Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
669/08.8TBTNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: CHEQUE
EXTRAVIO
RECUSA DE PAGAMENTO
RESPONSABILIDADE CIVIL BANCÁRIA
Data do Acordão: 03/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 342, 483 CC, 29, 32 LUCH, 14 DEC. 13004
Sumário: 1. O portador do cheque que pretenda efectivar a responsabilidade civil da instituição bancária sacada por ter recusado sem justa causa o pagamento do cheque tem o ónus de alegar e provar – tal como sucede com qualquer lesado que pretenda prevalecer-se da responsabilidade civil por factos ilícitos prevista no nº1 do art. 483º do C.Civil – todos os pressupostos da responsabilidade civil.

2. O “extravio” de cheque constitui motivo legítimo para o titular da conta sacada se opor ao pagamento.

3. À situação de recusa de pagamento do cheque por parte da instituição bancária sacada, com fundamento na declaração de extravio por parte do sacador, durante o prazo de apresentação a que se refere a primeira parte do artigo 29.º da L.U.Ch., não é aplicável o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, proferido no Processo n.º 06A542, que preconiza a responsabilidade por perdas e danos por parte do Banco.

4. O Banco só deve proceder ao pagamento se existirem sérios indícios de que o “extravio” comunicado é falso e foi invocado apenas para o emitente do cheque frustrar o seu pagamento.

5. Sendo que a prova dessa ocorrência também compete ao portador do cheque

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

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            1 – RELATÓRIO

“D (…), S.A.” intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra “CAIXA CENTRAL DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO, C.R.L.” e “CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DO RIBATEJO NORTE, CRL, pedindo que estas fossem condenadas, solidariamente:

- “A Indemnizar a autora pelo montante correspondente ao valor do cheque cujo pagamento recusou, de €49.877,79;

- Nos lucros cessantes decorrentes da privação do investimento e que ascendem a quantia nunca inferior a 29.250,00€;

- Nos juros de mora vencidos de 26 de Dezembro de 2003 até à presente data, no montante de 26.941,34€;

- Nos juros de mora vincendos sobre a quantia de €49.877,79, à taxa legal em vigor, desde a data da propositura da acção até efectivo e integral pagamento;

(…)”.

Para tanto, alegou, em síntese, que é dona e legítima portadora de 1 cheque, sacado sobre a conta de “A (…) – Unipessoal, Ldª, com o n.º ... do Banco “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Ribatejo Norte, CRL, por si titulada; que tal cheque foi entregue à A., para pagamento parcial de um estabelecimento comercial denominado de “ P...”, destinado a padaria, pastelaria, café e fabrico próprio de pão, bolos e produtos similares, cujo preço total era de 149.633,37€; que por exigência da Autora, e por forma a que lhe fosse entregue a posse do estabelecimento comercial, C (…)  ordenou à segunda Ré  a aposição de um “visto” sobre o aludido cheque; que o referido cheque foi subscrito pela única sócia-gerente C (…), com poderes para o acto, que firmou o cheque com o nome abreviado de C (…), e o emitiu à ordem e a favor da Autora; sucedeu que, apresentado tal cheque a pagamento nos oito dias posteriores à data da respectiva emissão, o mesmo foi devolvido com a indicação de que foi revogado por extravio do mesmo; que esta devolução ocorreu em consequência do sacador ter dado ao Banco 2ºR. ordem de revogação do cheques o que este veio a aceitar e a cumprir, razão pela qual a A. nunca recebeu a quantia titulada pelo cheque, estando, por conseguinte, desembolsada da quantia de €49.877,79, correspondente ao valor do cheque; acrescenta a A. que pretendia aplicar tal quantia no negócio de importação e exportação de veículos automóveis usados, e com um investimento de 50.000,00€, a participada da A.. D (…), Ldª, retira de lucro líquido a quantia média mensal de 750,00€, pelo que assim de Janeiro de 2004, até à data da propositura da acção a A. ficou desapossada da quantia de €49.877,79, e do subsequente lucro que retiraria em negócios que pertencem exclusivamente à  A., e que cifra em 29.250,00€.

*

Citadas regularmente as Rés contestaram, sendo a 1ª delas por excepção (alegando a prescrição do direito de indemnização reclamado pela A. e a ilegitimidade da própria) e, por impugnação, sustentando ser completamente alheia às eventuais relações existentes entre a A. e a dita C (…), quando é certo que o titular da conta bancária sobre a qual o cheque ajuizado foi sacado era uma sociedade e não a dita, acrescendo que o cheque por ser visado não perde as suas características, sendo que de acordo com a regras e procedimentos aplicáveis às instituições bancárias, enquanto instituição bancária sacada era legítima a recusa de pagamento do cheque desde que fundada em justa causa, por exemplo extravio [como sucedeu no caso vertente], donde não ter ocorrido nenhum acto ilícito da sua parte quando aceitou a ordem de revogação fundada em justa causa, nem por conseguinte culpa, nem também se verifica qualquer nexo de causalidade entre o alegado facto ilícito e os alegados danos sofridos, termos em que pugna pela sua absolvição do pedido (sendo-o da instância, a dar-se acolhimento à excepção da ilegitimidade.

Por sua vez, a 2ª Ré contestou reproduzindo, no essencial os argumentos da sua co-Ré, designadamente que a “declaração de extravio” foi enviada por fax e depois recebida em mão na agência, mas tudo isso foi precedido de uma manifestação de exaltação e correspondente alegação de extravio do cheque por parte de V (…)(mãe da dita C(…)) que era pessoa autorizada a movimentar aquela conta quando se apercebeu da emissão de um cheque visado e correspondente cativação do montante em causa, sendo certo que face a esta comunicação de extravio, não cabia nem podia a “Caixa” fazer investigações sobre o caso, tendo decidido ao tempo que o cheque não fosse pago por esse motivo (extravio), termos em que concluiu pugnando pela improcedência da acção.

Replicou na sequência a A., pugnando pela improcedência das excepções deduzidas pela 2ª Ré e finalizando por requerer a ampliação da causa de pedir, sustentando neste particular que ambas as RR. sabiam, sem poder desconhecer, que o cheque ajuizado não havia sido extraviado, ou pelo menos souberam-no no dia da sua apresentação a pagamento, donde terem ficado bem cientes de que a comunicação de extravio havia sido um expediente utilizado por aquela titular da conta para evitar  pagamento do cheque, assim defraudando a A. que era detentora de um cheque “visado”, devendo ser também por isso responsáveis pelos prejuízos que lhe resultaram.

Em articulados de “resposta”, pugnaram ambas as RR., designadamente, pela não admissão da requerida ampliação da causa de pedir.

Por despacho judicial de fls. 153 foi admitida a referenciada ampliação da causa de pedir requerida pela A..

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Foi proferido oportunamente despacho saneador, através do qual se julgaram improcedentes todas as excepções deduzidas, prosseguindo-se com a afirmação tabelar dos demais pressupostos processuais e procedendo-se ainda à devida condensação da matéria de facto, mediante a especificação dos factos assentes e a quesitação em base instrutória dos factos controvertidos, objecto de reclamações pela A. e 2ª Ré, apenas atendidas quanto a um lapso de escrita que se reconheceu existir na redacção do quesito 20º da base instrutória.

                                                           *

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, dentro do formalismo legal, e que culminou nas respostas à base instrutória que constam do despacho de fls. 582 a 585, sem reclamação.

            Na sentença, considerou-se, em suma, não ter ficado demonstrada a ilicitude da conduta das RR., em consequência do que se absolveram as RR. dos pedidos formulados pela A..

                                                                       *

            Inconformada com essa sentença, apresentou a A. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«(…)

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            Ambas as RR. contra-alegaram, pugnando por que seja negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida (cf. fls. 646 e 651-658).

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 684º, nº3 e 685º-A, nºs 1 e 3, ambos do C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no art. 3º, nº3 do C.P.Civil

            - incorrecta valoração da prova produzida, que levou ao incorrecto julgamento dos quesitos 8º, 13º, 14º, 18 e 19º (que deviam ter tido resposta diversa da de “não provado” que lhes foi dada, sendo que relativamente ao quesito 8º está concretamente em causa o segmento “sem qualquer motivo justificativo”);

- incorrecto julgamento de direito quanto ao entendimento perfilhado de não existir no caso responsabilidade civil por facto ilícito da instituição bancária sacada (e bem assim da instituição bancária co-ré que é o organismo central do sistema de crédito agrícola mútuo e enquanto tal co-responsável com aquela e garante da mesma) decorrente da recusa no pagamento do cheque dentro do prazo de apresentação a pagamento (aspecto de poder ou não o banco sacado conceder eficácia à ordem de não pagamento dada pelo sacador no prazo de apresentação a pagamento invocando “justa causa” fundada em “extravio” declarado/comunicado pelo sacador; aspecto de o cheque visado conceder ou não uma garantia acrescida ao tomador de que os fundos estavam cativos e ao seu dispor para o pagamento; aspecto de dever operar-se a aferição positiva dos pressupostos da responsabilidade civil do banco sacado, diversamente do efectuado na sentença recorrida).

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, o que naturalmente contempla a conjugação da condensação dos factos assentes com os decorrentes das respostas dadas aos quesitos da base instrutória elaborada, obviamente sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade. 

            Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados na 1ª instância:

I – A Autora é uma sociedade anónima, matriculada na 1.ª Secção da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n.º 12.865 e titular do número de identificação fiscal 980 293 944. [al.A) dos Factos Assentes];

II – A Autora tem como objecto a compra e venda de toda a classe de prédios rústicos e urbanos, a promoção e construção sobre os mesmos de toda a classe de edificações, a sua reabilitação, venda ou arrendamento não financeiro e a construção de todo o tipo de obras públicos ou privados; a realização de toda a classe de transportes, serviços de mercadorias por estrada com qualquer veículo e carga, assim como as actividades e serviços de agências complementares para o uso e manutenção de estas e outras relacionadas com o transporte, com sujeição a legislação especial e geral que lhe sejam aplicáveis; a importação e exportação de produtos alimentares e bebidas, assim como o comércio por grosso e a retalho de tais produtos; o comércio de máquinas e materiais relacionados com computadores, programas para os memos, máquinas de escritório, criação e desenvolvimento para computadores, assessoria técnica e informática, reparação de máquinas de escritório, programação de automóveis e controlo industrial; a assessoria de empresas na sua mais ampla acepção, no âmbito da contabilidade, fiscal, laboral, jurídico, técnico, financeiro, imobiliário, marketing, publicidade, energia, qualidade e outros temas de índole empresarial e/ou profissional, tudo, em cada caso, através de profissionais titulados; a exploração de serviços hoteleiros, pensões e restauração gastronómica em geral, em especial a exploração de bares, restaurantes discotecas e pubs; o comércio e arrendamento financeiro de veículos automóveis e a reparação e manutenção posterior, assim como o comércio de todo o tipo de acessórios para os mesmos; a prestação de serviços de recolha, transformação e exploração de resíduos sólidos e outros detritos de uso doméstico e industrial, e a obtenção e comercialização de energias que possa ser obtidas na sua exploração; em especial a promoção de parques eólicos, a instalação, gestão e exploração de parques de energias eólica, assim como de todo o tipo de energias, com sujeição à legislação vigente em cada caso concreto; a realização de actividades na internet, incluída a criação, desenvolvimento e exploração de portais, assim como o fornecimento de serviços de informação, formação e comércio electrónico; a exploração de centros geriátricos de dia e residências de idosos; recolha e tratamento de materiais usados para posterior reciclagem; em especial os derivados de vidro, papel, plásticos, alumínios e embalagens de distintos materiais; a compra e venda de peles e curtidos, desenho, fabricação e acabamento de todo o tipo de calçados e o seu comércio por grosso ou a retalho, assim como a sua exportação e a importação; a compra e venda e a exploração por conta própria ou alheia, de máquinas de venda e caixas automáticas; a fabricação de produtos químicos e sintéticos, concentrados, de cor e outros; importação, exportação, compra e venda e distribuição de todo o tipo de artigos sanitários e higiénicos, incluindo prendas de um só uso, luvas celulosas, sacas de plástico, equipamento e complementos para casa de banho, lavatórios e vestuários. [al.B) dos Factos Assentes];

III – A Autora é a única sócia da “D (…)Unipessoal, Ld.ª, pessoa colectiva com o n.º ..., com sede no lugar do ..., freguesia de ..., concelho de Aveiro, matriculada na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º ..., com o capital social de €5.000,00 e que tem por objecto o comércio, importação e exportação de automóveis, peças e acessórios. [al.C) dos Factos Assentes];

IV – A 1.ª Ré é uma instituição de crédito sob a forma de cooperativa de responsabilidade limitada e é o organismo central do sistema integrado do crédito agrícola mútuo, formado pela mesma e pelas Caixas Agrícolas suas associadas, entre as quais a 2.ª Ré. [al.D) dos Factos Assentes];

V – À 1.ª Ré cabem poderes de fiscalização, intervenção e orientação da 2.ª Ré, nos aspectos administrativo, técnico, financeiro, organizativo e de gestão. [al.E) dos Factos Assentes];

VI – A 2.ª Ré é uma instituição associada da 1.ª Ré, que tem por objecto a actividade bancária. [al.F) dos Factos Assentes];

VII – A Autora e C (…) celebraram um acordo escrito, datado de 22 de Dezembro de 2003 e denominado “Contrato de Trespasse de Estabelecimento Comercial”, mediante o qual a primeira se comprometeu a entregar à segunda um estabelecimento comercial, denominado “ P...” e destinado a padaria, pastelaria, café e fabrico próprio de pão, bolos e produtos similares, pelo preço de €149.633,37 (cento e quarenta e nove mil seiscentos e trinta e três euros e trinta e sete cêntimos). [quesito 3º da Base Instrutória];

VIII – No âmbito do mencionado acordo, a Autora e C (…) estabeleceram que a primeira procederia à entrega efectiva do estabelecimento à segunda no momento em que esta entregasse àquela um cheque no valor de €49.877,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e sete euros e setenta e nove cêntimos), contendo um “Visto”, como confirmação da existência de provisão para pagamento do mesmo. [quesito 4º da Base Instrutória];

IX – C (…) emitiu a favor da Autora, o cheque n.º 5878190965, sacado sobre a 2.º Ré, datado de 23 de Dezembro de 2003 e associado à conta à ordem com o n.º ..., titulada pela A (…) Unipessoal, Lda, no valor de €49.877,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e sete euros e setenta e nove cêntimos). [quesito 5º da Base Instrutória];

X – No dia 23 de Dezembro de 2003, a 2.ª Ré apôs um “Visto” no mencionado cheque, informando existir provisão para pagamento do mesmo. [quesito 6º da Base Instrutória];

XI – No dia 23 de Dezembro de 2003, C (…) entregou à Autora o mencionado cheque visado e esta, convicta de que o montante constante do cheque estava cativo para assegurar o pagamento do mesmo, procedeu à entrega do mencionado estabelecimento. [quesito 7º da Base Instrutória];

XII – No mesmo dia, C (…), acompanhada de V (…) dirigiu-se ao balcão da 2-ª Ré e solicitaram à mesma, por escrito, o não pagamento do cheque. [resposta ao quesito 8º da Base Instrutória];

XIII – Para tanto alegaram o extravio do mesmo. [quesito 9º da Base Instrutória];

XIV – No dia 26 de Dezembro de 2003, a Autora tentou proceder ao levantamento quantia titulada no mencionado cheque nas instalações da 2.ª Ré, o que não conseguiu. [quesito 10º da Base Instrutória];

XV – Após a Autora procedeu ao depósito do mencionado cheque para pagamento na conta bancária com o n.º ..., titulada pela mesma numa associada da 1.ª Ré, a Caixa de Crédito de Cantanhede e Mira, CRL. [quesito 11º da Base Instrutória];

XVI – Nas duas ocasiões, a 2.ª Ré recusou pagar à Autora a quantia titulada no mencionado cheque, com fundamento no seu extravio. [quesito 12º da Base Instrutória];

XVII – As Rés e as associadas trabalham em rede informática podendo aceder a informação sobre as contas bancárias em situações específicas. [resposta ao quesito 15º da Base Instrutória];

XVIII – A Autora não recebeu a quantia titulada no mencionado cheque. [quesito 17º da Base Instrutória];

XIX – C (…) enviou a comunicação referida em 12 por fax e apresentou-se nas instalações da 2.ª Ré confirmando tal comunicação. [resposta ao quesito 20º da Base Instrutória];

XX – Ainda no dia 23 de Dezembro de 2003, a 2.ª Ré consultou telefonicamente os serviços jurídicos da 1.ª Ré, que informaram que o motivo invocado por C (…) era fundamento para recusa de pagamento do cheque. [quesito 21º da Base Instrutória];

XXI – No dia 12 de Janeiro de 2004, a 1.ª Ré confirmou por escrito à 2.º Ré a informação que lhe havia prestado anteriormente. [quesito 22º da Base Instrutória];

XXII – C (…) é filha de J (…) e V (…). [Assento de Nascimento de fls. 420].

                                                                       *

3.2 –

(…) decide-se rectificar a resposta dada aos quesitos 8º e 9º da Base Instrutória, que passará a ser uma resposta conjunta, em decorrência do que passarão os factos XII e XIII dos factos alinhados na sentença a ter a correspondente nova redacção, a saber, pela seguinte forma:

“XII/XIII – No mesmo dia, C... acompanhada de V... e J..., dirigiu-se ao balcão da 2-ª Ré e alegando o extravio do mencionado cheque, solicitaram à mesma, por escrito, o não pagamento do cheque. [nova redacção da resposta aos quesitos 8º e 9º da Base Instrutória]”

                        (…)

                                                                       *

            4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1– Cumpre agora entrar na apreciação da questão seguinte supra enunciada – incorrecto julgamento de direito quanto ao entendimento perfilhado de não existir no caso responsabilidade civil por facto ilícito da instituição bancária sacada (e bem assim da instituição bancária co-ré que é o organismo central do sistema de crédito agrícola mútuo e enquanto tal co-responsável com aquela e garante da mesma) decorrente da recusa no pagamento do cheque dentro do prazo de apresentação a pagamento

E começando pela sub-questão de poder ou não o banco sacado conceder eficácia à ordem de não pagamento dada pelo sacador no prazo de apresentação a pagamento invocando “justa causa” fundada em “extravio” declarado/comunicado pelo sacador, diremos o seguinte:

A Exma. Juíza a quo cuidou na sentença de, com profundidade, historiar a evolução doutrinária e jurisprudencial nesta matéria, sempre no confronto com os textos normativos aplicáveis, fazendo uma interpretação que nos parece extremamente rigorosa e acertada.

Teve ela em conta, designadamente, os doutos ensinamentos que se podem extrair do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2008 (de 28-02-2008) e do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº9/2008 (de 25-09-2008), ambos com texto integral acessível em www.dgsi.pt/jstj, nos procs. nºs 06A542 e 07P3394, respectivamente.

Na verdade, e começando pelo primeiro deles, uma leitura mais adequada e atenta do dito Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2008[1], leva-nos efectivamente a concluir que o caso de “extravio” como justa causa de recusa do pagamento foi afastado do seu objecto.

Na verdade, como já foi doutamente sustentado, “II. A ordem de proibição de pagamento do cheque, dada pelo sacador ao banco sacado com fundamento em “extravio”, não se confunde com a revogação prevista no artigo 32.º da Lei Uniforme Sobre Cheques. III. No caso de extravio ou qualquer outra forma de “ilegítima apropriação”, o que está em causa não é a revogação. Nestes casos o sacador proíbe o pagamento por considerar inválido o seu saque. Logo, não o revoga, porque a revogação pressupõe a validade do acto que, por esse efeito, se extingue.[2]

E bem se compreende que assim seja, pois que, no caso de extravio ou qualquer outra forma de “ilegítima apropriação” «… o que está em causa não é a revogação – o sacador proíbe o pagamento por considerar inválido o seu saque. Logo, não o revoga, porque a revogação pressupõe a validade do acto que por esse efeito, se extingue».[3]

“Revogação” e “extravio” são, assim, realidades distintas, de acordo com o que defende José Maria Pires na obra citada, pelo que não é de aplicar, sem mais, ao “extravio” as consequências da “revogação”, sendo certo que no referenciado Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, a responsabilidade civil extracontratual do banco sacado se funda numa dupla violação: i) da segunda parte do corpo do artigo 14º do Decreto n.º 13 004 - que se refere à recusa de pagamento baseada na revogação pelo sacador; ii) da primeira parte do artigo 32º da L.U.Ch. - que se refere também à revogação pelo sacador no prazo de apresentação.

Acontece que na situação ajuizada, não há “revogação” pela sacadora (a dita C..., sobre a conta titulada pela “ AR..., Lda.”), no prazo de apresentação para pagamento, mas sim declaração de extravio pela mesma perante a instituição bancária, ora 2ª Ré.

Donde, este apoio interpretativo directo para o entendimento que estamos a propugnar no sentido de que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2008 (também invocado e aplicado na sentença), admite a recusa de pagamento de cheque fundada em “justa causa”, nomeadamente “extravio”, tendo assim afastado do seu objecto (ou seja não inserindo na responsabilização dos Bancos por violação do art. 32º da L.U.Ch.) o caso de “extravio” como justa causa de recusa do pagamento.

Acresce que sustentamos tal entendimento ser de manter, mesmo quando se prova que o motivo da devolução do cheque (extravio) era falso.

É certo que no caso ajuizado se pode sustentar que já está definitivamente apurado ser falso o motivo “extravio”, face ao decidido na sentença crime que já teve lugar a propósito desta mesma materialidade (cf. fls. 233-250 dos autos), onde a aí arguida C (…) foi condenada pelo crime de emissão de cheque sem provisão (embora absolvida do crime de burla qualificada de que estava também acusada!), mas, quanto a nós, há muitos e diversos aspectos ainda em aberto, pois que subsiste um litígio cível entre as partes, a ser dirimido na instância própria, a respeito deste negócio de trespasse do estabelecimento em causa, mais concretamente numa acção em que venha a ser apreciada a validade, cumprimento ou resolução de um tal negócio jurídico…

Em todo o caso, coisa diversa – e essa, quanto a nós, de todo não apurada nem sendo lícito considerá-la como adquirida – é que a instituição bancária ora 2ª Ré disso tivesse tido conhecimento ou não pudesse deixar de saber…

Mas como estes últimos aspectos já se prendem com a eventual ilicitude e culpa na actuação desta última, entendemos reservar a sua apreciação mais detalhada e aprofundada para tal sede, do que se cuidará no momento final infra.

Deste modo, nesta particular sub-questão em apreciação, vamos só e ainda convocar o que também se extrai mais directamente de válido e pertinente, em nosso entender, do segundo dos ditos arestos, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº9/2008[4].

Com efeito, neste sustenta-se o entendimento de que o banco sacado continua a poder acatar a ordem de proibição de pagamento emanada do seu cliente, de quem é mandatário e executante das suas instruções, configurando-se o contrato ou convenção de cheque como um contrato de mandato para prestação de serviços, ao qual é totalmente estranho o beneficiário ou portador do cheque, tendo-se concretamente argumentado do seguinte modo, e em jeito de conclusão, relativamente à apreciação que se fez das situações de “furto” ou “extravio” (cf. item “12.3” deste A.U.J.):

«Ora, de toda esta explanação resulta que, seja por se considerar o contrato de cheque como uma modalidade particular de mandato, ou mais especificamente um contrato de prestação de serviços sob a forma de mandato, a que se liga a possibilidade de revogação, sendo a doutrina dominante no sentido de que o art. 14.º do Decreto n.º 13004 foi revogado pela Lei Uniforme, cujo art. 32.º, ao estabelecer a ineficácia da revogação durante o prazo de apresentação a pagamento, apenas quer significar que o cheque continua válido como cheque, mantendo o portador ou tomador o direito de acção contra os responsáveis cambiários, e não que o sacado não possa obedecer à ordem de revogação, que se mantém livre, seja ainda por se entender que a revogação só pode ter lugar no caso de ocorrer uma justa causa, nos termos do art. 1170.º, n.º 2 do CC, no qual se incluem as hipótese de furto, roubo e extravio, ou ainda por se conceber para tais hipótese um direito de oposição, distinto da revogação, a ordem ou aviso de não pagamento transmitidos ao sacado configuram-se como uma proibição de pagamento do cheque.»

                                                           *

Quanto à sub-questão de o cheque visado conceder ou não uma garantia acrescida ao tomador de que os fundos estavam cativos e ao seu dispor para o pagamento, parece-nos que o sustentado em sentido diverso pelo A./recorrente só se pode compreender como fruto de imponderação ou entusiasmo da litigância.

Pois tanto quanto nos é dado perceber, intenta situar a questão no plano da responsabilidade civil contratual…

Senão vejamos.

Esta sub-questão prende-se com o disposto no art. 32.º da Lei Uniforme Relativa Aos Cheques (LURC), segundo o qual:

«A revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação.
Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.»

Ora, conforme sublinhado por GERMANO MARQUES DA SILVA,
«
tem sido orientação da jurisprudência e da doutrina portuguesa que o portador do cheque não tem direito de acção nem cambiária, nem de responsabilidade civil por facto ilícito contra o sacado que, obedecendo a ordens do sacador (ou de terceiro com poderes para o acto), o não paga quando apresentado a pagamento dentro do prazo estabelecido pela Lei Uniforme.»[5]

Com efeito, diz FILINTO ELÍSIO[6], um dos mais reconhecidos autores que escreveu sobre a matéria: «Partindo da doutrina do mandato, a conclusão a tirar quanto à revogabilidade do cheque é simples de enunciar: o cheque é sempre revogável pelo sacador, quer no decurso do prazo de apresentação a pagamento quer depois dele.
«Há, todavia, o artigo 32.° da Lei Uniforme dizendo que a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação, o que parece abalar a lógica da doutrina condenando a tese da sua revogabilidade no prazo de apresentação. Supomos não ser assim. «É ponto incontestado que o banco não é devedor do beneficiário do cheque, e não é um dos seus co-obrigados que são apenas o sacador, os endossantes e os avalistas. «O banco não pode aceitar o cheque (art. 4.° da Lei Uniforme) e o próprio cheque visado não contraria esta doutrina.

É bem determinada a este respeito a opinião do Prof. FERRER CORREIA:
“Nem, de resto, o banco é devedor do beneficiário do cheque
, como é ponto assente na doutrina: no caso de recusa de pagamento, o portador apenas pode accionar, em via de regresso, o sacador, os endossantes e os avalistas. O banco, ao liquidar o cheque, cumpre uma obrigação que assumiu exclusivamente em face do sacador e, nunca é demais repeti-lo, sempre e só no interesse do sacador (...)»[7]

Questiona também o referido FILINTO ELÍSIO: «Não sendo obrigado no cheque, poderá o banco ser accionado numa acção de perdas e danos por violação do artigo 32.° da Lei Uniforme, obedecendo à revogação? Não com base no cheque, sim com base no facto ilícito?»

Baseando-se nos trabalhos da Convenção de Genebra, no decurso dos quais foi rejeitada a proposta do delegado português – Caeiro da Mata –, segundo a qual ao texto aprovado (que se baseou na proposta do delegado italiano) se devia acrescentar: «Durante o prazo de apresentação, o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com o fundamento na revogação» (texto este que coincidia com a 2.ª parte do proémio do art. 14.º do Decreto 13004 (s)ob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação), esse mesmo FILINTO ELÍSIO concluía: «A Convenção não responsabilizou o sacado por obedecer à ordem de revogação durante o prazo de apresentação, e não é assim a Lei Uniforme, que consagra a irresponsabilidade do banqueiro perante o portador, que pode inspirar tal conclusão

E resumindo a sua interpretação, exarava: «O que o artigo 32.° quer dizer é que, mau grado tal revogação, o cheque continua a ser cheque como título, isto é, a revogação não anula o cheque e o portador pode protestá-lo, pode accionar os co-obrigados, numa palavra, continua a beneficiar de todas as potencialidades jurídicas inerentes ao cheque, mas não passará a ter mais uma — que nunca teve —, transformar o sacado em mais um co-obrigado que nunca foi.»

Ademais, como já foi sublinhado por ALBERTO LUÍS[8], «A obrigação de pagamento do sacado frente ao portador é uma obrigação ‘ex lege’, já que não nasce de um negócio jurídico, porque nenhum pacto une o portador ao banco sacado. A responsabilidade do banco, em caso de não pagamento injustificado do cheque é, pois, de natureza extracambiária e abarca as perdas e danos produzidas pelo incumprimento do pacto de disponibilidade. E o não pagamento será injustificado se o banco sacado acatar a ordem de revogação do seu cliente e em consequência não pagar, tendo fundos para isso, o cheque que lhe for apresentado dentro do prazo de apresentação.».

Cremos que o que vimos de dizer é perfeitamente transponível para quando existe um cheque “visado”.

Na verdade, o facto de a 2ª Ré ter visado o cheque a favor da A./Recorrente, não teve a virtualidade de transformar esta em titular dessa quantia constante do cheque, estando antes e apenas a 2ª Ré a prestar um serviço bancário à sua cliente (leia-se, da conta titulada pela “A (…), Lda.”), conferindo a esta última um título cambiário com garantia acrescida, mas cujo efectivo pagamento ainda vai depender, e sempre, dum subsequente acto do sacador, qual seja, o da legítima e livre entrega ao tomador.

Cremos que ficou assim perfeitamente sublinhado o nosso entendimento de que, no plano estritamente cambiário, a A./recorrente não tem acção contra as RR., pelo que excluída está a responsabilidade civil contratual destes últimos em relação àquela.

Face ao que falece sem necessidade de maiores considerações este argumento recursório.

                                                           *

Finalmente, quanto à sub-questão de dever operar-se a aferição positiva dos pressupostos da responsabilidade civil do banco sacado, diversamente do efectuado na sentença recorrida, cumpre aduzir o seguinte:

Começando pelos aspectos atinentes ao ónus de prova, temos para nós como incontornável que competia à A./recorrente a prova dos pressupostos da responsabilidade civil (arts. 342º, 483º e 487º do C.Civil), o que aquela não logrou inabalávelmente fazer.

Na verdade, nos termos do art. 342º, nº1 do C.Civil «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.»

Sendo certo que são factos “constitutivos” do direito invocado, por exemplo, os pressupostos da responsabilidade civil.[9]

Temos assim como inquestionável resultar do quadro legal que o portador do cheque que pretenda efectivar a responsabilidade civil da instituição bancária sacada por ter recusado sem justa causa o pagamento do cheque tem o ónus de alegar e provar – tal como sucede com qualquer lesado que pretenda prevalecer-se da responsabilidade civil por factos ilícitos prevista no nº1 do art. 483º do C.Civil – todos os pressupostos da responsabilidade civil.

Esse ónus de prova acabado de enunciar só não será de exigir se o portador beneficiar de presunção, dispensa ou liberação do ónus da prova ou convenção válida nesse sentido (cf. o nº1, do art. 344º do C.Civil).

Não é o que se passa no caso, pois não há lei nem convenção que dispense o portador de provar qualquer dos ditos pressupostos, antes tal ónus lhe está expressamente conferido, no que à culpa diz respeito, pelo art. 487º do C.Civil.  

Por outro lado, dispõe o art. 483º, nº1 do C.Civil que «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

  São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual a prática de um facto voluntário do agente, ilícito (violador de um direito de outrem ou de disposição legal), a culpa, o dano e o nexo causal entre o facto ilícito culposo e o dano.

A ilicitude pode derivar da violação de direitos alheios ou de violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios (violação de normas de protecção), sendo certo que é nesta segunda variante da ilicitude que se pode integrar a conduta do sacado.

Acontece que, quanto a nós, não sendo invocável na situação ajuizada a violação de “disposição legal” – pois que, contrariamente à situação prevista e julgada no acórdão uniformizador de 28.02.2008, não são aplicáveis à invocação de extravio por parte do sacador, nem a segunda parte do corpo do art.14º do Decreto n.º 13 004, nem a primeira parte do artigo 32º da L.U.Ch. (reportam-se exclusivamente à “revogação”, que é uma realidade distinta!) –, acresce que parece não se verificar a violação do direito subjectivo do tomador do cheque (leia-se a ora A.), na medida em que este apenas terá direito ao pagamento se a instituição bancária ora 2ª Ré (sacada) estivesse obrigado a fazê-lo, por não se verificar qualquer fundamento (justa causa) de recusa, como a declaração/comunicação de extravio (que se provou ter tido lugar).

De igual modo, quanto ao pressuposto essencial da culpa, não se tendo provado na situação ajuizada, o conhecimento da falsidade de declaração de “extravio” por parte da instituição bancária ora 2ª Ré, no âmbito da relação contratual entre a dita (enquanto entidade sacada) e a cliente/sacadora (enquanto titular da conta de “ AR..., Lda.”) não faria sentido a investigação por parte da instituição bancária, sobre a veracidade e boa fé da declaração desta sua cliente.

Neste quadro, agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do lesante merecer a reprovação ou censura do direito, sendo que a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia agir de outro modo, modo esse pelo qual agiria um bom pai de família perante as mesmas circunstâncias – art. 487º, nº2 do C.Civil.

Ora, a prova do facto relevante a esta luz (conhecimento da falsidade da declaração de “extravio”), integrador do pressuposto da culpa, incumbia na íntegra à A./recorrente, nos termos gerais do art. 342º do C.Civil.

De facto, não vislumbramos que “presunção” de culpa existia ou podia ser invocada neste particular…

Nem, aliás, a A./recorrente a invocou, antes sustentava factualidade de sentido contrário, consubstanciadora dessa culpa – o que foi o núcleo central da sua impugnação da matéria de facto neste recurso – que, contudo, como supra se decidiu, não se pode considerar apurada…

Sendo certo que neste particular, após ser feita uma pesquisa jurisprudencial cuidada, em recente aresto desta Relação de Coimbra[10], se veio douta e ponderadamente a sustentar o seguinte entendimento:

«1. O extravio de cheque constitui motivo legítimo para o titular da conta sacada se opor ao pagamento.

2. É necessário, no entanto, encontrar-se um ponto de equilíbrio entre o interesse do sacador em opor-se ao pagamento de um cheque perdido ou fraudulentamente subtraído, e a necessidade de proteger a fé pública do cheque enquanto meio de pagamento.

3. Tal equilíbrio depende dos seguintes requisitos:

1º) O banco sacado não tem o dever de averiguar se é exacta a alegação de extravio transmitida pelo titular da conta sacada;

2º) Depois de receber a comunicação de extravio, o banco sacado não tem de suscitar o “incidente de extravio”, dando conhecimento da comunicação ao apresentante do cheque para que este possa provar que é legítimo;

3º) O banco sacado tem o dever de se certificar que a comunicação foi efectuada pelo titular da conta sacada;

4º) O banco deve proceder ao pagamento se existirem sérios indícios de que o extravio comunicado é falso e foi invocado apenas para o emitente do cheque frustrar o seu pagamento.»

A situação factual que estava em causa neste aresto tem perfeita similitude com a da situação ajuizada nos presentes autos, donde o acolhimento por nós desse entendimento e sua transposição para os presentes autos.

Com o que queremos dizer que não se detecta culpa na actuação da instituição bancária ora 2ª Ré, pois que a mesma, após lhe ser declarada/comunicada a situação de “extravio” do cheque ajuizado, pelo legítimo titular/movimentador da conta bancária sacada, não teve nem tinha que ter legítimas razões para duvidar da veracidade da mesma, isto é, no quadro fáctico apurado, não se evidenciavam sérios indícios de que o “extravio” declarado/comunicado era falso e foi invocado apenas para a emitente do cheque frustrar o seu pagamento.

Neste quadro, entendemos que mais não lhe era nem é exigível, por tal não estar contemplado nas relações entre a instituição bancária sacada e o tomador do cheque, no contexto do contrato de cheque que aquele celebrou – unicamente – com a sacadora…

Numa palavra, «Esta exigência ao banco para que investigue, fazendo-o assumir a responsabilidade pela não detecção da falsidade de um invocado motivo, afigura-se exagerada e estranha à vocação financeira e comercial de uma instituição bancária.»[11]

É ainda oportuno apreciar os últimos pressupostos da responsabilidade civil – o dano que a A./recorrente queria ver reparado e a relação de causalidade entre o facto ilícito e o dano.

Retomando e dando aqui por reproduzido o que supra se sustentou quanto ao ónus de prova de todos os pressupostos da responsabilidade civil, diremos que não há lei nem convenção que dispense o portador de provar o prejuízo que lhe foi causado; nem há lei nem convenção que presuma que o prejuízo sofrido em situações como a dos autos corresponde ao montante do cheque.  

Ora se assim é, temos desde logo que a A./recorrente não logrou provar que foi o questionado acto da instituição bancária ora 2ª Ré que lhe causou um prejuízo no valor de € 49.877,79, que era o valor inscrito no cheque.

Apenas logrando provar mais singelamente que não recebeu até ao presente essa importância que se encontrava titulada pelo cheque em causa (cf. facto XVIII).

Deste facto singelo não resulta a nosso ver provada a relação de causalidade entre a conduta da instituição bancária ora 2ª Ré e o não recebimento do montante em causa.

Tenha-se presente que não foi alegada nem está apurada a actual situação de solvabilidade económica e financeira da sacadora C...…

 Enfim, sendo o nexo de causalidade um dos pressupostos da obrigação de indemnização e não se tendo provado a relação de causalidade entre a acção imputada à instituição bancária ora 2ª Ré, e o prejuízo que a A./recorrente invocou – o não recebimento da quantia titulada pelo cheque –, é patente que a acção também por aqui não estava em condições de proceder.

 Em jeito de conclusão, dir-se-á, então, que tendo o portador (leia-se a ora A./recorrente) alegado que o prejuízo que lhe foi causado foi o não recebimento do cheque, e pedindo, em consequência, a condenação das instituições bancárias RR. no pagamento do respectivo montante[12], seria condição de procedência da acção a prova de que não recebeu o montante do cheque e que a causa do não recebimento foi o não acatamento da ordem de pagamento do mesmo constante: ora, este último ponto não resultou provado, pois que se efectivamente não recebeu a A./recorrente até ao momento o montante do cheque, já não se pode de todo dizer que tal foi consequência de actuação ilícita e culposa das instituições bancárias ora RR...

Termos em que bem se decidiu na sentença recorrida ao negar o direito reclamado pela A. na acção.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O portador do cheque que pretenda efectivar a responsabilidade civil da instituição bancária sacada por ter recusado sem justa causa o pagamento do cheque tem o ónus de alegar e provar – tal como sucede com qualquer lesado que pretenda prevalecer-se da responsabilidade civil por factos ilícitos prevista no nº1 do art. 483º do C.Civil – todos os pressupostos da responsabilidade civil.

II – O “extravio” de cheque constitui motivo legítimo para o titular da conta sacada se opor ao pagamento.

III – À situação de recusa de pagamento do cheque por parte da instituição bancária sacada, com fundamento na declaração de extravio por parte do sacador, durante o prazo de apresentação a que se refere a primeira parte do artigo 29.º da L.U.Ch., não é aplicável o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008, proferido no Processo n.º 06A542, que preconiza a responsabilidade por perdas e danos por parte do Banco.

IV – O Banco só deve proceder ao pagamento se existirem sérios indícios de que o “extravio” comunicado é falso e foi invocado apenas para o emitente do cheque frustrar o seu pagamento.

V – Sendo que a prova dessa ocorrência também compete ao portador do cheque.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso e, em consequência, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Custas do recurso pela A./recorrente.

                                                           *

           

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Maria José Guerra

Albertina Pedroso


[1] Por força do qual foi uniformizada a jurisprudência nos seguintes termos: «Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do art. 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14.º, 2.ª parte do Dec. n.º 13.004 e 483.º,n.º 1, do Código Civil.»
[2] Citámos o Ac. do T.R.Coimbra de 17-11-2009, proc. nº 576/08.4TBAVR.C1, acessível em  www.dgsi.pt/jtrc.
[3] Assim, JOSÉ MARIA PIRES in “O Cheque”, Editora Rei dos Livros, pág. 107.


[4] Por força do qual foi uniformizada a jurisprudência nos seguintes termos: «Verificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento
[5] In “Regime Jurídico-Penal Dos Cheques Sem Provisão”, Principia, Lisboa – 1997, a págs. 68.
[6] In “A Revogação do Cheque”, na Revª  “O Direito”, Ano 11º, 1968, Fascículo nº 4, Outubro/Dezembro, págs. 450-505.
[7] In “Lições de Direito Comercial III”, Coimbra, 1975, págs. 8 e segs.
[8] In “O problema da responsabilidade civil dos Bancos por prejuízos que causem a direitos de crédito”, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59.º, nº3, Dezembro de 1999, págs. 895-914, concretamente a págs. 902 deste artigo.
[9] Cf., neste expresso sentido, PIRES DE LIMA e A. VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, Cª Editora, 1987, a pags. 305.
[10] Trata-se do Ac. do T.R.Coimbra de 27-03-2012, no proc. nº 4050/07.8TBAVR.C1, acessível em  www.dgsi.pt/jtrc, aliás também doutamente invocado na sentença recorrida.
[11] Citámos o Ac. da Rel. de Lisboa de 16-06-2009, no proc nº 5479/07.7TVLSB.L1-1, acessível em  www.dgsi.pt/jtrl.  
[12] Para além de outros danos que, em termos de matéria de facto, também não resultaram provados.