Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1709/09.9PBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: AMEAÇA
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
SENTENÇA
TRÂNSITO EM JULGADO
Data do Acordão: 01/25/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA/MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 153º Nº 1 CP
Sumário: Tendo, por sentença transitada em julgado, os factos sido enquadrados juridicamente como crime de ameaças (simples) previsto no art. 153º, n.º1 do CP, que admite desistência da queixa (n.º 2 do preceito), não pode ser censurada a decisão que admitiu, a posteriori, a desistência da queixa relativamente ao aludido crime, cujos pressupostos, de facto e de direito foram apreciados e definidos na sentença. Pelo que, não tendo sido interposto recurso, ficaram consolidados na ordem jurídica pelo trânsito em julgado da sentença que assim o definiu.
Decisão Texto Integral: I.
Vem interposto recurso, pelo MºPº, do despacho exarado a fls. 104-107 dos autos, no qual o mº juiz decidiu, além do mais:
“O arguido A... incorre na prática de um crime de ameaças previsto e punido pelos artigos 153º n.º 1 e 155º n.º 1 a), ambos do Código Penal.
No decurso da audiência de julgamento a ofendida B… veio desistir da queixa apresentada, não existindo oposição do arguido.
O Ministério Público opôs-se à desistência pois considera que o crime em apreço apresenta natureza pública.
(…)
homologo a desistência apresentada pelo ofendido”.
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Na motivação do recurso são formuladas as seguintes CONCLUSÕES:
1. Com a alteração do C. Penal introduzida pela entrada em vigor da Lei 25/2007 de 04 de Setembro, foi criado um novo tipo de crime de ameaça – ameaça agravada, previsto e punível pelo art. 155º do C. Penal.
2. “O art. 155º não contém norma que estabeleça a natureza semipública dos tipos qualificados de ameaça e de coacção e também não se encontra norma autónoma que, referida ao artigo 155º a estabeleça” (Ac. do TRP de 1 de Julho de 2009, proc. n.º 968/07.PBVLG.P1 – 4ª Sec., disponível em www.trp.pt.
3. Pelo que, "tem natureza pública o tipo qualificado de ameaça, previsto e punido nos termos do art.° 155° do Código Penal, na redacção resultante da Lei n. ° 59/2007" (Parecer da Procuradoria-geral Distrital do Porto, publicado em 11 de Outubro de 2010, via SIMP).
4. Tal opção legislativa denota um reforço da tutela penal no âmbito da protecção das pessoas particularmente indefesas, dos agentes das forças ou serviços de segurança e das demais pessoas elencadas na aI. I) do n.02 do 132° do Código Penal, quando os factos sejam praticados contra estas no exercício das suas funções ou por causa delas - conforme resulta da Exposição de Motivos da PROPOSTA DE LEI N° 98/X, disponível in www.mj.gov.pt.
5. Face à actual configuração do crime de ameaça agravada, a sua violação é susceptível de lesar, para além da liberdade pessoal, de cariz intrinsecamente privado, outros interesses de ordem pública, quando praticado contra aquelas pessoas.
6. Ao concluir que "o art. 155º não altera a natureza semi-pública do crime de ameaça" e homologar a desistência de queixa apresentada nos presentes autos pela ofendida, o tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação das disposições conjugadas dos art.ºs 153° e 155° do Código Penal e violou o disposto no art. 48° do Código de Processo Penal.
7. Pelo que, deve ser revogado o despacho recorrido e ordenado o prosseguimento da acção penal contra o arguido pela prática do crime de ameaça.
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Notificados os restantes sujeitos processuais, não foi apresentada resposta.
Neste Tribunal a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual conclui que, não obstante o mérito da motivação do recurso, deve este improceder, porquanto o crime foi qualificado, por sentença transitada em julgado como de ameaça - simples – p e p pelo art. 153º, n.º1 do CP que admite desistência da queixa.
Corridos vistos, após conferência, cumpre decidir.
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II.

A questão suscitada no recurso é a de saber se o crime de ameaças AGRAVADO p e p pelo art. 155º, n.º1, al. a) do C.P., na redacção do diploma saída da revisão de 2007 (os factos dados como provados são de 21.07.2009) admite desistência da queixa – e como tal se é válida a homologação da desistência.
No entanto, sendo o despacho recorrido, como efectivamente é, posterior á sentença final, tendo em vista a observação, pertinente, aduzida no douto parecer, relativa ao caso julgado, importa contextualizar o despacho recorrido, a fim de verificar se o mesmo despacho contende com o objecto da sentença, ou, por outras palavras, se a sentença formou caso julgado sobre a qualificação jurídica do crime, prejudicando a apreciação do recurso.

Ora, compulsando os autos, verifica-se que:
- O arguido vinha acusado, nos autos, pela prática de um crime de violência doméstica – cfr. acusação a fls. 38-43;
- Depois de realizado o julgamento, foi proferida a sentença na qual o juiz, dirimiu a matéria de facto, definindo a matéria provada e não provada, após o que procedeu ao respectivo enquadramento jurídico;
- Por outro lado, na qualificação jurídica da matéria de facto apurada, concluiu que a matéria provada não é susceptível de integrar o crime – de violência doméstica – pelo qual o arguido vinha acusado. Concluindo outrossim que: “os factos configuram tão-só a prática de um crime de ameaças p e p pelo artigo 153º n.º1 (…) do CP, crime este de natureza semi-pública (…) nos termos dos artigos 153º, n.º2 do CPP (…) tal crime admite desistência da queixa – art. 116º, n.º2 do C.P. Como ficou exarado em acta de audiência de julgamento a ofendida declarou desistir da queixa apresentada nos autos. Assim (…) quanto ao crime de ameaças, notifique o arguido para vir aos autos informar se se opõe à desistência da queixa”;
- Dessa sentença não foi interposto recurso;
- Foi somente após a qualificação jurídica efectuada na sentença e na sequência da notificação ali ordenada, findo o prazo fixado ao arguido para se opor, querendo, à desistência da queixa, que o MºPº se opôs à desistência da queixa por entender que o crime de ameaça agravado p.p. no art. 155º do CP, que o Mº juiz proferiu o despacho ora em recurso, homologatório da desistência da queixa quando ao crime de ameaça agravado p e p pelo art. 155º, nº1, al. a) do C. Penal – referenciado pelo primeira vez na oposição do MºPº.
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Como se viu, vem suscitada no recurso a questão de saber se o procedimento criminal relativo ao crime de ameaças agravado p e p pelo art. 155º, n.º1, al. a) do C. Penal, na redacção do diploma saída da revisão de 2007 depende da apresentação de queixa.
No entanto, não tendo o arguido sido acusado pela prática de qualquer crime de ameaça (foi acusado pelo de violência doméstica), a nova qualificação jurídica foi efectuada na sentença, nos termos a que se fez referência. Daí ter sido ordenada na sentença notificação ao arguido para se opor, querendo, à declaração de desistência da queixa formulada em audiência pela ofendida.
Sucede, porém, que na referida sentença o crime foi qualificado como crime de ameaça (simples) previsto e punido no art. 153º, n.º1 do CP.
Ai se consignado, aliás, que aquele crime tem natureza semi-pública, nos termos do artigo 153º, n.º2 do C. Penal.
É o que resulta claro e inequívoco da sentença (cfr. antepenúltimo § de fls. 99).
Ora, da aludida sentença não foi interposto recurso por qualquer dos sujeitos processuais.
Assim a sentença encontra-se coberta pelo instituto do caso julgado no que diz respeito às questões ali apreciadas e decididas, designadamente a fixação da matéria de facto provada e não provada e a consequente qualificação jurídica do crime ali efectuada - crime de ameaça simples previsto e punido no art. 153º, n.º1 do CP.
Com efeito, ainda que não previsto de forma sistemática no ordenamento jurídico-penal, não sofre dúvida a sua consagração, além do mais por efeito do princípio constitucional ne bis in idem.
Dentro do princípio de que uma vez proferida determinada decisão fica esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre a questão apreciada, evitando ainda que o mesmo tribunal possa pronunciar-se duas vezes sobre a mesma questão.
O efeito negativo do caso julgado em processo penal consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. Sendo certo que no processo penal a causa de pedir é o facto jurídico concreto que fundamenta a aplicação de uma pena; o pedido é a pretensão jurisdicional de que os factos acusados constituem crime, implicando a aplicação da correspondente sanção penal – cfr. Ac. STJ de 02.03.2006, CJ/STJ, tomo I/2006, p. 198
E, como foi decidido no Ac. RC de 09.06.2003, CJ, tomo III/2003, p.42: “O comportamento referenciado no «facto» como expressão da conduta penalmente punível é o acontecimento da vida que, enquanto dotado de unidade de sentido se submete à apreciação do tribunal”.
Sendo certo que a proibição de ne bis in idem tem uma intenção de garantia do arguido exactamente como proibição do «duplo processo» (sobre os mesmos factos) - cfr. Damião da Cunha, em O Caso Julgado Parcial, Publicações d UC, 2002, p. 142 e p. 485-486.
O que, no caso, equivaleria a uma segunda decisão sobre a qualificação jurídica do crime previamente efectuada, precisamente, no acto mais nobre do processo, a sentença.
Assim, tendo o crime sido qualificado, por sentença transitada em julgado, como o crime de ameaças (simples) previsto no art. 153º, n.º1 do CP, que admite desistência da queixa (n.º 2 do preceito), não pode ser censurada a decisão que admitiu, a posteriori, a desistência da queixa relativamente ao aludido crime, cujos pressupostos, de facto e de direito foram apreciados e definidos na sentença. Pelo que, não tendo sido interposto recurso, ficaram consolidados na ordem jurídica pelo trânsito em julgado da sentença que assim o definiu.
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III.
Nestes termos, decide-se que a qualificação jurídica do crime (ameaça simples previsto no artigo 153º, n.º1 do CP) se encontra coberta pelo instituto do caso julgado, pelo que, admitindo o aludido crime desistência da queixa (n.º2 do Preceito) se julga improcedente o recurso do despacho subsequente que procedeu à sua homologação.
Sem tributação.


Belmiro Andrade (Relator)
Abílio Ramalho