Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1215/14.0TBPBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
NEGLIGÊNCIA
PARTES
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – POMBAL – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTº 281º, Nº 1, DO NCPC.
Sumário: I – Como claramente emerge da norma do artº 281º nCPC, a deserção da instância nela cominada só pode ser declarada judicialmente no caso de poder considerar-se negligente a falta de satisfação do ónus de impulso processual por parte daqueles sobre quem tal ónus impende.

II - Tal negligência não pode presumir-se do simples facto de ter decorrido o aludido prazo de seis meses sem que alguma diligência tenha sido promovida por parte daquele que tem aquele ónus.

III - O tribunal deve diligenciar, antes de declarar a deserção da instância, pelo apuramento do circunstancialismo factual que permita sustentar a afirmação do comportamento negligente que procura sancionar-se com a cominada deserção.

IV - Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.

V - A violação do contraditório gera nulidade processual se aquela for susceptível de influir decisivamente na decisão da causa.

Decisão Texto Integral:







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

Os autores propuseram contra os réus a presente acção de divisão de coisa comum no âmbito da qual foi admitida a intervenção dos supra identificados intervenientes principais.

A referida acção prosseguiu a sua tramitação até que no dia 30/4/2015 foi proferido o seguinte despacho (fls. 621):

 “Considerando o teor do assento de óbito junto a fls. 618, comprovativo do óbito da interessada Maria ..., por força do preceituado nos artigos 269.º, n.º 1, alínea a), e 270.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho), declaro suspensa a presente instância.

Notifique.”.

No dia 8/4/2016, o Exmo. Sr. Dr. ... apresentou nos autos o seguinte requerimento (fls. 627):

“..., advogado com escritório na cidade de ..., mandatário forense do reu ..., vem juntar aos autos certidão de óbito deste, ocorrido no passado dia 02 de Março do corrente ano.”.

No dia 12/4/2016, sem que após o despacho de 30/4/2015 supra transcrito tenha sido proferida qualquer outra decisão, foi proferido o despacho seguidamente transcrito (fls. 630):

Os presentes autos encontram-se parados há mais de seis meses por inércia dos interessados em promover os seus termos.

Assim sendo, por força do art.º 281.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável aos autos de acordo com o art.º 5.º, n.º 1 deste diploma legal), declaro deserta a instância.

Notifique e arquive oportunamente.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou a autora, tendo rematado as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

1- A recorrende discorda do despacho que pôs termo á instância com fundamento no disposto no artigo 281º, nº1 do C. Proc. Civil.

2- A acção de Divisão de Coisa Comum não está há mais de seis meses a aguardar o impulso das partes.

3- A recorrente foi notificada no dia 30-04-2015 referência ... do despacho que decidiu suspender o processo em virtude de falecimento da demandada Maria ...

4- Porém, a mesma Maria ... e marido haviam doado a sua filha I..., por escritura lavrada no dia 15 de março de 2010 a quota que lhes pertencia num dos prédios objecto da Acção de Divisão de Coisa Comum.

5- Em consequência da doação, a recorrente no 08-10-2015, requereu o incidente de Habilitação de Adquirente, para que a Acção de Divisão de Coisa Comum prosseguisse com os habilitandos.

6- O requerido P... foi citado no dia 20-12-2015, no estrangeiro, para que no incidente de habilitação de adquirente, viesse exercer o contraditório.

7- No incidente de habilitação de adquirente ainda não foi proferida sentença.

8- Com o devido respeito, o prosseguimento da Acção de Divisão de Coisa Comum está dependente da sentença a proferir no incidente de habilitação de adquirente, autuado por apenso, que julgue a adquirente habilitada.

9- Vindo a donatária /adquirente a ser julgada habilitada, substitui os seus doadores, que na Acção de Divisão de Coisa Comum eram Réus.

10- Tendo a habilitada direito á defesa, deve ser citada para, na a acção principal poder contraditar.

11- Com o devido respeito, não existe negligência das partes.

12- Os autos de Acção de Divisão de Coisa Comum não estão há mais de seis meses a aguardar que as partes o impulsionem.

13- Sendo a donatária I... adquirente de uma quota num dos prédios objecto dos Autos de Divisão de Coisa Comum, após sentença que a julgue habilitada no referido incidente, deve a mesma ser citada para exercer o contraditório.

14- Como dispõe o nº 3 do artigo 3º do C. Proc. Civil “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório.......sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciar”.

15- Com o devido respeito, o Tribunal deveria ter conhecido do incidente, antes de proferir o despacho que julgou deserta a instância, por falta de impulso das partes.

16- O despacho não fez interpretação correcta do disposto no artigo 281º do C. Proc. C.

17- O despacho violou o disposto no artigo 3º, nº 3 do C.Proc.C, e na alínea d) do artigo 615º do C. Proc. C.”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 - NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) saber se pode subsistir a decisão que declarou deserta a instância, sem que à recorrente e após o despacho de 30/4/2015 que julgou suspensa a instância tenha sido facultada a possibilidade de sobre tal questão se pronunciar previamente;

2ª) saber se a instância podia ter sido declarada deserta com o fundamento previsto no art. 281º/1 NCPC.

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

Os factos provados e com relevo para a presente decisão são os que resultam do antecedente relatório e, ainda, que (Cfr. Apenso G):

...

B) De direito

Primeira questão: saber se pode subsistir a decisão que declarou deserta a instância, sem que à recorrente e após o despacho de 30/4/2015 que julgou suspensa a instância tenha sido facultada a possibilidade de sobre tal questão se pronunciar previamente.

Prescreve o art. 281º/1 do NCPC que “Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”.

Como claramente emerge da norma acabada de transcrever, a deserção da instância nela cominada só pode ser declarada judicialmente no caso de poder considerar-se negligente a falta de satisfação do ónus de impulso processual por parte daqueles sobre quem tal ónus impende[1].

Por outro lado, tal negligência não pode presumir-se do simples facto de ter decorrido o aludido prazo de seis meses sem que alguma diligência tenha sido promovida por parte daquele que tem aquele ónus.

Tudo a significar que o tribunal deve diligenciar, antes de declarar a deserção da instância, pelo apuramento do circunstancialismo factual que permita sustentar a afirmação do comportamento negligente que procura sancionar-se com a cominada deserção.

Ora, no caso dos autos, entre o despacho que decretou a suspensão da instância e o que decretou a deserção da mesma o tribunal recorrido não desenvolveu a mínima diligência no sentido do necessário apuramento do referido circunstancialismo factual.

Assim, fica sem qualquer suporte factual a decisão de sancionar a apelante com a deserção da instância que pressupunha uma omissão negligente que não pode seguramente imputar-se-lhe.

Logo por aqui se verifica que a decisão recorrida não poderia subsistir.

Acresce que nos termos do art. 3º/3 do NCPC, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”.

Concretiza-se através desta norma e no âmbito do processo civil o princípio constitucional da proibição da indefesa, associada à regra do contraditório[2], a significar que o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[3].

Através da concretização acabada de referir-se procura-se salvaguardar as partes processuais contra as decisões-surpresa e conferir-lhes efectiva possibilidade de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo[4].

A inobservância de tal princípio gera, por regra, uma nulidade secundária sujeita ao regime do art. 195º NCPC.

Ressalvados ficam os casos em que se revele manifestamente desnecessário conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer e a decidir pelo juiz.

A lei não esclarece quais sejam os casos de “manifesta desnecessidade”, sustentando Abrantes Geraldes que são limitadas as situações enquadráveis nesse conceito genérico, entre as quais as seguintes: a) indeferimento de qualquer nulidade invocada por uma das partes; b) em matéria de procedimentos cautelares, quando é necessário prevenir a violação do direito ou garantir o resultado útil da demanda (Temas da reforma do processo civil, 2006, p. 82).
Por sua vez, José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto sustentam que o contraditório prévio pode ser dispensado em procedimentos cautelares, na execução (em que a penhora é, em certos casos, realizada sem audiência prévia do executado), não devendo ter lugar o convite para discutir uma questão de direito, “…quando as partes, embora não a tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica não contrariada que manifestamente não consentia outra qualificação.” (José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 1999, p. 10.).

Na situação em apreço, até ao momento da prolação da decisão recorrida nenhuma das partes no processo, nem o tribunal, tinham suscitado, sequer implicitamente, a questão da negligência da autora pela situação de inactividade em que os presentes autos se encontraram entre as decisões que decretaram a suspensão e a deserção da instância.

Por outro lado, o tribunal a quo declarou a referida deserção sem que à apelante tenha sido conferida a mínima possibilidade de se pronunciar sobre a questão, seja em termos de facto, seja em termos de direito.

Acresce dizer que a questão em causa não era seguramente daquelas que tornava manifestamente desnecessária a concessão à apelante de possibilidade efectiva de sobre ela se pronunciar, seja porque fosse evidente, indiscutível e incontroversa a decisão a tomar, seja porque fossem processual e substantivamente inócuos os efeitos decorrentes para as partes de uma tal decisão, seja porque já resultasse da posição das partes assumidas no decorrer do processo o seu entendimento relativo ao sentido da decisão a tomar[5].

De resto, o próprio tribunal a quo nada invocou na decisão recorrida em termos de poder ter-se por preenchida a excepção que está em apreço relativa à manifesta desnecessidade de ser cumprido o contraditório.

Assim sendo, ao conhecer da questão da deserção da instância sem conferir às partes a possibilidade prévia de sobre ela se pronunciarem, o tribunal a quo violou o disposto no art. 3º/3 do NCPC, cometendo uma irregularidade susceptível de influir decisivamente na decisão da causa e, por isso, uma nulidade secundária (art. 195º/1 NCPC) que deve determinar a anulação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que respeite aquele art. 3º/3 do NCPC.

Face ao decidido quanto à primeira questão, fica prejudicado o conhecimento da segunda.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação procedente, anulando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que respeite o art. 3º/3 do NCPC previamente à decisão da questão da deserção da instância.

Sem custas.

Coimbra, 20/9/2016.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)


Sumário:

I) A deserção da instância cominada no art. 281º/1 do NCPC só deve ser declarada se os autos permitirem dar por demonstrado um circunstancialismo fáctico evidenciador de um incumprimento negligente do dever de impulso processual.

II) Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.

III) A violação do contraditório gera nulidade processual se aquela for susceptível de influir decisivamente na decisão da causa.


***



[1] Sobre esta temática, podem consultar-se, apenas a título exemplificativo, os acórdãos da Relação de Coimbra de 14/6/2016, proferido na apelação 4386/14.1T8CBR.C1, de 18/5/2016, proferido na apelação 127/12.6TBVLF.C1, de 7/1/2015, proferido na apelação 368/12.6TBVIS.C1, acórdão da Relação de Guimarães de 7/5/2015, proferido na apelação 243/14.0TBFAF.G1, acórdão da Relação do Porto de 14/3/2016, proferido na apelação 317/06.0TBLSD.P1, acórdão da Relação de Lisboa de 9/4/2014, proferido na apelação 211/09.3TBLNH-J.L1-7, acórdão da Relação de Évora de 17/3/2016, proferido na apelação 178/14.6TBRDD.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt..
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[2] Sobre esta temática pode consultar-se Carlos Lopes do Rego, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, 2004, pp. 835 e segs.
[3] Cfr. Parecer da Comissão Constitucional nº 18/81, in Pareceres da Comissão Constitucional, 17º, pp. 14 e segs, José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 1999, p. 9.
[4] José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, 1996, p. 96, e Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 1999, p. 8.
[5] No momento em que foi proferida a decisão sob censura nenhuma das partes se tinha ainda pronunciado sobre a questão da deserção da instância.