Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
783/11.2TBCNT-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
INDEFERIMENTO
RECURSO
INADMISSIBILIDADE DE APELAÇÃO AUTÓNOMA
Data do Acordão: 03/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – SOURE – JUÍZO DE EXECUÇÃO – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 195.º, 281º, Nº5, 644.º, N.º 2 E 853.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: O recurso de um despacho que indeferiu, no âmbito de uma ação executiva, um pedido de deserção da instância não é passível de apelação autónoma.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

Na execução que lhes é movida pelo Banco 1..., S.A., vieram os executados AA e BB requerer que fosse declarada deserta a instância e, subsidiariamente, que fosse verificada a exceção de abuso de direito, por incumprimento do regime que regula o Processo Extrajudicial de Regularização das Situações de Incumprimento (PERSI), nos termos que constam da peça processual apresentada a 14/3/2024 cujo teor se considera integralmente reproduzido.


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Após audição do exequente [1], foi proferido despacho, em 16/4/2024, que julgou improcedente o requerimento apresentado pelos executados.

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Não se conformando com a decisão supra referida, os executados interpuseram recurso da mesma, nos moldes que resultam da peça processual apresentada em 23/5/2024.

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O exequente contra-alegou, concluindo no sentido da improcedência do recurso interposto.

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Admitido o recurso em 1ª instância [2], foi o mesmo remetido a esta Relação, em 29/10/2024, acompanhado das peças processuais indicadas pelos executados/apelantes.

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Em 10/12/2024, após ser ordenado o cumprimento do disposto no art. 655º do C.P.C. [3],  foi exarada decisão que não conheceu do objecto do recurso, nos seguintes termos:

Os Executados, interpuseram recurso da decisão proferida em 16.4.2024 na parte em que indeferiu a sua pretensão de extinção da instância por deserção, formulando as seguintes conclusões:

I - Na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - 5611/13.1T2SNT-A.L1-2 de 10-11-2022, “como decorre do disposto no n.º 1, do art.º 263.º, do C. P. Civil, aplicável ao processo executivo ex vi do n.º 1, do art.º 551.º, do C. P. Civil, com as necessárias adaptações, “…o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo”, mas, a nosso ver, nem este preceito legal, nem o principio da estabilidade da instância, nem a dicotomia processual entre o pressuposto processual legitimidade e a titularidade do crédito exequendo permitem a extensão interpretativa deste preceito processual no sentido de que a habilitação é facultativa no caso de cessão do crédito exequendo e no sentido de que o exequente inicial, cedente desse crédito, se pode manter indefinidamente como parte na ação executiva.”

II - Não se vislumbra, pois, no texto legal fundamento literal nem valor digno de proteção legal para uma interpretação do disposto no art.º 263.º, do C. P. Civil que, ignorando a totalidade do ordenamento jurídico aplicável, em especial as normas relativas ao ónus de impulso processual e consequências do seu incumprimento, consagradas nos art.ºs 3.º, 6.º, n.º 5, do art.º 281.º e al. c), do art.º 277.º, do C. P. Civil, permita uma conformação da instância executiva “contra o direito”, em que o titular do direito em realização coativa é um e o exequente desse mesmo direito é outro, conduzindo in extremis a que o cedente do direito, apesar de dele ter perdido a sua titularidade, e não o cessionário, apesar de a ter adquirido, viesse a obter pagamento na execução.

III - Nessa medida, como se conclui no sumário do acórdão citado, a aplicação do disposto no art.º 263.º, do C. P. Civil, à ação executiva, com as necessárias adaptações, como determina o n.º 1, do art.º 551.º, do C. P. Civil, tendo em atenção os princípios gerais de interpretação, consagrados no art.º 9.º, do C. P. Civil, de que destacamos o elemento literal da interpretação, a unidade do sistema jurídico e os valores legais a acautelar, conduzem-nos pois, à conclusão de que em caso de cessão do crédito exequendo depois de instaurada a execução, o cedente continua a ter legitimidade para os termos da execução, sem prejuízo do dever de requerimento da habilitação do cessionário, no prazo que a contrario decorre do disposto no n.º 5, do art.º 281.º, do C. P. Civil, mas sempre antes do pagamento do crédito exequendo, a ser feito ao cessionário.

IV - Pelo que de acordo com os fundamentos supra expostos, decorridos mais de 7 anos e 10 meses sobre a outorga do contrato de cessão, sem que tenha sido promovido o incidente de habilitação de cessionário, seja pela Requerente, seja pela Exequente originária, deve ser declarada a deserção da instância ao abrigo do disposto do artigo 281 n.º 5 do C.P.C.

Isto porque, não pode o tribunal eternizar uma eventual legitimidade processual – “ad processum” que não tem suporte material na legitimidade substantiva, ou dita, “ad actum”, que consiste no complexo que representa os pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que invoque ou que lhe seja atribuído.

V - O direito de crédito transmite-se imediatamente com o negócio de alienação passando o cessionário a ser o titular do direito e, nessa medida, não pode a cedente manter-se ou invocar a titularidade de um direito que não tem e que já não se encontra na sua esfera patrimonial.

VI - Aliás, uma situação dessas seria e é notoriamente contrária ao direito e aos princípios da boa fé. Até porque, se ocorreram ou ocorrerem transmissões sucessivas, sem que nenhum incidente seja instaurado nos autos, perderiam os Executados o rasto do seu credor real, ficando-lhe vedado, a possibilidade de impugnar, perante o adquirente do crédito, a sua existência e todas as excepções a que teria podido recorrer face ao cedente.

O que em nosso entender configuraria e configura uma circunstância de abuso de direito, nos termos do artigo 334º do C.C, ou seja, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, que é o caso, o que expressamente se invoca.

VII - A aplicabilidade do artigo 263º n.º 1 ao processo executivo, de forma a legitimar a Exequente primitiva como parte processual, é uma questão totalmente diferente, da de saber se essa a aplicação permite a sua eternização no processo, quando o direito/crédito cedido já não se encontra na sua esfera patrimonial, e se o dever de requerimento da habilitação do cessionário está ou não sujeita a prazo.

Sendo que foi esta última questão colocada no requerimento apresentado, defendendo os aqui Recorrentes, conforme acórdão supracitado, de o prazo máximo para o efeito é de 6 meses, que a contrário decorre do disposto no n.º 5, do art.º 281.º, do C. P. Civil.

VIII - Por outro lado, e no que ao despacho cominatório prévio diz respeito, parece-nos que a norma do artigo 281º n.º 5 é clara quando consagra que no processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses

IX - In casu, é notório que a negligência quer da Cedente (Exequente Primitiva), quer da Cessionária é grosseira e notória, não podendo ser imputável aos Recorrentes, como parece pretender o tribunal a quo, que também estaria na sua disponibilidade de requerer o referido incidente.

Com efeito, desconhecendo os Executados a existência do contrato de cessão de créditos, de cujo conhecimento só tiveram agora no âmbito do incidente insaturado pela cessionária e no decurso da respectiva notificação para contestar, quase 8 anos depois da cessão, nenhuma responsabilidade lhes pode ser assacada. Pois ninguém pode agir sobre o que desconhece.

X - Já à Cedente e Cessionária, é lhe imputável uma negligência processual grosseira, pois nunca podem alegar desconhecer a existência do contrato de cessão do qual são partes, e o dever que sobre as mesmas impende de dar conhecimento ao processo do referido facto. O comportamento de Cedente e Cessionária viola o dever de boa fé processual consagrado no artigo 8ºdo C.P.C, não podendo ter o beneplácito do tribunal.

XI - Por fim dir-se-á, que o tribunal a quo, faz uma interpretação simplista e restritiva do incidente de deserção suscitado pelos Recorrentes, já que como supra se argumentou, “a aplicação do disposto no art.º 263.º, do C. P. Civil, à ação executiva, com as necessárias adaptações, como determina o n.º 1, do art.º 551.º, do C. P. Civil, tendo em atenção os princípios gerais de interpretação, consagrados no art.º 9.º, do C. P. Civil, de que destacamos o elemento literal da interpretação, a unidade do sistema jurídico e os valores legais a acautelar, conduzem-nos pois, à conclusão de que em caso de cessão do crédito exequendo depois de instaurada a execução, o cedente continua a ter legitimidade para os termos da execução, sem prejuízo do dever de requerimento da habilitação do cessionário, no prazo que a contrario decorrendo disposto no n.º 5, do art.º 281.º, do C. P. Civil, mas sempre antes do pagamento do crédito exequendo, a ser feito ao cessionário.”, de acordo

Portanto, em vez de uma interpretação “strictu sensu”, não contextualizada na hermenêutica interpretativa de acordo com os artigos 9º do C.C e 551º do C.P.C que pugnam pela unidade do sistema jurídico, o tribunal a quo, fez tábua rasa de tais princípios de forma a reintegrar a actuação processual da Exequente originária e Cessionária de acordo com a boa fé processual e conduta que não é admissível.

O que não merece cobertura legal.

XII - Há por isso erro na Interpretação e Aplicação do Direito.

XIII - Na sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Senhor Juiz a quo violou os 263º, 281ºn.º 5, 551º e 9º do C.C, entre outros.

A Exequente apresentou resposta, defendendo a confirmação da decisão    *

Foi proferido despacho nos termos consentidos pelos art.º 655º do C. P. Civil, antevendo a possibilidade de não se conhecer do recurso por irrecorribilidade autónoma.

Os Recorrentes pronunciaram-se, nos seguintes termos:

1 - Dispõe o artigo 852ºdo C.P.C que, aos recursos de apelação e de revista de decisões proferidas no processo executivo são aplicáveis as disposições reguladoras do processo de declaração e o disposto nos artigos seguintes.

O Artigo 629º n.º1 consagra que

1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.

Por outro, dispõe o artigo 644º n.º 1 que 1 - Cabe recurso de apelação:

a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;

b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.

2 - Diz ainda o artigo 853º do C.P.C que,

1 - É aplicável o regime estabelecido para os recursos no processo de declaração aos recursos de apelação interpostos de decisões proferidas em procedimentos ou incidentes de natureza declaratória, inseridos na tramitação da ação executiva.

2 - Cabe ainda recurso de apelação, nos termos gerais:

a) Das decisões previstas no n.º 2 do artigo 644.º, quando aplicável à ação executiva;

b) Da decisão que determine a suspensão, a extinção ou a anulação da execução;

c) Da decisão que se pronuncie sobre a anulação da venda;

d) Da decisão que se pronuncie sobre o exercício do direito de preferência ou de remição.

3 - Cabe sempre recurso do despacho de indeferimento liminar, ainda que parcial, do requerimento executivo, bem como do despacho de rejeição do requerimento executivo proferido ao abrigo do disposto do artigo 734.º.

4 - Sobem imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo, os recursos interpostos nos termos dos nos 2 e 3 de decisões que não ponham termo à execução nem suspendam a instância.

3 - Da conjugação dos artigos acima indicados parece-nos não existirem dúvidas de que a decisão em crise é suscetível de recurso.

4 - Efetivamente, ao vieram os Recorrentes ao abrigo do artigo 723º n.º 1 d) do C.P.C, suscitar em termos incidentais a deserção da instância, dando-se integralmente por reproduzida infra, a argumentação expedida no referido incidente, e de cuja decisão versa o presente recurso.

5 - Não havendo questões de relativamente à sucumbência, e portanto, valor da causa, apenas resta equacionar da recorribilidade da decisão, nos restantes termos.

6 - Pretendem os Recorrentes, e, saliente-se, numa fase em que já não existem embargos ou determinados incidentes autónomos, a extinção da instância executiva. Portanto, que seja proferida decisão final sobre a instância e mérito da mesma, com as devidas adaptações.

7 - Nessa medida, e da conjugação dos artigos acima expostos, alguns com interpretação a contrário, a decisão é claramente recorrível porque pretende por termo ao processo. E, tratando-se de uma “decisão final”, ainda que em moldes diferentes, a mesma, desde que respeitados os termos gerais da recorribilidade das decisões, é recorrível. E, cremos, que também foi este o entendimento sufragado pelo tribunal a quo, no seu despacho de admissão (ainda que não vinculativo).


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Apreciando:

O despacho de admissão do recurso, fundamentou a sua admissibilidade no art.º 644º, n.º 1 do C. P. Civil.

A decisão que indefere o pedido de extinção da instância por deserção não põe termo à causa ou a procedimento cautelar ou a incidente processado autonomamente, nem se inclui nas referidas em qualquer outra das alíneas do n.º 2, do art.º 644º, do C. P. Civil, pelo que não é suscetível de recurso autónomo, sendo só impugnável no recurso que vier a ser interposto da decisão final nos termos do n.º 3 daquele preceito.

O facto de o recurso ter sido admitido por despacho judicial não é impeditivo deste tribunal o rejeitar por irrecorribilidade, uma vez que aquele despacho não constitui caso julgado formal.

Dispõe o art.641º, n.º 5, C. P. Civil:

A decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior nem pode ser impugnada pelas partes, salvo na situação prevista no n.º 3 do art.º 306º.

Esta norma, não constituindo caso julgado formal, não vincula o tribunal superior, permite que seja proferida outra decisão rejeitando o recurso.


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Pelos motivos expostos, não se conhece do objeto do recurso interposto pelos Executados

*

Custas pelos Executados.“.

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Os apelantes, não se conformando com o teor do despacho que não conheceu do objecto do recurso, reclamaram para a conferência, nos termos previstos no art. 652º, nº3, do C.P.C..

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O exequente não apresentou resposta à reclamação.

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Questão objecto da reclamação: admissibilidade do recurso autónomo interposto pelos apelantes.

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II – FUNDAMENTOS.

2.1. Factualidade a considerar.

Com interesse para o conhecimento da reclamação apresentada, importa levar em linha de conta a tramitação processual descrita no relatório antecedente.


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2.2. Enquadramento jurídico.

Em sede de acção executiva, o quadro normativo que se ocupa dos recursos resulta, em termos genéricos, do art. 853º do C.P.C., norma que apresenta a seguinte redacção:

1 - É aplicável o regime estabelecido para os recursos no processo de declaração aos recursos de apelação interpostos de decisões proferidas em procedimentos ou incidentes de natureza declaratória, inseridos na tramitação da ação executiva.

2 - Cabe ainda recurso de apelação, nos termos gerais:

a) Das decisões previstas no n.º 2 do artigo 644.º, quando aplicável à ação executiva;

b) Da decisão que determine a suspensão, a extinção ou a anulação da execução;

c) Da decisão que se pronuncie sobre a anulação da venda;

d) Da decisão que se pronuncie sobre o exercício do direito de preferência ou de remição.

3 - Cabe sempre recurso do despacho de indeferimento liminar, ainda que parcial, do requerimento executivo, bem como do despacho de rejeição do requerimento executivo proferido ao abrigo do disposto do artigo 734.º.  

4 - Sobem imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo, os recursos interpostos nos termos dos n.os 2 e 3 de decisões que não ponham termo à execução nem suspendam a instância.”.

No caso vertente, é manifesto que o recurso interposto pelos executados não se enquadra no nº1 do art. 853º do C.P.C., uma vez que não estamos perante uma decisão proferida num incidente ou procedimento de natureza declaratória inserido na tramitação da acção executiva [4].

Paralelamente, o despacho recorrido também não cabe na previsão das alíneas b), c) e d) do nº2 do mesmo art. 853º, designadamente porque não constitui uma decisão que põe termo ao processo.    

Enquadrar-se-á a decisão em causa no art. 644º, nº2, do C.P.C. ?

Vejamos.

O art. 644º, nº2, do C.P.C., que poderá ser aplicado à acção executiva, com as necessárias adaptações, dispõe o seguinte:

Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:

a) Da decisão que aprecie o impedimento do juiz;

b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal;

c) Da decisão que decrete a suspensão da instância;

d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;

e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual;

f) Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;

g) De decisão proferida depois da decisão final;

h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;

i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.”.

Estando em causa, na situação em análise, um despacho que indefere um pedido, formulado pelos executados, de deserção da instância, facilmente se conclui que não estamos perante um dos casos previstos nas alíneas a) a g) do nº2 do art. 644º, o mesmo podendo dizer-se relativamente à alínea i), tendo em consideração que não existe uma norma específica que se ocupe da recorribilidade de decisões com as características da que foi impugnada.

Resta ponderar a possibilidade de aplicação da alínea h) – decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil – uma vez que o despacho recorrido, como vimos, não integra as restantes categorias a que o legislador faz referência.

Conforme salienta António Santos Abrantes Geraldes (“Recursos em Processo Civil”, 7ª edição, 2022, pág. 257), “(…) não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso da decisão interlocutória não passará de uma “vitória de Pirro”, sem qualquer reflexo no resultado da acção ou na esfera jurídica do interessado[5].

Sufragando essa linha de entendimento, refere-se no Acórdão do STJ de 7/12/2023 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4adeedfd7af3c2c180258a7e0060802e?OpenDocument) que “A inutilidade, significativamente adjetivada de absoluta, enquanto requisito da dedução autónoma do recurso de apelação, ocorre quando um desfecho favorável da impugnação de um determinado despacho, quando obtido apenas com o resultado do recurso da decisão final, já não consegue reverter o resultado do despacho recorrido, não se revelando eficaz a inutilização dos atos entretanto praticados.” [6].

Ainda no mesmo sentido, esclarece-se no Acórdão da     Relação de Guimarães de 19/9/2024 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/244c1f9726024c1580258bab00369e44?OpenDocument)   que “Para efeitos da al. h) do n.º 2 do art. 644º, considera-se que a impugnação deferida da decisão é “absolutamente inútil” quando, por via da sua prolação, entre o momento em que é proferida e em que venha a ser revogada (em sede de provimento do recurso deferido) se possa antecipar que se irão produzir efeitos irreversíveis em termos processuais ou na esfera jurídica do recorrente opostos aos que se querem alcançar com a prolação da decisão que julgue o recurso deferido procedente, por não ser possível, em termos fácticos, materiais ou ontológicos, proceder à eliminação, total ou parcial, desses efeitos.”.

Ora, revertendo para o caso em análise, afigura-se, salvo melhor opinião, que o recurso da decisão a que se fez referência poderá ser interposto numa fase posterior com utilidade para os apelantes, dado o regime da deserção da instância que se encontra previsto no C.P.C. que se encontra actualmente em vigor.

Com efeito, a deserção da instância, no âmbito da acção executiva, não depende de decisão judicial (art. 281º, nº5, do C.P.C. [7]), sendo que se for suscitada a intervenção do Tribunal para apreciar se ocorre um motivo de deserção da instância – como foi o caso – o mesmo limitar-se-á a constatar se estão verificados os respectivos pressupostos, determinando a extinção do respectivo processo com uma determinada baliza temporal.

Tendo sido praticados actos num processo cuja instância se encontra deserta, poderá ser arguida a nulidade dos mesmos, em conformidade com o regime previsto no art. 195º, nº1, do C.P.C. [8].

Atento o exposto, concordando-se com o entendimento que foi expresso no despacho reclamado, deverá decidir-se no sentido da improcedência da reclamação, com os efeitos daí resultantes.


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III – DECISÃO.

Nestes termos, decide-se julgar a reclamação improcedente e, em consequência, manter a decisão reclamada.

Custas pelos reclamantes, sem prejuízo das decisões proferidas em matéria de apoio judiciário.

Coimbra, 11 de Março de 2025


(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo

(relator)

Cristina Neves

(1ª adjunta)

Hugo Meireles

(2º adjunto)



[1] Cf. requerimento de 19/3/2024.
[2] Cf. despacho de 3/10/2024.
[3] Cf. despacho proferido pela Exmª Desembargadora relatora em 17/11/2024.
[4] Como é o caso dos embargos de executado.
[5] No mesmo sentido, cf. Rui Pinto, “Oportunidade processual de interposição de apelação à luz do art. 644º CPC”, artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, número 2, pág. 642 (disponível em https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2021/10/Rui-Pinto.pdf).
[6] Estava em análise uma decisão de indeferimento de um pedido de suspensão da instância, com fundamento na pendência de causa prejudicial, tendo o Supremo Tribunal de Justiça considerado que o recurso que incidiu sobre essa matéria não podia ser interposto autonomamente.
[7] Conforme é referido no Acórdão desta Relação (Coimbra) de 22/6/2021 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/751f6fa7d1ecd0b0802587070035c8e5?OpenDocument), “A deserção da instância nas ações executivas – n.º 5 do artigo 281.º do CPC – ocorre independentemente de qualquer decisão judicial, o que significa que a decisão que a declare tem natureza declarativa, isto é, diz apenas que ocorreu deserção; nas restantes ações – n.º 1 do artigo 281.º do CPC – a decisão que declara a deserção tem natureza constitutiva, ou seja, para que exista deserção é necessário que seja proferida sentença a decretá-la.”.
[8] A redacção integral do art. 195º do C.P.C. é a seguinte: “1 - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
2 - Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
3 - Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo”.