Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
190/10.4PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PROVA POR RECONHECIMENTO
RECONHECIMENTO DE PESSOAS
INQUÉRITO
VALOR PROBATÓRIO
Data do Acordão: 05/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 127º E 147º CPP
Sumário: 1.- A possibilidade legal de o auto de reconhecimento pessoal feito em fase de inquérito pelo ofendido poder ser lido em audiência e ser levado em conta (valorado), pelo julgador para a formação da sua convicção quanto ao factualismo a dar como provado e como não provado, não significa que esse reconhecimento tenha valor absoluto e não possa ser contraditado em plena audiência de julgamento, com observância do princípio do contraditório;

2.- Assim tendo o ofendido no seu depoimento em audiência dúvidas sobre se a pessoa que na altura identificou como sendo o autor dos factos em discussão será efetivamente essa pessoa, não restam quaisquer dúvidas de que o valor probatório da prova por reconhecimento sai profundamente abalado.

Decisão Texto Integral:  Acordam em conferência na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

           

            1. Nos autos de processo comum nº 190/10.4PCCBR do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Coimbra, em que é arguido,

            A..., solteiro, estudante, nascido a 25.04.1993, filho de (...) e de (...), natural da (...), Coimbra, e residente na (...), Coimbra,

imputando-lhe o Ministério Público a autoria material de um crime de roubo qualificado, p. e p. pelos art.os 210.º, 1 e 2 b), por referência ao 204.º, 2 f), ambos do Cód. Penal.

           
            Foi o mesmo julgado e a final proferida a seguinte decisão:

“Julga-se improcedente a pronúncia, absolvendo-se o arguido”.
           

2. Da decisão recorre o Ministério Público que formula, em síntese as seguintes conclusões:

            1a Recorre-se de FACTO e de DIREITO, na exacta consequência da percepção por nós adquirida de que foi feita prova em julgamento, para além de qualquer dúvida tida por razoável, de que foi o arguido o autor material do crime de roubo de que foi vítima uma criança de 11 anos, pessoa indefesa que foi capaz de se portar dignamente no julgamento, expressando o seu ainda temor pelo arguido.
            2a Se assim é, então deveria o arguido ter sido condenado pela prática do crime de roubo.
            3a Entende o MP que estamos perante um erro de julgamento, previsto no artigo
412°/3, o qual ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
            4a O arguido prestou declarações em julgamento, tendo negado a prática dos factos, havendo apenas o depoimento da vítima, criança com 11 anos à data do evento.
            5a Esta criança reconheceu validamente o arguido em inquérito, tendo em julgamento verbalizado ter quase a certeza que foi ele o seu assaltante.
            6a Contudo, a verdade é que o arguido muitas vezes se tinha dirigido àquela escola X... pois namorava uma rapariga que frequentava tal escola, sendo muito possível que tenha saído pelas 16:15 (cfr. documento de fls. 35) das suas aulas, dirigindo-se de autocarro para Coimbra, ainda a tempo de roubar o queixoso (e daí que desvalorizemos completamente os depoimentos das testemunhas de defesa, obviamente suspeitas).
            7a Em julgamento, o «roubado» não se mostrou tão certo do reconhecimento inequívoco que havia feito nos autos no dia 19/5 (fls. 26/27), reconhecimento esse que é válido processualmente pois foi feito à luz dos comandos do artigo 147° do CPP.
            8a Mas tal é natural — passaram quase 3 anos sobre essa data nefasta, sentindo-se ele ainda um pouco temeroso da vingança do arguido (receio este demonstrado no 2° seu depoimento, após a audição de sua mãe) — vejam-se os cerca de 11 minutos do seu depoimento (cfr. 6:02 e 6:39 a 6:59 do seu 2° depoimento).
            9a A própria memória atraiçoa-nos — quanto mais às crianças - e as pessoas mudam muito de aspecto — ele foi claro: os olhos eram os mesmos — note-se que quando se quer ocultar a identidade de alguém em fotografias lhe são tapados os olhos com uma faixa preta por serem os olhos o elemento do rosto que melhor identifica um indivíduo -, as orelhas eram as mesmas e até as olheiras! E relembre-se que estamos a falar de alguém que não queria ser reconhecido - daí o gorro e o lenço!
            10a Note-se que nunca o havia visto antes do assalto, tendo voltado a vê-lo depois, tanto que foi capaz de identificar a um professor o seu nome para que pudesse ser possível o 2° reconhecimento, positivo pois então!
            11a E não se diga que estes reconhecimentos são falíveis e criticáveis - esta criança, no 1° reconhecimento, foi peremptório: nenhum dos jovens que viu no alinhamento de fls. 20/21 era o seu assaltante!
            Só depois de o ver (cfr. fls. 23) no dia 16/4/2011 é que o B... o denunciou pessoalmente junto do OPC - e assim se deu o 2° reconhecimento, no qual ele não pestanejou, apontando o arguido como o seu «carrasco».
            Por que razão o tribunal decidiu ignorar totalmente a força probatória deste reconhecimento elaborado segundo os cânones legais? Por que razão decidiu antes sublimar os 80 % de certeza apontados pelo B... em julgamento?

            A instâncias do tribunal, o B... disse que ficou com poucas dúvidas quando o viu em tribunal no dia do julgamento
            No 2° depoimento (minuto 1:41) declara que o seu assaltante era o arguido...
            Mas acaba por soçobrar em alguma dúvida perante as investidas do tribunal (4:17 do seu 2° depoimento) e até da minha pessoa, na ânsia de se descortinar a verdade material do evento.
            12a Haverá que retirar a conclusão da culpabilidade do arguido da peremptoriedade do reconhecimento que havia sido feito em sede de inquérito, realizado em Maio de 2010, 5 meses após o evento traumatizante, reconhecimento esse não infirmado de forma plena pelas declarações menos peremptórias do B... em julgamento, quase 3 anos após o evento.
            13a Quando uma testemunha identifica um arguido em audiência, o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos termos do artigo 127.° do CPP, e não a «prova por reconhecimento» a que alude o artigo 147.° do mesmo diploma.
            Entendia-se que esta interpretação do artigo 147.° não violava o princípio das garantias de defesa consagrado no artigo 32.°, n.° 1, da Constituição, ou qualquer outra norma constitucional, como decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.° 425/2005, de 25-08-2005 (proc. n.° 452/05, publicado no DR n.° 195, II Série, de 11-10-2005, pp. 14574 a 14579).
            No caso em apreço, na audiência houve lugar à identificação do arguido pelo ofendido, meio de prova submetido ao princípio do contraditório (artigo 327.°, 2, do CPP), não tendo sido sentida pelo tribunal a necessidade de recorrer ao meio probatório autónomo intitulado de «Reconhecimento de pessoas».
            Logo trata-se de uma prova não proibida, a valorar de harmonia com o referido princípio da livre convicção (cfr. artigo 355.° CPP).

           
14a Temos um reconhecimento válido feito em inquérito, o qual é uma “prova autónoma pré-constituída” a ser examinada em audiência de julgamento nos termos dos artigos 355°, n°1, in fine, n° 2 e artigo 356°, n° 1, b) do Código de Processo Penal, não lhe sendo aplicável o disposto nos n°s 2 e 3 do artigo 356° do Código de Processo Penal.
            O “reconhecimento” é um meio de prova “pré-constituído” pois que, pela sua natureza e pelas conclusões apresentadas por estudos em psicologia da memória, deve ser realizada temporalmente o mais próximo possível da prática do acto ilícito — no início do inquérito, portanto - inadequado para, ex novo, ser praticado em audiência de julgamento (no entanto inexplicavelmente aceite pela legislação portuguesa), de valor moderado mas discutível se nesta for praticado pela segunda vez, mas passível de, em audiência, ser contraditado.
           
E não se diga que esse reconhecimento tem de ser repetido em julgamento.
15a E se assim
é, então temos prova por reconhecimento em inquérito — que vale em julgamento - e prova testemunhal.
E do cotejo das duas (uma positiva 100%, outra positiva 80%), se deve chegar à certeza da justa condenação do arguido pela prática do crime de roubo...
            16a Como se sabe, a convicção do Tribunal forma-se segundo os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduzem a que a mesma se forme em determinado sentido, ou valorar de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
            A livre apreciação da prova pressupõe, pois, a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção, que emerge da intervenção de tais critérios objectivos e racionais.

            17a Reconduzindo-nos aos presentes autos podemos dizer, após a produção da prova em sede de audiência de julgamento, ter-se demonstrado com segurança a prática do crime de que o arguido se encontra acusado (tendo sido também essa a indiciária conclusão instrutória).
            O julgador deve procurar encontrar uma correspondência entre aquilo que lhe foi
dado para provar — enunciado fáctico - para dessumir a solução de direito do caso e a
realidade — verdade — que poderá estar subjacente a esse enunciado, sendo certo que a
“verdade” que encontrará mais não será que a
melhor aproximação possível com a
realidade ocorrida no mundo dos factos.
            18a Temos de acreditar nas palavras deste jovem menino que, ainda nervoso e temeroso sobre o que lhe podia vir a acontecer, foi capaz de identificar EM JULGAMENTO
- em 80 % de certeza - o arguido como sendo o seu assaltante!
            E faça-se, o que não se fez, a devida correspondência integrada com o reconhecimento de 19 de Maio de 2010, esse positivo a 100%!
            19a Como tal, e sem necessidade de mais considerações, apenas nos limitaremos a dizer que foi feita prova bastante da culpabilidade deste jovem, não havendo lugar para qualquer dúvida razoável.
            Parece-nos indubitável e fora de qualquer discussão, passível de legitimar a aplicação
in casu do princípio do in dubio por reo, que resultaram apurados o essencial dos factos narrados na acusação.
            20a Condenando este jovem far-se-á justiça, em pena adequada e proporcional, face ao seu ausente passado criminal, de acordo com o princípio da culpa e levando em conta também razões de prevenção geral e especial.
            21ª. Foram violados os artigos 127°, 147°, 355°, 2, 356°,lb) e 412°, n.° 3 do CPP, na medida em que deveria ter sido dada como provada a matéria vertida nos n.°s 3 a 7 da factualidade inscrita na sentença como «Factos Não Provados».
            22ª Ao decidir de forma diferente, dando como não provados os factos constantes dos pontos identificados na conclusão anterior, o Tribunal “a quo” apreciou e valorou incorrectamente a prova produzida.

            Deve, assim, em consequência, ser revogada a douta sentença proferida e substituída por outra que, alterando a matéria dada como provada e não provada,
acabe a condenar o arguido pelo crime imputado na acusação pública.
            TERMOS em que se pede a procedência do presente recurso, com as legais consequências,
desta forma se fazendo a costumada e pretendida JUSTIÇA!          

            3. O arguido veio responder, dizendo em síntese:

            A- Na verdade, do depoimento do ofendido, supra parcialmente transcrito, em audiência de julgamento resultou a incerteza do ofendido na identificação do arguido como agente do crime de roubo qualificado,
            B- Tal incerteza resultou do referido depoimento, mesmo após o arguido se ausentar da sala de audiências, e estando o ofendido livre de possíveis receios ou constrangimentos.
            C- Ademais, o ofendido não referiu nunca a cicatriz que o arguido tem no sobrolho direito, que o arguido tem já desde criança.
            D- Ora, salvo melhor opinião, face ao depoimento prestado pelo ofendido, que se afigura ser dúbio, hesitante e inconsistente (mesmo se o confrontarmos
com os depoimentos prestados pelo ofendido e pela sua mãe em fase de inquérito), consideramos não existir qualquer erro de julgamento, porquanto as concretas provas impunham a decisão efectivamente proferida.
            E- Aderimos ao entendimento do MM. Juiz que refere o ofendido
“não foi peremptório quanto à identificação do arguido como o autor desses factos (...) aditando que a pessoa autora dos factos usava um gorro, que lhe encobria o cabelo e as orelhas e um lenço no pescoço, que lhe tapava a boca; no entanto precisou que o autor tinha a voz mais grossa e altura de cerca de 1,80m (o arguido tem cerca de 1.72) [cumpre aqui referir que, tendo o arguido a idade de quase 17 anos, a tendência não era de diminuir a altura, nem fica com a voz menos grave(...). (...) lembrou-se, apesar do gorro que usava, de que os olhos eram castanhos, mas precisou, no entanto, no confronto com os do arguido, que este os tem também castanhos, mas mais claros - aqui teve o cuidado de especificar que no acto de reconhecimento do arguido, efectuado na fase de inquérito não lhe era possível ver a cor dos olhos; aditou que o formato do nariz é diferente e a boca do autor dos factos era maior (...), também não se lembra da cicatriz que o arguido apresenta no sobrolho direito (...); a sua honestidade foi ao ponto de dizer que não tem a certeza, que pode não ser o arguido...
            F- Mesmo que se afigure
“muito possível” que o arguido tenha saído pelas 16h15 no dia dos factos, certo é que se afigura “muito possível” que qualquer pessoa se tenha deslocado ao lugar dos factos e à hora dos factos, e “(...) sempre cumpre precisar que mesmo que se tivesse apurado que o arguido se deslocara para aquela escola a tempo de praticar os factos que lhe são imputados, só por si não permitiria considerar, sem margem para dúvidas, que tinha sido ele a praticar os factos.”
            G- No que à prova por reconhecimento diz respeito, sempre se dirá que é uma prova reconhecidamente falível, acrescendo o facto de o ofendido ter referido em audiência de julgamento que não lhe foi possível verificar algumas características essenciais do arguido no acto de reconhecimento.

            H- Por último, relativamente à personalidade do arguido, por demais comprovada pelas testemunhas por si apresentadas, nomeadamente professores, vizinhos e o treinador de futebol, sempre se dirá, acompanhando o MM. Juiz que: “entre outros elementos de personalidade, o CRC do arguido, porque impoluto, vem reforçar os referidos depoimentos que o apontam como observador de comportamento em conformidade com as normas penais”.
            Acompanhamos, assim, a douta sentença recorrida que entende:
“Não resulta do acervo fáctico dado por assente circunstancialismo que nos permita a subsunção legal da conduta do arguido ao tipo legal de crime imputado ou a qualquer outro do nosso sistema penal. A verdade é que nada de relevante se provou, da matéria factual. objecto do processo, que lhe possa ser imputado. Dúvidas persistem, porque insanáveis, sobre a identidade da pessoa que praticou os factos que tiveram por vítima B....”
            Nestes termos e nos mais de Direito, deve a sentença recorrida ser confirmada, sendo o arguido absolvido do crime por que vem condenado, assim se fazendo JUSTIÇA!

            4. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto apenas colocou o seu visto.

            5. Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência.


II
            1. São os seguintes os factos dados como provados e não provados na decisão recorrida:

            factos provados:

1. O arguido vive com os pais, que o sustentam; frequenta o 10.º Ano de Escolaridade;

2. Não se lhe conhecem práticas criminais.

factos não provados:

3. No dia 29 de Janeiro de 2010, pelas 16:50 horas, na Rua da Escola X..., (...), Coimbra, quando B... saiu do recinto da Escola X..., foi abordado pelo arguido que lhe apontou uma navalha, cujas concretas características não foi possível apurar, ao mesmo tempo que o agarrou pelo braço direito e o conduziu para um local ermo das imediações, onde lhe exigiu a entrega do telemóvel, da marca “Nokia”, com o valor de € 50, que B..., receoso pela vida e integridade física, de imediato, lhe facultou, e lhe retirou um blusão, da marca “Decatlon”, no valor de € 120.

4. Na posse dos referidos artigos, o arguido abandonou o local, fazendo-os seus.

5. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente;

6. Com o intuito de se apoderar dos bens referidos, pertencentes a B..., bem sabendo que eram alheios e que actuava contra a vontade do respectivo proprietário, não se coibindo para os obter de perturbar o sentimento de segurança e de usar de violência contra o visado, constrangendo-o da forma descrita;

7. Sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punida.

Quaisquer outros factos emergentes da discussão da causa, para além dos que ficaram descritos como provados.

            2. O tribunal a quo fundamenta do seguinte modo o factualismo provado e não provado:

Convicção do tribunal:

Foram determinantes para a fundamentar:

Factos provados:

1.º As declarações do arguido – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis;

2.º: O teor do doc. de fls. 150 (CRC do arguido, de onde resulta nada constar).

Factos não provados:

3.º a 7.º: Ausência de prova bastante:

O arguido negou a prática dos factos imputados, alegando que não lhe era sequer possível deslocar-se do Colégio Y..., que frequentava, até à Escola X... nesse período de tempo, por sair do colégio às 16:30 horas e demorar cerca de 40 minutos a pé até à Escola X...; que não fazia esse percurso de autocarro e ia sempre com colegas; que na altura só usava um brinco, na orelha esquerda, sendo que desde o presente ano já usa brinco nas duas; mais referiu nunca ter usado gorro;

B..., lesado, confirmando embora, pormenorizadamente, toda essa ocorrência, não foi peremptório quanto à identificação do arguido como o autor desses factos. Revelando sempre particular responsabilidade nas funções de testemunha, pese embora a sua precoce idade de 13 anos, identificou como semelhanças, entre o arguido e o autor dos factos de que foi vítima, o formato dos olhos e o que identificou como “olheiras ou rugas abaixo dos olhos”, aditando que a pessoa autora dos factos usava um gorro, que lhe encobria o cabelo e orelhas e um lenço no pescoço, que lhe tapava a boca; no entanto, precisou que o autor dos factos tinha a voz mais grossa e altura de cerca de 1,80 m (o arguido tem cerca de 1,72 m) [cumpre aqui referir que, tendo o arguido a idade de quase 17 anos, a tendência não era de diminuir a altura, nem ficar com a voz menos grave, antes pelo contrário, tenderia a aumentar a altura, já não “engrossando” a voz, o que por regra se verifica pelos 12, 13 anos, não olvidando nós que, pelo facto de ter à data da ocorrência uma altura menor do que tem hoje, o lesado tende a ter hoje a referência do autor dos factos como mais alto relativamente a si ]; lembrou-se, apesar do gorro que usava, de que os olhos eram castanhos, mas precisou, no confronto com os do arguido, que este os tem também castanhos, mas mais claros – aqui teve o cuidado de especificar que no acto de reconhecimento do arguido, efectuado na fase de inquérito (doc. de fls. 26 e 27) não lhe era possível ver a cor dos olhos; aditou que o formato do nariz é diferente e a boca do autor dos factos era maior, precisando que conseguiu vislumbrar o seu formato na altura em que falou consigo, descaindo-lhe o lenço; também não se lembra da cicatriz que o arguido apresenta no sobrolho direito – que nas palavras deste fez em pequeno (o que foi confirmado pela sua mãe); mencionou também que o autor dos factos usava piercings nas orelhas e um no nariz (estes elementos são, no entanto, muito pouco fiáveis porque facilmente alteráveis pelo uso/não uso); a sua honestidade foi ao ponto de dizer que não tem a certeza, que pode não ser o arguido…

A mãe do lesado, C..., limitou-se a relatar factos que ouviu do filho, por nada ter presenciado relativo à ocorrência. Entre outras afirmações, confirmou o teor das declarações prestadas no inquérito, a fls. 14 (com a anuência dos sujeitos processuais respectivos), onde refere, para além do uso dos piercings já referenciado, que o autor dos factos andou a estudar na mesma escola onde andava o filho.

Ora, a mãe do arguido afirma peremptoriamente que o filho nunca andou na Escola X..., sendo que, nessa altura, andava no Colégio Y...; que nunca teve queixas dele, nem de faltas ou saídas mais cedo (o que é confirmado pelo depoimento de D..., professora do arguido em 2008/9, na Escola Básica Z..., que referiu que no ano seguinte ele foi para o Colégio Y...; não deixando de mencionar que era um aluno bem comportado, que não faltava nem pedia para sair mais cedo, usando como meio de transporte o autocarro);

Também E... , colega (da mesma turma no ano da ocorrência em causa) e amiga do arguido, garantiu a impossibilidade de o arguido fazer tal percurso no tempo que lhe restava depois das aulas, se saísse às 16:30 horas (matéria essa que também a mãe do arguido já havia reiterado, precisando que o percurso entre escolas a pé demora cerca de 40 minutos e de autocarro 15 minutos), afirmando que acompanhava sempre o arguido, sendo que não só não podiam sair mais cedo da escola, sem autorização dos pais, como iam sempre de autocarro para casa e não passavam por aquele local, por não ser esse o percurso; mais garantiu que o arguido não usava gorro, andava despenteado e com gel no cabelo e nunca lhe viu nem navalha nem faca;

Em idêntico sentido, quanto ao bom comportamento do arguido, se pronunciaram as testemunhas F... , vizinho – afirmando tratar-se de um rapaz educado, que frequenta a sua casa, onde nunca deu falta de nada – e G... , treinador de futebol do arguido em 2011 – que mencionou a correcção que sempre caracterizou a atitude do arguido e nunca ter sabido de nada que lhe imputassem de censurável.

Do teor do doc. de fls. 35 (informação do Colégio Y...) resulta que o arguido no dia da ocorrência efectivamente não faltou às aulas e que estas se prolongaram até às 16:15 horas [o que nos permite considerar que, face aos elementos temporais supra referenciados, tempo teria para chegar à Escola X..., sem necessidade de faltar ou sair mais cedo das aulas, desde que tivesse apanhado o autocarro respectivo a tempo. Importaria, por isso, também saber, nesse dia e nesse período de tempo, a que horas o autocarro fez esse percurso (o que é praticamente impossível, pois sempre poderiam registar-se atrasos…) e se o arguido usou esse meio de transporte nesse período horário ou outro para se deslocar à Escola X... e assim poder ser considerado se se encontrava no local da ocorrência dos factos no momento em que os mesmo se verificaram, coisa que não foi possível apurar. No entanto, sempre cumpre precisar que mesmo que se tivesse apurado que o arguido se deslocara para aquela escola a tempo de praticar os factos que lhe são imputados, só por si não permitia considerar, sem margem para dúvidas, que tinha sido ele a praticar os factos. Desde logo, porque não era essa falha (ou mentira) em termos de declarações que permitia a certeza que nem o lesado foi capaz de transmitir ao tribunal, relativa à identificação do sujeito autor da prática dos factos. Sempre seria necessário o respaldo de outra prova mais consistente, mais sólida, mais irrefutável. Na jovem idade de 19 anos do arguido, não é raro usar-se de subterfúgios para afastar qualquer tipo de responsabilidade, sem pensar nas consequências (independentemente de ter ou não responsabilidades na matéria), o que desaconselharia, obviamente, que “a contrario sensu” se pudesse extrair, no contexto dos autos (onde, entre outros elementos de personalidade, o CRC do arguido, porque impoluto, vem reforçar os referidos depoimentos que o apontam como observador de comportamento em conformidade com as normas penais), que se pretendia ocultar essa presença no local era porque, necessariamente, teria sido o autor dos factos… A máxima de que vale mais absolver um culpado do que condenar um inocente não é só uma decorrência do princípio processual “in dúbio pro reo”. É, antes disso, um imperativo de consciência e de verdade…

Permanece a dúvida insanável sobre se foi o arguido o autor dos factos em causa.     


III

Questões a apreciar:

1. A impugnação da matéria de facto dada como não provada.

2. O princípio do in dubio pro reo.


IV

Apreciando:

1. Dada a intrínseca relação, in casu, da impugnação da matéria de facto e a aplicação do princípio do in dubio pro reo, por uma questão de metodologia, apreciar-se-ão estas duas questões em simultâneo, dentro da lógica que, mesmo assim, se afigurar mais oportuna.

2. A primeira observação a fazer assenta na relevância que o princípio da livre apreciação da prova aqui desempenha, podendo dizer-se que o mesmo é determinante para o desfecho do processo, o mesmo é dizer, em dar como provada ou não provada a matéria fáctica imputada ao arguido o que determinará, por sua vez, a sua condenação ou absolvição.

O julgador a quo que fez a primeira valoração da prova segundo a convicção então formada e que se mostra explícita nos autos, deu como não assentes (não provados) determinados factos que justificaram a absolvição do arguido pelo crime que lhe é imputado na acusação pública. Da motivação que consta da sentença – supra transcrita – conclui-se que a convicção do julgador de primeira instância para dar tais factos como não provados e que ditaram a absolvição do arguido, teve por base a aplicação do princípio constitucional de presunção de inocência, ou seja, do princípio do in dubio pro reo.

3. É contra a aplicação deste princípio pelo julgador que tem tradução efectiva em não dar como provada a versão da prática dos factos pelo arguido que se manifesta o recorrente Ministério Público.

E o recorrente assenta os seus argumentos para que o tribunal devesse dar como provados os factos que deu como não provados, sob dois fundamentos que se passam a enunciar:

3.1. O primeiro assenta na possibilidade ou hipótese de o arguido se ter deslocado da sua escola que na altura frequentava para a escola frequentada pelo ofendido, de modo a ter tempo para praticar os factos nos termos descritos na acusação.

3.2. O segundo assenta na valoração que deve ser dada à prova recolhida nos autos quer quanto ao auto de reconhecimento pessoal de fls. 26 e 27, de 19 de Maio de 2010 – em fase de inquérito - quer quanto ao depoimento feito pelo ofendido em audiência de julgamento.

4. Quanto ao primeiro facto ou argumento ou seja, da possibilidade de o arguido se ter deslocado da sua escola para a escola do ofendido a tempo de praticar os factos, sendo certo que esta questão não foi suficientemente explicitada nos autos, não passando, mesmo na perspectiva do recorrente, de um facto meramente possível[1], afigura-se que o mesmo tem apenas a natureza de facto instrumental, pois mesmo que ficasse inequivocamente provado – que não ficou - que o arguido até se deslocou naquele dia e momento de uma escola para a outra, logo, à escola do ofendido, não significa, necessariamente que tenha sido ele o autor dos factos do roubo ao ofendido.

Daí que faça todo o sentido o afirmado na decisão recorrida, sobre esta matéria, quando aí se diz:

“No entanto, sempre cumpre precisar que mesmo que se tivesse apurado que o arguido se deslocara para aquela escola a tempo de praticar os factos que lhe são imputados, só por si não permitia considerar, sem margem para dúvidas, que tinha sido ele a praticar os factos. Desde logo, porque não era essa falha (ou mentira) em termos de declarações que permitia a certeza que nem o lesado foi capaz de transmitir ao tribunal, relativa à identificação do sujeito autor da prática dos factos. Sempre seria necessário o respaldo de outra prova mais consistente, mais sólida, mais irrefutável”.

5. O segundo argumento ou seja, o auto de reconhecimento pessoal de fls. 26 e 27, de 19 de Maio de 2010 e o depoimento feito pelo ofendido em audiência de julgamento já merecem maior relevância e ponderação, sendo a vexata questio para o desfecho ou solução do caso.

Se o recorrente Ministério Público tem razão quanto à validade formal do respectivo auto feito em fase de inquérito porque observou todos os requisitos legalmente exigidos na sua realização, também é verdade que, como afirma o mesmo recorrente – v. conclusão 14ª – “é uma “prova autónoma pré-constituída” a ser examinada em audiência de julgamento nos termos dos artigos 355°, n°1, in fine, n° 2 e artigo 356°, n° 1, b) do Código de Processo Penal, não lhe sendo aplicável o disposto nos n°s 2 e 3 do artigo 356° do Código de Processo Penal”.

Efectivamente, dispõe o artigo 355º do Código de Processo Penal[2]:

            “ 1- Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência[3].

              2- Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes”.

Pese embora a possibilidade legal consagrada pelo nº 2 do preceito anterior, não está o auto de reconhecimento pessoal de fls. 26 e 27 dispensado da sua submissão ou sujeição ao princípio do contraditório e também da própria imediação.

Com efeito, nos termos do artigo 32º, nºs 1 e 5, da CRP , “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”(nº1) e “ o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”(nº5).

6. Ora, a possibilidade legal de o auto de reconhecimento pessoal feito em fase de inquérito pelo ofendido poder ser lido em audiência e ser levado em conta (valorado), pelo julgador para a formação da sua convicção quanto ao factualismo a dar como provado e como não provado, não significa que esse reconhecimento tenha valor absoluto e não possa ser contraditado, como foi, em plena audiência de julgamento, momento chave para a produção da prova com observância do princípio do contraditório.

E apreciado e valorado o depoimento do ofendido, exactamente sobre o “auto de reconhecimento”, não restam quaisquer dúvidas de que o seu valor probatório no sentido de formar uma convicção sobre o seu teor, sai profundamente abalada. Ou seja, em plena audiência de julgamento, é o próprio ofendido a criar e a suscitar dúvidas sobre o valor substancial desse reconhecimento. É o próprio ofendido a ter dúvidas sobre se a pessoa que na altura identificou como sendo o autor dos factos será efectivamente essa pessoa.

Atentemos, para o efeito, algumas e breves declarações do ofendido, transcritas pelo arguido no seu recurso (que não foram contraditadas)[4]:

Ao minuto 06.40 do depoimento do ofendido, e relativamente à voz do arguido:
“M. Juiz: Oh B..., assim, a
voz dele não te ajuda nada?
Ofendido: Tinha uma voz mais grossa.J’

Testemunho que volta a repetir ao minuto 07.42:

“Ofendido:
Não tenho a certeza. A voz do assaltante era mais grossa, a altura já não me lembro...”
Ao minuto 13.11, relativamente ao formato dos olhos e da cara do arguido, e tendo em conta que ninguém poderá ser reconhecido pelas suas olheiras, o ofendido refere que:

“Não é tão bicudo,
era mais redondo.”

E ao minuto 14.45:
“O formato do nariz é diferente e a boca, a do outro, era maior.”

Mais uma vez, ao minuto 22.10, o ofendido refere:

“Adv.: Os olhos são castanho claro ou escuro?
Ofendido: Escuros, tipo os meus.
Adv: É que o A... tem os olhos castanho claro...
(deslocou-se junto do arguido)
Ofendido: Pode não ser ele. Pode não ser ele.
Mas.., porque a.. .como é que aquilo se chama... quando fui a ver quem era, não dava para ver muito bem os olhos, porque ele está longe.., no reconhecimento.
M.Juiz:
Mas os olhos dele são diferentes?
Ofendido: A cor? Um bocadinho.

M.Juiz:
Os do outro eram mais escuros?
Ofendido: Sim, um bocadinho mais escuros.
M.Juiz: Os dele é castanho claro, é?
Ofendido: Sim.”

Mesmo após o arguido se ausentar da sala de audiências, e estando o ofendido livre de possíveis receios ou constrangimentos, referiu ao minuto 06.20 que:

“M.Juiz: Se ele não estiver presente, tu és capaz de ter a certeza absoluta? Ofendido: Quase 80%.”

Ademais, o ofendido não referiu nunca a cicatriz que o arguido tem no olho direito, conforme resulta do minuto 08.15 do depoimento:
“Adv:
Esteve perto da pessoa que lhe fez aquilo?
Ofendido: Estive. Teve
a faca aqui e aqui.
Adv.: Reparou se a pessoa tinha alguma cicatriz?
Ofendido: Não, não tinha.
Adv:
É que ali o A... tem uma cicatriz no olho direito.
(..

M.Juiz:
Esse pormenor, B..., não diz nada? Viste?
Ofendido: Sim, é um risco. Sim. Pode não ser ele. Já foi há algum tempo. Se fosse na altura!!!”

            7. Este concreto teor do depoimento do ofendido B..., remete-nos para uma inteira concordância com a motivação do julgador a quo quando a propósito da sua análise crítica e formação da sua convicção tece as seguintes considerações:

            “ B..., lesado, confirmando embora, pormenorizadamente, toda essa ocorrência[5], não foi peremptório quanto à identificação do arguido como o autor desses factos. Revelando sempre particular responsabilidade nas funções de testemunha, pese embora a sua precoce idade de 13 anos, identificou como semelhanças, entre o arguido e o autor dos factos de que foi vítima, o formato dos olhos e o que identificou como “olheiras ou rugas abaixo dos olhos”, aditando que a pessoa autora dos factos usava um gorro, que lhe encobria o cabelo e orelhas e um lenço no pescoço, que lhe tapava a boca; no entanto, precisou que o autor dos factos tinha a voz mais grossa e altura de cerca de 1,80 m ( o arguido tem cerca de 1,72 m ) [ cumpre aqui referir que, tendo o arguido a idade de quase 17 anos, a tendência não era de diminuir a altura, nem ficar com a voz menos grave, antes pelo contrário, tenderia a aumentar a altura, já não “engrossando” a voz, o que por regra se verifica pelos 12, 13 anos, não olvidando nós que, pelo facto de ter à data da ocorrência uma altura menor do que tem hoje, o lesado tende a ter hoje a referência do autor dos factos como mais alto relativamente a si ]; lembrou-se, apesar do gorro que usava, de que os olhos eram castanhos, mas precisou, no confronto com os do arguido, que este os tem também castanhos, mas mais claros – aqui teve o cuidado de especificar que no acto de reconhecimento do arguido, efectuado na fase de inquérito ( doc. de fls. 26 e 27 ) não lhe era possível ver a cor dos olhos; aditou que o formato do nariz é diferente e a boca do autor dos factos era maior, precisando que conseguiu vislumbrar o seu formato na altura em que falou consigo, descaindo-lhe o lenço; também não se lembra da cicatriz que o arguido apresenta no sobrolho direito – que nas palavras deste fez em pequeno ( o que foi confirmado pela sua mãe ); mencionou também que o autor dos factos usava piercings nas orelhas e um no nariz ( estes elementos são, no entanto, muito pouco fiáveis porque facilmente alteráveis pelo uso/não uso ); a sua honestidade foi ao ponto de dizer que não tem a certeza, que pode não ser o arguido…

            …

A máxima de que vale mais absolver um culpado do que condenar um inocente não é só uma decorrência do princípio processual “in dúbio pro reo”. É, antes disso, um imperativo de consciência e de verdade…

            Permanece a dúvida insanável sobre se foi o arguido o autor dos factos em causa.

            8. A motivação do julgador a quo traduz efectivamente uma ponderação e a formulação de uma segura e séria dúvida acerca da prática dos factos pelo arguido.

            Dúvida do julgador formulada e adquirida com base no teor do depoimento do ofendido sobre o efectivo auto de reconhecimento pessoal feito em inquérito. É que não só o ofendido explicita as suas sérias dúvidas sobre a identificação do arguido como autor da prática dos factos – com a sua máxima expressão ao concretizar que no auto de reconhecimento feito em inquérito se encontrava a uma determinada distância do arguido e não teve nem poderia ter a percepção de determinados itens como sejam a voz e a cor dos olhos, entre outros elementos – como não foram apurados nem se vislumbra que o pudessem ter sido, quaisquer outros elementos que colocassem ou pudessem colocar o arguido quer no lugar quer no momento da prática dos factos, ou seja, não existem quaisquer outros elementos circunstanciais, que indiciem ou de onde se possa presumir, com base em prova indirecta, que o arguido é o autor da conduta.

Pelo que faz todo o sentido aqui chamar e aplicar o princípio do in dubio pro reo, princípio que imana do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº 2, da CRP/76.

Sobre este princípio escreve Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 4ª edição, Vol. I, fls. 83 e 84:

A presunção de inocência é identificada por muitos autores com o princípio in dúbio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido.

A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência “.

Também Figueiredo Dias in ob. cit., fls. 213 a propósito da presunção de inocência ou do princípio do in dúbio pro reo, escreve:

À luz do princípio da investigação, bem se compreende efectivamente que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídas à “ dúvida razoável” do Tribunal, também não possam considerar-se como “provados”. E se, por um lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo, o Tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova…tem de ser valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio “ in dúbio pro reo”.

            9. Temos para nós como assente que apenas as dúvidas sérias, razoáveis, justificadas e fundamentadas ou seja, inultrapassáveis, podem e devem ser consideradas e relevadas pelo julgador.

            No concreto caso, a prova essencial assentava única e exclusivamente no teor do auto de reconhecimento pessoal realizado em fase de inquérito pelo ofendido. Sendo este mesmo ofendido que em fase de julgamento pôs em dúvida todo o seu teor, com base num depoimento lógico e explícito quanto às suas dúvidas e divergências.

            Pelo que outra solução ou alternativa legal não tinha o julgador que não fosse a de lançar mão do princípio do in dúbio pro reo quanto à prova dos factos, não imputando a conduta ao arguido.

            Pelo exposto, nenhuma censura merece a decisão recorrida quanto à apreciação da prova produzida em audiência.      

V

DECISÃO

Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar e manter a decisão de absolvição do arguido.

             

Sem custas.

            (Relator: Luís Teixeira)

            (Adjunto: Calvário Antunes)


[1] Referindo-se a esta matéria na conclusão 6ª, nos seguintes termos:
Contudo, a verdade é que o arguido muitas vezes se tinha dirigido àquela escola X... pois namorava uma rapariga que frequentava tal escola, sendo muito possível que tenha saído pelas 16:15 (cfr. documento de fls. 35) das suas aulas, dirigindo-se de autocarro para Coimbra, ainda a tempo de roubar o queixoso ( e daí que desvalorizemos completamente os depoimentos das testemunhas de defesa, obviamente suspeitas) – negrito nosso.

[2] Redacção dada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto.
[3] Disposição legal considerada sede do princípio da imediação no processo penal português, acrescentando Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição actualizada, fls. 891, em anotação ao artigo 355º:
“ São inutilizáveis as provas que não tiverem sido produzidas em audiência. Ela é completada pelas duas disposições excepcionais seguintes, onde se ressalvam as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição são permitidas”.
[4] E que de resto são fundamento da motivação do julgador a quo para dar como não provados os factos da acusação.
[5] Anota-se que não está em causa ocorrência dos factos quanto ao roubo do ofendido mas tão só a autoria da prática desses mesmos factos.