Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
741/21.9T8CNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
CONTAGEM DOS PRAZOS
SEGURANÇA JURÍDICA
PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 09/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CANTANHEDE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, N.º 3 E 5.º, N.º 3, AMBOS DO CPC, E ARTIGO 2.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: I - - Suscitada pelos autores a questão da extemporaneidade da contestação, com determinados fundamentos, a que se seguiu resposta dos réus sobre a matéria, discutindo amplamente sobre o tema, concluindo os autores pela extemporaneidade do articulado e os réus pela sua tempestividade, assim ficando cumprido o princípio do contraditório, não tem o tribunal de voltar a ouvir as partes sobre tal matéria se decidir, no plano de direito, no sentido de estar verificada essa extemporaneidade com base num fundamento jurídico a que as partes não aludiram, consistente em o prazo dilatório, que antecede o prazo perentório para contestar, não se suspender em férias judiciais (por apenas o prazo perentório sofrer tal suspensão), inexistindo, em tal caso, decisão-surpresa.

II - Se os serviços do tribunal prestam informação ao citando, em formulário de que dispõem, acompanhando o expediente de citação (com dimensão explicativa/informativa), sobre prazo para defesa/contestação e respetivo modo de contagem, apresentando-o como um prazo aumentado pela dilação, que se suspende em férias judiciais, então não é exigível ao destinatário – comummente um leigo em matérias jurídicas, numa altura em que ainda não estava representado por advogado, com o inerente «mitigado grau de censura» – que proceda à distinção entre prazo dilatório e prazo perentório, para concluir que só este último (e não aquele) está sujeito a essa suspensão.

III - Cabendo aos tribunais, no exercício do poder/função judicial do Estado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, estes esperam daqueles uma conduta pautada pela boa-fé e verdade, em clima de confiança, em que têm o direito de acreditar na sua relação com todos os poderes públicos, devendo ser protegidas as expetativas por eles legitimamente criadas em resultado de comportamentos dos poderes do Estado, aos quais se exige previsibilidade de atuação, de acordo com o princípio constitucional do Estado de Direito democrático, nas vertentes dos subprincípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

IV - Oferecido o articulado de contestação em prazo compatível com aquele quadro informativo veiculado no ato da citação, em que o citado acreditou, tem de considerar-se tempestiva a contestação, sob pena de violação daqueles princípios.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

AA e marido, BB, com os sinais dos autos,

intentaram ação declarativa, com forma de processo comum, contra

1.ª - CC e

2.ºs - DD e marido, EE, todos estes também com os sinais dos autos,

pedindo nos seguintes termos:

«(…) deve a presente Acão ser julgada procedente por provada e, em consequência deve:

a) Declare-se a autora AA, casada no regime da comunhão de adquiridos com BB, única e legítima proprietária dos prédios:

a.1) RÚSTICO, sito em ..., composto de terra de semeadura, com a área de 770 m2, que confronta do norte com caminho, do Sul com FF, do nascente com GG, e do Poente com Glória da Silva Domingues, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...12 da freguesia ... e inscrito na matriz rústica da dita Freguesia sob o artigo ...20;

a.2) RÚSTICO, sito em ..., composto de terra de semeadura, com a área de 770m2, que confronta do norte com ..., do sul com HH, do nascente com GG e do Poente com Glória da Silva Domingues descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...13 da freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz rústica da dita Freguesia sob o artigo ...19; e

a.3) RÚSTICO, sito em ..., composto de terra de semeadura e pinhal, com a área de 1830m2, que confronta do norte com FF, do sul com II, do nascente com GG e do poente com JJ, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...12 da freguesia ..., do Concelho ..., inscrito na matriz Rústica da dita freguesia sob o artigo ...18;

b) Reconhecer-se à Autora AA, casada no regime da comunhão de adquiridos com BB, o direito de preferência na compra e venda do prédio Rústico sito em ..., composto de terra de semeadura atravessada pelo caminho, com a área de 1210m2, a confrontar do Norte com herdeiros de KK, do sul com HH, do nascente com ... e do poente com caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...09 e inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., do Concelho ... sob ao artigo ...21;

c) Reconhecer-se à Autora o direito de se substituir aos réus DD e marido EE, em qualquer inscrição na matriz predial rústica e no registo predial feitos a favor deste mesmos Réus com origem na Escritura que titulou a compra e venda, celebrada em 26 de julho de 2019;

d) Ordenar-se o cancelamento do registo de aquisição a favor dos segundos réus pela AP. ...20 de 2019/07/30 na descrição ...09 da freguesia ...».

Efetuada a citação dos RR., foi apresentada contestação pelo R.... em 09/03/2022.

Porém, por decisão datada de 17/05/2022, foi assim decidido:

«Por todo o exposto, a contestação apresentada pelo réu EE, a 9.03.2022, foi-o extemporaneamente, devendo a mesma ser desentranhada dos autos, o que se determina.

*

Em consequência, consideram-se provados, nos termos do disposto no artigo 567.º n.º 1 do Código de Processo Civil, todos os factos articulados na petição inicial, ressalvando as conclusões jurídicas e os juízos de carácter subjectivo.

*

Notifique, também nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 567.º n.º 2 do Código de Processo Civil.».

Inconformados, recorrem os RR. DD e EE, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1]):

«I. – DOS FACTOS

1-Os réus foram notificados do despacho seguinte:

(…).

2-Ora, salvo o devido respeito tal decisão não pode aceitar-se, pelas razões que infra passamos a descrever.

3-Porém convém antes de mais esclarecer que deste despacho foi apresentada tempestivamente reclamação que até agora o Tribunal não se pronunciou; reclamação essa que será ora inserta como questão prévia para o Venerando Relação de Coimbra da posição processual integral dos réus

II-Questão prévia -

4-O douto despacho/decisão ora posto em causa pelos réus constitui uma verdadeira decisão surpresa que a nossa lei processual cível comina com nulidade processual por violação do princípio do contraditório. Ora vejamos, A presente ação foi instaurada contra os ora réus no dia 13/10/2021. A ré DD foi citada para contestar em 23/10/2021. O réu EE foi citado para contestar a ação no dia “21/12/2021”.

5-O Tribunal “a quo” decidiu que se verificou a extemporaneidade da apresentação da contestação pelos réus ora reclamantes atenta as datas de citação constante no processo. Para além disso veio dizer que o prazo dilatório correu em férias e, por isso, se determinou que a contestação foi apresentada fora de prazo.

6-Na verdade, aquando da apresentação da contestação, os AA vieram arguir que a contestação foi apresentada fora de prazo.

7-Argumentaram os AA. que tendo sido citado o réu EE em 21/12/2021 o prazo para apresentar a contestação teria terminado no dia 04/03/2022.

8-Mais disseram que os RR ao não terem procedido de imediato à autoliquidação da multa de terceiro dia nos termos do nº 5 do artigo 139º do C.P.C., teria caducado o direito de praticar o ato judicial de apresentarem o articulado de contestação.

9-Responderam os RR. alegando, em síntese, que o ato foi praticado dentro do prazo legal uma vez que não teria sido o R. EE a assinar o Aviso de Receção e, como tal, dispunha de mais cinco dias nos termos legais por não ter sido o próprio a assinar o A.R., pelo que o ato foi praticado dentro do prazo.

10-Mais responderam que, caso assim não se entendesse, a própria lei responde à questão suscitada pelos autores no nº 6 do artigo 139º, cominando um acréscimo de 25% da multa a pagar pelo inadimplente, mediante notificação a enviar pela secretaria judicial, independentemente de despacho e se o ato foi praticado por mandário judicial.

11-Quer dizer, as questões levantadas pelos AA e RR. divergiam quanto ao tempo e modo de pagamento da multa processual a aplicar pela prática de um ato judicial “fora de prazo”. Ou seja, A divergência entre AA e RR reportava-se ao momento da liquidação da multa: ou contemporaneamente com a prática do ato, autoliquidando aquela e invocando-se que este estaria a ser praticado “fora de prazo” mas ainda dentro do prazo dos três dias com multa – artigo 139º, nº 5; ou, na versão dos RR., que entendiam que esta situação estaria prevista e contemplada no nº 6 do artigo 139º do C.P.C.

12-Ora, sendo estas as divergências entre AA. e RR. quanto à aplicação da lei, veio a Srª Juiz do Tribunal determinar que a contestação fora apresentada fora de prazo uma vez que o prazo dilatório de trinta mais cinco dias de que dispunham os RR. para contestar se conta em férias judiciais.

13-No que se refere a este ponto, desde já se diz que, salvo o devido e merecido respeito pelo Tribunal e também por opinião diversa, os prazos, sejam eles dilatórios ou perentórios não correm em férias, excetuando-se esta regra nos processos de natureza urgente.

14-Ora, esta decisão constitui uma verdadeira “decisão surpresa”.

15-E isto porque, quer AA. e RR convergiram no entendimento que o prazo para apresentar a contestação se suspendia durante as férias judiciais.

17-Aliás, na discussão dialéctica protagonizada por ambas partes apenas se discutia e tão só o momento do pagamento da multa e as suas consequências. Nada mais…

18-Por isso, o Tribunal pronunciou-se “ ex-novo” sobre uma questão de direito não suscitado pelas partes, com uma decisão manifestamente inovatória, não sendo expectável tal decisão, atenta a posição dos intervenientes processuais, contrariando assim o princípio do contraditório plasmado no nº 3 do artigo 3º do C.P.C.

19-Conforme se alcança no Acórdão da Relação de Porto, de 02/12/2019, Proc. Nº 14227/19.8T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt que se passa a citar:

- “O referido nº 3 do artigo 3º, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.

- Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório – que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitada oficiosamente pelo Juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito – já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido.

- A referida conceção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida pelo Professor Lebre de Freitas (1) para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direto ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. (2) Esta vertente do contraditório, que surgiu no nosso direito processual como uma inovação, revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade reciproca dos vários intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais que passam, sempre, a ser previstas pelas partes.

- E na medida em que garante a igualdade das partes- pela possibilidade de pronúncia e resposta- leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litigio seja a mais adequada e justa, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.

- Como vimos, e como refere o ilustre professor Lebre de Freitas, cuja lição vimos seguindo, o principio do contraditório materializa-se , pois, em todas as fases do processo- quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito- tendo as partes, em todo estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentado convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.

- Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar decisões surpresa.

- É, ainda uma decorrência do princípio do contraditório a proibição da decisão surpresa, isto é, decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, como dispõe o n.º 3 do referido artigo 3.

- Decisão surpresa é a solução dada a uma questão que, embora pudesse ser previsível não tenha sido configurada pela parte, sem que esta tivesse obrigação de prever fosse proferida.

- A proibição da decisão surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, “ ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano, meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensando de o fazer, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 3º, e casos de manifesta desnecessidade.

- Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por mão discutidas no processo, as quais, no regime anterior eram permitidas.

20- Pretendeu-se, pois, proibir as decisões surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão.

21- A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de previamente , a discutirem sendo que tal “ entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo n.º 3 do artigo 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz- tarefa em que continua a não estar sujeita ás alegações das partes relativas á indagação interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”.

22- Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada “a priori” possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico. Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.

23- Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.

24 - Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem”.

25-Posto isto, e para efeitos de responder á questão suscitada no douto despacho ora colocado em crise, que os prazos dilatórios correm em férias judiciais, importa delimitar, antes, de mais o conceito de prazo.

26-Ora, “Chama-se prazo o período de tempo dentro do qual um acto pode ser realizado (prazo peremptório, conclusivo, preclusivo ou resolutivo) ou a partir do qual um outro prazo é contado (prazo dilatório ou suspensivo)” – Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 1ª edição, p. 60.

27-O primeiro é um prazo final, extintivo ou resolutivo. A sua fixação " ... funciona como instrumento de que a lei se serve em ordem a levar as partes a exercer os poderes-ónus de que são titulares segundo um determinado ritmo. De facto, tais prazos, na medida em que o seu transcurso implica a impossibilidade de praticar o acto, exercem uma acentuada pressão psicológica sobre o sujeito, titular do poder-ónus, uma vez que este, para evitar a caducidade de tal poder, terá de adoptar um determinado comportamento processual e, consequentemente, praticar o acto dentro dos limites de tempo que lhe são assinalados." - Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, Vol. III, 1982, p. 50.

28-O segundo é um prazo inicial ou suspensivo, o que significa que "O acto não pode ser praticado antes do termo desse prazo, tendendo este a interpor um certo espaço de tempo entre um acto processual e outros que possam seguir-se. São, pois, ditados no interesse da parte contrária à que pratica o acto e daí que se aquela não excepciona a intempestividade, originada pela prática do acto antes do decurso do termo dilatório, a nulidade decorrente não possa ser objecto de conhecimento oficioso, nem invocável pela parte que lhe deu causa" - Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, Vol. III, 1982, p. 49.

29-Sendo assim, temos que o prazo e 30 dias para contestar é peremptório, pois corresponde ao período de tempo dentro do qual o acto (in casu: a apresentação da contestação) pode ser praticado, sob pena de deixar de ser possível praticá-lo (art. 139º/3 NCPC).

30-Já o prazo de dilação de 30 dias e mais 5 dias previstos nos artigos 228 e 245 do CPC são de natureza dilatória, pois corresponde ao período de tempo que antecede a contagem do prazo fixado para a apresentação da contestação (art. 139º/2 NCPC) e justifica-se, no caso em apreço, pelo facto de os réus residirem no estrangeiro e pelo facto de não ter sido o réu EE a assinar o aviso de receção, como aliás o próprio tribunal a quo assume na fundamentação do seu douto despacho.

31-Como quer que seja, ambos os prazos são processuais.

32-“Quando um prazo peremptório se seguir a um prazo dilatório, os dois prazos contam-se como um só.” (art. 142º/1 do NCPC), devendo ter-se em conta, apesar disso, que estão em causa prazos distintos e autónomos que a lei ficciona, apenas para efeitos de contagem, com um prazo único (acórdão do STJ de 6/6/2019, proferido no processo 2008/17.8T8BRG-B.G1.S2).

33-A significar, no caso em apreço, que os réus dispunham, para contestar, de um prazo de 30 dias de dilação, mais cinco dias de dilação, ou seja, 30+5 dias de prazo dilatório, acrescido de um prazo de 30 dias a contar do dia seguinte ao termo do prazo de 30+5 dias.

34-Acresce que o fim do artigo 142 do CPC , determinando que quando um prazo peremptório se segue a um prazo dilatório os dois prazos se contam como- como se fossem- um só, é apenas o de esclarecer que ao termo de um prazo deve seguir-se de imediato a contagem do outro, não significando, de todo , que os dois prazos se convertem num só.

35-Por outro lado, “O prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes.” – art. 138º/1 do NCPC.

36-Ora, no caso em apreço, dúvidas não se suscitam que não estamos perante um processo que a lei considera urgente.

37-E isto porque, uma ação de preferência não assume o caracter de urgente, porquanto não decorre do texto da lei.

38-Feito este esclarecimento a norma acabada de transcrever não distingue entre prazos dilatórios ou peremptórios para efeitos de operacionalização da suspensão em férias judiciais, razão pela qual e sob pena de violação do princípio incontornável em sede de interpretação e aplicação da lei segundo o qual ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus (onde a lei não faz distinção, também o intérprete a não deve fazer) devemos concluir no sentido de que os prazos dilatórios também se suspendem durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes.

39-Acresce que caso a interpretação não fosse esta entraria em colisão com o princípio da proteção da confiança; ou seja, conforme resulta da folha de rosto de citação junta a este recurso, nos termos do n.º 1 do artigo 646 do CPC, esta diz clara e expressamente que o prazo é contínuo, suspendendo-se, no entanto nas férias judiciais.

40-Em notas à folha de citação referida os réus são informados das datas em que ocorrem as férias judiciais.

41-O princípio constitucional da proteção da confiança ínsito no princípio do estado de direito democrático plasmado no artigo 2 da Constituição da república portuguesa implica o mínimo de certeza e segurança no direito das pessoas e nas expetativas que a elas são juridicamente criadas.

42-Quer dizer, o cidadão, destinatário normal das normas constantes da citação em processos judiciais, não poderá ver afetadas as suas expetativas legítimas de defesa em sentido contrário àquele em que o próprio tribunal o informa e que razoavelmente não possam contar com outra interpretação.

43-Ou seja, aquelas pessoas que recebem uma citação por carta registada com aviso de receção e são informadas que o prazo para contestar é contínuo, suspendendo se no entanto nas férias judiciais, não distinguindo entre prazos dilatórios e perentórios para efeitos de operacionalização da suspensão em férias judiciais, vêm frustradas as suas expetativas de proteção de confiança e certeza jurídica relativamente à contagem dos prazos.

44-Por outro lado, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores revela alguns exemplos concretos de processos em que a regra da suspensão dos prazos em férias judiciais também se aplica aos prazos dilatórios.

45-Disso são exemplo o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9/11/2004, proferido no processo 0423231, e o acórdão do TCA Norte de 21/3/2013, proferido no processo 00459/12.3BEPNF.

46-Acresce dizer que a decisão judicial invocada pela meritíssima juiz no seu douto despacho não se pronuncia sobre esta questão de os prazos dilatórios correrem em férias judiciais independentemente de os prazos serem de natureza urgente ao não, sendo certo que o caso apreciado no acórdão do STJ já tinha decorrido o prazo da dilação e estava a correr o prazo da contestação, sendo que apenas este ultimo prazo se interrompeu.

47-Assim sendo, sempre se revelaria inovatória ou surpreendente, e por isso compadecer-se-ia mal com os princípios fundamentais da confiança, da segurança e da proporcionalidade que também devem respeitar-se em sede de interpretação e aplicação da lei, uma interpretação restritiva do tipo daquela que é sustentada pelo tribunal a quo em face da letra do art. 138º/1 do NCPC; sendo certo que não estando em causa prazo com duração igual ou superior a seis meses e não estando aqui em causa processo que a lei considere urgente, o prazo dilatório do artigo 245º n.º 1 alínea a) e n.º 3 do CPC está sujeito à regra de suspensão em férias judiciais consagrada no art. 138º/1 do NCPC.

48-Foram violadas, entre outras, o artigo 138º do CPC.

Termos em que se deve dar provimento ao presente recurso e, por via dele ser revogando o douto despacho interlocutório acima identificado por outro que admita como tempestiva a contestação apresentada pelos réus apelantes como se afigura de elementar

Justiça».

Os AA./Recorridos contra-alegaram, pugnando pela total improcedência do recurso.


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O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo – altura em que o Tribunal a quo conheceu da suscitada questão da nulidade processual da decisão em crise por, alegadamente, se tratar de decisão-surpresa, com violação do princípio do contraditório, nos termos do disposto no art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv., proferindo, então, decisão de indeferimento da arguida nulidade processual ([2]) –, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber:

a) Se ocorre a invocada nulidade processual, por prolação de decisão-surpresa, em violação do princípio do contraditório, com as legais consequências (art.ºs 3.º, n.º 3, 195.º, n.ºs 1 e 2, e 200.º, todos do NCPCiv.);

b) Se ocorre erro de julgamento de direito relativamente à matéria de extemporaneidade da dedução da contestação, para o que importará verificar o modo de realização da citação do R. EE, bem como de contagem dos prazos (dilatório e perentório) para contestar e respetiva suspensão em férias judiciais.


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III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

Ante os elementos documentais juntos ([4]), importa ponderar, para além do que consta do antecedente relatório, a seguinte materialidade factual e dinâmica processual:

1. - Após a dedução da contestação de 09/03/2022, vieram os AA. argumentar, em nova peça processual (datada de 01/04/2022), que:

- o R. EE (último a ser citado) foi citado por via postal, tendo a sua carta sido recebida pelo próprio a 21/12/2022, assistindo-lhe, por isso, o prazo de 30 dias mais a dilação de 30 (por se encontrar no estrangeiro) para contestar, com terminus no dia 04/03/2022;

- os RR. EE e DD, únicos a formular contestação, apenas apresentaram esta sua peça processual de oposição em 09/03/2022, sem que alegassem o seu direito ao complemento dos 3 dias úteis após o termo do prazo, e sem que procedessem ao pagamento imediato da multa devida, nos termos do disposto nas al.ªs a) a c) do n.º 5 do art.º 139.º do NCPCiv.;

- daí que, esgotados todos os prazos previstos para a prática de um ato processual, tal implique a extinção do direito de o praticar, ocorrendo, assim, a extemporaneidade na apresentação da contestação.

2. - Os RR. DD e Manuel Escrivão, em resposta (datada de 22/04/2022), alegaram que:

- o R. EE tinha o prazo de 30 dias para contestar, ao que acresce uma dilação de 30 dias (por ter sido citado no estrangeiro) e mais 5 dias (por não ter sido o próprio a receber a carta), pelo que o prazo para contestar a ação terminou no dia 09/03/2022, com a consequência de não ter sido excedido em nada o respetivo prazo;

- não havendo, por isso, lugar ao pagamento de qualquer multa, deveria a contestação ser admitida por estar dentro do prazo legal.

3. - Em seguida foi proferida a decisão recorrida (datada de 17/05/2022), considerando a contestação extemporânea, com a seguinte fundamentação:

«(…) o réu EE foi o último a ser citado, beneficiando, a partir daquela data, de uma dilação de 35 dias, por residir no estrangeiro e por se desconhecer se a carta lhe foi entregue ou antes a um terceiro, o que terá de valer em seu benefício, por não lhe ser imputável tal falha de registo. (cf. artigo 245.º n.º1 a), 3 e 4 do Código de Processo Civil)

Face ao exposto, o termo do prazo da contestação, relativamente ao último réu a ser citado, ocorreu a 24.02.2022, sendo certo que para a contagem do tempo de dilação não vigora a suspensão decorrente dos períodos de férias judiciais, já que não se trata aqui de um prazo processual peremptório, mas antes de um prazo dilatório, unicamente relacionado com as vicissitudes decorrentes da maior demora na entrega da carta ao destinatário, seja por via dos correios, seja por via de interposta pessoa, o que em nada interfere com a actividade dos tribunais.

(…)

Por outro lado, embora o artigo 142º do CPC, para efeitos de contagem de prazos, disponha que quando um prazo peremptório se segue a um prazo dilatório, os dois prazos contam-se como um só, temos sempre de ter em conta que a dilação e o prazo para contestar constituem dois prazos distintos e autónomos.».

4. - Em 30/05/2022, vieram os mesmos RR. arguir a nulidade processual de tal decisão, com fundamento em violação do princípio do contraditório, pugnando pela sua revogação, «ordenando-se o cumprimento do princípio do contraditório vertido no n.º 3 do artigo 3º do CPC sobre a questão de direito apreciada de saber se o prazo dilatório se suspende ou não durante as férias judiciais».

5. - Em 07/06/2022 foi interposto o recurso em apreciação, insistindo os Recorrentes na dita nulidade processual.

6. - Esta foi, como visto, conhecida e indeferida aquando da admissão do recurso em 1.ª instância.

7. - Do expediente para citação do R. Manuel Escrivão (tal como dos demais RR.) consta – para além da alusão, desde logo, ao «prazo» para contestar e à «dilação», prevendo-se que «O prazo é contínuo suspendendo-se, no entanto, nas férias judiciais» – o seguinte:

«(…)

Tem 30 dias para responder

Se não responder dentro do prazo, o tribunal pode decidir dar razão a quem iniciou o processo contra si.

(…)

Se quiser defender-se, responda a esta carta

Se não responder dentro do prazo, o tribunal pode achar que concorda e que foi por isso que não respondeu. A lei chama a isso a confissão dos factos.

(…)

Tenha em atenção que o prazo começa a contar no dia a seguir à assinatura do aviso de receção.

(…)

Tem 30 dias para se defender

Se quiser contestar o que é dito no pedido contra si, o/a seu/sua advogado/a tem de responder no prazo de 30 dias após receber esta carta. Para saber como se conta este prazo, consulte nesta carta a secção “Como se contam os prazos”.

(…)

Como se contam os prazos

O prazo para responder começa a contar no dia a seguir à assinatura do aviso de receção desta carta. Conta-se em dias corridos, incluindo fins de semana e feriados.

A contagem só fica suspensa durante as férias judiciais:

- entre 22 de dezembro e 3 de janeiro

- entre o domingo de Ramos e a segunda-feira de Páscoa

- entre 16 de julho e 31 de agosto.

O/A seu/sua advogado/a poderá dar-lhe mais informações sobre a contagem dos prazos.

Se esta carta se dirige a uma pessoa e não a uma entidade e se o aviso de receção foi assinado por outra pessoa, o prazo aumenta 5 dias.

Se o prazo terminar num dia em que o tribunal esteja fechado, ainda pode entregar a sua resposta no dia útil seguinte.».

E, exemplificando, neste âmbito, refere-se o seguinte:

«Um exemplo para os casos em que esta carta se dirige a uma pessoa e não a uma entidade:

• Se o aviso de receção foi assinado por si no dia 1 e o prazo indicado for de 15 dias, começa a contar no dia 2 e termina no dia 16.

Se o aviso de receção foi assinado por outra pessoa no dia 1 e o prazo indicado for de 15 dias, começa a contar no dia 2 e termina no dia 21, porque aumenta 5 dias.» (destaques aditados).


***

B) Substância do recurso

1. - Nulidade processual, por violação do princípio do contraditório (decisão-surpresa)

Socorrem-se os Apelantes do disposto no art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv., invocando decisão surpreendente – ao detetarem na fundamentação de direito, em matéria de extemporaneidade da contestação, a referência à não suspensão dos prazos dilatórios concorrentes (por citação no estrangeiro, de 30 dias, e assinatura do A/R por pessoa diversa do citando, de 5 dias), fundamento este essencial para se concluir, como concluiu, pela intempestividade daquele articulado –, por o fundamento adotado, decisivo para o sentido decisório, nunca ter sido discutido nos autos, com o que se teria incorrido em «decisão-surpresa».

Ora, tempestivamente suscitada, assim, a questão da nulidade processual e indeferida esta pelo Tribunal recorrido, importa, desde já, verificar se ocorreu decisão-surpresa, por se tratar de suscitado vício de cariz processual (referente ao procedimento e não à substância jurídica).

Dispõe o art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv. (norma basilar do nosso edifício processual civil, decorrência de consabidas exigências constitucionais), que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Como refere Abrantes Geraldes ([5]), “… só a audição de ambas as partes interessadas no pleito e a possibilidade que lhes é conferida de controlarem o modo de decisão dos tribunais permitirão que a verdade seja descoberta e que sejam acautelados os interesses dos litigantes.

Ao nosso sistema processual civil repugnam as decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, o que apenas excepcionalmente é admitido em situações em que os restantes interesses o impõem.

Da consagração legal do princípio do contraditório decorre que cada parte processual é chamada a apresentar as respectivas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas ou a pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras.

Todas as fases do processo (…) decorrem segundo as regras da mais pura contraditoriedade, num diálogo entre as partes, sob a direcção do juiz, prosseguindo ainda em fase de alegações de direito e em via de recursos …”.

A estrutura de diálogo, consequentemente dialética, entre as partes, perante o Tribunal, que está, por sua vez, obrigado a ouvi-las antes de decidir sobre as questões que se suscitem ao longo da vida do processo, garante o “tratamento paritário” das partes e “uma decisão mais justa e imparcial”, evitando, ao mesmo tempo, que, mormente quanto a questões de direito, de conhecimento oficioso, sejam proferidas decisões “contra a corrente do processo, à revelia das posições jurídicas que cada uma das partes tomara nos articulados ou nas alegações de recurso” ([6]) – as chamadas decisões-surpresa.

Neste âmbito, o preceito do art.º 3.º, n.º 3, do CPCiv., visa alcançar objetivos essenciais do sistema de justiça, tais como “a boa administração da justiça, a justa composição dos litígios, a eficácia do sistema, a satisfação dos interesses dos cidadãos” ([7]).

Assim, o Tribunal, para além de assegurar, a cada passo, o cumprimento do princípio do contraditório, garantindo às partes o atempado e recíproco conhecimento dos atos processuais e das questões suscitadas, terá também, ele próprio (Tribunal), de observar esse princípio, submetendo-se às suas imposições, só podendo decidir questões de facto ou de direito, ainda que de conhecimento oficioso, depois de conceder às partes a possibilidade de pronúncia respetiva, exceto em situações de manifesta desnecessidade.

Não poderá, pois, o Tribunal, sem cuidar da prévia audição das partes, de molde a que possam elas pronunciar-se, apreciar, ex officio, questões jurídicas idóneas a projetarem-se, em termos relevantes e inovatórios, no desfecho do processo (solução jurídica da causa), mormente se ao arrepio de toda a tramitação e posições processuais anteriores, que levaram as partes a pôr de lado um desfecho que, posteriormente, o julgador vem a adotar, sem aviso prévio e contra todas as expectativas dos litigantes.

Assim, a “decisão surpresa, como os vocábulos indicam, faz supor que a parte possa ser apanhada em falta por uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível, não esteja prevista nem tivesse sido configurada por aquela” ([8]).

Quer dizer, haverá “decisão surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio” ([9]).

E, como de há muito vem entendendo a jurisprudência, “A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu uma relação com o pedido formulado para a concreta decisão, ter ou não sido prevista em função da pretensão colocada a quem irá decidir.” ([10]).

É líquido que, no caso dos autos, a questão jurídica a apreciar era a da extemporaneidade – ou não – da contestação deduzida.

Ora, essa questão foi previamente discutida entre as partes, tendo sido suscitada pelos AA., que pugnavam pela extemporaneidade, e respondida pelos ditos RR., que defendiam a tempestividade.

Assim, não há qualquer surpresa no conhecimento dessa questão, nem, nesta perspetiva, na respetiva decisão judicial de extemporaneidade, tal como logo pedido pelos AA. e contrariado pelos RR. mencionados.

O aspeto de algum modo inovatório reside apenas no fundamento encontrado para a decisão de extemporaneidade: tal decisão fundou-se em razões de direito, não expressamente discutidas, concernentes à não suspensão do prazo dilatório em férias judiciais.

Foi o entendimento de que não existia/operava tal suspensão quanto aos prazos dilatórios de 30 e de 5 dias – apenas podendo operar quanto a prazo perentório, o qual, todavia, no caso apenas teria começado a correr após férias judiciais de Natal, logo, não sujeito a qualquer suspensão – que levou à conclusão de que a contestação foi apresentada irremediavelmente fora de prazo.

Ora, é certo que tal fundamento, trazido aos autos pelo Tribunal, não foi objeto de discussão/contraditório.

Mas – perguntar-se-á – teria de sê-lo?

O Tribunal a quo entendeu que não, considerando que «(…) o juiz tem de conceder às partes a faculdade de se pronunciarem sobre um determinado enquadramento legal (…) que não tivessem podido razoavelmente contar», mas «não há lugar ao convite para discutir questões de direito, quando as partes, sem dúvidas, as podiam ter considerado», sendo que a «questão da (in)tempestividade da prática dos atos processuais não configura qualquer tipo de questão/solução de direito que as partes não possam razoavelmente contar», havendo o Tribunal de realizar, oficiosamente, o controlo quanto à tempestividade dos atos processuais, com as «respetivas consequências, porque é, precisamente, o que decorre das regras processuais», «cuja apreciação não constitui qualquer solução jurídica inesperada ou surpresa».

Como referem Abrantes Geraldes e outros ([11]), pretende-se impedir que, no âmbito da liberdade de aplicação das regras de direito ou da oficiosidade de conhecimento de determinadas questões, «as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objeto de qualquer discussão», como pode ocorrer «quando está em causa uma diversa qualificação jurídica dos factos», uma divergência quanto a tal qualificação jurídica.

Também José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ([12]) referem que é proibida «a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes», o que tem essencial aplicação «às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado». Acrescentam que não deve, neste âmbito, equacionar-se o padrão da «diligência devida» das partes ([13]), mas somente, nos termos legais atuais, a «manifesta desnecessidade», a que alude o n.º 3 do art.º 3.º do NCPCiv..

Em suma, o critério legal atual aponta, não para o grau de diligência devida das partes, mas apenas para a manifesta desnecessidade, atentas as especificidades do caso, de audição (prévia) das mesmas.

Mas logo advertem estes mesmos Autores, no plano das questões de direito, que «Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objeto de discussão antes da decisão (…)» (op. cit., ps. 31-32, com destaques aditados).

Ora, no caso dos autos, a questão jurídica da extemporaneidade do articulado foi expressamente discutida antes de ser decidida: deduzida a contestação, logo vieram os AA. argumentar, em nova peça processual, que estavam esgotados todos os prazos previstos para a prática desse ato processual, implicando a extinção do direito de o praticar, com a decorrente extemporaneidade de tal contestação, perante o que os RR. DD e EE em resposta, pugnaram – desenvolvendo, para tanto, a argumentação fáctica e jurídica que entenderam pertinente – por não ter sido excedido em nada o respetivo prazo, com a consequência de a contestação dever ser admitida.

Só depois, exercido o contraditório, foi proferida a decisão recorrida, considerando a contestação extemporânea.

É certo que, na discussão operada, as partes não aludiram ao concreto fundamento que o Tribunal adotou para decidir a questão, o que poderiam ter feito, por se tratar de matéria de direito e ambas as partes se encontrarem patrocinadas por profissional forense, como tal, com todos os conhecimentos necessários de direito.

A este propósito, no âmbito de questão de direito – contagem dos prazos e valoração sobre a tempestividade do articulado, onde tem de ser observado um conjunto de regras processuais plasmadas no NCPCiv. [modo de contagem dos prazos (dilatório e perentório) e respetivas causas de suspensão ou interrupção, tudo nos termos legais] –, é líquido que não se trata de questão trazida aos autos pelo Tribunal (de forma oficiosa e/ou surpreendente) e que houvesse sido decidida sem contraditório das partes, posto, inversamente, terem sido os AA. a suscitá-la, com oportuna resposta da contraparte.

Por isso, o contraditório foi observado e de forma tempestiva (questão expressamente levantada por uma das partes e objeto de discussão antes da decisão).

Porém, sendo o Tribunal livre na indagação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.), cabia-lhe conhecer amplamente da questão, para bem a decidir, segundo o direito aplicável.

Foi o que a 1.ª instância fez: conheceu da questão previamente suscitada e discutida pelas partes, sopesou os argumentos vertidos por estas e aplicou o direito ao factualismo do caso, no escopo de encontrar a melhor decisão jurídica, âmbito em que aplicou – bem ou mal, não importa agora – as regras legais vigentes em matéria de suspensão de prazos, a desembocar no sentido decisório adotado, o da extemporaneidade da contestação.

Nesse contexto, não era necessária nova audição das partes (quanto aos fundamentos da decisão), nem, nesta ótica, se afigura surpreendente uma interpretação jurídica no sentido da insusceptibilidade de suspensão do prazo dilatório por ocorrência de férias judiciais.

As partes, representadas por advogados, podiam, querendo, ter discutido também este aspeto jurídico da questão da (in)tempestividade da contestação, tal como discutiram outros, tanto mais que a jurisprudência não é pacífica sobre a matéria ([14]).

Se, discutindo a questão, entenderam que este aspeto não tinha relevo para o caso, sobre ele não se detendo, tal em nada limitava a indagação de direito do Tribunal, nem as partes poderiam esperar que também o julgador votasse esse aspeto à mesma irrelevância jurídica.

Em suma, amplamente discutida a questão jurídica da (in)tempestividade do articulado – em termos fácticos e de direito – pelas partes (sendo no âmbito destas que foi suscitada e debatida, nos moldes que livremente entenderam), cumpridas logo ficaram as exigências do princípio do contraditório (em matéria jurídico-processual), afastando quaisquer suspeitas de decisão surpreendente ([15]).

Não pode ser visto com surpresa que o Tribunal, na apreciação da questão, se detenha nas normas de direito aplicáveis, designadamente as que regulam sobre suspensão do prazo processual para dedução de contestação (mormente, por ocorrência de férias judiciais).

Ao invés, o que se esperaria, discutida a questão entre as partes, era que o Tribunal oferecesse uma visão abrangente sobre as regras de direito aplicáveis, para boa decisão da matéria, em vez de se cingir à visão jurídica apresentada por aquelas, âmbito em que era manifestamente desnecessário (voltar a) observar o princípio do contraditório nos moldes a que alude o preceito do n.º 3 do art.º 3.º do NCPCiv..

Donde que, observado tal princípio, não tenha aquele Tribunal incorrido em omissão de ato prescrito pela lei (naquele art.º 3.º, n.º 3), inexistindo irregularidade/vício suscetível de influir no exame e decisão da causa, que devesse ser apreciado nos termos gerais do art. 195.º, n.º 1, do NCPCiv. ([16]).

Termos em que, salvo o devido respeito por diverso entendimento, inexistindo a nulidade processual invocada, o recurso tem de improceder nesta parte.

2. - Da extemporaneidade do articulado de contestação

Já quanto a esta questão – também objeto do recurso, configurando até parcela essencial deste –, adianta-se desde já, sempre com o devido respeito, que a apelação terá de proceder.

Vejamos.

No expediente das citações dos RR. alude-se, desde logo, ao «prazo» para contestar e à «dilação», prevendo-se que «O prazo é contínuo suspendendo-se, no entanto, nas férias judiciais», sem alusão expressa/específica, pois, para efeitos suspensivos, à «dilação» (apenas ao prazo).

Porém, no expediente complementar/explicativo da citação (também junto ao processo principal em formato eletrónico, consultado no sistema Citius, quanto a qualquer dos RR.), consta, com relevo, o seguinte:

«(…)

Tem 30 dias para responder

Se não responder dentro do prazo, o tribunal pode decidir dar razão a quem iniciou o processo contra si.

(…)

Se quiser defender-se, responda a esta carta

Se não responder dentro do prazo, o tribunal pode achar que concorda e que foi por isso que não respondeu. A lei chama a isso a confissão dos factos.

(…)

Tenha em atenção que o prazo começa a contar no dia a seguir à assinatura do aviso de receção.

(…)

Tem 30 dias para se defender

Se quiser contestar o que é dito no pedido contra si, o/a seu/sua advogado/a tem de responder no prazo de 30 dias após receber esta carta.

Para saber como se conta este prazo, consulte nesta carta a secção “Como se contam os prazos”.

(…)

Como se contam os prazos

O prazo para responder começa a contar no dia a seguir à assinatura do aviso de receção desta carta. Conta-se em dias corridos, incluindo fins de semana e feriados.

A contagem só fica suspensa durante as férias judiciais:

- entre 22 de dezembro e 3 de janeiro

- entre o domingo de Ramos e a segunda-feira de Páscoa

- entre 16 de julho e 31 de agosto.

O/A seu/sua advogado/a poderá dar-lhe mais informações sobre a contagem dos prazos.

Se esta carta se dirige a uma pessoa e não a uma entidade e se o aviso de receção foi assinado por outra pessoa, o prazo aumenta 5 dias.

Se o prazo terminar num dia em que o tribunal esteja fechado, ainda pode entregar a sua resposta no dia útil seguinte.» (destaques aditados).

E, exemplificando, neste âmbito, refere-se o seguinte:

«Um exemplo para os casos em que esta carta se dirige a uma pessoa e não a uma entidade:

 Se o aviso de receção foi assinado por si no dia 1 e o prazo indicado for de 15 dias, começa a contar no dia 2 e termina no dia 16.

 Se o aviso de receção foi assinado por outra pessoa no dia 1 e o prazo indicado for de 15 dias, começa a contar no dia 2 e termina no dia 21, porque aumenta 5 dias.» (destaques aditados).

Com esta informação ao citando, inculca-se a ideia de que o prazo incorpora a dilação, constituindo esta um aumento do prazo, o qual (prazo para contestar) só termina com a contabilização do aumento constituído pela dilação, seja ela de «5 dias» ou de «30 dias» ou ambas, em conjunto.

Assim, o destinatário da informação – veiculada pelos serviços de Justiça – pode criar, justificadamente, a expetativa de que o prazo perentório para contestar (de 30 dias) «aumenta», no caso, em 35 dias (30+5).

Aqui, pois, para efeitos de operacionalizar a contagem do tempo para apresentação da defesa/contestação, já não se distingue entre prazo e dilação, sendo esta tratada como um «aumento» no «prazo indicado».

Ora, ao cidadão comum (comummente um não especialista em questões jurídicas e processuais), ao ler este expediente de citação, no seu primeiro contacto com a matéria – normalmente, desacompanhado ainda de mandatário judicial, pois só posteriormente irá diligenciar pela constituição de advogado ou nomeação de patrono, em caso de dedução de contestação –, é compreensível que escape a distinção (jurídico-processual) entre «prazo» e «dilação», entre prazo perentório e prazo dilatório, apenas lhe restando, nesse contacto, confiar na veracidade/exatidão da informação que lhe é transmitida, podendo até, em função da sua leitura, programar a sua vida, em termos de recurso a advogado, confortado pelo «prazo aumentado», ante a explicação oferecida sobre «Como se contam os prazos».

E, se lhe é dito que «A contagem só fica suspensa durante as férias judiciais» – podendo advogado(a) «dar-lhe mais informações sobre a contagem dos prazos», isto é, para além das assim oferecidas –, também lhe é indicada a ideia de aumento do prazo por força da dilação (o «prazo aumenta 5 dias», como também, na situação dos autos, em «30 dias»).

Em suma, a ideia que se transmite para o destinatário (comummente um leigo na matéria, então ainda desacompanhado de especialista/advogado) é a de que o prazo para contestar incorpora/absorve a dilação, vista como um aumento desse prazo, o qual (prazo para contestar) só terminaria com a contabilização do aumento constituído pela dilação, seja ela de «5 dias» ou de «30 dias» ou ambas.

Compatível com uma leitura/interpretação normalmente diligente por parte do destinatário da informação ([17]) é a dita criação – justificada face ao teor do texto que lhe é enviado – da expetativa de que o prazo para contestar sofre um «aumento», vigorando desde o «dia a seguir à assinatura do aviso de receção desta carta» até à completude do seu «aumento» de 5+30 dias (dilações concorrentes no caso).

Aqui, pois, já não se distingue entre prazo e dilação, tudo se passando, para efeitos de contagem, como se houvesse um (só) prazo aumentado.

Quer dizer, se, em termos jurídicos, tem de proceder-se à distinção entre prazo dilatório («dilação» aludida) e prazo perentório (o prazo legalmente previsto para oferecimento da contestação), na informação veiculada pelos serviços de Justiça (dirigida ao citando/réu), globalmente percecionada, não se retira, em impressão final, essa distinção, mormente por um destinatário leigo na matéria, não lhe sendo, pois, transmitida, de modo algum, a ideia de que só o prazo perentório é suscetível de suspensão pelo decurso de férias judiciais ([18]).

Ao invés, a impressão do destinatário, em normal interpretação, aponta para o sentido oposto, de um aumento do prazo – sem autonomização do prazo de dilação –, âmbito em que se afigura surpreendente para tal destinatário que depois se conclua que, afinal, uma parte do tempo desse prazo «aumentado» não se suspende em férias judiciais (só outra parcela podendo ser objeto dessa suspensão).

Donde, pois, que uma interpretação como a que veio a colher nos autos (na decisão recorrida), independentemente da sua bondade jurídica, seja de ter como surpreendente/inesperada para o destinatário, frustrando-lhe a expetativa, legitimamente criada, perante o conteúdo da informação que lhe foi transmitida, de que todo o prazo «aumentado» estaria sujeito à suspensão nas férias judiciais.

Pode contra-argumentar-se que o citando deveria socorrer-se de advogado que o ajudasse a interpretar juridicamente a informação transmitida.

Porém, é o próprio expediente de citação que lhe declara que «O/A seu/sua advogado/a poderá dar-lhe mais informações sobre a contagem dos prazos» (destaque aditado). Isto é, outras informações para além das assim transmitidas, pelo que o quadro informativo veiculado seria – só assim poderia entender-se, numa relação entre Estado e cidadão – correto/exato e verdadeiro/adequado (em vez de incompleto ou parcial e, como tal, viciado), razão pela qual é compreensível que o citando/destinatário, confiado no que lhe era comunicado, não sentisse necessidade de recurso imediato a advogado, conformando-se com a expetativa criada de que teria um prazo alargado de 65 dias, ademais, sujeito a suspensão/paragem no tempo de férias judiciais.

Ora, é sabido que quem opta por prestar informações, mesmo não estando obrigado a fazê-lo, pode ficar sujeito a um dever de informação completa, de molde a evitar um quadro informativo enganoso por omissão, como pode ver-se, no campo contratual/privatístico, explicitado no Ac. TRL de 13/03/2014, Proc. 1122/11.8TVLSB.L1-6 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt ([19]).

Doutrina esta que deve colher aplicação, por maioria de razão, em relação aos serviços/órgãos do Estado (no caso, serviço de Justiça, perante um cidadão, com inerente dever de boa-fé e verdade) que apresentam um quadro informativo ao demandado/citando em ação judicial, para efeitos de defesa deste em processo judicial contra si instaurado.

Se os serviços do Tribunal prestam informação ao citando, em formulário de que dispõem, acompanhando o expediente de citação (com dimensão explicativa/informativa), sobre prazo para defesa/contestação e respetivo modo de contagem, apresentando-o como um prazo aumentado pela dilação, que se suspende em férias judiciais, então não é exigível ao destinatário que proceda à distinção entre prazo dilatório e prazo perentório, para concluir que só este último (e não aquele) está sujeito a essa suspensão.

Ao invés – reitera-se –, com tal procedimento criou-se a expetativa legítima (ao destinatário, comummente um leigo na matéria) de que se tratava de um prazo (processual) sujeito a «aumento», e, por isso, todo ele sujeito à possibilidade daquela ocorrência de suspensão por férias judiciais (cfr. art.ºs 138.º, n.º 1, e 142.º, ambos do NCPCiv.).

Acresce que, distinguindo a lei entre prazo dilatório e prazo perentório (art.º 139.º do NCPCiv.), quanto às modalidades de prazo processual, naquele art.º 138.º, n.º 1, para efeitos de continuidade/suspensão dos prazos, apenas alude, genericamente, a «prazo processual», deixando assim margem para a possibilidade de alguma dúvida sobre se pretende abarcar neste conceito («prazo processual») uma dessas modalidades ou ambas elas, na compatibilização com a economia do preceito do mencionado art.º 142.º.

Bem se compreende, pois, que possa haver espaço para alguma divergência entre os Tribunais superiores nesta latitude do sistema, âmbito em que não pode deixar de ser considerado o referenciado ([20]) Ac. STJ (citado na decisão recorrida) de 06/06/2019 ([21]), ao enfatizar a distinção jurídica e funcional entre prazo dilatório e perentório ([22]), aresto este que, todavia, se refere, diversamente, a um caso de interrupção do prazo por força do regime do apoio judiciário na sequência de pedido de nomeação de patrono, em que já tinha decorrido o prazo da dilação, só podendo «interromper-se um prazo que esteja em curso».

É certo, no entanto, como já visto, saber-se da existência de arestos das Relações no sentido de também o prazo dilatório dever ser considerado abrangido pela suspensão, como entendido, inter alia, no mencionado Ac. TRP de 15/12/2021, Proc. 296/21.4T8PVZ-A.P1, enfatizando-se ainda no respetivo sumário: «IV – Em todo o caso, tendo a secretaria assinalado na nota de citação um prazo de 35 dias para contestar, é este que deve ser considerado o prazo de contestação e não o previsto no art. 569.º CPC posto que os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes (art. 157.º, n.º 6 CPC).».

E já no referenciado Ac. TRC de 05/05/2015, Proc. 50/14.0T8CNT.C1, se entendia assim:

«III - Ademais, se a secretaria funcionalmente dependente do juiz, remeteu ao patrono nomeado e ao próprio R a notificação de que o prazo para a apresentação da contestação se iniciou a partir de então, esse comportamento gerou no R a legítima expectativa e a fundada confiança de que poderia praticar tal acto nesse prazo.

IV – Ora, incumbindo aos tribunais, no exercício do essencial poder judicial do Estado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, estes não esperam da sua parte qualquer afronta ao clima de boa-fé e de confiança em que têm o direito de acreditar na sua relação com todos os poderes públicos, porquanto as expectativas por eles legitimamente criadas, resultantes de comportamentos dos poderes públicos, impõem a previsibilidade da actuação destes, ínsita no princípio do estado de direito democrático, nas suas vertentes dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.».

Num tal plano de alguma divergência jurisprudencial – a que têm acesso os especialistas, mas comummente inacessível aos meros leigos –, bem se compreende que o destinatário da citação dos autos, ante a explicação escrita que lhe foi oferecida, tenha formado a convicção e decorrente expetativa de que todo o prazo «aumentado» estaria sujeito à disciplina/regra «de continuidade dos prazos» (cfr. epígrafe do art.º 138.º do NCPCiv.), com suspensão pela ocorrência de férias judiciais.

Expetativa que, uma vez criada e legitimamente justificada, não lhe poderia ser inviabilizada pelo sistema de Justiça, sob pena de ofensa aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos (como subprincípios concretizadores do Estado de Direito democrático – art.º 2.º da CRPort.), posto, ademais, estar em causa a relevante matéria de oferecimento da contestação/defesa e consequências (cominatório) decorrentes da falta de contestação ([23]).

Assim sendo, a decisão recorrida não pode ser mantida na parte em que considerou, no âmbito do caso, que, devendo entender-se ocorrida a citação em 21/12/2021, não teve lugar a suspensão do prazo por força das férias judiciais de Natal desse ano (entre 22/12/2021 e 03/01/2022), por estar então a correr o prazo dilatório, com a consequência de o prazo para contestar, sem qualquer suspensão, terminar a 24/02/2022, em vez de em 09/03/2022, como pretendido pelos Recorrentes, data esta em que se apresentaram a contestar ([24]).

Em suma, visto o ocorrido in casu, não poderá vingar, salvo o devido respeito, o entendimento no sentido da extemporaneidade da contestação, razão pela qual não podem considerar-se provados os factos articulados na petição por via de falta de contestação (inaplicabilidade do disposto no art.º 567.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Termos em que a apelação haverá de proceder, nesta perspetiva, por dever considerar-se tempestiva a contestação dos RR./Recorrentes, com decorrente revogação da decisão recorrida.

                                                 ***

(…)

                                                 ***

V – Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se tempestiva a contestação dos RR./Recorrentes, com as legais consequências.

Custas da apelação pelos AA./Recorridos – parte vencida no recurso (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 28/09/2022

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro





([1]) Que se deixam transcritas no relevante, com destaques retirados.
([2]) Cfr. despacho datado de 12/07/2022, constante de fls. 24 e segs. dos autos em suporte de papel.
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Aos presentes autos de recurso e ao processo principal (de onde os de apelação foram extraídos), consultado este no sistema Citius.
([5]) Cfr. Temas da Reforma do Processo Civil, I vol., Almedina, Coimbra, 2.ª ed., 1998, pág. 75, que se cita.
([6]) Assim, Abrantes Geraldes, op. cit., págs. 75 e 77.
([7]) Continua a seguir-se Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 79.
([8]) Cfr. Ac. STJ, de 24/02/2015, Proc. 116/14.6YLSB (Cons. Ana Paula Boularot), em www.dgsi.pt..
([9]) Vide Ac. STJ, de 19/05/2016, Proc. 6473/03.2TVPRT.S1 (Cons. António da Silva Gonçalves), em www.dgsi.pt, explicitando que “apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever”.
([10]) Assim já o Ac. STJ, de 14/05/2002, Proc. 02A1353 (Cons. Lopes Pinto), em www.dgsi.pt.
([11]) Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 19 e seg..
([12]) Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, ps. 31 e segs..
([13]) Que havia sido acolhido no DLei n.º 329-A/95 – e foi objeto de supressão através do DLei n.º 180/96 –, não sendo difícil imaginar – acrescentam tais Autores – um raciocínio judicial de acordo com o qual, se o juiz se apercebe de certa questão oficiosa, também as partes, se tivessem sido diligentes, dela se podiam ter apercebido, com o que dificilmente poderia ocorrer uma decisão-surpresa.
([14]) Cfr. o Ac. STJ (citado na decisão recorrida) de 06/06/2019, Proc. 2008/17.8T8BRG-B.G1.S2 (Cons. Catarina Serra), disponível em www.dgsi.pt e, por outro lado, o Ac. TRP de 09/11/2004, Proc. 0423231 (Rel. Henrique Araújo), em www.dgsi.pt, este último seguindo orientação no sentido de a contagem do prazo perentório de defesa e a dilação que a antecede se fazer como se de um único prazo se tratasse, sendo por isso irrelevante que, por exemplo, o termo do prazo dilatório seja dia de encerramento do tribunal – caso em que o prazo para contestar era de 20 dias, havendo, a antecedê-lo, uma dilação de 5 dias, operando-se a contagem dos «25 dias, com início no dia 15 de Setembro de 2001», não obstante a citação ter ocorrido em férias judiciais de verão [apurou-se que em 16/07/2001 «foram enviadas aos Réus cartas registadas, com avisos de recepção, para a sua citação», tendo-se a citação por consumada em tempo de férias judiciais, que na altura se prolongavam de «16 de Julho a 14 de Setembro»]. Veja-se também, neste último sentido, o Ac. TRP de 15/12/2021, Proc. 296/21.4T8PVZ-A.P1 (Rel. Fernanda Almeida), em www.dgsi.pt, considerando, no âmbito do disposto no art.º 6.º-B da Lei 4-B/2021, de 1/02 – que declarou suspensos todos os prazos para a prática de atos processuais, não tendo efetuado distinção entre prazos perentórios e prazos dilatórios –, que, «achando-se suspensos todos os prazos, também o dilatório deve ser considerado abrangido pela suspensão, apenas se contando – em unidade com o perentório – depois de cessada aquela suspensão». Já num caso de interrupção, no âmbito regime do apoio judiciário, do prazo para dedução de embargos de executado (de 20 dias), a que se adicionava dilação de 10 dias (5+5), num total, pois, de 30 dias, foi considerado, do mesmo modo, que, citada a parte «a 29.6.2020», o prazo «estava em curso quando no dia 16 de julho se suspendeu devido às férias judiciais», pelo que deveria «ter sido retomada a sua contagem após as férias, no dia 1 de setembro seguinte, mas, como se interrompeu no dia 31 de agosto» [aqui por força daquele regime legal do apoio judiciário], «a sua contagem tem que ser reiniciada apenas após ter findado a interrupção, ou seja, no dia 24.11.2020. Assim os 30 dias a contar para a dedução de embargos esgotaram-se no dia 5 de janeiro de 2021» – cfr. Ac. TRP de 17/06/2021, Proc. 1621/20.0T8VLG-A.P1 (Rel. Filipe Caroço), em www.dgsi.pt.
([15]) Como considerado em aresto desta Relação e Secção, as partes tiveram, previamente, «oportunidade para tecer todas as considerações jurídicas que entendessem, sob os mais diversos prismas que a questão de direito pudesse revestir» – cfr. Ac. TRC de 26/04/2022, Proc. 89/21.9T8PCV.C1 (Rel. Luís Cravo), em www.dgsi.pt. (em que intervieram ambos os aqui Exm.ºs Adjuntos).
([16]) Vide, quanto à natureza do invocado vício, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 32.
([17]) Num contexto em que ainda não estava representado por advogado, «o que tudo o sujeita a um mitigado grau de censura», parafraseando o Ac. TRC de 05/05/2015, Proc. 50/14.0T8CNT.C1 (Rel. Alexandre Reis), em www.dgsi.pt, que adiante se citará novamente.
([18]) É percetível a conceção subjacente – ou, pelo menos, a abertura de margem para tanto – no sentido de o prazo ser composto pela dilação (dupla dilação, de cinco e trinta dias) e pelo prazo para a contestação (de trinta dias), visto como um prazo unitário, sujeito à dita suspensão, que o abrangeria por inteiro.
([19]) Em cujo sumário pode ler-se, na órbita do princípio da boa-fé, que: «3. - É possível a existência de declaração inexacta (desconforme com a realidade) apesar de todos os factos relatados serem verdadeiros, se tal declaração for globalmente enganadora por falta de referência a outros que, assim omitidos, afectam o peso do factualismo declarado – hipótese em que o quadro comunicado pode ser literalmente verdadeiro, mas enganador por criar uma impressão contrária à verdade. //4. - Em tais casos, a parte declarante, mesmo que inicialmente não obrigada ao dever de informação, se opta por prestar informações, terá então de ser especialmente cuidadosa em assegurar que a outra parte não é enganada pelo que lhe é comunicado, justificando-se então um dever de verdade.».
([20]) Vide nota 14.
([21]) Com reporte ao Ac. TRE de 22/03/2012, Proc. 1179/10.9TBLLE.E1 (Rel. Mata Ribeiro), em www.dgsi.pt, cujo entendimento não foi acolhido pelo STJ. Com efeito a Relação de Évora entendera que o prazo interrompido começou a correr de novo, por inteiro, incluindo a dilação, constando do respetivo sumário: «1ª - A comprovação nos autos de que foi requerido apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono faz interromper qualquer prazo que esteja em curso. // 2ª - A interrupção inutiliza o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir da notificação do patrono nomeado da sua designação.».
([22]) Ali se refere que «(…) estamos perante dois prazos de natureza e funções distintas e não perante um único prazo. // O prazo peremptório tem por função marcar o período de tempo durante o qual pode praticar-se um acto de processo, como sucede com o já mencionado prazo para o oferecimento da contestação. Por sua vez, o prazo dilatório destina-se a estabelecer uma pausa, uma dilação, um compasso de espera (…), de que é exemplo o prazo dilatório acima referido. // Por outro lado, enquanto que o decurso do prazo peremptório faz extinguir o direito de praticar o acto, o decurso do prazo dilatório põe termo à pausa, à suspensão do início do cômputo do prazo peremptório, tendo por efeito o começo do curso deste último prazo. // Assim, tratando-se de prazos com funções distintas, constituem também eles próprios prazos distintos, distinção esta que resulta expressamente do elemento literal subjacente à interpretação dos arts. 142º e 569º nº 1, ambos do C.P.C.: ambos os dispositivos legais distinguem sempre a existência de dois prazos, ainda que um seja imediatamente seguido do outro. Não estamos, pois, perante um único prazo de 35 dias, mas sim dois prazos, um de 5 dias e outro diverso de 30 dias. // Pelo que a interrupção do prazo peremptório não pode ter por virtualidade o reinício do cômputo do prazo dilatório que tenha já decorrido antes do facto interruptivo.».
([23]) Cfr., neste quadro, o invocado sob a conclusão 41.ª do Apelante.
([24]) Ocorrida a citação em 21/12/2021, no dia seguinte tiveram início as férias judiciais, pelo que, quando se verificou a causa suspensiva, é manifesto ainda não estar expirado o prazo dilatório, que apenas se iniciaria nesse dia seguinte (22).