Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
244/06.1TASPS.C3
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
ORDEM ILEGÍTIMA
PROPRIETÁRIO
ÁRVORE
ENERGIA ELÉCTRICA
CONCESSIONÁRIO
Data do Acordão: 03/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 54º DO DEC. LEI 26.852, DE 30 DE JULHO, 348º CP
Sumário: I- Face à evolução legislativa e ao quadro constitucional após a Constituição de 1976, em matéria de sistema de transporte e distribuição de energia eléctrica e nomeadamente em matéria da tutela dos deveres de quem explora em termos de concessão as linhas de transporte, atribuindo-lhe um conjunto de rigorosos deveres nomeadamente no domínio da segurança, com reflexo directo nos direitos dos proprietários cujos terrenos são atravessados pelas referidas linhas, as normas vigentes constantes do Dec. 26852 de 30 de Julho de 1936 (diploma em causa nestes autos), têm que ser adaptadas e interpretadas de acordo com essa evolução.

II- A manutenção da segurança das linhas eléctricas, da responsabilidade das entidades concessionárias, não é dissociável da conservação das plantações existentes sob as linhas objecto de concessão e sobretudo da responsabilização pela manutenção de níveis de segurança das linhas, eventualmente postos em causa pelo crescimento dessas plantações.

III- O bem jurídico protegido no crime de desobediência é a autonomia intencional do Estado ou dos seus órgãos que perseguem os interesses públicos das populações locais da sua respectiva área ou circunscrição e subsequente não colocação de entraves à actividade administrativa, levada a cabo por aqueles órgãos, por parte dos destinatários dos seus actos.

IV- Estando em causa um dever de garantir a segurança das linhas eléctricas de transporte e distribuição de energia, actualmente da responsabilidade dos concessionários a quem o Estado efectuou as concessões de transporte e distribuição de energia eléctrica, a intimação dos proprietários dos terrenos para procederem à destruição de plantações que impeçam o serviço das linhas eléctricas, faz incidir sobre os referidos proprietários um dever que não pode ser seu, mas sim dos concessionários.

V- Não estando em causa qualquer dever de não colocação de entraves à actividade administrativa a referida «intimação» não consubstancia, por isso, uma ordem legítima. E nessa medida não pratica o crime de desobediência o proprietário que, notificado para proceder ao corte ou decote de árvores, por forma a que as extremidades das mesmas ficassem a uma distância superior àqueles 2,5 metros dos condutores nus da supra referida linha de transporte e distribuição de energia eléctrica, não a acata.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
No processo Comum Singular n.º 244/06.1TASPS.C3.C1 ao arguido JF..., foi-lhe imputando a prática, em autoria material, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código penal por referência ao artigo 54.°, n.º 1, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936.

Realizada a audiência de julgamento, por sentença proferida a 29 de Janeiro de 2008, foi a acusação julgada procedente e o arguido condenado pela prática, em autoria material de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal por referência ao artigo 54.°, n.º 1, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 10, ou 46 dias de prisão subsidiária.

O arguido interpôs recurso da sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra, que por acórdão proferido a 16 de Julho de 2008, decidiu determinar o reenvio do processo para novo julgamento, sobre os factos que haviam sido dados como provados em 2, 3 e 7 naquela sentença.

Efectuado novo julgamento para cumprimento do acórdão da Relação proferido a 16 de Julho de 2008, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 20 de Maio de 2009, decidiu julgar procedente, por provada, a acusação do Ministério Público e condenar o arguido pela prática em autoria material de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal por referência ao artigo 54.°, n.º 1, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 7, ou seja, na multa de € 350.

Inconformado novamente com a sentença proferida dela interpôs recurso o arguido, tendo este Tribunal da Relação decidido, por acórdão de 14 Abril de 2010, decidido conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em face da existência dos vícios de erro notório na apreciação da prova, na fundamentação da matéria de facto do ponto n.º 6 dos factos provados e da contradição insanável entre o ponto n.º 6 dos factos dados como provados e a matéria de facto dada como não provada na sentença recorrida, determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente a estas questões.

Efectuado o julgamento o arguido foi novamente condenado prática em autoria material de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal por referência ao artigo 54.°, n.º 1, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6, ou seja, na multa de € 480, para além das custas.

Inconformado novamente com a sentença proferida, dela vem agora interpor recurso, concluindo na sua motivação nos seguintes termos:

1. Não tendo este Tribunal da Relação, no seu acórdão de 14 de Abril de 2010 que reenviou para julgamento o presente processo, posto em crise a não prova do licenciamento da linha pela Direcção Geral dos Serviços Eléctricos em 08.06.1977, nem, tão pouco, a circunstanciada fundamentação que o Tribunal de Primeira Instância então produziu para a justificar, estaria o Mmo Juiz a quo impedido de alterar, na sentença recorrida, tal matéria, já que sobre ela se haveria abatido a força de caso julgado.
2. O licenciamento da linha em causa constitui um acto administrativo, como tal sujeito às regras dos arts. 122° n° e 123° do CPA.
3. Em todo o caso, a forma escrita e as exigência de indicação da autoridade que o praticou com menção de delegação ou subdelegação de poderes, a identificação do destinatário, o conteúdo da decisão e respectivo objecto, a data, assinatura do autor do acto eram tudo exigências de forma impostas à figura do despacho no direito anterior à entrada em vigor do CPA.
4. Ao dar por provado o licenciamento da linha eléctrica sem que nos autos tenha ficado o Despacho da Direcção Geral de Energia, sequer os seus termos, o Tribunal limitou os direitos de defesa do arguido, impedindo-o de invocar eventuais vícios de tal putativo despacho, e violou as normas citadas nas conclusões anteriores.
5. Ao dar como provado tal licenciamento, a douta sentença recorrida terá ainda incorrido em erro notório na apreciação de prova a que se refere a alínea b) do n° 2 do art. 4100 do CPP.
6. Dos documentos dos Autos de fis. 53, 48, 51, 43, 39, 33, 29, 24, 14, 8 e 4 resulta que as ordens dadas pela EDP e pela Direcção Regional ao arguido não são claras nem constantes, referindo-se, sucessivamente, primeiro à «destruição da plantação em causa” (cfr. fis. 51), depois às “distâncias dos condutores às árvores, com o mínimo de 2,5 m e a zona de protecção, que no caso concreto é de 15 m, na qual deverão ser cortadas ou decotadas as árvores que, por queda, não garantam em relação aos condutores, na hipótese de flecha máxima sem sobrecarga de vento, a distância mínima de 1,5m” (cfr. fis. 43), mais tarde novamente à “destruição da plantação em causa”, agora com a referência à “limpeza da zona de protecção da referida linha com a introdução da alternativa “ou permitir tal limpeza à EDP’ (cfr. fis. 33), posteriormente “solicita (...) que proceda à limpeza da zona de protecção da referida linha, devendo para tal contactar a EDP a fim de serem asseguradas as necessárias condições de segurança”, mantendo a alternativa «ou a permitir tal limpeza à EDJ” (cfr. fis. 24) e terminando pela comunicação de que irá ao local um técnica da Direcção Regional “acompanhado de uma equipa da EDP para proceder à limpeza da zona de protecção” (cfr. fis. 14).
7. A Direcção Regional, acompanhada da equipa da EDP estiveram no local na data comunicada com um empreiteiro para proceder ao corte e limpeza anunciados, tiveram todas as condições para procederem a tal, não houve impedimento nem do arguido nem de terceiros e só por decisão da Direcção Regional tal actuação se não concretizou.
8. O arguido não impediu pois que a EDP procedesse à limpeza, tanto que (como prevíamente tinha anunciado) nem sequer compareceu no local nem promoveu qualquer atitude impeditiva, pelo que, tendo-lhe a ordem sido dirigida em alternativa de facere ou nonfacere, não houve lugar a desobediência.
9. Não sendo a ordem clara e inequívoca nunca haveria, aliás, lugar a desobediência pelo arguido. Aliás,
10.0 arguido limitou-se, em todo o processo, a utilizar argumentação jurídica, nas sucessivas respostas que deu a todas as comunicações que ao longo de mais de um ano lhe foram dirigidas pela EDP e pela Direcção Regional de Energia.
11. Em todas as comunicações nunca ao arguido é dito de forma clara e inequívoca que praticará o crime de desobediência se não adoptar (ou se adoptar) determinado comportamento, pelo que também pela ausência dessa cominação expressa e inequívoca, nunca haveria lugar à prática do crime de desobediência.
12. Salva melhor opinião, a douta sentença recorrida deveria assim ter concluído pelo não cometimento pelo arguido do crime de desobediência. Concluindo de forma diversa, a douta sentença recorrida terá feito incorrecta interpretação do art. 348° n° 1 do Código Penal de 1995, violando consequentemente essa norma.
13.0 regime do art. 54° do DL 26.852 de 30.07.1936 implica o prévio licenciamento da linha em causa e, bem assim, declaração de utilidade pública da instalação onde ela se integre. Ora, o Tribunal a quo não dá por provado que a linha que passa sobre o terreno do arguido se ache estabelecida numa instalação declarada de utilidade pública e, pelo contrário, dá por não provado o licenciamento da linha.
14.No documento de fis. 140 (concessão da licença) não há referência a declaração de utilidade pública.
15.Não se provou que os formalismos de tal concessão (publicação no Diário do Governo, afixação de editais, publicação em jornal local, tudo cfr. DL 43.335 de 19.11.1960) hajam tido lugar, não se encontrando juntos aos Autos nem a referência a tais publicações nem as suas cópias ou certidões.
16.0 Tribunal a quo terá assim feito incorrecta aplicação do citado art. 54°, violando tal norma.
17.0 DL 26.852 citado, revogado que foi o seu art. 550, não prevê indemnização dos proprietários onerados com a passagem de linhas eléctricas, pelo que — constituindo a expropriação do n° 2 do art. 62° da CRP um conceito muito mais amplo que o congénere do direito administrativo e do direito civil, abrangendo todas aquelas situações em que haja afectação de uma posição jurídica garantida como propriedade pela Constituição — o art. 54° e seu § primeiro do dito DL 26.852, por referência ao qual vem o arguido condenado, interpretado no sentido de que impende sobre o proprietário dos terrenos atravessados uma obrigação de suportar sem contrapartida uma zona de protecção às linhas, é materialmente inconstitucional por oposição ao disposto no art. 62° números 1 e 2 da CRP e, bem assim, ao princípio da igualdade consagrado no art. 13° no i do mesmo diploma, devendo consequentemente serem declarados inaplicáveis.
18.Aplicando o art. 54° do DL 43.335 citado a douta sentença recorrida terá violado a obrigação decorrente do art. 204° da CRP.
19.Nunca o DL 43.335 de 19.11.1960 seria aplicado ao caso sub judice, já que regulamenta a rede eléctrica nacional e a rede eléctrica primária, não se mostrando que a linha em causa se integrem numa ou noutra. Como quer que fosse,
20. Sempre a passagem da linha careceria de legitimidade, uma vez que a regra da indemnização imposta pelo art. 37° de tal diploma não cumprido, cfr. declarações do arguido no primeiro julgamento, que afirmada nada ter recebido nem sequer ter sido contactado (declarações constantes da cassete n° 1 lado A, voltas 15 a 2113) e declarações no primeiro julgamento da testemunha Eng° LT... que afirma não constar do processo na Direcção Regional que o arguido haja sido indemnizado (declarações constantes da cassete n° i lado A, voltas 2114 a 2540 e lado B, voltas 1675).
21.Assim e se tal se entendesse, sempre a douta sentença recorrida haveria de ter violado o art. 37° do DL 43.335 citado. Independentemente do que fica,
22.Sempre a obrigação que se entendesse impender vitaliciamente sobre o arguido no sentido de garantir sem contrapartida a limpeza de uma zona de protecção à linha, arrostando a diminuição no uso da propriedade e, mais que isso, os encargos com tal limpeza, encargos que não são extensíveis aos demais proprietários que, por sorte ou beneficiando de favor discriminatório da Administração, não estão obrigados a tal verdadeiro “imposto” implicaria, em nossa modesta opinião, que o art. 54° e seu § primeiro, a serem interpretados nesse sentido, violariam quer a regra do art. 62° números 1 e 2 quer o princípio da igualdade constante do art. 13° n° 1, ambos da CRP, devendo por isso ser declarados inaplicáveis por inconstitucionalidade material.
23.Também por esta razão a douta sentença recorrida terá violado a obrigação decorrente do art. 204° da CRP.
24.Equivalendo a expressão bens constante do art. 1° do Protocolo n° 1 anexo à Convenção Europeia dos Direitos do Homem — a qual obriga o Estado Português e vigora directamente na ordem jurídica interna — ao conceito lato de património, a interpretação do art. 54° e seu § primeiro referidas nos pontos 18 e 23 destas conclusões e que estarão subjacentes à douta sentença recorrida, viola o referido artigo do Protocolo n° 1 da CEDH.

Na resposta ao recurso o Ministério Público pronunciou-se pelo não provimento do recurso devendo a decisão proferida ser mantida na integra, sendo tal posição sufragada pelo Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal da Relação.

*

II. FUNDAMENTAÇÂO

As questões que importa decidir, face às conclusões efectuadas pelo recorrente na sua motivação são assim identificadas: i) erro notório na apreciação da prova; ii) legalidade da ordem desobedecida; (iii) aplicação e inconstitucionalidade do artigo 54º do decreto-lei 26852 de 30.7.1936; (iv) Incompatibilidade do artigo 54º do decreto-lei 26852 de 30.7.1936 com o Protocolo nº 1 adicional à CHDH; (v) aplicação do Decreto lei 43335 de 19.11.1960. *

Importa antes de mais atentar na matéria de facto dada como provada e na fundamentação da sentença:




- Factos Provados:

1 – O arguido é proprietário de um terreno sito na localidade de …, concelho de ..., terreno esse observável na fotografia de fls. 57 dos autos.

2 – Encontram-se inscritos no Serviço de Finanças de ..., da freguesia de …, sendo titular inscrito o arguido, os prédios inscritos sob os artigos: ..., denominado … – Cultura de Sequeiro, com a área de 10500 m2, sito em …; ..., denominado … – Cultura de Regadio, com a área de 2 000 m2, sito em …; ..., denominado … – Cultura de Sequeiro e Regadio, com a área de 34500 m2, sito …; ..., denominado… – Cultura de Sequeiro, com a área de 40000 m2, sito em …; ..., denominado … – Cultura de Sequeiro, com a área de 70000 m2, sito em …; ..., denominado… – Cultura de Sequeiro, com a área de 14800 m2, sito em …; conforme certidão emitida pela Direcção Geral de Impostos junta a fls. 316 e seguintes, cujo integral teor aqui se dá por reproduzido.

3 – Encontram-se descritos a favor do arguido na Conservatória de Registo Predial de ..., sob os n.ºs 488 e 1740, da freguesia de ..., os prédios: rústico sito em ..., denominado ...” com a área de 800 m2, artigo 3810; e rústico sito em ..., denominado “ ...” com a área de 8480 m2, artigos ... e ...; conforme certidão emitida pela respectiva Conservatória, junta a fls. 324 e seguintes, cujo integral teor aqui se dá por reproduzido.

4 – Num dos prédios pertencentes ao arguido e não concretamente determinado, o seu espaço aéreo é atravessado por uma linha aérea de transporte e distribuição de energia eléctrica com uma tensão nominal alternada e contínua de 15 000V (15Kilovoltes).

5 – O estabelecimento desta linha de transporte e distribuição de energia eléctrica foi licenciado pela entidade à altura competente para o efeito, a Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos, em 8 de Junho de 1977, tendo tal entidade dirigido à EDP - Distribuição de Energia, S.A., o seguinte comunicado, datado de 15 de Julho de 1977, constante de fls. 140: "Para os devidos efeitos comunico a V. Exa. que a licença de estabelecimento de linha aérea a 15 kv com 673 metros do poste nº 12 da linha para Cachamuço ao PT de …,. em …, freguesia de …, concelho de ..., a que se refere o seu requerimento de 16 de Fevereiro de 1977, foi concedida por despacho de 8 de Junho de 1977. Em separado se remete um exemplar do respectivo projecto, devidamente visado, o qual servirá para provar, perante as entidades competentes, que a licença foi concedida, podendo V. Exa. iniciar os trabalhos de estabelecimento da referida instalação eléctrica, sob as cláusulas abaixo indicadas".

6 – Esta linha de transporte e distribuição de energia eléctrica alimenta o sistema eléctrico de serviço público, abastecendo duas unidades industriais, entre as quais a do “PT” do estabelecimento da sociedade ….

7 – Por outro lado, desde que tal linha de transporte e distribuição de energia eléctrica foi licenciada até à presente data, a mesma foi sempre explorada pela sociedade EDP Distribuição - Energia, S.A., com sede na Rua Camilo Castelo Branco, n.º 43, em Lisboa, pessoa colectiva n.º ..., posto ser esta sociedade a titular de licença vinculada para o efeito, ou seja, licença mediante a qual aquela assumiu o compromisso de alimentar o sistema eléctrico de serviço público, em que aquela linha se engloba.

8 - Na altura em que aquela linha de transporte e distribuição de energia eléctrica entrou em funcionamento inexistia, no terreno do arguido supra referido, qualquer árvore ou plantação cuja extremidade ficasse a uma distância inferior a 2,5 metros dos fios condutores nus daquela linha, em flecha máxima, ou que, em queda, pudessem ficar a uma distância inferior a 1,5 metros de tais fios condutores, igualmente em flecha máxima sem sobrecarga de vento.

9 - O arguido plantou e permitiu que no seu terreno referido em 1 fossem crescendo árvores, nomeadamente carvalhos americanos, na zona de protecção de 15 metros daquela linha, de tal forma que em data indeterminada, mas anterior ao mês de Maio de 2005, as extremidades de tais árvores se encontravam a menos de 2,5 metros, em flecha máxima, dos fios condutores nus daquela linha, encontrando-se alguns ramos e folhas das ditas árvores já em contacto com aqueles fios.

10 - Assim, ao constatarem tal facto e ao verem que isso acarretava o perigo de disparo da linha em causa, com a consequente quebra de alimentação de energia eléctrica através da mesma, tal como o perigo de incêndios susceptíveis de destruírem não só a referida linha, como também de colocar em risco as pessoas que se encontrassem nas imediações daquele local e as instalações industriais próximas e outras casas de habitação e bens patrimoniais alheios de valor elevado, responsáveis pela dita sociedade EDP Distribuição - Energia, S.A. requereram, em 14 de Agosto de 2005, e posteriormente em 18 de Outubro de 2005, em 6 de Fevereiro de 2006 e em 10 de Maio de 2006, à Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia e da Inovação que notificasse o arguido para proceder ao corte ou decote das árvores que se encontravam nas circunstâncias acima descritas ou, pelo menos, que permitisse que os técnicos daquela sociedade para ali se deslocassem a fim de efectuar tal corte ou decote.

11 - Deste modo, aquela Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia e Inovação notificou o arguido, através de cartas enviadas nos dias 19 de Julho de 2005, 12 de Agosto de 2005, 28 de Setembro de 2005, 10 de Novembro de 2005 e 12 de Dezembro de 2005, cartas estas que o arguido recebeu nos dias 21 de Julho de 2005, 19 de Agosto de 2005, 30 de Setembro de 2005, 11 de Novembro de 2005 e 13 de Dezembro de 2005, respectivamente, informando-o de que naquele terreno supra mencionado estavam plantadas árvores, cujas extremidades se encontravam a menos de 2,5 metros dos condutores nus da supra referida linha de transporte e distribuição de energia eléctrica, nas condições de flecha máxima, e que se aquelas árvores entrassem em queda atingiriam também tais fios condutores, o que não era legalmente autorizado e prejudicava a exploração da dita linha, uma vez que acarretava o risco de incêndio, podendo pôr em risco a segurança de pessoas e bens.

12 - Nessas notificações realizadas através de tais cartas, aquela Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia intimou o arguido a proceder ao corte ou decote dessas árvores, por forma a que as extremidades das mesmas ficassem a uma distância superior àqueles 2,5 metros dos condutores nus da supra referida linha de transporte e distribuição de energia eléctrica, nas condições de flecha máxima, e por forma a que se entrassem em queda não embatessem nos ditos fios condutores, no prazo máximo de trinta dias a contar da data de recepção das ditas cartas, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 54.º, primeiro parágrafo, do Regulamento de licenças para Instalações Eléctricas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 28 852, de 30 de Julho de 1936.

13 - Contudo o arguido, apesar de ter compreendido o significado de tais notificações e das consequências do seu não acatamento, recusou-se sempre a proceder ao referido corte ou decote das ditas árvores, ou a permitir que os responsáveis pela sociedade EDP Distribuição - Energia, S.A. entrassem naquele terreno para aí procederem a tal corte ou decote.

14 - Assim, perante o não acatamento por parte do arguido das ordens contidas em tais notificações, e do facto das extremidades das ditas árvores se manterem a menos de 2,5 metros em flecha máxima, dos fios condutores nus daquela linha, encontrando-se alguns ramos e folhas das ditas árvores em contacto com aqueles fios, e algumas árvores em locais que atingiriam os ditos fios condutores se entrassem em queda, aquela Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia e da Inovação, notificou novamente o arguido, através de carta enviada para este no dia 6 de Fevereiro de 2006, e que o arguido recebeu no dia 8 de Fevereiro de 2006, intimando-o novamente ao corte ou decote das ditas árvores nos termos supra expostos, no prazo máximo de 15 dias a contar da data de recepção da dita carta, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 54.º, primeiro parágrafo, do Regulamento de licenças para Instalações Eléctricas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 28 852, de 30 de Julho de 1936.

15 - Contudo, mais uma vez o arguido, firme ao propósito inicial por ele tomado de desobedecer a qualquer ordem nesse sentido, recusou-se sempre a proceder ao supra mencionado corte ou decote das ditas árvores, ou a permitir que os responsáveis pela sociedade EDP Distribuição - Energia, S.A. entrassem naquele terreno para aí procederem ao dito corte ou decote das mesmas.

16 - Deste modo, foi o arguido notificado por aquela Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia e da Inovação, por missivas escritas enviadas nos dias 6 de Junho de 2006, 5 de Julho de 2006 e 11 de Julho de 2006, missivas estas que o arguido recebeu nos dias 8 de Junho de 2006, 7 de Julho de 2006 e 11 de Julho de 2006, respectivamente, informando o arguido de que no dia 12 de Julho de 2006, pelas 10.00 horas, se deslocariam ao dito terreno elementos daquela Direcção Regional, acompanhados por técnicos da sociedade EDP Distribuição - Energia, S.A., a fim de aí procederem ao sobredito corte e decote daquelas árvores, uma vez que o arguido, apesar de intimado para o efeito, não o fez.

17 - O arguido agiu, em todas as circunstâncias atrás descritas, com o propósito concretizado de desobedecer às ordens contidas nas notificações supra referidas, nos prazos ali fixados, ordens essas emanadas por aquela Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia e da Inovação, apesar de saber que tais ordens eram legítimas, regularmente comunicadas e emanadas de entidade competente.

18 - Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

19 - Nunca o arguido impediu, física ou materialmente, a entrada de funcionários da EDP no terreno em questão.

20 - Nada impedia física ou materialmente que os técnicos deslocados ao terreno do arguido, no dia 12 de Julho de 2006, tivessem cortado quaisquer árvores.

21 - Nas suas comunicações à Direcção dos Serviços de Energia da Direcção Regional de Economia do Centro o arguido sempre reclamou que a linha de distribuição de energia eléctrica que atravessa o seu prédio de lá fosse retirada.

22 - No processo de licenciamento não existe qualquer informação de que, na altura, tenha sido deduzida qualquer oposição à instalação da respectiva linha e também não existe qualquer comunicação dirigida ao arguido, antes da instalação da linha, nem processo de expropriação ou de indemnização.

23 - O arguido é agricultor, para o que dispõe de vários terrenos, tractor e outras máquinas agrícolas.

24 - Beneficia ainda de uma pensão de reforma de 350,00€ mensais.

25 - Vive com a esposa, doméstica, não tendo o casal qualquer filho a seu cargo.

26 - O agregado do arguido habita em casa própria.

27 - O arguido possui veículo automóvel próprio.

28 - É pessoa trabalhadora e respeitada no meio social onde se insere.

29 - Tem como habilitações a 4.ª classe.

30 - Não possui antecedentes criminais.



- Factos Não Provados:

Não ficaram por provar quaisquer factos com relevância para a boa decisão da causa.



- Motivação da Decisão de Facto:

O Tribunal fundou a sua convicção na análise critica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência comum, bem como na prova documental junta aos autos, como impõe o art. 127.º do Código de Processo Penal e como, doravante, se passa a explicitar.

Concretizando, a convicção do Tribunal para dar como provados os factos supra descritos sob o n.º 5 e eliminando o facto considerado não provado (factos apurados no novo julgamento na sequência do Acórdão da Relação de Coimbra) resultou da apreciação crítica e selectiva de toda a prova produzida em audiência conexionada com as regras de experiência comum.

De facto, o que está aqui em causa é explicitar como pode considerar-se provado que o estabelecimento da linha eléctrica foi licenciada pela Direcção Geral dos Serviços Eléctricos, em 8 de Junho de 1977.

Na verdade, tal como resulta do elenco dos factos considerados provados, a Direcção Geral dos Serviços Eléctricos enviou um comunicado à EDP, na qual faz referência à licença de estabelecimento da linha, referindo o despacho proferido em 8 de Junho de 1977.

Deste comunicado pode extrair-se o elemento do qual se retira que o traçado da linha em causa corresponde efectivamente à licença de 8 de Junho de 1977.

Tal comunicado, conjugado com o teor dos documentos de fls. 24, 25, 29, 52, 633, 634, 635 e 639, permite provar que a existência da licença de estabelecimento daquela linha de condução de energia eléctrica e respectivo traçado encontra-se publicada no Diário da República, n.º 97, III Série, de 27 de Abril de 1977, tendo sido afixados éditos pela Câmara Municipal de ... e sido publicados anúncios, dando conta de tal facto em jornal de grande circulação - conforme Diário da República constante de fls. 334 e 635.

Ademais, o arguido não colocou em causa a autenticidade e veracidade de quaisquer dos documentos juntos aos autos, pelo que o seu conteúdo e as informações constantes dos mesmos constituem elementos de prova, a serem considerados pelo Tribunal. De facto, sendo o inquérito conhecido da defesa, pode esta, se assim o entender, contrariar atempadamente o valor probatório quer dos documentos, quer dos meios de obtenção de prova que se encontram nos autos, assim ficando eficazmente assegurado o princípio do contraditório (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCE, pág. 873, e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 87/99, processo n.º 444/98, 1.ª secção, acessível in www.dgsi.pt., do STJ de 23 de Fevereiro de 2005, CJ, S, XIII, I, 210 e da Relação de Coimbra de 19 de Setembro de 2001, CJ, XXVI, IV, 50).

No caso dos autos, estamos perante inúmeros documentos, alguns juntos na fase de inquérito, outros no decorrer e sequência das audiências de julgamento já realizadas, os quais representam prova documental junta aos autos. Podiam, portanto, ter sido oportuna e atempadamente impugnados pelo arguido, não carecendo de serem lidos e examinados em audiência para poder valer para efeito de formação da convicção do tribunal, estando apenas sujeitos, na sua valoração, ao princípio da livre apreciação da prova.

Nesta medida, do teor de todos os documentos juntos aos autos, resultou para o Tribunal a convicção de que o estabelecimento da linha eléctrica foi licenciada pela Direcção Geral dos Serviços Eléctricos, em 8 de Junho de 1977.

Aliás, não vemos que outros elementos pudessem ser carreados para os autos, que fornecessem outra certeza que não fosse a de que a licença concedida e que legitimou a colocação da linha eléctrica pelo concessionário no terreno do arguido, foi efectivamente concedida por despacho da Direcção Geral dos Serviços Eléctricos, em 8 de Junho de 1977.

Por tudo isto, o Tribunal deu como provados os factos supra.

Quanto aos demais factos provados são os resultantes da sentença proferida de fls. 193 a 200, para cuja fundamentação a fls. 196 remetemos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, bem como os resultantes da sentença proferida de fls. 394 a 411, para cuja fundamentação a fls. 400 igualmente remetemos e se dá por integralmente reproduzida por, nessa parte, atento o douto Acórdão da Relação de Coimbra, se mostrarem fixados.



- Enquadramento Jurídico-Penal:

O arguido vem acusado por factos susceptíveis de integrar a prática em autoria material e na forma consumada do crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 54.°, n.º 1, parágrafo primeiro, do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936.

Estipula aquele referido art. 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal que: “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se, uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples”.

Por sua vez, refere o art. 54.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936, que “Os proprietários dos terrenos onde se acham estabelecidas linhas de uma instalação declarada de utilidade pública e os proprietários dos terrenos confinantes com quaisquer vias de comunicação ao longo das quais estejam estabelecidas as referidas linhas são obrigados a não consentir nem conservar neles plantações que possam prejudicar aquelas linhas na sua exploração, cumprindo igual obrigação aos chefes de serviços públicos a que pertencerem plantações nas condições referidas, mas somente nos casos de reconhecida necessidade”.

Estipulando o § 1.º deste n.º 1, que “As secções de fiscalização eléctrica, a requerimento do concessionário, intimarão os infractores a cumprir este preceito dentro de um prazo que lhes será designado, podendo, no caso de desobediência, mandar proceder à destruição das plantações que impedirem o serviço das linhas, levantando auto de desobediência e fazendo instaurar o competente processo criminal, para aplicação das penas cominadas no artigo 188.º do Código Penal”.

No art. 1.º deste Diploma Legal refere-se que “O presente regulamento tem por fim fixar as normas a seguir para o licenciamento de todas as instalações destinadas a produção, transporte, transformação, distribuição ou utilização de energia eléctrica que se encontrem sujeitas à fiscalização da Repartição dos Serviços Eléctricos”.

Acrescentando o art. 8.º, n.º 1 do mesmo Diploma, na redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 446/76 de 5 de Junho, que “Com excepção ao referido nos artigos 27.º e 28.º, as instalações eléctricas de serviço público necessitam de licença para o seu estabelecimento, concedida pelo director-geral dos Serviços Eléctricos”.

Por sua vez, estabelece o art. 15.º, n.º 1 do referido Decreto-Lei n.º 26 852, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 446/76 de 5 de Junho, “Salvo o caso previsto no n.º 2 do artigo 16.º, o pedido de licença para o estabelecimento de uma instalação eléctrica de serviço público será feito em requerimento, em papel selado, dirigido ao director-geral dos Serviços Eléctricos, e deverá ser acompanhado do respectivo projecto, que compreenderá todos os elementos necessários para dar uma ideia perfeita e exacta da natureza, importância e função da mesma instalação, e serão elaborados em conformidade com a natureza, importância e destino das instalações projectadas”.

Acrescentado, por sua vez, o art. 16.º, no seu n.º 3, redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 446/76 de 5 de Junho, que “(…) sempre que, para a execução das instalações, seja necessária a ocupação de quaisquer domínios públicos ou particulares e as instalações não gozem de declaração de utilidade pública, deverá o requerente apresentar declaração escrita em papel selado e reconhecida por notário público, de que se obriga a obter as autorizações para a ocupação desses domínios, dadas pelos proprietários ou entidades competentes ou seus legítimos representantes, e de que só depois de obtidas essas autorizações procederá à montagem da instalação projectada”.

Referindo o art. 19.º, n.º 1, do mesmo Diploma que “Se se tratar da montagem de centrais ou de linhas de alta tensão, logo que o processo esteja instruído com todos os documentos necessários e o projecto em condições técnicas de merecer aprovação, será este patenteado ao público nos competentes serviços da DGE durante um prazo de quinze dias, publicando-se éditos no Diário da República e num jornal de grande circulação”.

Prevendo o art. 20.º, n.º 1 do mencionado Decreto-Lei que “as reclamações que hajam de ser apresentadas contra a aprovação do projecto podem ser enviadas directamente aos respectivos serviços da DGE ou entregues nas câmaras municipais respectivas durante o prazo mencionado nos éditos”.

Estipula o art. 24.º do referido Diploma Legal que “depois de pagos os emolumentos e a taxa de licença de estabelecimento e comprovado o seu pagamento por meio da apresentação dos talões das respectivas guias, a Repartição dos Serviços Eléctricos enviará ao requerente uma cópia do projecto aprovado, devidamente visada, a qual ficará em seu poder para ser apresentada em qualquer ocasião aos funcionários da fiscalização técnica do Governo e lhe servirá para comprovar que a licença foi concedida. O concessionário poderá então dar começo aos trabalhos para a execução da Instalação”.

Por último, refere o art. 26.º, n.º 1 que “desde a data em que se iniciarem os trabalhos de estabelecimento, e até terem decorrido trinta dias sobre a data em que for feita pela fiscalização técnica do Governo a vistoria de uma instalação eléctrica, poderão os proprietários dos terrenos ou edifícios onde tenham sido colocados apoios das linhas de alta ou baixa tensão, e que por este facto se sintam prejudicados, apresentar as suas reclamações devidamente fundamentadas na Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos, que procederá ao seu estudo e proporá superiormente as medidas que julgar necessárias para as atender, se forem justificadas”.

De acordo com Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal anotado, volume II, pág. 1089, o tipo objectivo deste crime é composto por 4 elementos: 1- uma ordem ou mandado; 2- legalidade substancial e formal da ordem ou mandado; 3- competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; 4- regularidade da sua transmissão ao destinatário.

O ilícito consiste, assim, em faltar à obediência devida. Tal como refere Cristina Líbano Monteiro, em comentário à norma criminal em apreço, in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 351, “só é devida obediência a ordem ou mandado legítimos. Condição necessária de legitimidade é a competência da entidade donde emana a ordem. Para que o destinatário saiba se está ou não perante uma ordem desse tipo, torna-se indispensável que este chegue ao seu conhecimento e pelas vias normalmente utilizadas – que este lhe seja regularmente comunicado”.

Faltar à obediência devida não constitui, porém, por si só, facto criminalmente ilícito. Com efeito, prossegue esta autora “a dignidade penal da conduta exige, para além do que fica dito, que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade competente para ditar a ordem ou o mandado.”

Trata-se de um crime exclusivamente doloso, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 13.º e 348.º, n.º 1 do Código Penal – princípio da excepcionalidade da punição a título de negligência ou do numerus clausus.

A ordem consistirá na imposição da obrigação de praticar ou deixar de praticar certo facto.

Ora, a existência desta ordem encontra-se demonstrada nos presentes autos, pois, está provado que, a Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia e Inovação notificou o arguido, através de cartas enviadas nos dias 19 de Julho de 2005, 12 de Agosto de 2005, 28 de Setembro de 2005, 10 de Novembro de 2005 e 12 de Dezembro de 2005, cartas estas que o arguido recebeu nos dias 21 de Julho de 2005, 19 de Agosto de 2005, 30 de Setembro de 2005, 11 de Novembro de 2005 e 13 de Dezembro de 2005, respectivamente, informando-o de que no terreno referido em 1, 2, 3 e 4 estavam plantadas árvores, cujas extremidades se encontravam a menos de 2,5 metros dos condutores nus da supra referida linha de transporte e distribuição de energia eléctrica, nas condições de flecha máxima, e que se aquelas árvores entrassem em queda atingiriam também tais fios condutores, o que não era legalmente autorizado e prejudicava a exploração da dita linha, uma vez que acarretava o risco de incêndio, podendo pôr em risco a segurança de pessoas e bens.

Está também provado que nas notificações realizadas através de tais cartas, aquela Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia intimou o arguido a proceder ao corte ou decote dessas árvores, por forma a que as extremidades das mesmas ficassem a uma distância superior àqueles 2,5 metros dos condutores nus da supra referida linha de transporte e distribuição de energia eléctrica, nas condições de flecha máxima, e por forma a que se entrassem em queda não embatessem nos ditos fios condutores, no prazo máximo de trinta dias a contar da data de recepção das ditas cartas, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos do disposto no art. 54.º, primeiro parágrafo, do Regulamento de licenças para Instalações Eléctricas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 28 852, de 3 de Julho de 1936.

Como o arguido não cumprisse as ordens contidas em tais notificações, aquela Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia e da Inovação, notificou novamente o arguido, através de carta enviada para este no dia 6 de Fevereiro de 2006, e que o arguido recebeu no dia 8 de Fevereiro de 2006, intimando-o novamente ao corte ou decote das ditas árvores nos termos supra expostos, no prazo máximo de 15 dias a contar da data de recepção da dita carta, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos do disposto no art. 54.º, primeiro parágrafo, do Regulamento de licenças para Instalações Eléctricas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 28 852, de 3 de Julho de 1936.

Existirá também a legalidade substancial, ou seja, a ordem tem uma disposição legal que autoriza a sua emissão. De facto, a ordem encontra-se legitimada pelo art. 54.º, n.º 1, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936.

Também existirá a legalidade formal, na medida em que se encontra prevista na lei a obrigação para a qual o arguido foi notificado, cfr. art. 54.°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936, que refere que os proprietários dos terrenos onde se acham estabelecidas linhas de uma instalação declarada de utilidade pública (…) são obrigados a não consentir nem conservar neles plantações que possam prejudicar aquelas linhas na sua exploração.

Finalmente a referida ordem foi transmitida de forma regular ao destinatário, sendo este a pessoa que, no local e perante as entidades competentes, sempre se apresentou como o proprietário e responsável pelo terreno onde a linha se encontra colocada e das árvores que prejudicam aquela linha.

Não obstante, e apesar de ter compreendido o significado de tais notificações e das consequências do seu não acatamento, o arguido recusou-se sempre a proceder ao referido corte ou decote das ditas árvores, ou a permitir que os responsáveis pela sociedade EDP Distribuição - Energia, S.A. entrassem naquele terreno para aí procederem a tal corte ou decote.

Provou-se, ainda, que o arguido agiu, em todas as circunstâncias atrás descritas, com o propósito concretizado de desobedecer às ordens contidas nas notificações supra referidas, nos prazos ali fixados, ordens essas emanadas por aquela Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia e da Inovação, apesar de saber que tais ordens eram legítimas, regularmente comunicadas e emanadas de entidade competente (cfr. Decreto Regulamentar n.º 58/07, de 27 de Abril e Decreto-Lei n.º 5/2004, de 6 de Janeiro, quanto às competências das Direcções Regionais de Economia).

Conclui-se, assim, que se encontra preenchido no caso concreto o elemento objectivo do tipo pelo qual o arguido vem acusado.

Quanto ao elemento subjectivo do tipo encontra-se igualmente provado nos autos que o arguido actuou com dolo directo, na medida em que ficou ciente que deveria proceder no prazo que lhe foi concedido ao corte ou decote das ditas árvores, não o tendo feito, sem causa justificativa e que a sua conduta estava prevista legalmente e das consequências resultantes de uma eventual omissão da sua parte.

Não obstante, o arguido intencionalmente não cortou ou decotou os referidos carvalhos americanos, permitindo que continuassem a prejudicar a referida Linha na sua exploração.

Encontra-se assim preenchido o elemento intelectual e o volitivo do dolo. Nos termos do art. 14.º, n.º 1 do Código Penal, trata-se de dolo directo.

O arguido agiu igualmente com culpa, na medida em que sabia que a sua conduta era proibida por lei.

A conduta do arguido não se encontra a coberto de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Na verdade, não é pelo facto de se ter provado que o arguido nas suas comunicações à Direcção dos Serviços de Energia da Direcção Regional de Economia do Centro sempre reclamou que a linha de distribuição de energia eléctrica que atravessa o seu prédio de lá fosse retirada, que podemos concluir existir uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Com efeito, se o arguido entende que está prejudicado com a passagem de tal linha pelo seu prédio e que, por isso, tem direito a ser ressarcido pelo ónus que tal passagem acarreta para o seu prédio, deverá reclamar tal indemnização nos locais próprios e às entidades competentes. Todavia, enquanto se mantiver a passagem de tal linha pelo seu prédio, deverá cumprir com as determinações que lhe são regularmente transmitidas nos termos legalmente previstos.

Em conformidade, e pelo exposto, tem que se retirar a ilação que o arguido cometeu, efectivamente, o crime de desobediência pelo qual vinha acusado, impondo-se a sua condenação.

Quanto à invocada inconstitucionalidade do art. 54.º do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936, por violação do disposto no art. 62.º, da Constituição da República Portuguesa, salvo melhor entendimento, parece-nos não assistir razão ao arguido.

Efectivamente, a EDP é uma empresa titular de uma licença de distribuição de energia eléctrica em média e alta tensão, integrando-se no sistema eléctrico de serviço público, nos termos previstos nos artigos 2.º, 3.º, 4.º e 28.º, todos do Decreto-Lei n.º 182/95.

Dispõe o invocado art. 62.º da Constituição da República Portuguesa no seu n.º 1 que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”.

Acrescentando o seu n.º 2 que “a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”.

Ora, no caso concreto, não existe qualquer violação da norma constitucional prevista no art. 62.º, pois que, no caso do art. 54.º do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936, não se trata da questão da constituição da servidão administrativa, a qual seria susceptível de desencadear um processo compensatório, nos termos legais, antes de fazer cumprir uma servidão administrativa já existente. Donde, por se tratar de uma mera obrigação consequente de uma servidão já constituída, esta obrigação decorrente da norma prevista no art. 54.º, claramente, não se enquadra na previsão do n.º 2 do mencionado art. 62.º da Constituição.

Outra coisa diferente é saber se, aquando da constituição de tal servidão administrativa, data em que foi instalada a linha agora em causa, o arguido devia ter sido compensado e não o foi. Todavia, ao que agora interessa, não é o momento nem o processo próprio para se apurar de tal compensação nem, em caso de não ter sido compensado na altura própria, se existiu tal violação da constituição.

Termos em que tem que improceder a alegada inconstitucionalidade da norma contida no art. 54.º, do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936.



- Escolha e determinação da medida da pena:

O arguido cometeu um crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, por referência ao art. 54.º, primeiro parágrafo do Decreto-Lei n.º 26.852, de 30 de Julho de 1936.

O ilícito aqui em apreço é punido com pena de prisão ou com pena de multa.

Uma vez que a referida norma admite, em alternativa, as penas principais de prisão e de multa, cumpre, em primeiro lugar, proceder à escolha do tipo de pena a aplicar ao arguido.

Ora, estipula o art. 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Segundo o critério geral de escolha da pena previsto no mencionado preceito, a opção por pena privativa de liberdade só deverá ser tomada por razões de “prevenção especial de socialização, estritamente ligadas à prevenção da reincidência, e/ou por exigências irremediáveis de tutela do ordenamento jurídico, ou à “defesa” da ordem jurídica, no sentido do patamar mínimo das exigências de prevenção geral positiva ou de integração, o desaconselhem”, assim, Prof. Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Noticias, 1993, pág. 333.

Apelando aos ensinamentos de Robalo Cordeiro, in Escolha e Medida da Pena, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 237, “determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta. Só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas”.

No caso vertente, considerando, desde logo, que o comportamento ora apreciado tenderá a ser razoavelmente entendido como um acto isolado e irreflectido, e face à inexistência de antecedentes criminais, dúvidas não subsistem de que a reafirmação das expectativas comunitárias não suporá a aplicação de uma pena de prisão, sendo essa a conclusão para que apontam as exigências de ressocialização. De facto, o crime em causa nos autos não é muito grave. Não existirá assim grande alarme social em consequência do mesmo. Por outro lado, o arguido encontra-se bem enquadrado socialmente. Tem, por outro lado, uma família estruturada que lhe proporciona um ambiente familiar equilibrado. Seria assim contraproducente e contrário à função de ressocialização das penas aplicar uma pena de prisão ao arguido, sendo certo que nem sequer possui antecedentes criminais.

Deste modo, no caso concreto, mostra-se adequado aplicar uma pena de multa ao arguido, pois tal pena configura suficiente censura relativamente ao facto cometido e é uma punição simultaneamente ressocializadora.

Opta-se, assim, pela aplicação, ao arguido, de uma pena de multa.

Cabe-nos, agora, fixar a sua medida:

A pena deve ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.

A culpa não constitui, assim, apenas o pressuposto e fundamento da validade da pena, mas traduz-se no seu limite máximo, o que significa que, não só não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena como seu limite máximo.

De acordo com a teoria da margem da liberdade, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo já adequado à culpa e um limite máximo ainda adequado à culpa, devendo intervir os outros fins das penas, expressamente consignados no art. 40.º do Código Penal.

A escolha do tipo de pena depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial, nada tendo a ver com a determinação da sua medida, a qual depende, essencialmente, da culpa do agente.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva de integração (na qual a pena aplicada ao agente mantém e reforça a confiança da comunidade na validade e eficácia das normas jurídico-penais como instrumento de tutela de bens jurídicos) podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial ou individual (negativa - em que a pena tem como objectivo neutralizar a perigosidade social do agente, exercendo sobre ele um efeito retractivo, mas também visa reinserir socialmente o agente, através da sua adesão aos valores da comunidade, evitando cometer novos crimes – prevenção especial positiva ou de socialização), sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve evitar a quebra da inserção social do agente e servir para a sua reintegração na comunidade, só deste modo e, por esta via, se alcançando uma eficácia de protecção dos bens jurídicos.

Ou seja, o ilícito deve ser valorado em função da gravidade do ataque ao bem jurídico em particular, nomeadamente, os danos ocasionados, a extensão e gravidade dos efeitos produzidos, em suma, o efeito externo, sem esquecer o desvalor do próprio comportamento delituoso.

Assim sendo, relativamente ao crime de desobediência, ao qual se decidiu aplicar pena de multa, a sua moldura penal abstracta é de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias.

Concretizando:

Atento o disposto no art. 71.º do Código Penal, dentro da moldura penal abstracta cumpre determinar a medida concreta da pena em função da culpa do agente, tendo ainda em conta, as exigências de prevenção geral e especial e as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.

Vejamos:

A) Em desfavor do arguido milita:

O grau da ilicitude dos factos é relativamente elevado, indiciado pelo interesse ofendido bem como as consequências que este tipo de conduta potencia, desobedecendo, mais do que uma vez, a uma ordem regularmente emanada de autoridade competente;

O arguido ter agido com dolo.

B) Em favor do arguido milita:

O arguido encontra-se inserido familiar, social e profissionalmente;

Não possui antecedentes criminais.

Em termos de prevenção geral, atendendo a que estamos perante um tipo legal de crime que, por um lado, protege um bem jurídico como a função de autoridade pública e ainda, o modo de execução das respectivas condutas, as exigências são medianas.

Em termos de prevenção especial, atendendo às condições económicas e pessoais do arguido, e à inexistência de antecedentes criminais, não se impõem medidas mais rigorosas.

Ponderando tudo quanto se acaba de referir, e atenta a moldura prevista para o crime aqui em causa, tenho por adequada a seguinte pena:

- Pela prática de um crime de desobediência: pena de 80 dias de multa.

Em relação à pena de multa cumpre ainda determinar o seu montante diário, o que se deverá fazer de acordo com a situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais, de acordo com o art. 47.º, n.º 2 do Código Penal.

Como resulta da matéria de facto provada, o arguido é agricultor, para o que dispõe de vários terrenos, tractor e outras máquinas agrícolas; beneficia ainda de uma pensão de reforma de 350,00€ mensais; vive com a esposa, doméstica, não tendo o casal qualquer filho a seu cargo; o agregado do arguido habita em casa própria e o arguido possui veículo automóvel próprio.

Em face do exposto, temos como ajustada à situação socio-económica do arguido a fixação da taxa diária da pena de multa em 6,00€ (seis euros), o que perfaz o montante de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros).

Vejamos cada uma das questões.

i) Erro notório na apreciação da prova

No âmbito do recurso sobre a matéria de facto, o recorrente invoca, numa primeira dimensão a existência de caso julgado em relação à matéria dada agora como provada e que consta no facto 5 que, segundo o recorrente, não teria posta em crise pelo Tribunal da Relação, no seu acórdão de 14 de Abril de 2010 que reenviou para julgamento o presente processo e que por isso « estaria o Mmo Juiz a quo impedido de alterar, na sentença recorrida, tal matéria, já que sobre ela se haveria abatido a força de caso julgado».

Desde já se diga, quanto a esta questão que o recorrente não tem qualquer razão, no que respeita à existência de qualquer «caso julgado».

O facto 5 da sentença, «O estabelecimento desta linha de transporte e distribuição de energia eléctrica foi licenciado pela entidade à altura competente para o efeito, a Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos, em 8 de Junho de 1977, tendo tal entidade dirigido à EDP - Distribuição de Energia, S.A., o seguinte comunicado, datado de 15 de Julho de 1977, constante de fls. 140: "Para os devidos efeitos comunico a V. Exa. que a licença de estabelecimento de linha aérea a 15 kv com 673 metros do poste nº 12 da linha para Cachamuço ao PT de …, freguesia de ..., concelho de ..., a que se refere o seu requerimento de 16 de Fevereiro de 1977, foi concedida por despacho de 8 de Junho de 1977. Em separado se remete um exemplar do respectivo projecto, devidamente visado, o qual servirá para provar, perante as entidades competentes, que a licença foi concedida, podendo V. Exa. iniciar os trabalhos de estabelecimento da referida instalação eléctrica, sob as cláusulas abaixo indicadas», agora questionado com base no caso julgado, resulta exactamente da questão concreta que foi objecto do reenvio decidido no Acordão de 14.04.2010.

Recorde-se tal decisão, que nesta parte foi muito claro em referir que existindo uma contradição insanável, entre o facto 6 dos factos então dados como provados - Por outro lado, desde que tal linha de transporte e distribuição de energia eléctrica foi licenciada até à presente data, a mesma foi sempre explorada pela sociedade EDP Distribuição-Energia, S.A.”, com sede na Rua Camilo Castelo Branco, n.º 43, em Lisboa, pessoa colectiva n.º ..., posto ser esta sociedade a titular de licença vinculada para o efeito, ou seja, Licença mediante a qual aquela assumiu o compromisso de alimentar o sistema eléctrico de serviço público, em que aquela linha se engloba - e matéria de facto dada como não provada, determinou o reenvio «relativamente a estas questões».

Como se vê trata-se da matéria que, entretanto foi objecto de alteração e de nova decisão e por isso, ao contrário do que é objecto do recurso, o Tribunal nesta matéria cumpriu o que efectivamente tinha que cumprir.

Não há por isso qualquer irregularidade cometida por parte do Tribunal relativamente á matéria de facto, no que tange ao facto em causa, pelo fundamento invocado (violação de caso julgado).

Na segunda dimensão do recurso, vem o recorrente invocar a existência de erro notório na apreciação da prova, na medida em que o Tribunal deu como provado o licenciamento no facto 6 da sentença, já referido.

Conforme é jurisprudência pacifica, os vícios do artigo 410º n.º 2 do CPP, em todas as suas alíneas (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão) têm que resultar da própria decisão/sentença, como documento único, embora essa conjugação possa ser referente às regras da experiência (cf. Ac. STJ 17 de Março de 2004).

Assim a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova, consubstanciam, respectivamente, a inexistência de factos provados suficientes, a incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório da apreciação da prova efectuada pelo Tribunal.

Tudo isto, repete-se, desde que resulte do próprio texto da sentença, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. São vícios da decisão, não do julgamento, como refere Maria João Antunes (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

Ora relativamente ao facto em causa (facto 6 da sentença, supra mencionado), o Tribunal fundamentou a sua prova, após o reenvio que foi ordenado pelo Acórdão desta Relação de 24-4-2010, de uma forma absolutamente clara, coerente e justificada. Veja-se o que sobre a matéria de facto provada se diz: Concretizando, a convicção do Tribunal para dar como provados os factos supra descritos sob o n.º 5 e eliminando o facto considerado não provado (factos apurados no novo julgamento na sequência do Acórdão da Relação de Coimbra) resultou da apreciação crítica e selectiva de toda a prova produzida em audiência conexionada com as regras de experiência comum. De facto, o que está aqui em causa é explicitar como pode considerar-se provado que o estabelecimento da linha eléctrica foi licenciada pela Direcção Geral dos Serviços Eléctricos, em 8 de Junho de 1977. Na verdade, tal como resulta do elenco dos factos considerados provados, a Direcção Geral dos Serviços Eléctricos enviou um comunicado à EDP, na qual faz referência à licença de estabelecimento da linha, referindo o despacho proferido em 8 de Junho de 1977. Deste comunicado pode extrair-se o elemento do qual se retira que o traçado da linha em causa corresponde efectivamente à licença de 8 de Junho de 1977. Tal comunicado, conjugado com o teor dos documentos de fls. 24, 25, 29, 52, 633, 634, 635 e 639, permite provar que a existência da licença de estabelecimento daquela linha de condução de energia eléctrica e respectivo traçado encontra-se publicada no Diário da República, n.º 97, III Série, de 27 de Abril de 1977, tendo sido afixados éditos pela Câmara Municipal de ... e sido publicados anúncios, dando conta de tal facto em jornal de grande circulação - conforme Diário da República constante de fls. 334 e 635. Ademais, o arguido não colocou em causa a autenticidade e veracidade de quaisquer dos documentos juntos aos autos, pelo que o seu conteúdo e as informações constantes dos mesmos constituem elementos de prova, a serem considerados pelo Tribunal. De facto, sendo o inquérito conhecido da defesa, pode esta, se assim o entender, contrariar atempadamente o valor probatório quer dos documentos, quer dos meios de obtenção de prova que se encontram nos autos, assim ficando eficazmente assegurado o princípio do contraditório (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCE, pág. 873, e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 87/99, processo n.º 444/98, 1.ª secção, acessível in www.dgsi.pt., do STJ de 23 de Fevereiro de 2005, CJ, S, XIII, I, 210 e da Relação de Coimbra de 19 de Setembro de 2001, CJ, XXVI, IV, 50). No caso dos autos, estamos perante inúmeros documentos, alguns juntos na fase de inquérito, outros no decorrer e sequência das audiências de julgamento já realizadas, os quais representam prova documental junta aos autos. Podiam, portanto, ter sido oportuna e atempadamente impugnados pelo arguido, não carecendo de serem lidos e examinados em audiência para poder valer para efeito de formação da convicção do tribunal, estando apenas sujeitos, na sua valoração, ao princípio da livre apreciação da prova. Nesta medida, do teor de todos os documentos juntos aos autos, resultou para o Tribunal a convicção de que o estabelecimento da linha eléctrica foi licenciada pela Direcção Geral dos Serviços Eléctricos, em 8 de Junho de 1977. Aliás, não vemos que outros elementos pudessem ser carreados para os autos, que fornecessem outra certeza que não fosse a de que a licença concedida e que legitimou a colocação da linha eléctrica pelo concessionário no terreno do arguido, foi efectivamente concedida por despacho da Direcção Geral dos Serviços Eléctricos, em 8 de Junho de 1977. Por tudo isto, o Tribunal deu como provados os factos supra.

A aprofundada justificação efectuada pelo Tribunal sobre a questão, que aliás só se compreende por estar em causa um facto que tinha sido objecto de várias impugnações e decisões contraditórias, é absolutamente coerente e inequívoca em relação à razão do porquê do facto provado.

Invocar qualquer «erro notório» na apreciação da prova relativamente a um facto que o Tribunal justifica, correcta e abundantemente, sem uma alegação credível e minimamente sustentada, não tem qualquer sentido.

Como não tem sentido invocar a «violação dos direitos de defesa do arguido e as regras do artigo 122º e 123º do CPA» como sustentação para um erro notório da matéria de facto.

Repete-se que o Tribunal valorou a prova de um facto através de uma justificação fundada, sustentada no conjunto documental referido (e expressamente salientado) e nessa medida, cumprindo escrupulosamente o princípio da livre apreciação da prova em processo penal, estabelecido no artigo 127º do CPP.

Recorde-se que neste último princípio, estabelecendo-se um valor racionalizado a cada prova, possibilita-se ao juiz um âmbito de discricionariedade na apreciação de cada uma das prova atendíveis que suportam a decisão. Trata-se de uma discricionariedade assente num modelo racionalizado, na medida em que implica que o juiz efectue as suas valorações segundo uma discricionariedade guiada pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação. Ou seja, «o princípio da livre convicção libertou o juiz das regras da prova legal mas não o desvinculou das regras da razão» (cf. Michelle Taruffo, «Conocimiento cientifico y estándares de prueba judicial», Jueces para la Democracia, Información y debate, nº 52, Marzo, 2005, p. 67.).

Daí que a fundamentação da decisão de facto cumpre precisamente «a função de controlo daquela discricionariedade, obrigando o juiz a justificar as suas próprias escolhas» (cf. Taruffo, La prueba de los hechos, Editorial Trotta, Madrid, 2005 p. 436).

No caso em apreço essa justificação está dada e absolutamente bem fundamentada, como se viu.

Em síntese, não se verifica qualquer vicio a que se refere o artigo 410º n.º 2 do CPP.

ii) Legalidade da ordem desobedecida

Sobre esta dimensão do recurso sustenta o recorrente em síntese que Dos documentos dos Autos (que identifica) resulta que as ordens dadas pela EDP e pela Direcção Regional ao arguido não são claras nem constantes, referindo-se, sucessivamente, primeiro à «destruição da plantação em causa” (cfr. fis. 51), depois às “distâncias dos condutores às árvores, com o mínimo de 2,5 m e a zona de protecção, que no caso concreto é de 15 m, na qual deverão ser cortadas ou decotadas as árvores que, por queda, não garantam em relação aos condutores, na hipótese de flecha máxima sem sobrecarga de vento, a distância mínima de 1,5m” (cfr. fis. 43), mais tarde novamente à “destruição da plantação em causa”, agora com a referência à “limpeza da zona de protecção da referida linha com a introdução da alternativa “ou permitir tal limpeza à EDP’ (cfr. fis. 33), posteriormente “solicita (...) que proceda à limpeza da zona de protecção da referida linha, devendo para tal contactar a EDP a fim de serem asseguradas as necessárias condições de segurança”, mantendo a alternativa «ou a permitir tal limpeza à EDJ” (cfr. fis. 24) e terminando pela comunicação de que irá ao local um técnica da Direcção Regional “acompanhado de uma equipa da EDP para proceder à limpeza da zona de protecção” (cfr. fis. 14).A Direcção Regional, acompanhada da equipa da EDP estiveram no local na data comunicada com um empreiteiro para proceder ao corte e limpeza anunciados, tiveram todas as condições para procederem a tal, não houve impedimento nem do arguido nem de terceiros e só por decisão da Direcção Regional tal actuação se não concretizou. O arguido não impediu pois que a EDP procedesse à limpeza, tanto que (como prevíamente tinha anunciado) nem sequer compareceu no local nem promoveu qualquer atitude impeditiva, pelo que, tendo-lhe a ordem sido dirigida em alternativa de facere ou nonfacere, não houve lugar a desobediência. Não sendo a ordem clara e inequívoca nunca haveria, aliás, lugar a desobediência pelo arguido.
Importa sobre esta matéria atentar nos factos provados.
E os factos sobre a questão são os seguintes (factos 11,12,e 13):
«A Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia e Inovação notificou o arguido, através de cartas enviadas nos dias 19 de Julho de 2005, 12 de Agosto de 2005, 28 de Setembro de 2005, 10 de Novembro de 2005 e 12 de Dezembro de 2005, cartas estas que o arguido recebeu nos dias 21 de Julho de 2005, 19 de Agosto de 2005, 30 de Setembro de 2005, 11 de Novembro de 2005 e 13 de Dezembro de 2005, respectivamente, informando-o de que naquele terreno supra mencionado estavam plantadas árvores, cujas extremidades se encontravam a menos de 2,5 metros dos condutores nus da supra referida linha de transporte e distribuição de energia eléctrica, nas condições de flecha máxima, e que se aquelas árvores entrassem em queda atingiriam também tais fios condutores, o que não era legalmente autorizado e prejudicava a exploração da dita linha, uma vez que acarretava o risco de incêndio, podendo pôr em risco a segurança de pessoas e bens. Nessas notificações realizadas através de tais cartas, aquela Direcção Regional da Economia do Centro do Ministério da Economia intimou o arguido a proceder ao corte ou decote dessas árvores, por forma a que as extremidades das mesmas ficassem a uma distância superior àqueles 2,5 metros dos condutores nus da supra referida linha de transporte e distribuição de energia eléctrica, nas condições de flecha máxima, e por forma a que se entrassem em queda não embatessem nos ditos fios condutores, no prazo máximo de trinta dias a contar da data de recepção das ditas cartas, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 54.º, primeiro parágrafo, do Regulamento de licenças para Instalações Eléctricas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 28 852, de 30 de Julho de 1936. Contudo o arguido, apesar de ter compreendido o significado de tais notificações e das consequências do seu não acatamento, recusou-se sempre a proceder ao referido corte ou decote das ditas árvores, ou a permitir que os responsáveis pela sociedade EDP Distribuição - Energia, S.A. entrassem naquele terreno para aí procederem a tal corte ou decote.

Em síntese, o arguido é notificado quatro vezes, por cartas que sempre recebeu para cortar determinadas árvores (ou proceder ao decote das mesmas de forma a que não pusessem em causa as linhas de alta tensão que estavam por cima), sob pena de não o fazer no prazo máximo de trinta dias a contar da data de recepção das ditas cartas, incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 54.º, primeiro parágrafo, do Regulamento de licenças para Instalações Eléctricas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 28 852, de 30 de Julho de 1936.

Perante isto o arguido, apesar de ter compreendido o significado de tais notificações e das consequências do seu não acatamento, recusou-se sempre a proceder ao referido corte ou decote das ditas árvores, ou a permitir que os responsáveis pela sociedade EDP Distribuição - Energia, S.A. entrassem naquele terreno para aí procederem a tal corte ou decote.

Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.

É certo que está provado que o arguido Nunca impediu, física ou materialmente, a entrada de funcionários da EDP no terreno em questão e que nada impedia física ou materialmente que os técnicos deslocados ao terreno do arguido, no dia 12 de Julho de 2006, tivessem cortado quaisquer árvores.

Também é certo que o arguido sempre reclamou que a linha de distribuição de energia eléctrica que atravessa o seu prédio de lá fosse retirada.

Questão primeira e condicionante de todo o problema está em saber se há ou não uma ordem legítima sobre a qual se verificou uma acto de desobediência.

A imputação ao arguido de um crime de desobediência decorre efectivamente do normativo constante do artigo 54º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936, por referência ao artigo 348º n.º 1 alínea a) do C. Penal.

Diz-nos o artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal que: “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se, uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples”.

No caso em apreço a disposição legal em causa é o artigo art. 54.°, n.º 1, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 26 852, de 30 de Julho de 1936. O nº 1 do artigo citado refere o seguinte: “Os proprietários dos terrenos onde se acham estabelecidas linhas de uma instalação declarada de utilidade pública e os proprietários dos terrenos confinantes com quaisquer vias de comunicação ao longo das quais estejam estabelecidas as referidas linhas são obrigados a não consentir nem conservar neles plantações que possam prejudicar aquelas linhas na sua exploração, cumprindo igual obrigação aos chefes de serviços públicos a que pertencerem plantações nas condições referidas, mas somente nos casos de reconhecida necessidade”.

O § 1.º do mesmo artigo, por sua vez, refere que “As secções de fiscalização eléctrica, a requerimento do concessionário, intimarão os infractores a cumprir este preceito dentro de um prazo que lhes será designado, podendo, no caso de desobediência, mandar proceder à destruição das plantações que impedirem o serviço das linhas, levantando auto de desobediência e fazendo instaurar o competente processo criminal, para aplicação das penas cominadas no artigo 188.º do Código Penal”.

Importa antes de mais referir que o Diploma em causa regulamentou, à época (em 1936 )« as normas a seguir para o licenciamento de todas as instalações destinadas a produção, transporte, transformação, distribuição ou utilização de energia eléctrica que se encontrem sujeitas à fiscalização da Repartição dos Serviços Eléctricos”.

Trata-se de um diploma que, pese embora não ter sido totalmente revogado, sofreu ao longo dos anos várias alterações e modificações especificas onde pontificam o Decreto lei n.º 43335 de 19.11.1960 (cujo artigo 171º revogou, por exemplo o artigo 55º do Decreto 26852) e o Decreto lei 446/76 de 3 de Junho (que alterou os artigos 8º,9º,11º,13º,15º,16º,17º,18º,26º,27º,28º,29º,30º,31º,32º,41º,42º,43º,44º,45º,46º,47º, 61º, 63º, 65º, 67º,68º e 78º e revogou o §1 do artigo 38º), mas sobretudo não pode deixar de ser interpretado de acordo com as alterações substancias e estruturais que se verificaram no panorama jurídico nacional e europeu após o estabelecimento das bases de organização do Sistema Eléctrico Nacional, pelo Decreto Lei nº 182/95 de 27 de Julho, entretanto revogado pelo Decreto lei n.º 29/2006 de 15 de Fevereiro.

Conforme se refere aprofundadamente no Parecer da PGR de 23 de Maio de 2005, a «evolução verificada no sector eléctrico significou a passagem de um modelo estatizante e monopolista para um modelo concorrencial e de abertura ao capital privado – sem deixar de constituir um serviço público. Pode afirmar-se, com RUI MACHETE, que os diplomas supra mencionados «vieram introduzir importantes alterações no conceito de serviço público que impõem uma profunda revisão na doutrina clássica portuguesa sobre esta matéria» ( cf. «A evolução do conceito de serviço público e a natureza das relações entre concessionário ou autorizado e o utente», in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Professor João Lumbrales, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pp. 1011-1022, em especial p. 1011). Além disso, deve procurar-se compatibilizar a integração – tradicionalmente sustentada – da rede eléctrica nacional no domínio público da circulação com a liberalização do serviço público de electricidade, sendo hoje de admitir que bens afectos ao sector, em atenção aos «vultosos financiamentos que a construção de grandes infraestruturas de produção, transporte e distribuição de energia exigem», já não possam ser considerados bens do domínio público (cf. RUI MACHETE, «O domínio público e a rede eléctrica nacional», in Estudos de Direito Público, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 207-250, em especial pp. 209 e 239). Este novo enquadramento inscreve-se num movimento mais vasto de que a Directiva nº 96/92/CE constitui corolário no plano comunitário, e que tem como objectivo essencial a criação de um mercado concorrencial da electricidade. Nessa medida, considerou-se que só a criação de um mercado interno do sector eléctrico permitiria «racionalizar a produção, o transporte e a distribuição da electricidade, reforçando simultaneamente a segurança de abastecimento e a competitividade da economia europeia e a protecção do ambiente».

Vale a pena referir que o Decreto lei nº 43335 citado estabelecia que a outorga de uma concessão pelo Estado, com declaração de utilidade pública, «confere no concessionário(…) o direitos: Atravessar prédios particulares com canais condutas, caminhos de circulação necessários à exploração, condutores subterrâneos e linhas aéreas, e montar nesses prédios os necessários apoios».

Por outro lado o artigo 37º do mesmo diploma referia que «Os proprietários dos terrenos ou edifícios utilizados para o estabelecimento de linhas eléctricas serão indemnizados pelo concessionário ou proprietário dessas linhas sempre que daquela utilização resultem redução de rendimento, diminuição da área das propriedades ou quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas.

Também o artigo 43º estabelecia que «Os proprietários dos terrenos atravessados por linhas de alta tensão terão sempre o direito de exigir do concessionário, sem que lhe devam qualquer indemnização, o afastamento ou substituição dos apoios das linhas quando isso for necessário para a realização de obras de ampliação em edifícios existentes, desde que delas não resulte alteração do fim a que os mesmos se destinam».

O artigo 47º estabelecia que «Quando o concessionário, intimado a efectuar reparações ou modificações de que careçam as obras e instalações garantia do seu bom funcionamento e conservação ou para cumprimento do disposto neste decreto-lei, as não executar integralmente no prazo marcado, poderá a fiscalização do Governo executar ou promover a execução das que faltarem, a expensas do concessionário e sem prejuízo das penalidades em que ele por isso tenha incorrido.

Finalmente o artigo 75º estabelecia que «Os concessionários são obrigados a adquirir e montar, à sua custa e nas condições legalmente estabelecidas, as máquinas e acessórios, linhas e aparelhos de medida e protecção necessários ao cumprimento das obrigações que lhes são impostas, à garantia da regularidade da exploração e à eficiente verificação das condições em que essa exploração se faz.» (sublinhado nosso)

Ou seja decorre de tal regime jurídico que ao concessionário estava adstrito um conjunto de deveres de manutenção da rede, em razão da segurança exigida, que só a ele o responsabilizava.

Como se referiu, outras modificações estruturais ocorreram no Sistema Eléctrico Nacional, a partir de 1995. O movimento de liberalização do sector, desencadeado a partir da década de 80, foi consolidado num pacote legislativo constituído por diversos diplomas, com numeração sucessiva – Decretos-Leis nº s 182/95 a 189/95, todos de 27 de Julho. Pretendia-se uma diversificação do mercado, através de entidades que operassem nos diferentes sectores de actividade, modelo que correspondia à desverticalização da organização da EDP, entretanto verificada (cf. neste sentido o Parecer da PGR de 11.05.2006).

A partir de 1995, o modelo organizativo instituído pelo Decreto-Lei nº 182/95, (entretanto modificado) assentou na existência de um Sistema Eléctrico Nacional, que se desdobra em dois subsistemas, «designados por Sistema Eléctrico de Serviço Público (SEP), cuja organização tem em vista a prestação de um serviço público, e por Sistema Eléctrico Independente (SEI), organizado segundo uma lógica de mercado». De um lado, o SEP compreende a «Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica (RNT), explorada em regime de concessão de serviço público» e o «conjunto de instalações de produção e redes de distribuição, explorado mediante um regime de licença vinculada ao SEP», sendo assim o SEP constituído pelos titulares de licenças vinculadas de produção, pela entidade concessionária da RNT e pelos titulares de licenças vinculadas de distribuição.

Posteriormente e por via da implementação de algumas directivas comunitárias o Decreto-Lei nº 29/2006, de 15 de Fevereiro, veio consagrar as novas bases gerais da organização e funcionamento do SEN, bem como das actividades de exercício da actividade de produção, transporte, distribuição e comercialização da electricidade e da organização dos respectivos mercados. Pretendeu-se instituir um novo e completo quadro legal, articulado com a legislação comunitária e concretizando, normativamente, as orientações estratégicas em matéria de energia definidas pelo Governo através da Resolução do Conselho de Ministros nº 169/2005, de 24 de Outubro, e que assenta na liberalização e na promoção da concorrência nos mercados energéticos.

O Sistema Eléctrico Nacional (SEN), entendido como «conjunto de princípios, organizações, agentes e instalações eléctricas relacionadas com as actividades abrangidas no território nacional», compreende o exercício das actividades de produção, de transporte, de distribuição e de comercialização, de operação de mercados e de operação logística de mudança de comercializador. O SEN está sujeito a regulação, que tem por finalidade «contribuir para assegurar a eficiência e as racionalidade das actividades em termos objectivos, transparentes, não discriminatórios e concorrenciais» e pressupõe supervisão e acompanhamento contínuos. No essencial, o novo modelo institui um sistema eléctrico integrado, em que as actividades de produção e de comercialização são exercidas em regime de livre concorrência, mediante atribuição de licença, e as actividades de transporte e distribuição são exercidas mediante a atribuição de concessões de serviço público. Mantêm-se, em qualquer dos casos, as obrigações de serviço público, designadamente em matéria de segurança, regularidade e qualidade do serviço, universalidade da sua prestação, protecção dos consumidores e do ambiente (cf. neste sentido o Parecer da PGR citado de 11.05.2006).

Nas bases gerais da organização e funcionamento do Sistema Eléctrico nacional aprovada pelo Decreto lei n.º 29/2006 de 15 de Fevereiro é estabelecido que as instalações da RESP (rede eléctrica de serviço publico) são consideradas, para todos os efeitos de utilidade publica (artigo 12) sendo dever especifico do operador da Rede nacional de Transporte «assegurar a exploração e manutenção da RNT em condições de segurança fiabilidade e qualidade de serviço» (artigo 24º n.º 2 alínea a).

O Decreto lei n.º 29/2006 de 15 de Fevereiro, que estabelece as bases gerais aplicáveis ao exercício das actividades de produção, transporte e distribuição e comercialização de electricidade, no que respeita à exploração das redes de transporte de electricidade, atribui ao operador a quem for concessionado esse serviço público o dever especifico de «assegurar a exploração e manutenção da RNT (Rede Nacional de Transporte) em condições de segurança, fiabilidade e qualidade de serviço» - artigo 24º n.º 2 alínea a).

No desenvolvimento dos princípios constantes no Decreto lei n.º 29/2006 de 15 de Fevereiro, foi publicado posteriormente o regime jurídico aplicável às actividades de produção, transporte, distribuição e comercialização de electricidade, pelo Decreto Lei nº 172/2006 de 23 de Agosto, que no que respeita ao regime jurídico das servidões administrativas de linhas eléctricas estabelece que esse tal regime «consta de legislação complementar (…)», sendo que segundo o nº 2 do artigo 75º do mesmo diploma, «até à entrada em vigor da legislação referida no número anterior mantêm-se em vigor as disposições do decreto lei n.º 43335 de 19 de Novembro de 1960, na matéria relativa à implantação de instalações eléctricas e à constituição de servidões».

Recorde-se que aquele Decreto Lei nº 43 335 conferia no concessionário o direito de «atravessar prédios particulares com canais condutas, caminhos de circulação necessários à exploração, condutores subterrâneos e linhas aéreas, e montar nesses prédios os necessários apoios».

Finalmente e já em 2010, e ainda na sequência do Decreto lei n.º 172/2006 que já determinava a elaboração e aprovação de regulamento de redes de transporte e distribuição, foi aprovado pela Portaria n.º 596/2010 de 30 de Julho o Regulamento da rede de Transporte e o Regulamento da Rede de Distribuição.

Sendo regulamentos diferenciados constata-se em ambos a atribuição de responsabilidades muito precisas ao concessionário (ORT, na terminologia do Regulamento, segundo o capítulo 11) no domínio da segurança das redes.

Do vasto conjunto de normas concretas que o Regulamento estabelece sobre segurança, nomeadamente relacionada com trabalhos na rede, é claro que essa responsabilidade incumbe ao operador da rede.

No que respeita à distribuição, há que referir que aquele último Regulamento é muito claro no seu ponto 1.4.1 ao estabelecer como um dos princípios gerais da exploração que «os operadores das redes de distribuição devem promover a eficiência energética, a protecção do ambiente, a segurança, a fiabilidade e a eficácia da rede que operam».

Assim, a título de exemplo, «os trabalhos a realizar na RND e nas RDBT só podem ser efectuados por pessoas qualificadas ou por pessoas instruídas quando sob a responsabilidade de pessoa qualificada» (1.4.3).

É por isso, aliás que o ponto 1.8.1 estabelece que «os operadores de redes de distribuição, por intermédio de técnicos por si designados e devidamente identificados, têm o direito de livre acesso aos locais das instalações, ligadas àquelas redes, onde estão instalados os equipamentos».

Em síntese breve, o que se quer sublinhar com a identificação das mudanças estruturais verificadas desde 1936 (data do diploma em causa nestes autos) é que todo o sistema de transporte e distribuição de energia eléctrica sofreu uma mudança significativa, nomeadamente em termos da tutela dos deveres de quem explora em termos de concessão as linhas de transporte, atribuindo-lhe um conjunto de rigorosos deveres nomeadamente no domínio da segurança, com reflexo directo nos direitos dos proprietários cujos terrenos são atravessados pelas referidas linhas.

Se quanto a estes se mantém em regra, em vigor algumas normas constantes do Decreto lei n.º 43335 de 19.11.1960, nomeadamente as normas relativas à constituição de servidões, as normas do Decreto Lei de 1936 que não foram entretanto expressamente revogadas têm que ser adaptadas e interpretadas de acordo com a evolução legislativa subsequente e sobretudo com o quadro constitucional vigente após a Constituição de 1976.

E sobre esta compatibilização, a questão da manutenção da segurança das linhas eléctricas, claramente da responsabilidade das entidades concessionárias, não pode ser dissociada da questão concreta da conservação das plantações existentes sob as linhas objecto de concessão e sobretudo da responsabilização pela manutenção de níveis de segurança das linhas, eventualmente postos em causa pelo crescimento das plantações.

O que, de todo, não pode ser dissociado da obrigação dos concessionários de manterem a segurança das linhas é por outro lado, o regime estabelecido no § 1º do artigo 54º do Decreto 26852 de 30 de Julho de 1936, que sancionava criminalmente os proprietários dos terrenos que não efectuem a destruição ou o corte de plantações que ponham em causa a segurança das linhas, a título de desobediência.

Importa sublinhar, sobre esta questão, que é hoje inequívoco que «faltar à obediência devida» a que se alude no artigo 384º do Código Penal só constitui crime se existir uma disposição legal que comine, no caso, a punição dessa falta ou, «na ausência desta, a correspondente cominação [for]feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado» (cf. inequivocamente Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, Tomo III, p. 351).

O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a autonomia intencional do Estado ou dos órgãos do Estado que perseguem os interesses públicos das populações locais da sua respectiva área ou circunscrição. Ou seja, o bem jurídico protegido pela norma ou normas incriminadoras reside na prossecução desses fins públicos e subsequente não colocação de entraves à actividade administrativa, levada a cabo por aqueles órgãos de poder público, por parte dos destinatários dos seus actos.

Por outro lado, quando o Código Penal fala, na alínea a) do número 1 ou no número 2 do artigo 348º, «numa disposição legal» que cominar, no caso a punição de desobediência simples (ou qualificada, no caso do nº 2), não se trata de uma qualquer disposição legal, mas de uma norma penal. Conforme refere Cristina Líbano Monteiro, ob.cit. p. 354), «de outro modo – fazendo entrar no conceito qualquer tipo de preceito sancionatório – cair-se-ia numa situação impensável de o artigo 348º poder absorver e punir com a prisão ou multa condutas que legislador entendia deverem pertencer a outros ramos do ordenamento jurídico».

A alteração paradigmática aos interesses subjacentes à rede de transporte e distribuição de energia eléctrica referida, deslocando esse interesse de um interesse público inequívoco para uma complementaridade de interesses públicos e privados, bem como a responsabilização que os concessionários assumem actualmente na gestão das redes, impôs uma mudança significativa no modelo da gestão da rede com implicações directas em todos os seus domínios. Nomeadamente no seu relacionamento com os titulares de direitos privados que com eles se tenham necessariamente que articular. Como é o caso dos proprietários dos terrenos por onde têm de passar as linhas eléctricas.

Não pode hoje sustentar-se como norma penal que proteja a autonomia intencional do Estado, a disposição contida no § 1º do artigo 54º do Decreto 26852 de 30 de Julho de 1936 que estabelecia “As secções de fiscalização eléctrica, a requerimento do concessionário, intimarão os infractores a cumprir este preceito dentro de um prazo que lhes será designado, podendo, no caso de desobediência, mandar proceder à destruição das plantações que impedirem o serviço das linhas, levantando auto de desobediência e fazendo instaurar o competente processo criminal, para aplicação das penas cominadas no artigo 188.º do Código Penal”.

Estando em causa, concretamente, um dever de garantir a segurança das linhas eléctricas de transporte e distribuição de energia, actualmente da responsabilidade dos concessionários a quem o Estado efectuou as concessões de transporte e distribuição de energia eléctrica, a intimação dos proprietários dos terrenos para procederem à destruição de plantações que impeçam o serviço das linhas eléctricas, faz incidir sobre os referidos proprietários um dever que não pode ser seu, mas sim dos concessionários.

Não estando em causa qualquer dever de não colocação de entraves à actividade administrativa a referida «intimação» não consubstancia, por isso, uma ordem legitima. E nessa medida não existe qualquer desobediência pelo facto de a mesma não ser cumprida.

Inexistindo qualquer actuação criminosa do arguido obviamente que outra não poderá ser a decisão que não absolvê-lo do crime pelo qual vinha acusado.

A decisão agora proferida prejudica, por isso, o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente.

III. Dispositivo.

Nesta conformidade, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido e absolvê-lo do crime pelo qual foi acusado e julgado.
Notifique.


Mouraz Lopes (Relator)
Félix de Almeida