Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/21.8GBCVL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: NOTIFICAÇÃO DAS PESSOAS COLECTIVAS
DEVER DE COOPERAÇÃO
Data do Acordão: 02/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECURSO PROVIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 219º, 223º E 417º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ARTIGO 521º, Nº 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – Nos termos do art. 223º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, a notificação das pessoas colectivas é feita na pessoa do seu legal representante, considerando-se ainda notificação pessoal a que for feita na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou no local onde funciona normalmente a administração.

II – Nas situações previstas nas alíneas a) e b), do nº 5, do art. 219º, a notificação das pessoas colectivas também pode ser feita por via electrónica.

III – O dever de cooperação tem expressa previsão no art. 417º do C.P.C. e no nº 2 do art. 521º do Código de Processo Penal, embora aqui de forma menos desenvolvida.

III – Só existe violação do dever de colaboração quando o visado tem conhecimento pleno do que a autoridade judiciária dele pretende.

Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

No processo nº 22/21.8GBCVL-A.C1 … no seguimento de promoção do Ministério Público, a Mma. Juíza a quo, por despacho de 8 de Julho de 2022, proferiu despacho que condenou a EDP Distribuição – Energia, SA, por falta de colaboração, no pagamento da multa de 2 UCs.

 *

Inconformada com a decisão, recorreu a E-REDES – Distribuição de Electricidade, SA [actual designação da EDP Distribuição – Energia, SA], formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

A. Foi a Recorrente condenada no pagamento de uma multa no valor de 2 UC’s por violação do dever de colaboração com o Tribunal (previsto no artigo 417.º do CPC) …

B. … os referidos ofícios não foram regularmente notificados à Recorrente, sendo – por esse motivo – indevida a conclusão que tribunal a quo retirou quanto à conduta desta e que fundamentou a condenação em multa ao abrigo do disposto no artigo 417.º do CPC.

C. Com efeito, a Recorrente tem a sua sede social na Rua Camilo Castelo Branco, n.º 43, 1050 – 044 Lisboa (conforme resulta, além do mais, da consulta pública ao Portal da Justiça).

D. E facto é que da leitura ao conteúdo dos ofícios em apreço – com pedido de informação cuja alegada ausência de resposta determinou a aplicação da multa – verifica-se terem sido enviados incorretamente.

E. Com efeito, (i) os ofícios datados de 02.03.2022 e 18.04.2022 não foram enviados para a sede da Recorrente – nem, tão pouco, aquele de que se recorre – (ii) e o ofício datado de 24.05.2022 não lhe foi dirigido.

H. Nesta esteira, ressalta-se o que preveem os artigos 219º n.º 2 do CPC; 223.º, n.º 1 e 223.º, n.º 3, sendo que, no caso em apreço, as notificações feitas à Recorrente não observaram os requisitos legalmente previstos, designadamente: i) não foi notificado o seu legal representante; ii) a notificação não foi remetida para a sede ou para o local onde funciona a administração.

K. … os ofícios deveriam ter sido endereçados para a sua sede social, sendo que só assim poderia a considerar-se regularmente notificada, o que não aconteceu.

L. De resto, entender o contrário poderia levar – no limite – à expedição de ofícios para uma loja ou para a morada de uma subestação, o que não é de todo compatível com os requisitos e finalidades da notificação.

O. Aqui chegados, ao contrário do que conclui o despacho recorrido, a Recorrente não incorreu em qualquer falha.

R. Destarte, não houve qualquer violação do dever de cooperação previsto no artigo 417.º do CPC, resultando infundada a multa em que foi condenada.

Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando … que, a recorrente foi regularmente notificada para prestar as informações pretendidas, o que só veio a fazer, por e-mail de 15 de Setembro de 2022, e após ter sido notificada do despacho recorrido, o que significa que, por inércia sua, entorpeceu o andamento do processo e a investigação criminal, e concluiu pela manutenção do despacho recorrido.

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sufragando a argumentação da resposta do Ministério Público e concluiu pelo não provimento do recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO

… as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A de saber se a recorrente foi ou não regularmente notificada pelo Ministério Público para prestar os esclarecimentos pretendidos;

- A de saber se a recorrente violou ou não o dever de colaboração.

*

Para a resolução destas questões, importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

«(…). Por despacho que antecede, veio o Ministério Público promover a condenação da EDP em multa, por falta de colaboração com o Tribunal nos termos previstos no artigo 521.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do art. 417º, nº 1 do Código de Processo Civil, ex vi art. 4º do Código de Processo Penal, “[t]odas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado …

Ademais, acrescenta o nº 2 do mesmo dispositivo legal que “[a]queles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis”.

Especificamente, estabelece o art. 521º, nº 2 do Código de Processo Penal que “[q]uando se trate de actos praticados por pessoa que não for sujeito processual penal e estejam em causa condutas que entorpeçam o andamento do processo ou impliquem a disposição substancial de tempo e meios, pode o juiz condenar o visado ao pagamento de uma taxa fixada entre 1 UC e 3 UC”.

Por despacho de 25.02.2022 determinou-se a notificação da EDP para vir aos autos prestar esclarecimentos acerca da sua deslocação ao local, o que lhe foi solicitado por ofícios de 02.03.2022, de 18.04.2022 e de 24.05.2022.

Até à data, volvidos 4 (quatro) meses, a EDP não se dignou responder.

Concorda-se, na íntegra, com o Ministério Público no sentido de que a inércia da EDP, ao longo de vários meses, entorpece o andamento do processo e a eficácia da investigação criminal, o que não se mostra admissível.

Em face do exposto, condena-se a EDP em multa de 2 UC´s, por falta de colaboração com o Tribunal, nos termos dos arts. 417º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi art. 4º do Código de Processo Penal, art. 521º, nº 2 do Código de Processo Penal e 27º, nº 1 do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique e D.N.

(…)».

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Com relevo para a decisão da questão proposta colhem-se ainda nos autos os seguintes elementos:

i) O ofício datado de 2 de Março de 2022 foi dirigido, pelo Ministério Público, à EDP Distribuição-Energia, SA, Direcção de Rede de Clientes Mondego, Rua do Brasil, 1, Coimbra 3030 – 175 Coimbra;

ii) O ofício datado de 18 de Abril de 2022 foi dirigido, pelo Ministério Público, à EDP Distribuição, Rua do Brasil, nº 1, 3030 – 175, Coimbra.

iii) O ofício datado de 27 de Maio de 2022 foi dirigido, pelo Ministério Público, à EDP – Electricidade de Portugal, Serviço Universal, SA, Rua Camilo Castelo Branco, nº 43, 1050 – 044, Lisboa.

iv) O ofício datado de 27 de Maio de 2022 foi acompanhado de cópias dos ofícios de 2 de Março e de 8 de Abril de 2022.

v) Nos ofícios referidos em i) a iii), era solicitado à destinatária que informasse se, em Setembro de 2020, trabalhadores seus se deslocaram à Rua Quinta do Freixo, Ferro, Covilhã, e em caso afirmativo, que tipo de intervenção foi efectuada no local e que factos dignos de registo foram assinalados.

vi) O despacho recorrido foi notificado à EDP Distribuição – Energia, SA, Direcção de Rede e Clientes Mondego, Rua do Brasil, 1, Coimbra, por via postal expedida em 11 de Julho de 2022.

vii) A resposta da recorrente aos ofícios em causa deu entrada nos serviços do Ministério Público em 15 de Setembro de 2022.

viii) A partir de 29 de Janeiro de 2021, na decorrência do determinado no Regulamento nº 632/2017, de 21 de Dezembro, da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, a EDP Distribuição – Energia, SA passou a designar-se E-REDES – Distribuição de Electricidade, SA. 

ix) A recorrente E-REDES – Distribuição de Electricidade, SA. tem sede na Rua Camilo Castelo Branco, nº 43, Lisboa.

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Da regular ou irregular notificação da recorrente, para prestar os esclarecimentos pretendidos pelo Ministério Público

1. Alega a recorrente – conclusões B a E, H, J e K – que tendo a sua sede social na Rua Camilo Castelo Branco, 43, Lisboa, os ofícios de 2 de Março e de 18 de Abril de 2022 não foram enviados para este endereço, como também o não foi a notificação do despacho recorrido pelo que, atento o disposto nos arts. 219º, nº 2 e 223º, nºs 1 e 3, tais notificações, ao não serem feitas na pessoa do seu legal representante e ao não terem sido remetidas para a sua sede, não observaram os requisitos legais, inobservância que não é da sua responsabilidade …

Vejamos.

Como é sabido, a notificação serve para chamar alguém a juízo – notificação para comparência –, ou para dar conhecimento de um facto a uma pessoa – notificação para mero conhecimento (cfr. nº 2 do art. 219º do C. Processo Civil).

Verificando-se as situações previstas nas alíneas a) e b), do nº 5 do art. 219º do C. Processo Civil, a notificação das pessoas colectivas é feita por via electrónica. Nos outros casos, a notificação da pessoa colectiva, sociedades incluídas, é feita na pessoa do seu legal representante (nº 1 do art. 223º do C. Processo Civil), considerando-se ainda pessoalmente feita, a notificação de pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou no local onde funciona normalmente a administração (nº 3 do mesmo artigo).

Dito isto.

a. A recorrente, E-REDES – Distribuição de Electricidade, SA., que antes tinha a denominação social EDP Distribuição – Energia, SA, tem a sua sede social na Rua Camilo Castelo Branco, nº 43, Lisboa, e é, ninguém questiona, uma sociedade anónima, portanto, uma pessoa colectiva.

Tendo as notificações dos ofícios de 2 de Março de 2022 e de 18 de Abril de 2022 sido enviadas para local [Rua do Brasil, nº 1, 3030 – 175, Coimbra] distinto do da sede da recorrente ou do local de funcionamento habitual da sua administração [Rua Camilo Castelo Branco, nº 43, Lisboa], é evidente que os serviços do Ministério Público não observaram as regras de notificação das pessoas colectivas, é evidente que a notificação da recorrente, enquanto interveniente acidental [chamemos-lhe assim, na falta de melhor designação], para informar nos autos o que lhe foi solicitado pela Magistrada titular do inquérito, não observou, quanto a tais ofícios, o disposto no art. 223º, nºs 1 e 3 do C. Processo Civil, aplicável ao processo penal, ex vi, art. 4º do respectivo código [só seria razoável admitir que assim não fosse se, porventura, anteriormente às questionadas notificações, outras tivessem já sido feitas nos autos, dirigidas para a Direcção de Rede e Clientes Mondego, Rua do Brasil, 1, Coimbra, e a recorrente, através desta direcção, circunstância esta de que não há notícia].

b. Diferentemente se passaram as coisas, quanto à notificação do ofício de 27 de Maio de 2022, uma vez que foi dirigida para a Rua Camilo Castelo Branco, nº 43, 1050 – 044, Lisboa, portanto, para a sede da recorrente, mas dirigida à EDP – Electricidade de Portugal, Serviço Universal, SA [que terá, actualmente, a denominação social SU Electricidade, SA].

Esta sociedade anónima – que tem por objecto a comercialização de energia eléctrica – partilha com a recorrente a localização das respectivas sedes sociais, situação que, aliada ao desconhecimento, por parte dos serviços do Ministério Público, da fragmentação das actividades desenvolvidas pela extinta EDP, e pelo nascimento de distintas pessoas colectivas, tendo umas por objecto, a distribuição de energia eléctrica e outras, a comercialização de energia eléctrica, deu causa aos equívocos ocorridos com as notificações dos autos.

Ressalta do que fica dito que os serviços do Ministério Público, tendo-se apercebido da incorrecta direcção postal, relativamente à sede da recorrente, que haviam aposto na notificação dos ofícios de 2 de Março de 2022 e de 18 de Abril de 2022, rectificaram o lapso na notificação do ofício de 27 de Maio de 2022, mas incorreram num outro, de maior amplitude, ao dela fazerem constar como destinatária uma outra pessoa colectiva, que não, a recorrente.

Em suma, formalmente, a recorrente não foi, sequer, destinatária da notificação do ofício de 27 de Maio de 2022.

c. Ainda que a questão não venha colocada no recurso [embora no corpo da motivação tenha sido incidentalmente referida], o despacho recorrido [condenando a EDP, sem mais], foi notificado à EDP Distribuição – Energia, SA, Direcção de Redes e Clientes Mondego, Rua do Brasil, 1, Coimbra, por via postal, em 11 de Julho de 2022.

Também aqui, portanto, não foram observadas as regras da notificação, uma vez que a notificação não foi enviada para a sede da pessoa colectiva visada.

Porém, não obstante a irregularidade verificada, a recorrente assumiu a recepção da notificação, como é evidenciado pela interposição do presente recurso, e pela resposta dada à pretendida informação, aos serviços do Ministério Público, em 15 de Setembro de 2022.

d. Em síntese conclusiva do que fica dito, temos que:

- As notificações que tiveram por objecto os ofícios datados de 2 de Março e de 18 de Abril de 2022, desrespeitaram o disposto no art. 223º, nºs 1 e 3 do C. Processo Civil, designadamente, por não terem sido enviadas para a sede social da pessoa colectiva a notificar, a recorrente;

- A notificação que teve por objecto o ofício datado de 27 de Maio de 2022, embora enviado para a sede social da recorrente, tinha por destinatária uma outra pessoa colectiva, embora, com sede no mesmo local.

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Da violação ou não do dever de colaboração pela recorrente

2. Alega a recorrente – conclusões O, P, e R – que não incorreu em qualquer falta, não podendo ser penalizada por repetidos erros alheios, e não havendo da sua parte qualquer violação do dever de cooperação.

Vejamos.

O dever de cooperação tem expressa previsão no art. 417º do C. Processo Civil que, sob a epígrafe «Dever de cooperação para a descoberta da verdade» dispõe …

O C. de Processo Penal, por seu turno, se bem que de forma menos desenvolvida, não deixa de prever este dever ao estabelecer no nº 2 do seu art. 521º que, quando se trate de actos praticados por pessoa que não for sujeito processual penal e estejam em causa condutas que entorpeçam o andamento do processo ou impliquem a disposição substancial de tempo e meios, pode o juiz condenar o visado ao pagamento de uma taxa fixada entre 1 UC e 3 UC.

Não se suscitam, pois, dúvidas quanto a poder a violação do dever de colaboração fazer incorrer o infractor no pagamento de uma multa ou taxa sancionatória.

Cremos, porém, que só pode existir violação do dever de colaboração quando o visado tem conhecimento pleno do que a autoridade judiciária dele pretende.

Ora, in casu, e pelas razões que de deixaram expostos em 1., não é possível saber, independentemente das irregularidades de notificação ocorridas, quando teve a recorrente efectivo conhecimento da informação pretendida pela Digna Magistrada do Ministério Público titular do inquérito.

Com efeito, o que, com a necessária certeza, se sabe, é que após ter tido conhecimento do despacho recorrido a recorrente veio a ter conhecimento do teor dos ofícios em causa.

Como vimos, o despacho recorrido foi notificado, por via postal – que, contudo, não foi feita para a sede da recorrente – em 11 de Julho de 2022 e em 15 de Setembro de 2022 a recorrente fez chegar aos serviços do Ministério Público a informação pretendida.

Assim, considerando que entre as duas datas decorreram cerca de sessenta dias, considerando que neste período decorreram as férias judicias de Verão, considerando ainda que a informação pretendida se reportava a uma eventual deslocação de trabalhadores da recorrente a uma aldeia do concelho da Covilhã e nos factos dignos de registo (sic) que aí, terão observado e reportado, não vemos que, ponderando este circunstancialismo, a recorrente tenha entorpecido o normal andamento do processo e, consequentemente, tenha violado o dever de colaboração a que estava sujeita.

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido.

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Recurso sem tributação, atenta a sua procedência.

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Coimbra, 8 de Fevereiro de 2023

Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator –, Maria José Guerra – 1ª adjunta – e Helena Bolieiro – 2ª adjunta.