Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
488/21.6T8CTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: CONTRADITA
REQUISITOS
CONTRADIÇÃO ENTRE DEPOIMENTO TESTEMUNHAL E TEXTO SUBSCRITO PERANTE “PERITO-AVERIGUADOR”
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA, COM VOTO DE VENCIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 423.º, 521.º E 522.º, 1 E 2, DO CPC
Sumário: 1. No incidente da contradita, não se trata de atacar o conteúdo do depoimento, fazendo valer a sua falsidade, mas de invocar novos factos (acessórios) que, sendo exteriores ao depoimento, ponham em causa a razão de ciência invocada pela testemunha ou a que ela possa merecer, destruindo ou enfraquecendo o depoimento prestado.
2. Não estão reunidos os requisitos da contradita, se apenas se invoca que o texto subscrito perante “perito-averiguador” - incumbido pela Seguradora Ré de realizar a averiguação do sinistro -, e por ele elaborado, é contrário ao que a testemunha (arrolada pelo A.) veio dizer em audiência de julgamento.

3. Aquele texto, ou similar, não é equiparável, por exemplo, a anteriores depoimentos testemunhais em processo (judicial) de inquérito ou prestados em audiência de julgamento.

4. Perspetiva contrária potenciaria a multiplicação de situações geradoras do incidente da contradita e sua descaraterização.

5. O depoimento de testemunhas arroladas nos autos não constitui ocorrência posterior para efeitos de apresentação de documentos não juntos aos autos, com fundamento na parte final do n.º 3 do art.º 423 do CPC.

Decisão Texto Integral: Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Carlos Moreira
Vítor Amaral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:        

  

I. Em 08.4.2021, AA instaurou a presente ação declarativa comum contra A... – Companhia de Seguros, S. A., pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 182 206,50[1] a título de indemnização por danos decorrentes do sinistro referido na petição inicial.                                                      

A Ré contestou e concluiu pela improcedência da ação.

No decurso da 1ª sessão da audiência de julgamento, a Ré suscitou a “contradita” de duas testemunhas, indeferida pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo.

           Dizendo-se inconformada, apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - A contradita requerida das testemunhas BB e CC devia ser recebida, pelo que os despachos que indeferiram cada uma delas é ilegal.

            2ª - As declarações que cada uma daquelas testemunhas fizeram constar dos documentos cuja junção se requereu na audiência de julgamento, em contradição frontal com os depoimentos prestados nesta são meio idóneo para abalar a credibilidade de cada uma daquelas pessoas.

            3ª - Foi com o intuito de abalar tal credibilidade e não com o de pôr em causa a veracidade dos depoimentos que as contraditas foram requeridas.

           4ª - O Acórdão do STJ de 13.10.1998 considerou em caso similar que “é admissível, face ao disposto no então em vigor art.º 640º do CPC (a que corresponde atualmente o art.º 521º) a contradita de uma testemunha com o fundamento em o depoimento que prestou em julgamento ser diferente do que havia prestado em processo de inquérito, uma vez que ela visa o enfraquecimento do depoimento, mas não é essencial que o inutilize.

            5ª - E já antes o Acórdão da RP de 17.4.1997 considerou que não se mostra necessário que o elemento, documento ou circunstância apontada para alicerçar o pedido de contradita relativamente a depoimento prestado em audiência de julgamento tenha a mesma solenidade ou ofereça iguais garantias, já que não se exige propriamente a destruição do depoimento prestado, contentando-se a lei com a prova de um facto suscetível de afetar a credibilidade da pessoa contraditada.

            6ª - O Meritíssimo Juiz a quo não devia ter concluído o que fez constar dos dois despachos quando refere que o que se pretendeu com as contraditas foi pôr em causa a veracidade dos depoimentos, pois, na realidade o que se pretendeu pôr em causa foi a credibilidade das testemunhas.

           7ª - E ninguém pode razoavelmente duvidar que quem prestou declarações contraditórias sobre os mesmos factos em momentos diferentes tem a sua credibilidade necessariamente abalada.

           8ª - A recorrente só tinha que alegar, quando requereu as contraditas, os factos ou circunstâncias que levam a que tal credibilidade fique abalada.

           9ª - Basta alegar-se que sobre os mesmos factos ao perito averiguador as testemunhas prestaram declaração em sentido totalmente contraditório ao depoimento

feito em Tribunal, para logo se perceber que o que se pretende é abalar tal credibilidade.

            10ª - E isso resulta inequivocamente do facto de:

            a) A testemunha BB ter declarado em audiência que o A. estava a trabalhar e era por isso que estava em cima do atrelado e na declaração assinada e entregue ao perito ter declarado que não andava a trabalhar, mas apenas a ver (apreciar, avaliar) se conseguia fazer o trabalho da colheita da cortiça e que desconhecia o motivo que levou a subir para o atrelado sem avisar o condutor, mas que pensava que era para apanhar boleia para chegar junto do depoente (que estava noutro local).

            b) A testemunha CC declarou na audiência de julgamento que o A. andava a trabalhar e estava, por isso, a acamar a cortiça em cima do atrelado, mas na declaração assinada e entregue ao perito averiguador disse que não se apercebeu que o A. tinha subido para a parte de trás do atrelado, nem os motivos porque o fez.

           11ª - Quem ora diz uma coisa, quando antes já tinha dito outra diferente e contraditória, tem a sua credibilidade necessariamente abalada.

           12ª - Por isso, o Meritíssimo Juiz a quo, que não pode ter deixado de perceber o que se acaba de dizer, devia ter admitido a contradita, como é imposto pelo art.º 521º do Código de Processo Civil (CPC), em vez de se servir de um argumento meramente formal que não tem a ver com a realidade concreta do que foi requerido.

           13ª - Acresce que, mesmo admitindo como boa esta interpretação do Meritíssimo Juiz a quo - que, repete-se, não corresponde ao que se requereu - ainda assim, em obediência ao princípio da verdade material, devia ter admitido a junção das

declarações atribuídas a cada uma das testemunhas, para que estas fossem confrontadas com elas.

            14ª - Com efeito, o art.º 423º, n.º 3, na sua parte final, permitia que tais declarações fossem juntas na audiência, porque foi só na audiência de julgamento que tais testemunhas prestaram o seu depoimento, só então se verificando que o seu depoimento era totalmente ao contrário do que logo a seguir ao acidente declararam ao perito averiguador.

           15ª - Com efeito, o que as testemunhas declararam em audiência foi uma novidade em relação ao declarado antes.

           16ª - E não se confundindo esta situação com a contradita, na compreensão do Meritíssimo Juiz, então deveria ter considerado o depoimento das mesmas uma ocorrência posterior que torna necessário, pela sua utilidade, a apresentação de tais declarações fora dos momentos previstos no art.º 423º, n.ºs 1 e 2 do CPC, admitindo a sua junção.

           17ª - Ou seja: a junção das declarações foi requerida para instruir a contradita, e abalar a credibilidade das pessoas e não os seus depoimentos, mas não tendo o Meritíssimo Juiz a quo compreendido assim, mas antes que se estava a querer pôr em causa o próprio depoimento, então devia dentro de tal entendimento, ser admitida a sua junção, uma vez que o depoimento prestado em audiência pelas testemunhas em questão consubstancia uma ocorrência para efeitos do n.º 3, in fine, do art.º 423º do CPC.

            18ª - Foram violadas as normas dos art.ºs 521º e 522º, n.ºs 2 e 3 e 423º, n.º 3 do CPC.

            Remata pugnando pelo recebimento das contraditas ou, se assim se não entender, pela admissão da junção dos dois documentos, que constituem as “declarações prestadas ao perito averiguador”.[2]

            O A. não respondeu.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso[3], há que apreciar e decidir se a contradita deve ser recebida e/ou se é de admitir a junção das ditas “declarações”/documentos.


*         

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que consta do relatório que antecede e ainda:

           a) Na 1ª sessão da audiência de julgamento (de 24.11.2023), aquando da inquirição de duas testemunhas arroladas pelo A., a Ré aduziu e requereu:

            «(...) a testemunha BB numa 1ª fase do seu depoimento deu a entender, pelo menos assim se interpretou o seu depoimento, que o A. estava a trabalhar no momento em que ocorreu o acidente que se discute no presente processo; tendo-lhe sido perguntado depois se declarou ao averiguador que o contactou para esclarecer as circunstâncias deste acidente, se tinha dito que estava apenas a verificar se conseguiria fazer aquele tipo de trabalho e decidir se voltaria a colaborar com a testemunha ou a empresa da testemunha, e se declarou que desconhecia o motivo que o levou a subir para o atrelado sem avisar o condutor mas pensa que pretendia uma boleia para chegar até à própria testemunha, disse que não se recordava. / Uma vez que a Ré dispõe da declaração que a testemunha (...) assinou e que se acaba de fazer referência, requer a contradita da testemunha bem como a junção da referida declaração para efeitos de a mesma poder ser confrontada com ela.[4]»

           E, depois, «(...) a testemunha CC admite ter falado com o averiguador da companhia e também ter assinado uma declaração a descrever o acidente, tendo-lhe perguntado expressamente se dessa declaração que assinou constava que não se apercebeu que o A. havia subido para a parte de trás do trator por motivos que desconhecia, embora admita que pode constar de tal declaração, não confessa expressamente. / Nessa medida requer a contradita da testemunha e requer a junção da referida declaração para que o Tribunal a possa confrontar com a mesma, se assim entender[5]

           b) O A. não se opôs à contradita, que, não obstante, considerou irrelevante para o que se discute nos autos (v. g., saber se - para caracterizar/concretizar o acidente como de viação - o A. “estava à boleia ou a trabalhar, embora ainda à experiência”); referiu também o que se lhe afigurou ser o sentido da prova pessoal produzida e considerou inexistirem as contradições nos depoimentos invocadas pela Ré.

            c) De seguida, decidiu inicialmente o Mmº Juiz:

            «Nos termos do art.º 521º do CPC, a parte contra a qual for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afetar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer, designadamente, dado o interesse no litígio, na relação de parentesco ou relacionamento com as partes. / O presente incidente visa questionar a credibilidade da própria testemunha e não a veracidade do depoimento, não se destinando à contraprova deste, ou seja, destina-se a atacar a pessoa do depoente e não o próprio depoimento. Por outras palavras, não se alega que o depoimento é falso ou a testemunha mentiu, antes que a testemunha não merece crédito por infirmar-se a sua ciência ou a sua isenção. / No caso em apreço o Ilustre Mandatário da Ré pretende confrontar a testemunha com um documento do qual pretende extrair que o depoimento não é inteiramente verdadeiro. / Por esta razão, entendemos que não se pretende com tal documento abalar a credibilidade do depoimento da testemunha em causa no sentido em que afeta a razão da ciência ou que faz diminuir a fé que possa merecer. Por outras palavras, a Ré pretende atacar a veracidade do depoimento, mas não a pessoa do depoente. / Em face do exposto, indefere-se a requerida contradita. (...)»

           d) Fez-se constar da ata da aludida sessão que, requerida segunda contradita, a Ré “requereu a junção de documentos para o efeito do incidente da contradita” e, de seguida, pelo Mm.º Juiz de Direito foi proferido despacho idêntico ao mencionado em c), com a seguinte parte final: «(...) No caso em apreço, o Ilustre Mandatário da Ré pretende demonstrar que a testemunha mentiu e que o depoimento é falso, não alegou antes que a testemunha não merece crédito, por se infirmar a sua ciência ou alguma razão que faça diminuir a fé que possa merecer. / Em face do exposto, indefere-se a requerida contradita nos termos dos art.ºs 521º e 522º do CPC. / Quanto aos documentos cuja junção se requereu (nas duas contraditas requeridas) para efeitos de contradita, fica prejudicada a sua junção, face ao indeferimento das contraditas. / Contudo digitalize tais documentos, para que fique na contracapa do processo para efeitos de recurso. (...)»

            2. Cumpre apreciar e decidir.

           A parte contra a qual for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afetar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer (art.º 521º, sob a epígrafe contradita, do CPC[6]).

           A contradita é deduzida quando o depoimento termina (art.º 522º, n.º 1). Se a contradita dever ser recebida, é ouvida a testemunha sobre a matéria alegada; quando esta não seja confessada, a parte pode comprová-la por documentos ou testemunhas, não podendo produzir mais de três testemunhas (n.º 2).

           3. O incidente da contradita visa a enfraquecer a força probatória do depoimento já prestado; faz-se um ataque, não ao depoimento propriamente dito, mas à pessoa do depoente; não se alega que o depoimento é falso, que a testemunha mentiu; alega-se que, por tais e tais circunstâncias, ´exteriores` ao depoimento, a testemunha não merece crédito. Só quando a contradita se dirige contra a razão de ciência invocada pela testemunha, é que as declarações desta são postas em causa; mas ainda aqui não se atacam diretamente os factos narrados pelo depoente, só se ataca a fonte de conhecimento que ele aponta.[7]

            Não se trata de atacar o conteúdo do depoimento, fazendo valer a sua falsidade, mas de invocar novos factos (acessórios) que, sendo exteriores ao depoimento, ponham em causa a razão de ciência invocada pela testemunha ou a que ela possa merecer, destruindo ou enfraquecendo o depoimento prestado, de modo a que o juiz não venha a tê-lo em conta, ou o tenha só reduzidamente em conta, no juízo que fará sobre a prova dos factos que dele foram objeto.[8]

           4. Preceituava o art.º 2 514º do Código Civil de 1867 (aprovado por Carta de Lei de 01.7.1867) que a força probatória dos depoimentos será avaliada, tanto pelo conhecimento, que as testemunhas mostrarem ter dos factos, como pela fé que merecem por seu estado, vida e costumes, ou pelo interesse que possam ter ou não ter no pleito, ou, finalmente, pelo seu parentesco ou relação com as partes.[9]

           5. Com o dito incidente pretende-se questionar a credibilidade da própria testemunha, pondo em causa a sua isenção e não diretamente a veracidade do seu depoimento (embora, tal possa acontecer indiretamente, pois que procedendo o incidente, esta veracidade possa ficar afetada pela falta de credibilidade ou isenção da testemunha em causa); dirigindo-se, pois, à pessoa da testemunha - sua idoneidade/probidade -, considera-se que não poderá ser deferido de ânimo leve, antes sendo exigível a prova de factos gravosos que permitam e justifiquem a perniciosa afetação dos seus direitos de personalidade.[10]

            6. No caso em análise, salvo o devido respeito por entendimento contrário, antolha-se evidente que não estão reunidos os requisitos da contradita, porquanto apenas se invoca que o texto subscrito perante o “perito-averiguador” - incumbido (pela Ré) de realizar a averiguação do sinistro - é contrário ao que duas testemunhas (arroladas pelo A.) vieram depois dizer em audiência de julgamento.

            Na verdade, nada mais se alegou!

           O que se invoca não é suscetível de afetar a razão de ciência e/ou a , o crédito ou o merecimento das testemunhas em causa.

           O aduzido pela recorrente não assume dignidade e força bastantes para implicar tal gravoso ditame para a pessoa da testemunha e colocar em causa a sua credibilidade.[11]

           Ademais, visto o que corporiza os intitulados “depoimento(s) em acidente de viação” - cuja cópia foi reproduzida nos autos[12] -, com todo o respeito, não se compreende como se ousa estabelecer algum paralelismo com os depoimentos testemunhais em processo (judicial) de inquérito ou em audiência de julgamento.[13]

           7. Não verificados os pressupostos da contradita, queda prejudicada a pretensão de “junção de documentos” (apenas com fim de realizar o incidente da contradita), pois dúvidas não restam sobre as circunstâncias da sua dedução em juízo [cf., nomeadamente, II. 1. a) e d), supra].

           E porque a Ré não apresentou pedido para essa junção desligado daquele concreto circunstancialismo ou enquadramento normativo[14], nada justifica o atendimento da pretensão deduzida, em sede de alegação de recurso, com a invocação do disposto no art.º 423º, n.º 3 [cf. “conclusões 13ª, 14ª e 16ª a 18ª”, ponto I., supra], desde logo, em face da sua manifesta intempestividade.

           Acresce que sempre se trataria de questão nova, ou seja, problemática subtraída ao conhecimento do Tribunal a quo, sabendo-se que a apelação tem como limite objetivo a reapreciação das questões julgadas em 1ª instância, e não a introdução de questões novas.

            8. Acrescenta-se.

            Além do mais, a Ré/apelante invocara pretensas contradições do arrazoado da petição inicial (cf. principalmente, art.ºs 3º, 13º, 14ª, 17ª e 18º da contestação).[15]
            Por conseguinte, se a Ré via algum interesse na junção de tais elementos aos autos, há muito poderia/deveria tê-lo feito, conforme prevê o art.º 423º do CPC (sob a epígrafe “momento da apresentação”): «Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (n.º 1). Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado (n.º 2). Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (n.º 3).[16]
            9. E se a Ré/recorrente invoca, agora, o princípio da verdade material e o disposto no art.º 423º, n.º 3, in fine, para a junção das declarações atribuídas a cada uma das testemunhas, e considera que “o depoimento das mesmas uma ocorrência posterior que torna necessário, pela sua utilidade, a apresentação de tais declarações fora dos momentos previstos no art.º 423º, n.ºs 1 e 2 do CPC” (cf., sobretudo, “conclusões 13ª, 14ª e 16ª”, ponto I., supra), dir-se-á ainda, além do mencionado em II. 7., in fine, supra, que, ao contrário do que invoca a Ré/recorrente em sede de alegação de recurso, o depoimento de uma testemunha (arrolada nos autos) não constitui a ocorrência posterior que torna necessária ou possibilita a junção de documentos (nem tal foi invocado ou sequer foi objeto de despacho judicial). Considerar o contrário, seria permitir que a cada testemunha, fosse possível à parte a junção de mais documentos, fora dos momentos temporais consignados na lei e ao arrepio da restrição estabelecida no referido normativo.[17]
            10. É, assim, manifesta (e por razões várias) a inadmissibilidade legal da junção de tais “documentos”.[18]
            11. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.


*

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se as decisões recorridas.

            Custas pela Ré/apelante.    


*

05.3.2024


Voto de vencido

Discordei – apenas – quanto à admissão do recurso como apelação autónoma.

Nesse âmbito, perfilho a tese contrária, como defendido por Abrantes Geraldes, em Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 155, nota “219”.

Assim, a meu ver, trata-se apenas de um incidente (no caso, dois) suscitado no âmbito da produção da prova testemunhal, esta já admitida.

Em caso, pois, de recurso por não admissão de contradita, eu não admitiria a apelação autónoma [art.º 644.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv.], por não se tratar de rejeição de um autónomo meio de prova, mas de um incidente no quadro de prova já admitida. A decisão só seria recorrível a jusante, nos moldes dos n.ºs 3 e 4 do mesmo art.º 644.º.

Por isso, votei no sentido do não conhecimento, por intempestividade, do objeto do recurso.

Vencido nesta parte, concordo com a restante decisão do acórdão.

Vítor Amaral


[1] Pedido que veio a ser ampliado para o valor de € 206 834,90 (cf. ata da 1ª sessão da audiência de julgamento/24.11.2023).

[2] Para instruir o recurso, foi requerida a junção dos articulados e da ata «da Audiência de Julgamento de 24 de novembro de 2023 (onde constam os dois despachos recorridos) e dos documentos digitalizados (declarações das testemunhas prestadas ao perito averiguador) que, de acordo com o despacho ficaram na contracapa do processo para efeitos de recurso.» (sic)

[3] Admitido nos termos dos art.ºs 627º, n.º 1, 631º, n.º 1, 637º, n.º 1, 638º, n.ºs 1 e 7, 641º, 644º, n.º 2, al. d), 645º, n.º 2, 646º e 647º, n.º 1, do CPC, com subida em separado.

   Dir-se-á, a propósito, que não há unanimidade da doutrina e da jurisprudência relativamente à apelação autónoma/imediata do presente incidente suscitado no âmbito da produção da prova (contradita de testemunhas) - cf., nomeadamente, A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, Almedina, pág. 155, nota 219 e o acórdão da RC de 14.12.2020-processo 4911/18.9T8VIS.C1, publicado no “site” da dgsi.

   Não obstante, o presente caso envolve, outrossim, pelo menos, formal e aparentemente, a “junção de documentos”, o que leva a que se considere prejudicada ou desnecessária uma melhor ponderação daquela problemática.

   Acresce, e também releva, o “efeito meramente devolutivo” do recurso - pedido pela apelante - e a “conclusão nos autos principais a fim de proferir sentença” (cf. despacho sobre o requerimento de interposição do recurso), desconhecendo-se o estado (atual) dos autos principais.
[4] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[5] No decurso da instância, o Exmo. Mandatário da Ré leu às testemunhas o que constava das referidas “declarações”; afirmou, então, que não constavam dos autos e que a Ré iria requerer a junção de tais documentos.

[6] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[7] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. IV (Reimpressão), Coimbra Editora, 1987, págs. 426/454 e 459 (comentando/anotando os art.ºs 640º e 643º do CPC de 1939, sendo a redação da 1ª parte do corpo do art.º 643º idêntica à do art.º 521º do CPC de 2013).
   O mesmo Insigne Autor aí nos dá conta (pág. 459) do expendido na RLJ, ano 79º, 259: «(...) A alegação de que a testemunha deixara de narrar, no depoimento, factos que anteriormente referira nem cabe no 1º tipo de contradita (circunstância susceptível de afectar a razão de ciência), nem cabe no 2º tipo (circunstância susceptível de abalar a fé da testemunha). Com tal alegação pretendia-se atacar o próprio depoimento, o conteúdo das declarações do depoente, e não a pessoa deste ou a razão de ciência por ele invocada.»
[8] Vide J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 589 (a respeito de idêntica disposição do CPC de 1961).

[9] Em sentido idêntico, sobre os fatores capazes de afetarem a fé ou a credibilidade da testemunha, vide Luís Filipe Pires de Sousa, A Prova Testemunhal, pág. 269.

   Contudo, como elucida Alberto dos Reis, se, na avaliação da força probatória do depoimento, o julgador pode tomar, e é natural que tome em consideração tais circunstâncias, contudo, não está preso a elas, na medida em que: a) pode dar todo o valor ao depoimento, apesar de contra a testemunha se ter feito a prova de qualquer das circunstâncias que, nos termos do art.º 2 514º do Código de Seabra, seria suscetível de abalar a fé da testemunha; b) pode considerar diminuída a força probatória do depoimento em atenção a factos ou circunstâncias diversas das designadas nesse artigo (vide ob. e vol. citados, pág. 458).

[10] Cf. o citado acórdão da RC de 14.12.2020-processo 4911/18.9T8VIS.C1 [consta, ainda, do sumário: «(...) II - Porque o deferimento da contradita constitui um acentuado desmerecimento para os direitos de personalidade da testemunha, com grave afetação da sua presumida idoneidade/probidade, ele apenas pode ser decretado se factos com dignidade/gravidade e força bastante assim o impuserem.»].
[11] Ibidem. 
[12] Além do mais, os textos terão sido manuscritos pelo próprio “perito-averiguador”; em audiência, as testemunhas acabaram confrontadas com o que neles se fez constar, e, em bom rigor, não enjeitaram, totalmente (ao contrário do que se diz na alegação de recurso – cf., por exemplo, “conclusões 2ª, 9ª e 15ª”, ponto I., supra), o seu conteúdo (cf., nomeadamente, minuto 13 do 1º depoimento em causa e minutos 9 a 11 e 27 do 2º depoimento), acrescentando ou esclarecendo, é certo, que, em razão do decurso do tempo (cerca de três anos e meio), já não podiam ter bem presente o relatado aquando dessa “averiguação”.

[13] O caso dos autos é diverso das situações objeto dos acórdãos do STJ de 13.10.1998-processo 98A716 [com o sumário: «I - É admissível, face ao disposto no artigo 640, do Código de Processo Civil (disposição reproduzida no atual art.º 521º do CPC), a contradita de uma testemunha com fundamento em o depoimento que prestou em julgamento ser diferente do que havia prestado no processo de inquérito, uma vez que ela visa o enfraquecimento do depoimento, mas não é essencial que o inutilize. (...)»] e da RP de 17.4.1997-processo 9721361[tendo-se concluído: «Face à lei portuguesa não se mostra necessário que o elemento, documento ou circunstância apontada para alicerçar o pedido de contradita relativamente a depoimento prestado em audiência de julgamento tenha a mesma solenidade ou ofereça iguais garantias, já que não se exige propriamente a destruição do depoimento prestado, contentando-se a lei com a prova de um facto suscetível de afetar a credibilidade da pessoa contraditada». (sublinhado nosso)], invocados na alegação de recurso e publicados no “site” da dgsi.

   Diga-se, ainda, que, a ser acolhida a perspetiva que a Ré diz defender, teríamos, por certo, uma multiplicação (enxamear) de situações geradoras do incidente da contradita e sua (consequente) descaraterização.
[14] Veja-se, ainda, as posições expressas pelo Mm.º Juiz do Tribunal a quo no despacho proferido sobre o requerimento de interposição do recurso e pela Ré, em audiência de julgamento, através do seu Exmo. Mandatário (oralmente): «(...) isso pressupõe que a contradita seja recebida, porque se não for recebida, (o Tribunal) não recebe os documentos» (cf. minutos 21.41 a 21.51 / no contexto do depoimento da testemunha CC). 
[15] Contradições que se consideraram ligadas a anteriores dificuldades no apuramento das circunstâncias do sinistro, transmitidas pelo “perito-averiguador” (no respetivo “relatório” – cf., designadamente, minutos 12 a 14 e 23 do depoimento da testemunha DD), o qual, em audiência de julgamento, viria a concluir: «eu não tenho forma de confirmar o que se passou efetivamente nesse acidente» (cf., principalmente, minutos 14.40 a 15.04 do respetivo depoimento).

[16] Cf., nomeadamente, acórdão da RC de 24.3.2015-processo 4398/11.7T2OVR-A.P1.C1 [com o sumário: «1. Do art.º423º, do CPC de 2013, extrai-se que os documentos podem ser apresentados nos seguintes momentos: a) com o articulado respetivo; b) até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final; c) até ao encerramento da discussão em 1ª instância, sendo admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior. 2. Quando a parte não junta o documento com o articulado respetivo, a par da alegação do facto ´probando`, e só mais tarde o faz, sujeita-se às condições estabelecidas na lei, sendo que, naquela última situação (n.º 3 do referido art.º), deverá demonstrar a impossibilidade da apresentação até então ou que a mesma se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior. 3. Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade do requerente, ´num quadro de normal diligência`, ter tido conhecimento anterior da situação ou da existência do documento.»], publicado no “site” da dgsi.

[17] Cf., ainda, acórdão da RL de 06.12.2017-processo 3410/12.7TCLRS-A.L1-6 [assim sumariado: «– O incidente da contradita visa questionar a credibilidade da própria testemunha, pondo em causa a sua isenção e a fé que possa merecer, ou seja a fonte do seu conhecimento e não diretamente a veracidade do seu depoimento. – A pretensão do A. de junção de documentos, finda uma sessão de audiência de julgamento, alegando, como fundamento dessa junção, a “contraprova do invocado” na sequência do depoimento de testemunha que depusera nessa sessão, não se integra no incidente de contradita, ainda que este fosse temporalmente admissível. – A junção de documentos é admissível nos prazos previstos no art.º 423 do CPC, que permite a junção em três momentos distintos: a) com o articulado respetivo, sem cominação de qualquer sanção; b) até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas com cominação de multa, exceto se a parte alegar e provar que os não pode oferecer antes; c) até ao encerramento da discussão em 1ª instância, mas apenas daqueles documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior. – Cabe à parte que pretende a junção de documento alegar e demonstrar que a sua apresentação não foi possível até àquele momento, ou que a sua apresentação só se tornou possível em virtude de ocorrência posterior. (...)»], publicado no “site” da dgsi.
[18] Cujo conteúdo, diga-se, foi por demais aludido nos autos, inclusive, em sede de “alegações orais” (cf., ainda, “nota 12”, supra).
   Cremos, no entanto, que nada obstará a que o tribunal julgue a matéria de facto segundo a verdade...