Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1529/12.3TBPBL-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO BRANDÃO
Descritores: CÓDIGO DE INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
CIRE
VENDA DE BENS DA MASSA INSOLVENTE
PAGAMENTO DAS DÍVIDAS
AUTORIZAÇÃO DA COMISSÃO DE CREDORES
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUIZO DE COMÉRCIO DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 55º, NºS 1 E 3 DO CIRE.
Sumário: I - A invocação da fatura ou do seu extrato devem ser comprovados pela apresentação do respetivo documento, mas a falta de qualquer deles não impede que seja alegado o contrato de que decorrem e reclamado o preço, utilizando para isso qualquer meio de prova admissível.

II – Dispõe o artº 55º, nº 1, alíneas a) e b) do CIRE que, para além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao AI, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro que resultem da alienação dos bens que a integram, de que tem a incumbência, e prover à conservação e frutificação dos direitos desse mesmo insolvente, é essa de resto a sua atividade predominante.

III - A autorização a que alude o nº 3 do artº 55º do CIRE tem de ser solicitada previamente pelo AI à comissão de credores que, por sua vez, a deve conceder ou recusar através de uma deliberação que pode ser impugnada e revogada pela assembleia de credores.

IV - O silêncio ou a atitude passiva dos credores perante a falta desse pedido de autorização, ainda que conhecendo e acompanhando a intervenção de terceiros durante o processo de venda, não supre tal autorização nem pode valer como aceitação, seja tácita ou presumida, nem permite apelo ao princípio da confiança.

Decisão Texto Integral:     








               Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Na sequência da prestação de contas pelo Sr. Administrador da Insolvência, relativamente ao período em que exerceu estas funções, a credora C..., CRL apresentou parecer desfavorável a tais contas, por não estarem fundamentadas determinadas verbas, por refletirem despesas não autorizadas pela comissão de credores ou haver duplicação de verbas, para além de não ter sido considerado o montante recebido a título de provisão.

Depois de feita a pronta e devida rectificação de vicissitudes processuais, o Sr. Administrador da Insolvência veio responder em 28.10.2020, referindo que embora não tenha solicitado a prévia concordância do tribunal, deu sempre conhecimento à comissão de credores que as diligências de venda estavam a ser acompanhadas pela “L...” sem que nunca qualquer dos credores tenha deduzido oposição.

Para além desta resposta o Sr. Administrador da Insolvência havia apresentado dois documentos anteriormente, em 07.09.2020, para comprovar as despesas de diligências de venda no montante de 9.947,72€ na sequência de uma promoção do Mº Pº em 25.06.2020 e do despacho judicial subsequente, a o2.07.2020.

Produzido pronunciamento quanto à regularidade da instância, que assim permanece, foi proferida decisão nos seguintes termos:

- Rejeitar a aprovação da despesa no valor de €1.014,75, referente ao documento junto como doc. 19, emitido por “A..., Lda.”,

- Julgar válidas as demais despesas apresentadas, porque devidamente justificadas e documentadas, com a consequente aprovação.

      Inconformada, a credora “C..., CRL” veio interpor recurso que finalizou com as seguintes conclusões:

...

O Mº Pº respondeu, abordando nas suas contra-alegações as três questões discutidas pela apelante, concluindo pela bondade da decisão proferida que, por isso mesmo, deve ser mantida nos seus precisos termos julgando-se improcedente o recurso interposto. 

A massa insolvente, por sua vez, apresentou contra-alegações, argumentando que a falta de aceitação da comissão de credores mostra-se suprida pelo conhecimento dos credores de toda a actividade prestada pela leiloeira, que o administrador da insolvência actuou com transparência, que tal falta só poderia acarretar efeitos disciplinares, que a tese da apelante configura uma violação do princípio da confiança.

Concluiu pedindo a improcedência do recurso e a manutenção da sentença.

Colheram-se os vistos.

Foi o seguinte o circunstancialismo factual considerado na sentença anterior:

1 – Por sentença proferida a 27.07.2012 foi declarada a insolvên-cia de M... e de F..., tendo sido nomeado como Administrador da Insolvência o Sr. Dr. ...

2 - A conta corrente apresentada pelo Sr. Administrador da In-solvência menciona as despesas e receitas da massa insolvente, sendo indica-das as seguintes:

2.1 Receitas – valor total de € 310.120,99

2.2 Despesas

                        - Anúncio de venda – Diário de Coimbra - € 196,80;

- Pagamento do Condomínio do Prédio, verba 1 - € 515,00;

- Diligências de venda da verba 1 - € 272,81;

- Anúncio de venda – Correio da Manhã - € 324,72;

- Emissão de cheques - € 8,82;

- Avaliação dos prédios das verbas 3, 4 e 5 - € 461,25;

- IVA da venda da viatura ... - € 70,61;

- Comissão de manutenção - € 0,35;

- emissão de cheques - € 8,82;

- certidões prediais - € 17,00;

- pagamento de IRS - € 11.957,62;

- Certidão predial - € 1,50;

- Avaliação dos prédios - € 1.014,75;

- Diligência de venda - € 9.947,72;

- Franquias postais - € 110,80;

- 2.ª prestação de honorários fixos - € 1.230,00;

- Provisão para despesas de rateio - € 49,92

Despesas no valor global de € 26.188,49

3 - Pelo Sr. Administrador foram apresentados documentos para justificação e comprovação das despesas elencadas no ponto 2. dos factos provados, os quais se encontram juntos a fls. 6 a 39 (identificados como Doc. 1 a Doc. 23) e fls. 50-51 (junto com o requerimento ref.ª ...), cujo respetivo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

4 - O Sr. Administrador da Insolvência contratou os serviços da leiloeira “L..., Lda.” e da avaliadora “A..., Lda.” para auxílio das diligências de avaliação e venda.

5 - Não foi proferido despacho judicial nem foi requerida a autorização da comissão de credores para a contratação de tais serviços.

6 – As diligências de venda da verba 1 realizadas pela “L... – Agência de Leilões, Lda.” foram faturadas no montante de 272,81.

7- A avaliação dos prédios relacionados sob as verbas 3, 4 e 5 foi efetuada “A..., Lda.”, cobrando por tal serviço o valor de € 461,25.

8 – As diligências de venda dos demais imóveis, realizadas pela Leiloeira L..., Lda., foram faturados pelo montante de € 9.947,72[1].

9 – O Sr. Administrador apresentou ainda a despesa de avaliações dos prédios, no valor de €1.014,75, tendo por base o documento junto como documento 19, emitido por “A..., Lda.”, no qual consta o seguinte: “1.ª avaliação (urbano – ano 2104); 2.ª avaliação (3 rústicos – ano de 2015); 3.ª avaliação (1 rústico – ano de 2019). Total dos trabalhos (Iva incluído à taxa de 0%) - €1.014,75

Passemos então à apreciação do presente recurso de apelação, cuja delimitação, como se sabe, é feita pelas conclusões sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso nos termos dos artigos 635º e 639º, do CPC.

São duas as questões a decidir:

A. Reapreciação da matéria de facto quanto à alteração ou a manutenção do ponto 8 e, no caso de alteração, o efeito probatório que daí decorre.

B. Rejeição da aprovação das contas no que toca às verbas indicadas nos pontos 6, 7 e 8, a primeira no valor de 272,81€, a segunda no   valor de 461,25€ e a última valor de de 9.947,75€, por se tratarem de despesas para cuja realização não foi solicitada autorização prévia à comissão de credores.

A. Da matéria de facto.

Há que reconhecer desde logo, como refere a apelante, que não foi apresentada pelo administrador da insolvência, não consta dos autos, qualquer factura emitida que suporte a prestação do serviço referente à verba no montante de 9.947,72€.

Quanto a tal verba temos o documento nº 20, a fls 997, junto com o requerimento inicial, e os documentos fls 509 e 510 apresentados em 07.09.2020, e nenhum deles é uma fatura ou o respectivo extracto, sendo que os dois últimos documentos foram apresentados para discriminar a verba questionada pela credora C... e pelo Mº Pº.

A fatura, tal como acontece como o seu extrato, sendo um documento que se reveste de características próprias, definidas na lei e com relevância fiscal para a incidência tributária, não pode ser provada a sua existência ou verificação por um outro qualquer documento.

Ora, como referiu acima, não foi apresentada qualquer fatura com referência às diligências de venda a que se alude no ponto 8 – sem que importa indagar agora se  isso ocorreu porque tal documento simplesmente não existe, porque não foi emitido, e por isso não haja também extrato, independentemente do ilícito de natureza fiscal que não importa cuidar, ou tão só que não foi apresentado – pelo que não poderia pois ser considerado como provada a existência de uma factura[2]

Consequentemente, o ponto 8 não pode permanecer com a sua actual redação, ou seja, que “as diligências de venda dos demais imóveis, realizadas pela Leiloeira L..., Lda., foram faturados pelo montante de €9.947,72”.

A alteração pretendida pela recorrente reflete com rigor a realidade dos factos e, por isso, deve ser considerada e admitida, passando a constar desse aludido ponto 8 o seguinte:

“O sr. administrador apresentou uma despesa de diligências de venda no valor de € 9.947,72, tendo por base o documento 20 e o documento junto aos autos em 07-09-2020, ambos emitidos pela leiloeira L..., Lda”.

Uma outra questão, diversa, tem a ver com efeito probatório desses documentos, se podem configurar a prova do facto alegado, a prestação de determinados serviços, o seu valor/preço, ainda que não tivessse sido emitida a respectiva factura, portanto, se há ou não razões para divergir do juízo feito na 1ª instância.

Aqui, quanto a esta questão, não há razões para divergir do juízo probatório feito na sentença, isto porque sobre tal facto não há uma prova vinculada, isto é, a prestação dos serviços por parte da “L...”, bem como custos e encargos assumidos não carecem da apresentação da factura para que seja feita a respectiva prova. Embora alterando o ponto 8, os documentos mencionados são aptos a fazerem a prova de que as diligências de venda dos demais imóveis, realizadas pela “Leiloeira L..., Lda”, tiveram um custo no montante de €9.947,72, tal como se considerou na sentença anterior e de acordo com os artºs 362º, 363º, nºs 1 e 3, e 366º do Código Civil, CC.

A fatura representa, de um ponto de vista jurídico, uma declaração escrita de verdade ou ciência, decorrente de um contrato prévio mas com autonomia em relação a este, procedendo à descrição da qualidade e quantidade dos objectos negociados, determinação da data da sua entrega ao comprador e preço[3].

A falta do extrato da fatura, o documento que fica em poder do vendedor, não impede que este exija o preço da venda e prove os seus direitos em ação declarativa mediante quaisquer outros meios admitidos em lei[4], tal como podia o AI alegar e provar por qualquer meio, os serviços prestados pela “L...”, ainda que, na qualidade de comprador, não tenha apresentado a fatura que deveria ter em seu poder, posto que a fatura, podemos acrescentar, não constitui formalidade “ad substantiam” do negócio jurídico de que decorre.

Não foi apresentada qualquer fatura nem o respetivo extrato.

B. Rejeição da aprovação das contas no que toca às verbas indicadas nos pontos 6, 7 e 8,

O administrador de insolvência, refere o artº 2º, nº 1 e 2 da Lei 22/2013, de 26.02, é a pessoa incumbida da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo ele o competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei, conferindo-lhe o artº 22º deste mesmo diploma, bem como o artº 60º do DL nº 53/2004, de 18.03, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empre-sas, o CIRE o direito a ser remunerado pelo exercício dessas funções, bem como ao reembolso das despesas necessárias a tal cumprimento.

Dispõe o artº 55º, nº 1, alíneas a) e b) do CIRE que, para além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao AI, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro que resultem da alienação dos bens que a integram, de que tem a incumbência, e prover à conservação e frutificação dos direitos desse mesmo insolvente, é essa de resto a sua atividade predominante[5].

Consta do nº 2 do preceito citado no parágrafo anterior, “sem prejuízo … de necessidade de prévia concordância da comissão de credores, … o administrador da insolvência exerce pessoalmente as competências do seu cargo …”.

Quanto à venda de bens, incumbência que decorre do artº 158º, nº 1, do CIRE e que deve ser iniciada logo após o trânsito em julgado da sentença declaratória de insolvência, o Sr. Administrador da Insolvência, AI, de acordo com o disposto no artº 164º, nº 1,[6] então em vigor, tinha autonomia para escolher a modalidade da alienação dos bens, podendo optar por qualquer das admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.

Hoje, e desde 01 de Julho de 2017, já não é assim, essa venda deve ser feita preferencialmente em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por outra que tenha por mais conveniente.

O AI, na altura dos facto aqui relatados, tinha pois uma maior autonomia, pese embora estar já então prevista a necessidade de ouvir o credor com garantia real sobre o bem a alienar, informando do valor base fixado ou o preço da venda[7].

Ainda com relevância para esta análise, importa atentar no nº 3 do mencionado artº 55º do CIRE, que permite ao AI, no exercício das respectivas funções “ ser coadjuvado sob a sua responsabilidade, por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão”.

Decorre dos preceitos mencionados uma “ … ideia de pessoalidade do cargo ao ponto de rejeitar o recurso ao auxílio de terceiros e do insolvente, com ou sem remuneração, quando não haja prévia autorização da comissão de credores”, sem prescindir aí, nesse ponto e nessa altura “ … por uma solução que favorece o maior controlo da atividade do administrador e do modo do seu exercício em consonância com a responsabilização pessoal a que agora irrevogavelmente o submete em conformidade com o artº 59º [8].

Essa ideia de pessoalidade é ressaltada ainda pela circunstância de que a necessidade da concordância prévia da comissão de credores nos termos do nº 3 do artº 55º do CIRE, independe da ajuda pretendida pelo AI ser remunerada ou não, ou seja, não é o carácter oneroso dessa ajuda que determina esse procedimento, a razão substantiva e principal dessa exigência tem efectivamente a ver com cargo, o seu exercício e os interesses a salvaguardar no processo de insolvência.

Por outro lado, nessa específica incidência, quanto à realização da venda dos bens da massa da insolvência, também por via dessa mesma ideia de pessoalidade a autonomia do AI foi restringida em 2017, indicando agora o artº 164º, nº 1, do CIRE, uma modalidade preferencial de venda e exigindo uma justificação caso seja outra a sua opção.

Acresce ainda, insistindo nessa ideia de pessoalidade, que se a lei exige/impõe ao AI a necessidade de obter uma concordância prévia da comissão de credores para que possa ser coadjuvado no exercício das suas funções mesmo que não haja lugar a remuneração, maior será a necessidade de a obter quando haja remuneração e se pretenda imputar esse custo à massa insolvente. 

A concordância da comissão, convém sublinhar e resulta da letra da lei, deve ser prévia à intervenção pretendida, pressupondo, como é natural, que o respetivo pedido seja acompanhado da informação quanto ao conteúdo, objetivo e custo dessa intervenção, caso seja remunerada, ou caso assim não seja, obrigação que decorre do nº 5 do citado artº 55º do CIRE, o que não aconteceu.

Considerou-se, na sentença, ter havido concordância dos credores à intervenção da “L... e da “A...”, e consequentemente suprida a sua falta, pelo conhecimento que vieram a ter os credores dos actos praticados por uma e outra dessas empresas através da publicação de anúncios e depois pelo próprio leilão de venda.

É do seguinte teor o último parágrafo de fls 7 da sentença:

“Além disso, no caso dos autos os credores, no decurso das diligências de liquidação, com o anúncio e publicitação das vendas, tomaram conhecimento da contratação de tais serviços, sem que tenham deduzido nos autos qualquer oposição, criando o seu silêncio uma legítima convicção no sentido de os custos por si apresentados serem aceites.”

Ora, por força do preceituado no já mencionado artº 55º, nº 3, do CIRE, a autorização da comissão de credores deve ser prévia e, acrescentamos agora, deve ser devidamente informada, ou seja, sempre que o AI deixe de exercer pessoalmente as suas competências, v. g. a liquidação dos ativos, e pretenda valer-se de técnico ou outro auxiliar, independentemente de haver ou não remuneração, deve, previamente, pedir autorização, informando os contornos e o conteúdo dessa concreta intervenção e, quando remunerada, dos seus custos. 

A comissão de credores, dizem-nos os artºs 66º, 69º e 80º do CIRE, é um órgão colegiado, exprime-se portanto através de deliberações, das quais não há reclamação para o tribunal mas podem ser revogadas pela assembleia de credores, direcionamento que acentua bem os interesses que importa tutelar e quem em primeira linha os deve defender.

Admitindo-se a tese sustentada pelo AI, partilhada pela massa insolvente a acolhida na sentença, subtraía-se desde logo a possibilidade de um qualquer interessado, um credor, atacar tal autorização perante a assembleia de credores ao abrigo dos artºs 72º, nº 1, 75º, nº 1, e 80º do CIRE e pedir a sua revogação pela simples razão de que não há decisão/deliberação.

Porém, ainda que se possa admitir e aceitar que os credores tiveram conhecimento através dos anúncios e do leilão da intervenção da “L...”, e mesmo da “A...”, bem como intuir/aferir que a atuação destas empresas ocorria ao abrigo de uma relação contratual estabelecida com o AI, não se vê como seja possível dar como verificado também o conhecimento do conteúdo dessa relação contratual, abrangência e custos, dando assim o consentimento para que no final fossem imputados à massa falida.

Chegados aqui, importa, fazer um ligeiro “distinguo” entre a declaração tácita e o silêncio como meio declarativo, previstos respetivamente nos artºs 217º, nº 1, e 218º do CC, e de onde resulta que a declaração é tácita quando se deduz de facto - facta concludentia - que com toda a probabilidade a revelam, e que o silêncio vale como declaração negocial quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção[9].

No primeiro caso, declaração tácita, afere-se uma vontade de factos e imputa-se a declaração que decorre dessa aferição a alguém, enquanto no segundo caso importa determinar quando o silêncio, melhor, a omissão de conduta, tem valor declarativo, e que ocorre quando exista o ónus de adoptar certo comportamento e este é omitido[10].   

Parece-nos, portanto, da situação descrita nos autos que não podemos extrair da atitude e do comportamento dos credores que houve, por declaração tácita ou pelo silêncio, a expressão da aceitação por parte da comissão de credores, ou mesmo desses credores, quanto à intervenção da “L...” ou da “A...”, em primeiro lugar porque não foi solicitado qualquer consentimento, donde portanto não houve omissão de conduta devida ou esperada, e depois porque o silêncio e/ou atitude passiva, seria o espectável face à autonomia que o AI dispunha nessa altura para a venda no âmbito da liquidação de que estava incumbido.

No que concerne à eventual violação do princípio da confiança ex bona fides tampouco pode prevalecer posto que a aplicação no caso em apreço havia que considerar que a boa fé por parte do administrador era não culposa, que não lhe era/é censurável a falta da autorização prévia – ainda que por mero lapso como diz - que essa falta revestia-se de um sentido ético e não era puramente psicológico.

A concepção ética da boa fé sujetiva, aquela que importa considerar, “postula a presença de deveres de cuidado e de indagação; por simples que sejam, sempre se exigiria, ao agente, uma consideração elementar pelas posições dos outros”[11].      

Não nos parece que se possa dar como verificado tal requisito nos termos descritos de modo a qualificar como ética a eventual boa fé do AI, desde logo porque, para o exercício dessas funções, detém as habilitações enunciadas nos artºs 3º, 8º e 9º do respetivo estatuto, a Lei nº 22/2013, designadamente uma licenciatura e experiência profissional adequadas ao exercício da atividade, frequência de um  estágio profissional promovido para o efeito, aprovação em exame de admissão especificamente organizado para avaliar os conhecimentos adquiridos durante o período de estágio profissional, trata-se de pessoa particularmente instruída e experiente.

O AI, em segundo lugar, parece-nos elementar, não poderia deixar de considerar a necessidade de audição dos credores através da comissão e, se necessário, da assembleia, tanto mais que no final iria imputar à massa insolvente os custos da intervenção de terceiros de que pretendia socorrer-se.  

A proteção da confiança efetiva-se no direito português através de disposições legais específicas, quando “retrate situações típicas nas quais uma pessoa que, legitimamente, acredite em certo estado de coisas – ou o desconheça – receba uma vantagem que, de outro modo, não lhe seria reconhecida, ”ou através de institutos gerais susceptíveis de proteger a confiança e que aparecem ligados aos valores fundamentais da ordem jurídica e surgem associados … a uma ordem objectiva de boa fé”, o que acontece “ quando se verifique a aplicação de um dispositivo específico a tanto dirigido”, e, “fora desses casos, ela releva quando os valores fundamentais do ordenamento, expressos como boa fé ou sob outra designação, assim o imponham”[12]. 

Nada disso ocorre aqui, não encontramos qualquer desses elementos constitutivos que nos permitam concluir pela eventual violação do princípio da confiança que protegia o AI na actuação descrita.

Que fique claro, não se questiona a postura do AI para além da falta de solicitação e obtenção da autorização prévia para obter o concurso da “L...” e da “A...”, nem existem elementos factuais que nos levem a recusar a explicação dada de que essa omissão deveu-se a um simples lapso, o que releva é que deveria ter solicitado essa autorização e não o fez.

Não sendo caso de apreciar a responsabilidade civil do AI perante os devedores, a massa falida ou aos credores, a questão é apenas e tão a de determinar se o custo da intervenção de terceiros sem que antes tenha sido solicitada a concordância da comissão de credores, pode ser imputado à massa falida, mesmo que essa falta seja devida a um mero lapso.

A resposta é negativa, como não poderia deixar de ser, posto que as verbas referentes aos encargos relativos à intervenção da “L...” e da “A...” não tiveram, nem foi solicitada, autorização prévia, sem que  possa ser suprida uma e considerada a outra pelo silêncio ou a atitude passiva mantida pelos credores após o conhecimento e acompanhamento das diligências efectuadas por tais empresas, valendo como anuência ou concordância[13]

Uma nota final para acrescentar que a confiança do AI quanto ao consentimento da sua conduta e da aceitação da intervenção da “L... e da “A...” tampouco poderia fundar-se na actuação do juiz, porque embora  também fiscalize a actividade do AI nos termos do artº 58º do CIRE, é preciso não esquecer a autonomia com que este último actuava e que tinha como interlocutor a comissão de credores, era esta que detinha a competência para apreciar o pedido, cabendo apenas ao juiz, enquanto presidente da assembleia de credores, intervir, se fosse o caso, na apreciação da deliberação da comissão caso houvesse impugnação ou reclamação.

Esse (re)posicionamento do juiz decorre das opções que o legislador reafirma no ponto 10 do preâmbulo do CIRE, que a supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo e, nessa vertente, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa).

De todo o modo, a destituição do cargo de administrador por justa causa não contende - ou obsta - com a não aprovação das contas, mesmo que o motivo seja o mesmo para ambos, posto que incidências e implicações distintas.

Face a tudo quanto fica exposto, julga-se procedente a presente apelação e, consequentemente, altera-se a sentença proferida, devendo passar a constar do ponto 8 da matéria de facto a redacção indicada, e rejeitar as despesas referentes à venda da verba 1 no montante de € 272,81; avaliação dos prédios das verbas 3, 4 e 5 no montante de €461,25 e a diligência de venda no valor de €9.947,72.

Custas pela massa insolvente.

Coimbra, em 09/03/2021

Sumário ( artº 663º, nº 7, do CPC )

A invocação da fatura ou do seu extrato devem ser comprovados pela apresentação do respetivo documento, mas a falta de qualquer deles não impede que seja alegado o contrato de que decorrem e reclamado o preço, utilizando para isso qualquer meio de prova admissível

A autorização a que alude o nº 3 do artº 55º do CIRE tem de ser solicitada previamente pelo AI à comissão de credores que, por sua vez, a deve conceder ou recusar através de uma deliberação que pode ser impugnada e revogada pela assembleia de credores.

          O silêncio ou a atitude passiva dos credores perante a falta desse pedido de autorização, ainda que conhecendo e acompanhando a intervenção de terceiros durante o processo de venda, não supre tal autorização nem pode valer como aceitação, seja tácita ou presumida, nem permite apelo ao princípio da confiança.


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     [1] Teor alterado por via de decisão quanto à matéria de facto a fls 9 e 10.
  [2]cf. artº 476º do Cód. Comercial, DL nº 298/2019, de 15.02, não em vigor à data dos factos aqui em discussão, mas contem indicações quanto ao regime então aplicável e que resulta dos diplomas revogados, para além dos artºs 4º, 29º, b) 36º a 40º do Código do IVA.
      [3] José A. Engrácia Antunes, “Direito dos Contratos Comerciais”, pg 170.
[4] José A. Engrácia Antunes, ob. e pg. cit.; Ac STJ de 14.12.94, CJ-STJ 1994, Vol. III, pg 178-180.
 [5] Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “O Código da Insolvência e da Recuperação de Empre-sas“, pg 344/345, ponto 8.
[6] A actual redacção resulta da alteração introduzida pelo DL Decreto-Lei n.º 79/2017 de 30 de junho, e visa implementar as recomendações resultantes de avaliação efetuada no terreno, designadamente na fase de liquidação do ativo, preparando-se e a plenitude da tramitação eletrónica dos processos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, em complemento a outras medidas tecnológicas em desenvolvimento como a certidão judicial online, que constitui a medida #73 do Programa Simplex.
      [7] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. Cit., pg 650, ponto 4.
      [8] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. Cit., pg 346, ponto 11.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vo. I, 3ª ed., pg 209; Manuel A. Domingues de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol II, 1983, pg 132
      [10] Luís A. Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil”, Vo. II, 2ª ed. Pgs 184/192 
Registe-se aliás, que a relevância da omissão da conduta devida e esperada foi abordada no Ac. da Rl de Guimarães, 19.03.2019, o aresto citado pela massa falida nas suas alegações, posto que na situação aí descrita um dos credores tinha apresentado à comissão de credores a sua oposição à intervenção de terceiros sem que o AI tivesse solicitado autorização prévia, tendo a comissão permanecido em silêncio.  
  [11] António Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português” I Parte Geral, Tomo I, 1999, pg  181, fls 182 onde, com referência a fls 180, indica os cinco institutos através dos quais se concretiza a boa fé objectva. 
      [12] António Menezes Cordeiro, ob. Cit, pg 185
[13]  Ainda que com as considerações feitas acima, seguimos portanto a mesma linha jurisprudencial traçada pelos acórdãos mencionados nas alegações da apelante, o da Relação do Porto de 07.12.2019 e o da Relação de Évora de 05.11.20, e que no essencial é também a do acórdão invocado na sentença, da Rl do Porto de 20.06.17, pois que apenas mencionou não ter sido sequer apresentada uma justificação para a falta de pedido da concordância prévia