Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/12.3TBSPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Data do Acordão: 10/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: S. PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 1353.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. Na acção de demarcação, ao autor compete alegar e provar os factos constitutivos do direito à demarcação: a confinância dos prédios, a diversa titularidade do respectivo direito de propriedade e, finalmente, a inexistência, incerteza, controvérsia, ou tão só desconhecimento sobre a localização da respectiva linha divisória. ~

II. Nas acções desta natureza, a ausência de indicação de uma linha divisória ou a deficiente indicação da sua localização não inquinam a petição inicial com o vício da ineptidão por falta ou obscuridade da causa de pedir, porquanto, sempre aquela há-de ser definida pela via da aplicação sucessiva dos critérios consagrados no artigo 1354.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral: No Tribunal Judicial da comarca de S. Pedro do Sul,

A... e sua mulher, B..., residentes na Rua (...), Barreiro, e C..., residente na Av. (...), Seixal, vieram instaurar contra D...e mulher, E..., residentes na Rua (...), concelho e comarca de S. Pedro do Sul, acção declarativa, a seguir a forma sumária do processo comum, tendo em vista obrigar os RR a consigo concorrerem para a definição e fixação de uma linha divisória entre os prédios que identificam, de que são titulares do direito de propriedade AA e RR, e que confinam nas suas estremas poente/nascente.

Correspondendo ao convite ao aperfeiçoamento que lhes foi formulado, os AA alegaram, em síntese útil, que são os donos, em comum e partes iguais, do prédio rústico denominado “ (...)”, a (...), limites de (...), freguesia de (...), concelho de S. Pedro do Sul, inscrito na matriz respectiva sob o art.º x.... Tal prédio, composto de pinhal e mato, confronta do poente com (...), hoje prédio dos RR inscrito na matriz sob o art.º y....

Mais alegaram ter instaurado acção declarativa de condenação pedindo a condenação dos RR a restituírem uma faixa de terreno que integrava o identificado prédio dos demandantes, da qual aqueles se haviam abusivamente apropriado, nela procedendo ao corte de 10 árvores. Tal acção, todavia, foi julgada improcedente, por não terem os AA logrado fazer prova da linha divisória, a qual pretendem agora ver definida por via da presente acção de demarcação.

Em suporte da sua pretensão invocaram a inexistência de marcos, por desaparecimento dos primitivos, em número de três, sendo que a linha da estrema dos dois prédios, na sua confrontação poente/nascente, correspondia à linha recta definida pelo marco fundeiro (a sul), o qual se situava junto aos cepos de 2 eucaliptos existentes no prédio dos RR, por um outro existente no limite norte (cimeiro), grande e em pedra trabalhada, entretanto arrancado do sítio e mudado para nascente (e, portanto, para o interior do prédio deles, AA), existindo ainda um terceiro marco, dito intermédio, localizado entre aqueles, o qual afirmam ter desaparecido aquando do corte das árvores levado a cabo por acção dos RR, tudo conforme consta do esboço que juntaram e faz fls. 78 do PE. A linha divisória assim definida concretiza-se numa linha recta (“a direito”, do “fundo ao cimo”) com início, a sul, na estrada que dá para (...), passando imediatamente junto dos cepos de eucaliptos cortados no prédio vizinho (dos RR.), projectando-se a partir dali perpendicularmente até encontrar a linha de estrema do lado norte do prédio dos demandantes, no sítio onde sempre existiu cravado o aludido marco em pedra trabalhada. Tal linha divisória, especificam, passa a 4,60 mt de uma exploração de água que levaram a cabo no prédio de que são donos.

Tendo ainda invocado factos tendentes a demonstrar o exercício de actos de posse sobre o identificado prédio até ao limite assim definido, pedem a final, para o que agora importa, seja declarada pelo Tribunal “a demarcação entre o prédio “ (...)” dos AA. do art. 1º da p.i., do seu lado poente, com o seu confinante, que os RR. se arrogam donos ou titulares matriciais, também denominado “ (...)”, do art. 3º da p.i., de harmonia com a linha divisória mais consentânea com os títulos aquisitivos dos ditos e respectivos prédios e também com a posse em que têm estado sempre os respectivos confinantes, referida, entre outros, nos arts. 14º a 20º da p.i., e correspondente à letra A do esboço ou levantamento junto”.

Notificados os RR do articulado aperfeiçoado, apresentaram contestação na qual, reconhecendo a confinância e não impugnando a inexistência de marcos e consequente necessidade de proceder à demarcação dos prédios, alegam que a linha divisória indicada pelos AA. carece de referências factuais e/ou pontos fixos que permitam implantá-la no terreno, dada a ausência de quaisquer referências métricas, nomeadamente no seu limite norte. Não obstante, servindo-se de esboço que recria o apresentado pelos AA, não deixaram de indicar os pontos pelos quais, em seu entender, e face à posse que vêm exercendo sobre o seu prédio, se define a linha divisória, partindo a sul, junto à estrada de (...), de um ponto situado a 7-8 metros para nascente da base/face nascente do cepo mais a nascente dos eucaliptos referidos pelos AA, prosseguindo em linha recta no sentido nordeste, até atingir um bloco de pedras situado na estrema norte, conhecido como os “poisos”, onde existe uma cruz, situado 35,60m para nascente do 1.º de uma linha de marcos há muito existentes entre o prédio dos contestantes e aquele que com ele confina do norte.

Concluída a fase dos articulados, o Mm.º juiz “a quo”, considerando que a petição inicial aperfeiçoada continha, por não supridas, as mesmas deficiências que antes lhe apontara, continuando a não concretizar pontos ou referências que permitissem, mediante a sua implantação no terreno, definir a linha divisória indicada pelos AA e proceder à demarcação em conformidade com ela, julgou a petição inepta por ininteligibilidade da causa de pedir, absolvendo os RR da instância ao abrigo do disposto nos art.ºs artºs 193º, n.ºs 1 e 2, al. a), 202º, 1.ª parte e 288º, n.º 1, al. b), todos do CPC, que expressamente convocou.[1]

E é deste despacho que os AA, inconformados, trazem o presente recurso, o qual minutaram, formulando a final as seguintes conclusões:

“ 1.ª- Tratada como acção de arbitramento e, assim, como acção especial, antes da Reforma do Cód. Proc. Civil de 1995 (arts. 1052 a 1054, revogados), a presente acção de demarcação segue a forma declarativa, no caso, sumária, em que, só na fase instrutória poderá ocorrer prova pericial / arbitramento e outra, quando antes, a falta de contestação, não conduzia como agora à condenação no pedido, mas à nomeação de peritos e aos demais termos então referidos no também revogado art. 1058; pelo que, ora se impõe que os RR. apontem desde logo a sua linha divisória, que não só os AA., como foi por ambos feito.

2.ª- Antes de 1995, como agora (e mais ainda, no futuro, com a reforma processual civil), já a substância se impunha à forma, valendo no caso, como pano de fundo substantivo, o disposto na lei civil: arts. 1353 a 1355 C.C.. Como assim,

3.ª- À falta de títulos suficientes quanto às áreas exactas dos prédios demarcandos, em como ao desaparecimento e deslocação de marcos, os AA. alegaram os factos possíveis e bastantes nas suas petições (da anterior acção de reivindicação de parcela do seu prédio) e nas presentes, sobretudo na nova e corrigida, da acção demarcatória, pedindo que a respectiva estrema poente / nascente devia ser declarada / definida pela linha divisória que desde logo apontaram.

4.ª- Face à posição dos RR. na contestação da acção de reivindicação, em que alegam qual a linha divisória do seu prédio e que, por isso, a parcela reivindicanda se situava adentro o seu, sem, contudo, deduzirem reconvenção e pedido reconvencional, a diferente linha divisória que agora apontam na contestação da presente acção de demarcação, além de contraditória, ainda mais reforça o estado de dúvida quanto à estrema e, daí, a necessidade do pedido demarcando, tendo em vista o atendimento do pedido acessório da indemnização pelos danos, a liquidar, em função daquela declaração demarcatória.

5.ª- Assim, a petição inicial (corrigida) da presente acção é perfeitamente inteligível quanto à causa de pedir e pedido, que melhor o foi ainda pelos RR. contestantes, quando os rebatem à luz da acção reivindicatória, excepcionando com o pretenso caso julgado, em que a linha demarcatória sempre referida e ora apontada estaria precludida, não obstante por eles aqui impugnada, com base num esquisso legendado em que há elementos comuns bem reveladores da inteligibilidade de causa petendi e petitum.

6.ª- Ora, competindo sempre aos AA. a prova da linha divisória que apontam, como aos RR. a prova da sua, que também apontam, abundam para já – e também foram alegados pelos AA. na p.i. - meios de prova, extraídos dos títulos e de outros documentos, que haverão de influir na demarcação a fazer e a declarar. Finalmente,

7.ª- Os AA. não se decidiram por lançar mão do disposto no art. 289-2 CPC, instaurando desde logo nova acção para aproveitamento dos efeitos civis da presente, pela substancial razão de não conseguirem elaborar uma nova p.i. com a alegação de outros e mais inteligíveis factos consubstanciadores da causa de pedir e do pedido, do que os já alegados na presente petição, que levou à decisão da sua ineptidão, sob a censura da presente apelação, em caminho assim percorrido, com tanta humildade como com redobrada confiança de atendimento e entendimento”.

Com tais fundamentos, pretendem a revogação da decisão proferida e sua substituição por outra que determine o prosseguimento regular do processo.
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Assente que o objecto do recurso se define e limita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, como resulta do preceituado nos art.ºs 684.º n.º 3 e 685.º-A do CPC, constitui única questão a decidir indagar se a petição inicial sofre do vício da ineptidão por alegada ininteligibilidade da causa de pedir, tal como foi decidido.
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II Fundamentação
Interessando à decisão quanto se deixou relatado em I), o art.º 467.º do CPC (diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem, na versão em vigor ao tempo), dispondo sobre os requisitos da petição inicial, impõe ao autor que “exponha os factos e a razões de direito que servem de fundamento à acção” e “formule o pedido” (vide als. d) e e) do n.º 1).
Na definição legal, “pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a acção” (vide n.º 3 do art.º 498.º), surgindo assim como pretensão material, “enquanto afirmação de um direito subjectivo ou de um interesse juridicamente relevante” e como pretensão processual “traduz-se na identificação do meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor”[2].
Mas o autor que se dirija ao Tribunal para obter determinada providência há-de ainda expor a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado. É a causa de pedir, entendida como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida” (vide n.º 4 do art.º 498.º).
É incontornável ter o nosso legislador optado pela denominada teoria da substanciação[3], segundo a qual “a afirmação da situação jurídica tem de ser fundada em factos que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros factos alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito da conformação do objecto do processo”[4]. Tal opção impõe ao autor que alegue os factos de onde deriva a sua pretensão.
A causa de pedir é assim “integrada pelo facto ou factos produtores do efeito jurídico pretendido, e não deve confundir-se com a valoração jurídica atribuída pelo autor a qual, de todo o modo, não é vinculativa para o tribunal, devido ao princípio, consignado no art.º 664.º, segundo o qual o tribunal conhece oficiosamente do direito aplicável”[5].
A definição constante do n.º 4 do art.º 498.º parece todavia apontar para as normas de direito material que estatuem o efeito pretendido, havendo assim que alegar os factos contidos na respectiva previsão.
Nos termos do art.º 193.º do CPC é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial (vide n.º 1). A petição diz-se inepta, consoante prevê a al. a) do n.º 2, “Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido e da causa de pedir”. Exige a lei, por esta via, que o autor formule um pedido inteligível quanto ao seu objecto mediato e imediato, indicando, também de forma igualmente inteligível, os factos constitutivos da pretensão que pretende fazer valer.
Este vício da petição inicial, sancionado com a nulidade de todo o processo, só se verifica quando não possa saber-se, pela petição, qual a causa de pedir, o que pode ocorrer por omissão ou obscuridade. No primeiro caso, a petição é omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; na segunda hipótese, o autor expôs o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não é possível apreender com segurança a causa de pedir” [6], tornando-se impossível “saber a proveniência do direito invocado”[7].
Diversa ainda é a petição deficiente, o que ocorre quando, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, conduzindo à improcedência da acção[8]. Reconhece-se que nem sempre é imediata a distinção entre a petição deficiente, por insuficientemente preenchida com a matéria de facto integradora dos preceitos jurídicos que fundamentam a pretensão, da petição inepta por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, nomeadamente quando esta tem uma natureza complexa. Todavia, o critério há-de ser, ainda aqui, o da apreensão segura, ou não, da causa de pedir.
Ora, no caso vertente, afigura-se que os AA identificaram com clareza a causa de pedir e, bem assim, a providência que vieram solicitar ao Tribunal. Se assim foi, considerando o Mm.º juiz que a causa de pedir integra necessariamente a indicação precisa da linha divisória, não tendo esta sido indicada com clareza e suficiência, o vício seria antes o da deficiência, tal como se deixou definido, e estaríamos perante um caso de improcedência.
De todo o modo, e irrelevando por ora a qualificação do vício, discordamos da decisão proferida por duas ordens de razões fundamentais: porque, em nosso entender, a indicação precisa da linha divisória não integra necessariamente a causa de pedir nas acções desta natureza, por um lado; e, por outro, porque se afigura possível, face aos factos alegados pelos AA, desenhar a linha divisória proposta, sem prejuízo de considerarmos que poderiam aqueles ter correspondido com maior eficiência ao despacho de aperfeiçoamento que lhes foi endereçado.
Vejamos, pois.
Nos termos do art.º 1353.º do Código Civil “O proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles”.
Consagra esta disposição legal o direito potestativo do dono de um prédio obter o concurso dos donos dos prédios vizinhos para a demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles.
Visando efectivar aquele direito, as acções de demarcação apresentam uma causa de pedir complexa, traduzindo-se na invocação da titularidade de prédios distintos, da confinância e, por último, da controvérsia quanto aos limites, sendo certo que se trata da acção adequada ainda naquelas situações em que a linha limite é conhecida e indiscutida, destinando-se a acção a obter o concurso do dono do prédio vizinho para a mera aposição dos marcos.[9]
Tendo as acções de demarcação por escopo pôr fim à incerteza sobre o traçado da linha divisória, logo se intui que pode haver casos em que a mesma é desconhecida de um dos donos ou até de ambos, sendo todavia mais frequentes as situações em que existe controvérsia sobre os limites, litígio que carece de ser previamente resolvido. Seja como for, num e noutro casos, devem os proprietários confinantes exibir os títulos ou provas que legitimam a extensão do respectivo domínio, assim concorrendo para a definição das estremas, delimitação que é a finalidade da acção. Deste modo, “Desde que, portanto, se verifique a confinância de prédios pertencentes a proprietários diferentes e inexista linha divisória entre eles (seja porque, indiscutida entre os proprietários confinantes, não está marcada, sinalizada no terreno, seja porque ela (isto é, a sua localização), é objecto de controvérsia entre eles, seja porque eles pura e simplesmente desconhecem a sua localização) está aberta a porta para a actuação do direito de demarcação”[10].
Conforme se deixou referido, o Mm.º juiz “a quo” entendeu que a petição inicial sofria do vício da ineptidão por não terem os AA indicado de forma inteligível os pontos por onde deveria passar a linha divisória. Tal afirmação, já o antecipámos, não a consideramos correcta. Com efeito, verificados os assinalados pressupostos, não há lugar à improcedência da acção, no sentido de ser desatendida a pretensão de definição dos limites dos prédios, uma vez que a lei, no art.º 1354.º, dá resposta a todas as situações. Assim, se a divisão da área conflituante não puder ser resolvida pelos títulos de cada um, será sucessivamente resolvida pela posse ou outros meios de prova; no limite, não podendo ser resolvida por nenhum desses meios, será equitativamente dividida pelos proprietários confinantes. Ora, se assim é, afigura-se que o autor só tem que alegar e provar os factos constitutivos do direito à demarcação, a saber: a confinância dos prédios, a titularidade do respectivo direito de propriedade na sua própria pessoa e do demandado e, finalmente, a inexistência, incerteza, controvérsia, ou tão só desconhecimento sobre a (localização da) respectiva linha divisória.[11]
De volta ao caso dos autos, constata-se que todos os aludidos pressupostos não só foram, com clareza, invocados, com pertinente substrato fáctico, como os RR reconheceram na contestação a confinância e a necessidade de demarcação, ou seja, a inexistência de marcos. Deste modo, se a linha divisória não puder ser determinada de harmonia com a versão dos AA ou dos RR, segundo o critério do n.º 1 do citado art.º 1354.º, caberá ao Tribunal atribuir a cada um dos proprietários dos prédios confinantes metade da área em conflito. Daqui se extrai a conclusão de que, em acção de demarcação, a ausência de indicação de uma linha divisória ou a deficiente indicação da sua localização não inquina com o vício da ineptidão a petição inicial.[12]
Acresce que -e é esta a segunda objecção que nos merece a decisão recorrida- embora em termos que poderiam ter sido melhor concretizados (bastaria aos AA terem definido a localização do antigo marco, alegadamente existente a norte, por referência à cruz que os RR defendem constituir o marco delimitador, vg. x metros para poente desta marca, para que tivesse sido ultrapassado o obstáculo apontado no despacho agora impugnado), não deixa de ser possível, face ao alegado na petição inicial, traçar a linha delimitadora indicada pelos demandantes. Com efeito, tendo situado o início da linha, a sul, por referência aos cepos dos eucaliptos existentes no prédio dos RR (ponto de referência por estes igualmente utilizado, mas deslocando uns quantos metros para nascente a linha divisória), e tendo alegado que a estrema se definia por uma linha recta, tirada na perpendicular [àquele primeiro ponto], avançando até ao limite norte do prédio, onde confina com (...), linha de estrema não questionada, parece que sem grande dificuldade ficaria definida a linha delimitadora do prédio a poente, tal como, de resto, surge ilustrado sob a letra A no esboço que elaboraram. E aqui não podemos deixar de referir assistir razão aos apelantes quando referem que os RR bem entenderam quanto foi na petição inicial alegado, porquanto apresentaram, também eles, esboço em tudo semelhante ao primeiro, apontando no entanto uma linha divisória diferente, o que sempre suscitaria a questão da sanação do invocado vício nos termos do n.º 3 do art.º 193.º.
Em suma, e pelas razões expostas, não pode subsistir o despacho recorrido, impondo-se a sua substituição por outro que determine o prosseguimento do processo.
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III. Decisão
Em face a todo o exposto, e na procedência do recurso interposto pelos AA, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação em revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine os ulteriores trâmites do processo.
Custas pela parte vencida a final.
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Sumário (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)
I. Na acção de demarcação, ao autor compete alegar e provar os factos constitutivos do direito à demarcação: a confinância dos prédios, a diversa titularidade do respectivo direito de propriedade e, finalmente, a inexistência, incerteza, controvérsia, ou tão só desconhecimento sobre a localização da respectiva linha divisória.
II. Nas acções desta natureza, a ausência de indicação de uma linha divisória ou a deficiente indicação da sua localização não inquinam a petição inicial com o vício da ineptidão por falta ou obscuridade da causa de pedir, porquanto, sempre aquela há-de ser definida pela via da aplicação sucessiva dos critérios consagrados no artigo 1354.º do Código Civil.
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Maria Domingas Simões (Relatora)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida


[1] É o seguinte o teor integral do despacho em causa:

Na sequência do convite formulado a fl. 97, vieram os AA., a fls. 101 e ss., apresentar uma nova petição, pretensamente corrigida das insuficiências que se lhe havia apontado.

E dizemos “pretensamente” porquanto, salvo o devido respeito por entendimento diverso, continua a petição (nova) a padecer do mesmo essencial vício, qual seja a não concretização da linha delimitadora entre o seu prédio e aquele que lhe fica a nascente.

Sendo certo que se mostra alegado que, da perspectiva dos AA., tal linha configura um segmento de recta (v. g. o artigo 17º), não se nos afigura possível, com a alegação daqueles, ‘trasladar’ para o terreno (ou ‘implantar’ no terreno) qualquer linha. E isto porquanto continua a alegação dos AA. a pecar – salvo o devido respeito – por ser vaga e imprecisa.

De facto, designadamente nos artigos 14º a 20º falam aqueles de marcos entretanto desaparecidos, um dos quais teria existido “junto” aos cepos de 2 eucaliptos, outro teria sido mudado para nascente (artigo 15º), sem que se refira em que medida (quantos metros ou centímetros) e onde se situará por referência a pontos fixos certamente existentes no local (ainda que porventura não ‘à mão’), como outrossim apontam uma medida de “cerca” de 4,60 mts de largura a partir de uma “exploração de água” que nunca vem concretizada o que seja ou de que tipo seja.

Em suma, a definição de uma determinada linha exige a alegação de pontos concretos por onde deva passar (pelo menos um inicial e um final, acaso se trate de uma ‘recta’), e exige-se que esses sejam passíveis de implantação no terreno.

Ora, pressupondo-se que uma decisão final fosse totalmente favorável aos AA., com a matéria factual que os mesmos apresentam não se nos afigura possível que qualquer linha fosse possível de concretizar no terreno (e é disso, de fixação de linhas, que se trata ou deve tratar na presente acção, e não de fixação de áreas territoriais ou ‘proximidades’ de linhas delimitadoras).

Termos em que, por ininteligibilidade da causa de pedir (relativamente à questão nuclear da demarcação), julgo inepta a petição inicial, em consequência do que absolvo os Réus da instância – artºs 193º, nºs 1 e 2, al. a), 202º, 1ª parte e 288º, nº 1, al. b), todos do CPC.

[2] Abrantes Geraldes, in “Temas da reforma do processo civil”, I vol, 2.ª ed. revista e ampliada, pág. 119 e, em sentido idêntico, aludindo a uma determinação material e uma determinação processual da pretensão, Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil - conceito e princípios gerais”, 2.ª ed. pág. 56. 
[3] Por oposição à teoria da individuação, segundo a qual bastaria ao autor indicar o pedido, cabendo ao juiz esgotar na sentença todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor.
[4] Prof. Lebre de Freitas, ob. cit. pág. 57.
[5] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 194.
[6] Prof. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. II, págs, 369 e seguintes. No mesmo sentido Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 211.
[7] Ac. TRL de 12/10/93, in CJ tomo iv, pág. 198, citado por Abrantes Geraldes, ob. e loc. cit. na nota anterior.
[8] Idem, pág. 372.

[9] V. arestos TRG de 1/6/2005, processo n.º 980/05.2, TRC de 29 Maio 2012, proc. 967/08.0 TBALB.C1, STJ de 25/9/2012, processo n.º TBVLG.P1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

[10] Do acórdão do STJ de 10/5/2012, proferido no processo n.º 725/04.1 TBSSB.L1.S1, disponível no mencionado site.
[11] Neste preciso sentido e aqui acompanhado de muito perto, o referido aresto do STJ de 10/5/2012.
[12] Tal como foi entendido no aresto citado na nota anterior.