Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
89/16.0T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: DEVER DE LEALDADE JUSLABORAL – VIOLAÇÃO DE TAL DEVER.
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO.
CAUSAS DE INVALIDADE DE PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
Data do Acordão: 05/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DO TRABALHO DE LAMEGO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO - SECÇÃO SOCIAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTºS 128º/1/F), 338º, 351º, NºS 1, 2 E 3, E 382º/2 DO CT/2009
Sumário:
I – O dever de lealdade à entidade empregadora impede que o trabalhador assuma comportamentos de que resultem situações de perigo para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa.

II – Viola esse dever, com uma gravidade suficiente para justificar o seu despedimento com justa causa, a trabalhadora que exerce funções de prestação de cuidados e de acompanhamento de crianças institucionalizadas em Centro de Acompanhamento Temporário para crianças em risco e que agride fisicamente uma menor de 4 anos ali institucionalizada, causando-lhe temor e hematomas na face, além de se dirigir às crianças aos ‘berros’ e em tom agressivo, o que as amedrontra.

III – As causas de invalidade do procedimento disciplinar visando o despedimento do trabalhador estão taxativamente enunciadas no artº 382º, nº 2 do CT/2009.

Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório


A autora propôs contra a ré a presente acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, mediante apresentação do correspondente formulário legal.
Frustrada a tentativa de conciliação levada a efeito na audiência de partes, a ré apresentou articulado motivador do despedimento, alegando, em resumo, que a autora assumiu os comportamentos ilícitos que ali melhor são descritos, incorrendo, assim, em justa causa subjectiva de despedimento que foi determinado no termo de um processo disciplinar válido e no âmbito do qual aqueles comportamentos foram comprovados.
A autora contestou, sendo que, em resumo: excepcionou a invalidade do procedimento disciplinar, por omissão de análise crítica da prova e por invocação na decisão de despedimento de factos não aduzidos na nota de culpa; impugnou os fundamentos invocados pela ré para o despedimento; arguiu a desproporcionalidade da sanção disciplinar aplicada.
Deduziu reconvenção, concluindo com os seguintes pedidos:
I - Considerar-se o despedimento da autora ilegal e ilícito porquanto o processo disciplinar movido à trabalhadora e que culminou com o seu despedimento com justa causa está ferido de nulidade por falta de fundamentação (falta da motivação de facto), pelo que, consequentemente, deverá a ré ser condenada a reintegrar a trabalhadora, sem prejuízo dos seus direitos, antiguidade e retribuições que a mesma deixou de auferir desde o despedimento (22/01/2016) até ao trânsito da presente decisão:
Caso assim não se entenda,
II – Considerar-se o despedimento da autora ilegal e ilícito porquanto os fundamentos constantes da decisão disciplinar não correspondem à verdade, pelo que, consequentemente, deverá a ré ser condenada a reintegrar a trabalhadora, sem prejuízo dos seus direitos, antiguidade e retribuições que a mesma deixou de auferir desde o despedimento (22/01/2016) até ao trânsito da presente decisão.
Caso assim não se entenda,
III - Considerar-se o despedimento da autora ilegal e ilícito porquanto atendendo aos factos em causa, é manifesta a inexistência de justa causa e evidente violação do princípio da proporcionalidade previsto no art. 330º, nº 1 do Código do Trabalho, pelo que, consequentemente, deverá a ré ser condenada a reintegrar a trabalhadora, sem prejuízo dos seus direitos, antiguidade e retribuições que a mesma deixou de auferir desde o despedimento (22/01/2016) até ao trânsito da presente decisão.
Em qualquer caso:
IV – Deverá a ré ser condenada a pagar a quantia de €1.596,68 euros (vencimento de Janeiro de 2016: €401.86 euros; Férias vencidas a 1 de Janeiro de 2016, não gozadas, e respectivo subsídio de férias: €1.096,00; Proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de natal: €98.82 euros);
V - Todos os valores acrescidos dos respectivos juros de mora à taxa legal, desde a citação.”.
Respondeu a ré para, em resumo, pugnar pela improcedência das excepções invocadas pela autora, bem assim como pela improcedência da reconvenção, e reafirmando a licitude e regularidade do despedimento.
Os autos prosseguiram os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:
Atento o exposto, julgo a oposição ao despedimento totalmente improcedente e parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência:
i) Indefiro o pedido de declaração de irregularidade e ilicitude do despedimento da trabalhadora;
ii) Condeno a empregadora R… a pagar à trabalhadora A… a quantia de €1.060,00 (mil e sessenta euros), acrescida de juros de mora nos termos acima enunciados.
No mais, absolvo a empregadora do pedido.”.
Não se conformando com o assim decidido, apelou a autora, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:
(…)
Contra-alegou a ré, pugnando pela improcedência do recurso.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II – Questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir Embora a apelante incorpore nas conclusões XLVII a LI algumas considerações referentes a inconsistências e contradições da prova produzida em sede de procedimento disciplinar, o certo é que das mesmas não extraiu qualquer consequência em relação à (i)licitude da sanção de despedimento que lhe foi imposta.
Por isso, tais considerações não integram qualquer questão autónoma que este tribunal deva conhecer e decidir.
A apreciação que este tribunal dever fazer relativamente à prova produzida e à sua consistência e relevância probatórias circunscrever-se-á à que foi produzida perante o tribunal recorrido em sede de audiência de julgamento.
De resto, aquela temática não foi abordada na sentença recorrida, em relação à qual não foi arguida qualquer nulidade por omissão de pronúncia, circunstâncias que, conjugadamente, impediriam este tribunal de conhecer da mesma, sabido que os recursos se destinam a reapreciar questões abordadas e decididas nas decisões recorridas e não questões que nas mesmas não tenham sido abordadas e em relação às quais não tenha sido arguido o vício de omissão de pronúncia.:
1ª) saber se a matéria de facto foi incorrectamente julgada;
2ª) saber se o procedimento disciplinar é inválido por ausência de motivação da decisão de facto;
3ª) saber se a autora incorreu em justa causa de despedimento.
*
III – Fundamentação

A) De facto

A primeira instância descreveu como provados os factos seguidamente transcritos:
(…)
*
B) De direito

Primeira questão: saber se a matéria de facto foi incorrectamente julgada.
(…)
+
Improcede, pois, o recurso fáctico da apelante.
*
Segunda questão: saber se o procedimento disciplinar é inválido por ausência de motivação da decisão de facto.

Sustenta a apelante que o procedimento disciplinar é inválido na medida em que na nota de culpa não se motiva a decisão de facto nela contida, indicando-se os meios de prova que serviram de fundamento a tal decisão e procedendo-se ao exame crítico desses meios de prova.
Não acompanhamos a apelante.
Comece por dizer-se que estando em causa um procedimento disciplinar visando o despedimento do trabalhador, as causas de invalidade de tal procedimento estão taxativamente enunciadas no art. 382º/2 do CT/09 – no sentido da afirmada taxatividade podem consultar-se, por exemplo, os acórdãos do STJ de 14/4/2008, de 7/7/2010 e de 4/4/2014, proferidos nos processos 08S643, 123/07.5TTBGC.P1 e 553/07.2TTLSB.L1.S1 (à luz do CT/03), da Relação do Porto de 14/3/2016, proferido no processo 1097/15.4T8VLG-A.P1, de 10/9/2012, proferido no processo 448/11.5TTVFR-A.P1, da Relação de Coimbra de 7/2/2013, proferido no processo 1004/11.3T4AVR.C1 e relatado pelo aqui segundo adjunto, da Relação de Évora de 14/1/2016, proferido no processo 642/15.0T8EVR.E1, e de 23/6/2016, proferido no processo 642/15.0T8EVR.E1.
Como assim, face ao estatuído naquele artigo 382º/2 do CT/09, a invalidade do procedimento disciplinar só pode ser declarada se: faltar a nota de culpa ou se esta não estiver escrita ou não contiver a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador (alínea a); faltar a comunicação da intenção de despedimento junta à nota de culpa (alínea b); se não tiver sido respeitado o direito do trabalhador a consultar o processo ou a responder à nota de culpa ou o prazo para resposta à nota de culpa (alínea c); a comunicação ao trabalhador da decisão de despedimento e dos seus fundamentos não for feita por escrito, se a decisão invocar factos não constantes da nota de culpa ou da resposta do trabalhador, salvo se atenuarem a responsabilidade, ou se a mesma se não mostrar elaborada com ponderação das circunstâncias relevantes para o caso, entre as quais se contam, exemplificativamente, as previstas no nº 3 do art. 351º, a adequação do despedimento à culpabilidade do trabalhador e os pareceres dos representantes dos trabalhadores, caso tenham sido emitidos (alínea d).
Flui de quanto acaba de referir-se que não figura entre as causas taxativas de invalidade do procedimento disciplinar a omissão de fundamentação da decisão fáctica constante da nota de culpa, por indicação e exame crítico dos meios de prova que a suportam.
Por outro lado, atente-se no que a respeito desta temática decidiu, a nosso ver com inteiro acerto, a Relação de Lisboa no seu acórdão de 11/6/2008, proferido no processo 3384/2008-4: “Finalmente, o recorrente também não tem razão quando alega que a decisão de despedimento não se encontra fundamentada, por não conter a análise crítica das provas produzidas nem indicar os meios de prova que serviram para formar a sua convicção.
(…)
De qualquer forma sempre se dirá que, em relação à decisão de despedimento, a lei apenas exige que esta conste de documento escrito e contenha os fundamentos de facto e de direito que determinaram a aplicação dessa sanção.
O processo disciplinar não tem a estrutura nem se rege pelos princípios que regem o processo judicial e, consequentemente, não lhe é aplicável o disposto no art. 374º, n.º 2 do CPP ou o disposto 653º, n.º 2 do CPC. Trata-se de um processo de natureza inquisitória, onde não existe a obrigação legal de fazer uma análise crítica das provas produzidas e de especificar os meios de prova que foram determinantes para a sua convicção. Se o empregador conhecer o autor e as circunstâncias em que a infracção foi cometida, este nem sequer tem de indicar e de produzir no processo os meios de prova em que se baseou para sustentar a acusação e a decisão de despedimento. A lei apenas impõe que seja assegurado ao trabalhador-arguido o direito de defesa e que a decisão contenha os fundamentos de facto e de direito que determinaram a aplicação da sanção.
O processo disciplinar só enfermaria da irregularidade prevista no art. 430º, n.º 2, al. c) do CT se a decisão de despedimento e os seus fundamentos não constassem de documento escrito ou se a decisão não se mostrasse fundamentada nos termos referidos. Como isso não sucede, como a decisão de despedimento consta de documento escrito e contém os fundamentos de facto e de direito que determinaram a aplicação da sanção, o processo disciplinar não enferma da irregularidade que o recorrente lhe imputa.”.
É certo que a decisão de despedimento deve ser fundamentada, sendo que a ausência desta implica invalidade do procedimento disciplinar (art. 387º/2/d e 357º/5 do CT/09).
No entanto, atente-se em que essa exigência de fundamentação é imposta pela necessidade constitucional de se garantir o exercício do direito de defesa e contraditório do trabalhador (art. 32º/ 10 da CRP), tendo por finalidade específica, assim, a de que seja levado ao conhecimento do trabalhador os factos que motivaram a aplicação da sanção disciplinar, habilitando-o, por essa via e caso assim o entenda, a insurgir-se contra a mesma, por meio dos instrumentos legais ao seu dispor Acórdão da Relação de Coimbra de 5/11/2015, proferido no processo 461/15.3T8GRD-A.C1, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/11/2007, proferido no processo 7018/2007-4; ou seja, a entidade empregadora deverá indicar, clara e objectivamente, a factualidade que considera demonstrada, expressando os motivos, de facto e de direito, que conduzem à inviabilidade da manutenção do vínculo laboral e, nessa medida, à aplicação da sanção disciplinar (Pedro Ferreira de Sousa, O Procedimento Disciplinar Laboral – Uma Construção Jurisprudencial, 2016, p. 212).
Como assim, tal exigência satisfaz-se, no que ao âmbito fáctico da decisão disciplinar respeita, com a enunciação directa ou por mera remissão para outra peça do processo disciplinar, desde que o documento para que se remete seja entregue ao trabalhador juntamente com a decisão final Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/10/2017, proferido no processo 2982/16.1T8BRR.L1-4, Pedro Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 3ª edição, p. 239., dos factos que a entidade empregadora considera integrar o ilícito disciplinar praticado pelo trabalhadorA decisão de despedimento deve ser fundamentada, contendo indicação dos factos que, na óptica do empregador, tornem pela sua gravidade e consequências, prática e imediatamente impossível a subsistência da relação de trabalho.” – acórdão do STJ de 21/10/1991, proferido no processo 003408., não sendo exigível legalmente a descrição e exame crítico dos meios de prova em que a entidade empregadora firmou a sua convicção fáctica.
Em face do antecedentemente exposto, responde-se negativamente à questão em apreciação.
*
Terceira questão: saber se a autora incorreu em justa causa de despedimento.
Conformando-se com a garantia constitucional da estabilidade no emprego e da proibição dos despedimentos sem justa causa decorrente do art. 53º da Constituição da República Portuguesa (CRP), prescreve o art. 338º CT/2009 que “É proibido o despedimento sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.”, estatuindo o nº 1 do art. 351º do mesmo diploma que “Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”.
Por sua vez, no nº 2 da mesma disposição legal, a título exemplificativo, o legislador concretizou alguns dos comportamentos do trabalhador que poderão constituir, eventualmente, justa causa de despedimento.
Os nºs 1 e 2 do art. 351º do CT/2009 correspondem, no essencial, aos nºs 1 e 3 do art. 396º do CT/2003, bem como aos nºs 1 e 2 do art. 9º da anterior Lei dos Despedimentos (DL 64-A/89, de 27/02), pelo que mantiveram actualidade a doutrina e jurisprudência anteriores, relativas à justa causa de despedimento.
Ora, segundo tem sido doutrina e jurisprudência pacíficas, a existência de justa causa de despedi­mento nos termos do citado preceito, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
1) um, de natureza subjectiva, traduzido num comportamento ilícito “A exigência de ilicitude do comportamento do trabalhador não resulta expressamente do art. 351º, nº 1, mas constituiu um pressuposto geral do conceito de justa causa para despedimento, uma vez que, se a atuação for lícita, ele não incorre em infração que possa justificar o despedimento.” - Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3ª edição, pp. 900/901; no mesmo sentido, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Abril 2002, pp. 851/852, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, 1994, pp. 820/821. e culposo do trabalhador, que não tem de ser praticado no local de trabalho Menezes Leitão, Direito do Trabalho, 2ª edição, p. 481., mas que tem de traduzir-se num incumprimento Não cumprimento definitivo, simples mora ou mero cumprimento defeituoso. grave dos deveres contratuais Principais, secundários ou meramente acessórios. do trabalhador;
2) outro, de natureza objectiva, que se traduz na impossibilidade de subsistência da relação de trabalho;
3) e, ainda, a existência de nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade de subsistência da relação laboral.
Assim, para que se esteja perante justa causa de despedimento torna-se necessário que haja um comportamento culposo do trabalhador e que a sua gravidade seja de tal ordem que torne impossível a subsistência da relação de trabalho.
A justa causa do despedimento pressupõe uma acção ou uma omissão imputável ao trabalhador a título de culpa Devendo aqui ser relevadas e valoradas, sendo o caso, as circunstâncias atenuantes e as causas de exclusão da culpa que no caso se tenham registado – v.g. o estado de necessidade desculpante, o erro, a falta de consciência da ilicitude do facto, a anomalia psíquica ou obediência desculpante., e violadora dos deveres principais, secundários ou acessórios de conduta a que o trabalhador, como tal, está sujeito, deveres esses emergentes do vínculo contratual, cuja observância é requerida pelo cumprimento da actividade a que se obrigou, pela disciplina da organização em que essa actividade se insere, ou, ainda, pela boa-fé que tem de registar-se no cumprimento do contrato.
Não basta, porém, aquele comportamento culposo do trabalhador. É que, sendo o despedimento a mais grave das sanções, para que o comportamento do trabalhador integre a justa causa é ainda necessário que seja grave em si mesmo e nas suas consequências Como escreve Maria Palma Ramalho, a gravidade pode ser reportada ao comportamento em si mesmo ou às consequências que dele decorram para o vínculo laboral - Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3ª edição, p. 902., de modo a tornar impossível a subsistência da relação laboral Não se trata aqui de uma impossibilidade material, estando em causa, ao invés, uma situação de inexigibilidade decorrente da inverificação das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, a ser aferida através de um juízo de probabilidade, de prognose, sobre a viabilidade da relação de trabalho..
E a gravidade do comportamento do trabalhador não pode aferir-se em função do critério subjectivo do empregador, devendo atender-se a cri­térios de razoabilidade, considerando a natureza da relação laboral, o grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, o carácter das relações entre as partes e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes – nº 3 do art. 351º do Código do Trabalho/2009.
Tanto a gravidade como a culpa hão-de ser apreciadas em termos objectivos e concretos, de acordo com o entendimento de um bom pai de família ou de um empregador normal, em face do caso concreto, e segundo critérios de objectividade e razoabilidade (cfr. art. 487º/2 CC), sendo certo que o comportamento culposo do trabalhador apenas constitui justa causa de despedimento quando determine a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral.
Por isso se pode afirmar que existe justa causa de despedimento quando o estado de premência do despedimento seja de julgar mais importante que os interesses opostos na permanência do contrato, só se podendo concluir pela existência de justa causa, quando, em concreto e tendo em conta os factos praticados pelo trabalhador, seja inexigível ao empregador o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo laboral.
Assim, existirá impossibilidade prática de subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais que ele importa, sejam de forma a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, sempre que a continuidade do vínculo represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador (cfr. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 8.ª edição, vol. I, págs. 461 e segs; Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, 1991, págs. 822; Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 1992, págs. 488; Jorge Leite e Coutinho de Almeida, em Colectânea de Leis do Trabalho, 1985, págs. 249).
E porque o despedimento é sempre um facto socialmente grave por lançar o trabalhador no desemprego e atendendo a que tal sanção é a mais grave do elenco das sanções disciplinares previstas no CT/2009, a justa causa só deve operar quando o comportamento do trabalhador é de tal modo grave em si mesmo e nas suas consequências, que não permite, em termos de razoabilidade, a aplicação de sanção viabilizadora da manutenção da relação de trabalho, não esquecendo que a sanção disciplinar deve ser sempre proporcionada à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor (princípio da proporcionalidade – art. 330º/1 do CT/2009).
Este princípio da proporcionalidade Cfr. acórdão do STJ de 8/1/2013, proferido no processo 447/10.4TTVNF.P1.S1., que é comum a todo e qualquer direito punitivo, implica uma dupla apreciação: a determinação da gravidade da falta e a graduação das sanções.
A primeira resultará da apreciação do facto delituoso em si, das circunstâncias em que ocorreu a sua prática, das suas consequências, da culpabilidade e dos antecedentes disciplinares do arguido.
A segunda justifica-se na medida em que apenas se deverá aplicar uma sanção mais grave quando sanção de gravidade menor não for suficiente para defender a disciplina dentro da empresa - Pedro Sousa Macedo, Poder Disciplinar Patronal, págs. 55/ 56.
Cabe, agora, apreciar a situação em apreço.
Fazendo-o, diremos, desde já, que tal como decidido pelo tribunal recorrido, consideramos que assistia à ré o direito de despedir a autora com justa causa.
É sabido que no desempenho funcional a que se obriga o trabalhador está sujeito ao dever de cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho (art. 128º/1/e do CT/09), sendo absolutamente cristalino, em face do constante dos pontos 3.4, 3.5, 3.8 a 3.10, que a autora violou tal dever.
Por outro lado, naquele desempenho o trabalhador está obrigado a tratar com urbanidade todas as pessoas que se relacionem com a empregadora (art. 128º/1/e do CT/09), sendo absolutamente cristalino, em face do constante dos pontos 3.4, 3.8 e 3.9, que a autora violou tal dever.
A violação desses deveres não pode deixar de qualificar-se como grave, tendo em conta a natureza pessoal dos bens jurídicos lesados com as condutas da apelante, os quais são dignos de tutela constitucional e convencional internacional (arts. 25º/1 e 69º/1/2 da CRP; art. 19º/1/2 da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de 1990, aprovada para ratificação pela Resolução da AR 20/90, de 12 de Setembro, ratificada pelo Decreto do Presidente da República 49/90, da mesma data), a intencionalidade das condutas da apelante que lhes esteve subjacente, as consequências físicas decorrentes para a menor Mara da agressão a que foi sujeita, a indemonstração de qualquer circunstancialismo que permita enquadrar a actuação da autora à luz de qualquer causa justificadora ou de atenuação, a circunstância da autora não ser titular de qualquer direito de correcção em relação à menor, bem assim como o facto de a visada com a conduta ilícita da autora ser uma criança de 4 anos, com a fragilidade própria de uma criança dessa idade, para mais institucionalizada em organização de protecção de crianças em risco.
Além e disso mais grave ainda, ao actuar daquela descrita forma, a autora minou irremediavelmente a confiança sem a qual não pode subsistir uma relação de trabalho e, por essa via, violou o dever de lealdade a que estava obrigada para com a ré.
Com efeito, tendo presente o dever de lealdade a que a autora estava adstrita para com a ré (art. 128º/1/f do CT/2009), é sabido que no âmbito das relações jurídicas de trabalho subordinado, o trabalhador deve proceder de boa-fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres [arts. 126º/1 CT/2009 e 762º/2 CC – com a ideia de boa-fé estão relacionadas, como é sabido, as ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na realização e cumprimento dos negócios jurídicos (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 1968, p. 2)], estando sujeito à obrigação de cumprir um conjunto de deveres que estão enunciados no art. 128º/1 do CT/2009, alguns principais, como por exemplo o de realizar o trabalho com zelo e diligência (alínea C), outros secundários, como por exemplo o de velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o seu trabalho (alínea G), e ainda outros que são acessórios de conduta, deduzidos do princípio geral da boa-fé supra referido, como por exemplo o de guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios (alínea F) - Maria do Rosário Palma Ramalho qualifica o referido dever de lealdade e outros, como por exemplo os de respeito e urbanidade e de custódia, como deveres acessórios autónomos, os quais, não dependendo propriamente da prestação principal (a actividade laboral), surgem com a celebração do contrato, mantêm-se ao longo da sua execução, subsistem nas situações de não prestação do trabalho e/ou de suspensão do contrato e perduram mesmo para além da cessação do vínculo (Direito do Trabalho, Parte II, 2010, p. 412).
Por outro lado, é sabido que a confiança entre o empregador e o trabalhador desempenha um papel essencial nas relações de trabalho, tendo em consideração a forte componente fiduciária daquelas; com efeito, a relação juslaboral pressupõe a integridade, lealdade de cooperação e absoluta confiança da/na pessoa contratada.
Do mesmo modo, sabe-se que a subsistência daquela confiança pressupõe a observância do mencionado dever de lealdade do trabalhador para com o empregador, pois que aquela será sempre afectada, podendo mesmo ser irremediavelmente destruída, quando se fere o mencionado dever, sendo que a observância deste é fundamental para o correcto implemento dos fins prático-económicos a que o contrato se subordina.
Em geral, o dever de fidelidade, de lealdade ou de “execução leal” tem o sentido de garantir que a actividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que, autonomamente, determinem situações de “perigo”(-) para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa(-)…”, sendo que “…o dever geral de lealdade tem uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)…” e que, encarado de um outro ângulo, “… apresenta também uma faceta objectiva, que se reconduz à necessidade do ajustamento da conduta do trabalhador ao princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações…”, “… com o sentido que lhe é sinalizado pelo art. 119.º/1 CT…”, donde promana, “… no que especialmente respeita ao trabalhador, o imperativo de uma certa adequação funcional — razão pela qual se lhe atribui um cariz marcadamente objectivo — da sua conduta à realização do interesse do empregador, na medida em que esse interesse esteja “no contrato”, isto é, tenha a sua satisfação dependente do cumprimento (e do modo do cumprimento) da obrigação assumida pela contraparte.” – Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, pp. 231 a 234.
O “… dever de lealdade manifesta-se hoje, basicamente, nos deveres de não concorrência e de sigilo profissional, sendo expressão da boa-fé contratual e significando que o trabalhador não deverá aproveitar-se da posição funcional que ocupa na empresa em detrimento do empregador (desviando a sua clientela, revelando segredos à concorrência, etc.)” - Leal Amado, Contrato de Trabalho, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 386.
Trata-se, conforme o exposto, de um dever que numa vertente objectiva se traduz na necessidade do trabalhador ajustar o seu comportamento ao princípio da boa-fé no cumprimento do contrato, e numa vertente subjectiva se reconduz à relação de confiança entre as partes que impõe que a conduta do trabalhador não seja susceptível de abalar tal confiança e, assim, criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura do comportamento do trabalhador – cfr. acórdãos do STJ de 14/4/1999, Acs Dout. do Supremo Tribunal Administrativo, Ano XXXVIII, N.º 456, p. 1653, de 17/04/1996 e de 14/01/1998, proferidos, respectivamente, nos processos 4429 e 110/1997.
Como assinala Joana Vasconcelos, em artigo que publicou sobre “O conceito de justa causa de despedimento”, é necessário fazer “um juízo de prognose, de probabilidade sobre a viabilidade futura da relação de trabalho” – Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Vol. II, Almedina, pp. 33/34.
Naturalmente que esse dever de lealdade não apresenta, sempre, o mesmo conteúdo; ao invés, este varia em função da natureza das funções do trabalhador, sendo mais acentuado quanto mais qualificadas forem as funções desempenhadas pelo trabalhador na organização técnico-laboral do empregador; coerentemente com o acabado de afirmar, o juízo de censura dirigido ao trabalhador não tem de ser sempre igual, devendo ser tanto mais severo quanto mais elevado for o grau de confiança estabelecido entre as partes, objectivado nas funções confiadas ao trabalhador na respectiva estrutura organizativa da empresa.
Atente-se, no entanto, em que dado o carácter absoluto do dever de lealdade e a consequente impossibilidade de gradações na perda da confiança A confiança existe ou deixa de existir. Deixando de existir, não há o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento da relação laboral. (v.g., acórdãos do STJ de 22/1/1992, Ac. Dout. 373º, p.108, de 20/3/1996, Ac. Dout. 416º-417º, p.1069, e de 18/12/1991, BMJ 412, p. 342, acórdãos da Relação do Porto de 10/6/1997, CJ, 1997, T. 4, p. 256, de 5/12/11, proferido na apelação 513/10.6TTMAI.P1, de 12/9/2011, proferido na apelação 787/10.2TTPRT.P1, de 21/5/2012, proferido no âmbito da apelação 1212/09.7TTGMR.P1, da Relação de Lisboa de 8/2/2012, proferido no âmbito da apelação 3061/03.7TTLSB.L1-4, de 26/9/2012, proferido no âmbito da apelação 1004/10.0TTLRS.L1, de 15/1/03, proferido no processo 7777/02; na doutrina pode consultar-se, por exemplo, Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, pp. 826 a 828, Lobo Xavier, Da Justa Causa de Despedimento no Contrato de Trabalho, p. 19, e José Andrade Mesquita, Direito do Trabalho, 2ª edição, 2004, p. 556), a diminuição de confiança resultante da violação deste dever não está dependente da verificação de prejuízos materiais, nem da existência de culpa grave do trabalhador: por isso, a simples materialidade desse comportamento lesivo do dever em apreço, aliado a um moderado grau de culpa do trabalhador pode, em determinado contexto, levar a um efeito redutor das expectativas de confiança (acórdão do STJ de 11/10/1995, publicado na CJ, tomo III, p. 277).
Como decidiu o STJ no acórdão de 03/04/1987, “Ainda que o prejuízo da entidade patronal seja pequeno, mais que isso releva a quebra de confiança que o comportamento do trabalhador provoca.” (BMJ, n.º 366, p. 425).
Como ensina Júlio Gomes (Direito do Trabalho, vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, p. 951), no tocante às consequências da conduta do trabalhador, “…estas deverão consistir num prejuízo grave para o empregador, embora tal prejuízo não seja necessariamente de ordem patrimonial. Com efeito, as consequências perniciosas podem consistir em minar a autoridade do empregador (ou do superior hierárquico), lesar a imagem da empresa ou num dano por assim dizer “organizacional”. Referimo-nos, com isto, ao que vulgarmente se refere pela perda de confiança no trabalhador.”.
Revertendo à situação em apreço, deve começar por reconhecer-se uma especial confiança na idoneidade comportamental da autora que a ré depositava nela e no seu desempenho funcional, como facilmente se intuiu do tipo concreto de funções que estavam cometidas à autora (v.g. cuidar de menores de tenra idade e particularmente indefesos que se encontravam institucionalizados por se terem encontrado em situações de risco) e do tempo durante o qual esteve alocada a tal desempenho.
Essa especial relação de confiança determina, necessariamente, um elevado grau de exigência no escrupuloso cumprimento do dever de lealdade a que nos reportamos, bem assim como um elevado desvalor da sua violação ou desrespeito, pois, como supra referido, aquele grau e este desvalor serão tanto maiores quanto mais estreita for a confiança do empregador na idoneidade do trabalhador.
Ora, em face dos factos dados como provados, designadamente dos que constam dos correspondentes pontos 3.4, 3.6 a 3.9, é forçoso concluir que a autora violou a confiança nela depositada pela ré e, consequentemente, o dever de lealdade a que estava obrigada para com ela.
Na verdade, como resulta do já exposto, esse dever impede que o trabalhador assuma comportamentos de que resultem situações de perigo para o interesse do empregador ou para a organização técnico-laboral da empresa.
Foi esse perigo que, justamente, a autora criou ao actuar pela forma ali enunciada, de forma reiterada e diferenciada quanto à materialidade da actuação.
A violação do dever de lealdade por parte da autora é grave, tendo em conta, designadamente: i) o carácter doloso dos seus comportamentos de que emergiu aquela violação; ii) a reiteração e diversidade material dos comportamentos ilícitos; iii) o carácter pessoal dos bens jurídicos lesados com as condutas da autora.
Assim sendo, ao proceder como procedeu, a autora minou irremediavelmente, pela gravidade intrínseca dos seus comportamentos, a relação de confiança que tinha de existir entre ela e a ré como pressuposto de manutenção da relação de trabalho, em consequência do que ficou prática e irremediavelmente comprometida a subsistência da relação de trabalho entre a autora e a ré.
Na verdade, tendo em conta aqueles concretos comportamentos de relevância disciplinar da recorrente, apesar da antiguidade da autora na empresa e da ausência de antecedentes disciplinares conhecidos, entendemos que está inviabilizada de forma incontornável uma prognose favorável à restauração de uma relação de confiança entre a autora e a ré e que a primeira lesou intencionalmente, ficando irremediavelmente comprometida a necessária relação de confiança sem a qual não pode subsistir a relação de trabalho entre ambas.
Por tudo quanto supra se deixa exposto, é forçoso concluir-se no sentido de que nas circunstâncias concretas em apreciação, a permanência do contrato da autora e das relações pessoais e patrimoniais que ele importava feririam, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, que a continuidade do vínculo representaria uma insuportável e injusta imposição à ré.
Bem andou a ré ao sancionar a autora com o despedimento, bem assim como o tribunal recorrido ao confirmá-lo.
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IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Coimbra, 8/5/2018.
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(Jorge Manuel Loureiro)

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(Paula Maria Roberto)

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(Ramalho Pinto)