ao abuso, varie em função do específico acto abusivo e do respectivo contexto, que pode consistir na inibição do exercício de poderes jurídicos – como sucede, v.g., com o venire contra factum proprium  ou com o desequilíbrio no exercício  -  ou na constituição do agente no dever de indemnizar[20].

A alegação do abuso de direito, quando tenha por efeito, a inibição do exercício de poderes jurídicos, v.g., de um direito subjectivo, resolve-se numa excepção peremptória, dado que obsta à produção dos efeitos jurídicos decorrentes do objecto definido pelo autor e determina a absolvição, do pedido (art.ºs 576.º, n.º 3 e 571.º, n.º 2, in fine, do CPC). O ónus da prova dos factos correspondentes vincula a excipiente, pelo que, no caso de non liquet, há que decidir contra essa parte a questão correspondente (art.ºs 342.º, n.º 2, do Código Civil e 414.º do CPC).

A propósito das excepções invocadas pelo demandado como meio de defesa, em especial das excepções peremptórias, não é usual falar de causa de pedir, mas de fundamento das excepções (art.º 5.º, n.º 1, do CPC). Causa de pedir e fundamento da excepção são realidades funcionalmente equivalentes, pelo que o vale para a causa de pedir do autor vale, mutatis mutandis, para o fundamento da excepção invocado pelo réu, pelo que esta parte tem o ónus de alegar – e de provar – o fundamento da excepção e de assegurar a concludência da sua alegação.

Segundo o apelante, o abuso do direito pelos apelados consiste no facto de a situação destes não merecer qualquer tutela legal, pois a conceder provimento à pretensão dos requerentes era permitir a eternização de um processo de divórcio, em que em última instância, até o Estado, na sequência de sucessivas habilitações sobre habilitações, poderia vir a ocupar a posição primitiva da Ré BB.

Julga-se, convictamente, que esta circunstância – e só esta circunstância, dado que a matéria de facto, a cujo julgamento não é assacado qualquer deficiência, não torna patente quaisquer outras – é, de todo, insuficiente para caracterizar a conduta dos apelados, ao promoverem a sua habilitação, como abusiva – seja qual for a modalidade do abuso do direito que devesse ser considerada - sendo simples consequência do funcionamento da lei de processo da necessidade de reconstituição subjetiva, em caso de morte da parte, da instância, e da previsão da lei substantiva que permite ao sucessível que seja chamado à sucessão do cônjuge, falecido na pendência da acção de divórcio, de requerer o seu prosseguimento para efeitos estritamente patrimoniais, evitando que o cônjuge sobrevivo tire do facto fortuito da morte do outro cônjuge, na pendência da acção de divórcio, um qualquer benefício, designadamente sucessório, que a extinção do casamento por divórcio excluiria.

Este fundamento da impugnação deve, pois, também, improceder.

Assim, dado que a qualidade dos apelados de que depende a habilitação – a de herdeiros prevalentes, tanto da primitiva habilitada como do cônjuge falecido na pendência da acção de divórcio – se deve ter por demonstrada por se mostrar reconhecida em habilitação notarial – ponto que o apelante não controverso no recurso - outra coisa não resta, face à falta de bondade de todos os seus fundamentos, que recusar-lhe provimento.

Do conjunto da argumentação exposta, extraem-se, com mais significantes, as proposições conclusivas seguintes:

(…).

O apelante sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-o objectivamente responsável pelas respectivas custas (art.º 527.º n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos apelantes.

                                                                                                                              2023.11.21


[1] Ac. do STJ de 21 de Maio de 1981, BMJ n.º 307, pág. 210, e Pereira Coelho, RLJ, n.º 3769, pág. 116.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 568.
[3] V.g., Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 354, João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processual Civil, Edições Ática, 1968, págs. 38 e 39, Alberto dos reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, Lisboa, 1973, págs. 60 e 61.
[4] V.g. Acs. do STJ de 19.05.2010 e de 28.06.2012, da RC de 28.09.2010 e da RL de 12.07.2012, www.dgsi.pt.
[5] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, cit. pág. 349.
[6] João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processual Civil, cit., pág. 350.
[7] Ac. do STJ de 05.12.2017 (1565/15.8T8VFR-A.P1.S1).
[8] Ac. do STJ de 13.12.2018 (642/14.7T8VCT.G1.S1).
[9] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1981, pág. 203.
[10] José Lebre de Freitas “Caso julgado e causa de pedir. O Enriquecimento sem causa perante o artigo 129 do Código Civil”, ROA, Ano 2006, Dezembro de 2006, Vol. III.
[11] Cfr., v.g., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, cit. pág. 318.
[12] V.g., Acs. do STJ de 10.07.2007, CJ, STJ, V, II, pág. 165, da RC de 27.09.2005 e 29.05.12 e da RL de 12.07.2012, www.dgsi.pt.
[13] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, cit., pág. 253.
[14] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, cit., págs. 578 e 579.
[15] João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, cit., págs. 578 e 579.
[16] Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.11.94 e 25.11.99, CJ, STJ, II, III, pág. 157 e VII, III, 124, respectivamente; Maria Luiza do Valle Rocha “O conhecimento oficioso do abuso do direito”, in Revista de Direito Civil, Ano II, 2017, FDUL, CIDP, Almedina, pág. 216.
[17] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 2ª edição, Almedina, 2000, págs. 247 e 248.
[18] Cfr. v.g., o Ac. da RE de 26.11.1987, CJ, XII, V, pág. 268, e de 23.1.1986, CJ, XI, I, pág. 231, e do STJ de 3.5.1990, BMJ n.º 397, pág. 454, e de 11.3.1999, www.dgsi.pt.
[19] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit. págs. 250 a 265, e Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, § 30, págs. 797 e ss.
[20] Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no Direito Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume Comemorativo, Coimbra, 2003, pág. 305 e António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé, cit., págs. 828 a 836, Vaz Serra, Abuso do Direito (em Matéria de Responsabilidade Civil), BMJ n.º 85, pág. 262, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 1987, pág. 299, e Ac. do STJ de 16.03.1980, RLJ, Ano 114, pág. 76. Mas é claro que o acto abusivo pode ainda dar lugar, à nulidade, à anulabilidade, a inoponibilidade, ao alargamento de um prazo de caducidade ou de prescrição, etc. Cfr. Vaz Serra, RLJ, Ano 107, pág. 25.