Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
109/19.7T8VIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
ARTICULADO SUPERVENIENTE
EXCESSO DE PRONÚNCIA
TAXA SANCIONATÓRIA EXCEPCIONAL
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 7.º, 4 E 8 E 1º.º, DO REG. CUSTAS PROCESSUAIS
ARTIGOS 154.º; 531.º; 552, 1, D); 581.º, 1 E 4; 588.º; 613.º; 614.º; 616.º; 615.º, 1, C) E 644.º, 2, D), DO CPC
Sumário: 1. - Os articulados supervenientes apenas são admissíveis para trazer a juízo factos novos relevantes – os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes (superveniência objetiva ou subjetiva) –, sendo inconfundíveis com um requerimento em que se suscite questão de direito perante dados processuais e documentais já constantes dos autos.
2. - A causa de pedir corresponde ao conjunto dos factos que integram a previsão normativa substantiva que estabelece o efeito jurídico pretendido na ação, não podendo confundir-se factos com documentos (estes, de cariz probatório, são meios de prova daqueles), nem causa de pedir com prova documental.
3. - A causa de pedir na ação de demarcação implica a identificação, com descrição fáctica, dos prédios confinantes (e respetivo domínio) e a alegação de factos (concretos) que mostrem a indefinição da linha divisória entre eles.
4. - Diversamente, na ação de reivindicação – onde não se pretende uma demarcação entre dois prédios (mas o reconhecimento do direito de propriedade do autor e a decorrente restituição de imóvel) – cabe ao demandante o ónus da alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar o seu direito de propriedade sobre a coisa reivindicada (prova essa através de factos de que resulte demonstrada a aquisição do domínio) e a ilicitude da ocupação.
5. - Decididas, em determinado sentido, certas questões jurídicas no processo, mediante sentença ou despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz da causa nessa matéria, pelo que não pode depois aquele juiz, em nova decisão, reapreciar ou dar sem efeito o anteriormente decidido.
6. - Doutro modo, incorreria o juiz da causa em excesso de pronúncia – ao conhecer de questão que, por já decidida, não podia conhecer – e, bem assim, em ilegalidade, por violação de lei processual expressa, o que obrigaria à revogação da eventual segunda decisão.
7. - Num tal quadro, tem de ser qualificado como manifestamente anómalo e improcedente um requerimento em que a parte demandada vem pedir a extinção da instância da ação de demarcação, com fundamento em inutilidade superveniente da lide, decorrente da existência de sentença transitada em julgado em anterior ação de reivindicação entre as mesmas partes, quando na contestação da ação de demarcação deduzira já a exceção de caso julgado, fundada naquela anterior sentença, e essa exceção foi objeto de decisão prévia de improcedência no despacho saneador, do que os réus interpuseram recurso, que foi admitido para subir a final.
8. - Assim, não podiam os réus desconhecer que, pelo modo como requeriam, agiam em contrário de normas com conteúdo legal imperativo, apenas para dar guarida ao seu inconsequente inconformismo, tornando, de forma inútil, o processo mais complexo e demorado, em prejuízo da contraparte e da atividade do tribunal, o que justifica a imposição de taxa sancionatória excecional, sem esquecer, se não fosse caso de aplicação desta dimensão sancionatória, que a lei prevê a fixação, nos procedimentos ou incidentes anómalos, da taxa de justiça a que alude o art.º 7.º, n.ºs 4 e 8, do RCProc..
9. - Fora dos casos de litigância de má-fé, havendo condenação em taxa sancionatória excecional, multa ou penalidade, é sempre admissível recurso, em um grau, dessa decisão condenatória (independentemente, pois, do valor da causa ou da sucumbência).
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA e mulher, BB, com os sinais dos autos,

intentaram ação declarativa, com processo comum, contra

CC e DD, estes também com os sinais dos autos,

alegando factos e alinhando razões para pedir nos seguintes moldes:

«- Deve ser ordenada a necessária demarcação entre os dois imóveis, que deve ser feita com base nos títulos existentes e nos demais elementos de prova disponíveis, como, por exemplo, os marcos divisórios e da delimitação que resulta do levantamento topográfico, nos termos do disposto nos artigos 1.º do 1353.º e 1354.º do Código Civil;

- Tudo com as legais consequências.».

Na petição inicial, alegaram os AA. serem proprietários de um prédio confinante com um outro prédio, este pertença dos RR., acrescentando haver incerteza sobre os limites desses prédios entre si e, por consequência, sobre a respetiva linha de estrema, mais referindo que:

«(…) a causa de pedir na acção de demarcação é complexa e desdobra-se na existência de prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, cujas estremas são duvidosas ou se tornaram duvidosas.

28.

O verdadeiro pedido é a fixação da linha divisória entre os prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, de acordo com os critérios estabelecidos no artigo 1354.º do CC.».

Na contestação, os RR. impugnaram diversa factualidade alegada pelos AA., designadamente a referente à necessidade de demarcação, afirmando que, com fundamento em sentença transitada em julgado proferida em anterior ação de reivindicação, «existe (…) caso julgado que define (…) quais os limites do terreno dos autores e que, por força do art. 619º, nº 1 do CPC impede o prosseguimento destes Autos» e, assim, concluindo que:

«a) Deve a invocada excepção ser julgada procedente;

b) Deve ser verificada a falsidade do doc. 4 junto com a petição inicial;

c) Deve ser verificada a litigância de má-fé dos autores e consequentemente devem estes ser condenados a indemnizar os réus em montante a determinar nos termos do (…) disposto no art. 543º, nº 2 do CPC.».

Os AA., notificados, concluíram pela procedência da ação.

Os RR. juntaram certidão de sentença, que «transitou em julgado em 06/02/2014», referente ao «processo n.º 1755/07....» (a anterior ação de reivindicação), da qual consta o seguinte:

«Nestes autos de ação declarativa, com processo comum e forma sumária, AA e mulher, BB, (…) demanda CC (…), pedindo que o tribunal:

a) Declare que o prédio identificado no art. 1.º da Petição Inicial (PI), onde se inclui o trato de terreno identificado no art. 11.º da mesma peça é propriedade dos autores;

b) Condenar os réus a taparem a vala que abriram, repondo o terreno como se encontrava anteriormente;

c) Condenar os réus a restituírem aos autores o trato de terreno na sua totalidade;

d) Condenar os réus a absterem-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização por parte dos autores desse mesmo trato e de qualquer outro no prédio identificado no ar. 1.º da PI;

e) Condenar os réus a pagarem aos autores uma quantia não inferior a € 450,00 a título de indemnização pelos danos morais, com juros à taxa legal desde a citação.

[…]

Atento o exposto, em conclusão, julga-se a ação parcialmente procedente e, em consequência:

a) Declaro que o prédio identificado no facto provado 3.1 (e art. 1.º da Petição Inicial) é propriedade dos autores.

b) Absolvo o réu e a interveniente DD dos restantes pedidos.».

Perante isso, os AA. explicitaram:

«Não foram, pois, eles que adulteraram o documento, terão sido sim vítimas dessa viciação, uma vez que estavam iludidos quanto ao seu verdadeiro teor» e

«Dito isto, (…) tal facto é absolutamente anódino para a sorte dos presentes autos, na medida em que, o que está em causa é uma acção de demarcação que pressupõe a existência de um dissídio sobre a linha divisória entre dois prédios contíguos, o que se mantém, não tendo sido dirimido no processo 1755/07.....».

E vieram depois, notificados para pronúncia, defender a improcedência da «excepção de caso julgado», salientando que a anterior ação, em cujo âmbito foi proferida a aludida sentença, era uma ação de reivindicação, enquanto a presente é uma ação de demarcação, sendo que a primeira, pela diferença do seu objeto jurídico, não constitui impedimento para a segunda.

Não convencida, a contraparte ainda veio aduzir adicional argumentação, concluindo assim: «Deve ser reconhecida a autoridade de caso julgado da sentença proferida no processo de reivindicação, absolvendo-se os Réus do pedido.».

No âmbito da audiência prévia, foi realizada inspeção judicial ao local do litígio, após o que foi proferido despacho quanto à exceção de caso julgado, sobre a qual recaiu decisão de improcedência, nos moldes seguintes:

«Entendemos que na presente ação estamos perante uma ação de demarcação que pressupõe a existência de um litígio sobre a linha divisória entre dois prédios contíguos, o que presentemente se mantém, por não ter sido dirimido no processo 1755/07.....

Pelo exposto, como atrás se deixou dito, entre a presente ação e a ação n.º 1755/07.... não há identidade de causa de pedir nem de pedidos.

Nestes termos, julgo improcedente a exceção de caso julgado invocada pelos réus.».

Seguidamente, entendendo-se que «o estado do processo não permite conhecer imediatamente do mérito da causa», foi determinado o prosseguimento dos autos, com subsequente designação de data para audiência final.

Os demandados vieram reagir, mediante requerimento, concluindo assim:

«Nestes termos requer-se:

a) A declaração de nulidade do Despacho Saneador proferido por omissão da apreciação do incidente de falsificação de documento;

b) A prolação de despacho que identifique os temas da prova nos termos do art. 596.º do CPC.».

E vieram interpor recurso do despacho saneador, concluindo, para além do mais, que «(…) deverá ser procedente a exceção de caso julgado oportunamente invocada».

O recurso veio a ser admitido como de «apelação a subir nos próprios autos com a decisão final que vier a ser proferida e portanto com efeito devolutivo».

Em 29/09/2022, os RR. expressaram-se assim («REFª: 43412309»):

«Decorre dos autos que os autores, por requerimento de 03/12/2020, declararam que não pretendem fazer uso da sentença falsificada e junta com a petição inicial, reconhecendo que o teor da certidão da sentença junta pelos réus é verdadeiro.

Entendem, contudo, que da mesma certidão da sentença decorre que existe uma demarcação a fazer, o que não corresponde à verdade porquanto esta questão é tão só e apenas levantada na sentença falsificada.

E só neste documento é levantada a possibilidade de os autores procederem à demarcação do seu terreno.

Esta sentença é causa de pedir da presente ação.

Ora se os autores declaram que não fazem uso da sentença falsificada, então abdicam da causa de pedir e sendo assim não há demarcação a fazer.

E, a partir desta posição dos autores há uma inutilidade superveniente da lide, a qual deve ser expressamente declarada.

Porém e caso assim não se entenda, e querendo-se fazer uma demarcação, a mesma só será possível a poente da vala e, sendo assim, os réus nada têm a opor.

Já se a pretensão dos autores for a demarcação a nascente da vala, estão, então, a pretender uma reapreciação da decisão que sobre tal questão já transitou em julgado e que declarou que o terreno a nascente da vala não é dos aqui autores, nem esta foi construída em terreno dos mesmos.

Ou seja, não podem os autores pretender que a linha divisória do seu prédio abranja a vala, ou ultrapasse o alimento da mesma vala para o lado nascente da mesma.

Em conclusão:

Caso os autores pretendam a demarcação do seu terreno a poente da vala, os réus nada têm a opor, não havendo sequer litígio.

Caso os autores pretendam a demarcação do seu terreno a nascente da vala, também não há litígio, porquanto esta questão já foi dirimida na ação 1755, cuja sentença já transitou em julgado.» (itálico aditado).

Os AA. pronunciaram-se nos seguintes termos:

«Os RR. repetem os mesmos argumentos até à exaustão, de forma anómala e extemporânea, porquanto, além do mais, não há qualquer fundamento legal para a apresentação deste articulado nesta fase processual.

Os AA., apenas para que do seu silêncio não possam ser extraídas conclusões, reafirmam o que já antes deixaram plasmado nos autos ante requerimento de igual teor. A saber, os RR. bem sabem que o que está em discussão é o trato de terreno a nascente da vala, pois entendem os AA. que a demarcação se faz pelo marco assinalado na planta a nascente da vala.

Esta tramitação anómala deverá ser sancionada para que os autos não sejam infundadamente povoados por incidentes anómalos.».

Com data de 26/10/2022, foi proferido despacho («Referência: 91623620») com o seguinte teor:

«Ref.ª 43412309 – O requerimento ora junto pelos réus consubstancia um incidente anómalo e extemporâneo, não havendo qualquer fundamento legal para a apresentação deste articulado nesta fase processual, pelo que, desde já se condena os apresentantes na multa de 2 Uc’s por ter dado origem ao referido incidente de tramitação anómala dos autos.».

É deste despacho que vêm os RR., inconformados, interpor o presente recurso, oferecendo alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1]):

«1. A presente ação de demarcação vem instaurada pelos Recorridos que, para fundamentar a sua causa de pedir, juntaram na sua petição inicial a cópia de uma sentença falsificada.

2. Documento este que, após ter sido adulterado, permitia aos autores, ora recorridos, a instauração da presente ação de demarcação.

3. Invocada a falsidade do referido documento pelos Recorrentes em sede de contestação, o Tribunal, ignorando tal incidente, não ordenou o referido desentranhamento e remeteu os autos para julgamento.

4. Por requerimento datado de 29 de setembro de 2022, os Recorrentes requereram a extinção do processo por inutilidade superveniente da lide.

5. Articulado este que é admissível nos termos do art. 589.º, n.º 1 do CPC.

6. O Tribunal, por despacho de 31 de outubro de 2022, qualificou o requerimento dos Recorrentes de “incidente anómalo”, ordenando o seu desentranhamento dos autos e condenando aqueles em multa de 2UC’s.

7. Ora, o requerimento dos Recorrentes mais não é que um desenvolvimento da sua posição já assumida no processo: que se desentranhe o documento falsificado e se extingam os autos por inutilidade superveniente da lide.

8. Sendo a inutilidade superveniente da lide uma exceção inominada de conhecimento oficioso, tal posição deveria ter sido tomada pelo Tribunal a quo, sem que os Recorrentes tivessem de o requerer, mas tal não sucedeu.

9. Assim, ao abrigo dos arts. 2.º do CPC e 20.º da CRP, os Recorrentes apelaram ao Tribunal pelo cumprimento da Lei, em virtude da anormal situação que se verifica nos presentes autos.

10. O requerimento apresentado pelos recorrentes não preenche o conceito de “incidente anómalo”, pelo que não tem de ser tributado enquanto tal, sendo deficiente a fundamentação explanada no despacho recorrido.

11. Nestes termos, o despacho recorrido padece de nulidade de fundamentação, ao abrigo do art. 154.º, n.º 1 do CPC.

12. O despacho recorrido violou ainda o disposto nos arts. 2.º, 154, n.º 1, 589.º, n.º 1 do CPC e 20.º da CRP.

Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido.».

Não foi oferecida contra-alegação.

O recurso foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([2]), tendo sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime fixado ([3]).

Cumpridas as formalidades legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados das partes – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber:

a) Se ocorreu a invocada nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação [art.º 615.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv.];

b) Se foi ordenado, erradamente, o desentranhamento de articulado dos RR., nos termos do disposto nos art.ºs 588.º e seg. do NCPCiv.;

c) Se não foi deduzido qualquer incidente anómalo que devesse ser sancionado, havendo a multa aplicada de ser retirada.

III – FUNDAMENTAÇÃO

         A) Factos apurados

A factualidade e dinâmica processual apuradas são as enunciadas no relatório antecedente ([5]), cujo teor aqui se dá por reproduzido.

B) Da nulidade da decisão em crise

Como visto, os RR./Apelantes invocam, para além do mais, a existência de nulidade da decisão recorrida, por ali não se ter exarado (de forma cabal) a respetiva fundamentação, em contrário à obrigação emergente do preceito do art.º 154.º, n.º 1, do NCPCiv., que estabelece o dever de fundamentação a cargo do juiz no seu processo decisório.

Cabia-lhes mostrar onde se encontra consubstanciado tal vício gerador de nulidade, o que devia ser feito nas conclusões da apelação, já que, como é sabido, não se tratando de matéria/questão de conhecimento oficioso, são estas que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso.

Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv., cabe ao recorrente, nas suas conclusões, indicar os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, o que no caso foi efetuado, de forma suficiente.

Vejamos, pois, se há falta de fundamentação ([6]).

Dispõe o art.º 615.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv. que a sentença – mas tal vale também para os despachos decisórios, mutatis mutandis (art.º 613.º, n.º 3, do NCPCiv.) – é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Em qualquer caso, trata-se de vício interno da decisão, no plano dos respetivos fundamentos, constituindo anomalia a extrair da leitura da sentença – vista em si própria, no plano formal –, ante a forma como se mostra elaborada, e não da sua conjugação com outras posições decisórias exaradas no processo, designadamente anteriores despachos.

Ora, nos moldes em que invocada em sede de conclusões de recurso, na sua conjugação com a antecedente motivação, a dita ausência de fundamentos respeita à ordem de desentranhamento de um intitulado articulado superveniente (que seria processualmente admissível, à luz do disposto no art.º 589.º, n.º 1, do NCPCiv.), a que acresce a ocorrida condenação em multa, mediante simples despacho, onde é fundamentada «de forma deficiente» a decisão, consubstanciando uma «deficiente fundamentação», geradora de nulidade dessa decisão.

Apreciando, cabe dizer que, como é consabido, apenas a total ausência de fundamentação da sentença, e não a mera deficiência dela, é causa de nulidade da decisão.

Assim, se este pretendido vício de nulidade se prende com as exigências de fundamentação das decisões dos tribunais (cfr. art.º 154.º, n.º 1, do NCPCiv., tal como o antecedente art.º 158.º, n.º 1, do CPCiv. revogado), sejam sentenças ou despachos – em termos de fundamentos de facto e de direito respetivos –, e cuja violação, uma vez verificada, é causa de nulidade da sentença, tal só ocorre quando houver uma falta absoluta de fundamentos respetivos ([7]).

Ora, no caso, não ocorreu uma total falta de fundamentação, seja numa leitura isolada do despacho recorrido, seja na sua conjugação com o acrescentado aquando da admissão do recurso, em pronúncia sobre a assacada falta de adequada fundamentação.

Aliás, é a própria parte a referir-se a uma «deficiente fundamentação», por, a seu ver, se fundamentar de forma deficiente a decisão, não aludindo, pois, a uma total ausência de fundamentos, de facto e/ou de direito.

Todavia, a deficiente/insuficiente fundamentação, quando exista, não constitui vício gerador da nulidade a que alude o art.º 615.º do NCPCiv., o que somente ocorreria perante uma total/absoluta falta/inexistência de fundamentação.

No caso, o despacho em crise – antes reproduzido – não enferma de total ausência de fundamentos, embora pudesse ser mais desenvolvido (inclusive, com indicação oportuna da norma habilitante), ficando a saber-se, ainda assim, claramente, qual o motivo da decisão adotada, em conjugação com o sentido desta, tanto mais que se trata de uma questão assumidamente simples, âmbito em que não se justificariam extensos desenvolvimentos, diversamente do que comummente sucede quando se trata de uma sentença, mormente se tiver como objeto questões que demandem aturados apuramento, valoração e decisão.

Assim, foi entendido, in casu, que o requerimento dos RR., ali identificado, consubstancia um incidente anómalo e extemporâneo, destituído de qualquer fundamento legal para apresentação na fase processual em curso, como tal suscetível de gerar a aplicação de sanção processual, traduzida na condenação em “multa”, fixada em “2 Uc’s” (por incidente de tramitação anómala).

Em suma, inexiste total falta de fundamentação, só esta podendo ser geradora da nulidade invocada, termos em que, ainda que se considerasse ocorrer deficiente fundamentação – e nem sequer será este o caso, posto a fundamentação, embora sintética, oferecida permitir discernir o fundamento encontrado (mesmo que sem menção da norma jurídica aplicada, cuja dinâmica, todavia, se intui) –, nem por isso haveria vício invalidante, sendo decisivo, a nosso ver, o aspeto que se traduz em ser percetível, a um intérprete comum (normalmente diligente, sobretudo se um especialista, como o são os mandatários das partes, em matérias jurídico-processuais), o sentido decisório e a respetiva fundamentação, o que torna compreensível/inteligível o assim decidido.

Donde que inexista, manifestamente, falta absoluta de fundamentação, com a consequente improcedência nesta parte das conclusões recursivas dos RR..

C) Do errado desentranhamento de articulado superveniente

Já se viu que os Recorrentes entendem que, em prejuízo seu, foi ordenado, erradamente, o desentranhamento de um seu articulado superveniente, ao arrepio do disposto nos art.ºs 588.º e seg. do NCPCiv..

Será assim?

Adianta-se, desde já – e salvo sempre o devido respeito –, que não.

Vejamos.

Sobre os termos em que são admitidos os articulados supervenientes dispõe o art.º 588.º do NCPCiv., cujo n.º 1 estabelece, inequivocamente, que tem de tratar-se de trazer a juízo factos novos relevantes: os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes [estes – e só estes, trate-se de superveniência objetiva ou subjetiva (n.º 2 do mesmo art.º) – podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado até ao encerramento da discussão] ([8]).

Ora, no requerimento aqui em questão nenhum facto novo é trazido a juízo. Apenas se suscita uma questão jurídica, repisando argumentos já anteriormente expostos, relacionando-os com a causa de pedir da ação de demarcação, tendo em conta a sentença da anterior ação de reivindicação (documento já junto aos autos).

Em interpretação pessoal, sustentam, então, os RR./Recorrentes que esta sentença é causa de pedir da presente ação, concluindo que os AA. vieram (entretanto) abdicar da causa de pedir, situação em que «não há demarcação a fazer», ocasionando a «inutilidade superveniente da lide, a qual deve ser expressamente declarada».

Ou seja, trata-se de uma interpretação dos RR. em face de prova documental que já constava dos autos, pelo que inexiste qualquer novidade, a não ser no enquadramento jurídico assim encontrado, o que não traduz quaisquer factos novos que fossem constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se pretende fazer valer na ação de demarcação.

Assim, não estamos perante um articulado superveniente, mas em face de um simples requerimento, onde se suscitou uma questão jurídica.

Por isso, o recurso nunca seria admissível como apelação autónoma à luz do disposto na al.ª d) do n.º 2 do art.º 644.º do NCPCiv. (na decisão recorrida não se rejeitou qualquer articulado ou meio de prova), apenas o sendo no âmbito da norma da al.ª e) do n.º 2 do mesmo art.º 644.º, posto, não obstante o valor da “multa”/sanção aplicada (no montante de «2 Uc’s», por incidente anómalo), ser hoje entendimento dominante (à luz do regime legal atual) que «é sempre admissível recurso em um grau da decisão que aplique multa, penalidade ou taxa sancionatória excecional (…)» ([9]).

Ademais, na decisão recorrida, inexiste qualquer ordem de desentranhamento.

Ali apenas se decidiu que o requerimento consubstancia um incidente anómalo e extemporâneo, não havendo fundamento legal para a sua apresentação na fase processual em que tal ocorreu, com a consequência – somente – da condenação em multa, por incidente de tramitação anómala. Sem, pois, qualquer determinação de desentranhamento (ou de expressa rejeição/inutilização) da peça processual, enquanto tal.

Em suma, inexiste decisão de desentranhamento, tal como inexiste articulado superveniente, termos em que improcedem as conclusões dos Apelantes em contrário.

D) Da não dedução de incidente anómalo, tornando inadmissível a sanção/multa aplicada

Resta saber se foi, ou não, deduzido um incidente anómalo, a dever ser sancionado, pretendendo os Recorrentes que não o foi, pelo que deverá, a seu ver, a multa aplicada de ser retirada, mediante revogação da decisão sancionatória.

Refere a parte recorrente, no seu requerimento que motivou o despacho sob recurso, que foi junto (pelos AA.) um documento falsificado – uma «sentença falsificada e junta com a petição inicial» – e que é esse documento que consubstancia a causa de pedir da ação.

Com efeito, refere, quanto a tal «sentença falsificada»: «E só neste documento é levantada a possibilidade de os autores procederem à demarcação do seu terreno. // Esta sentença é causa de pedir da presente ação. // Ora se os autores declaram que não fazem uso da sentença falsificada, então abdicam da causa de pedir e sendo assim não há demarcação a fazer».

Daí a conclusão, a que chegam os RR./Apelantes, no sentido de ocorrer «inutilidade superveniente da lide», a dever «ser expressamente declarada».

O Tribunal recorrido entendeu que a questão assim suscitada – extinção da instância por inutilidade superveniente da lide – foi objeto de decisão anterior, no despacho saneador, ao ser conhecida/decidida a exceção de caso julgado invocada pelos RR., que mereceu decisão de improcedência, decisão esta de que os mesmos RR. interpuseram (outro) recurso, o qual aguarda decisão (subida a final).

Apreciando, cabe dizer, desde logo, que a aludida sentença junta – por certidão, ou não; falsificada, ou não – é um documento, não passando de prova documental, prova essa que convoca, no tempo adequado, como qualquer prova, a respetiva valoração.

Ora, os documentos são – inquestionavelmente – meios de prova; não são factos, embora, como provas, possam referir-se a factos.

E, não sendo factos, não podem os documentos, em ação declarativa – destinada à demarcação ou a outro fim –, constituir a causa de pedir da ação, posto a causa de pedir – que pode ser linear ou complexa – se traduzir num facto ou conjunto de factos, como decorre dos art.ºs 552.º, n.º 1, al.ª d), e 581.º, n.º 4, ambos do NCPCiv., este último preceito a evidenciar que a causa de pedir se reporta ao facto jurídico, de pendor concreto, que fundamenta (de que procede) a pretensão deduzida na ação.

A causa de pedir é constituída/conformada pelos «factos constitutivos da situação jurídica» que o autor «quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma», correspondendo «ao conjunto dos factos que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito jurídico pretendido» ([10]).

Não podendo, pois, confundir-se factos com documentos (estes, de cariz probatório, serão meros meios de prova daqueles), nem causa de pedir com prova documental, logo se verifica que não pode proceder a argumentação da parte recorrente no sentido de ser um documento, junto com a petição (ainda que uma certidão de sentença), a causa de pedir da presente ação de demarcação.

Aliás, neste particular, concorda-se com a jurisprudência expressa no Ac. STJ de 20/11/2019, Proc. 841/13.9TJVNF.G2.S1 (Cons. Ilídio Sacarrão Martins), em www.dgsi.pt, nos seguintes termos: «A demarcação é um dos poderes inerentes à propriedade imóvel, sendo configurado no artigo 1353º do Código Civil como um direito potestativo e pressupõe o reconhecimento do domínio sobre os prédios confinantes e a indefinição da linha divisória entre eles».

Assim, a causa de pedir na ação de demarcação implica a identificação, com descrição fáctica, dos prédios confinantes (e respetivo domínio) e, por outro lado, a alegação de factos (concretos) que mostrem a indefinição da linha divisória entre eles ([11]).

Tal documento, a que se reportam os RR./Recorrentes, não passará, pois, em qualquer caso, de um elemento de prova, um meio de prova de factos, e não os próprios factos, mormente os que sirvam de fundamento à pretensão dos AA. e que estes teriam de deixar alegados – enquanto factos de suporte da pretensão – na sua petição inicial.

Por consequência, também não pode proceder a invocação de que, se os AA. declaram que «não fazem uso da sentença falsificada» (ou seja, do documento, enquanto meio de prova de factos), então «abdicam da causa de pedir» e, por isso, deixam a ação sem fundamentos de facto, ocasionando que não haja «demarcação a fazer».

Donde que não se demonstre, por esta via, a pretendida «inutilidade superveniente da lide», que devesse «ser expressamente declarada».

Não podem, por isso, proceder nesta parte as razões dos Apelantes.

Por outro lado, é consabido que, proferida a sentença – ou prolatado o despacho –, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. É o que taxativamente resulta do disposto no art.º 613.º, n.ºs 1 e 3, do NCPCiv..

É certo, nos termos do n.º 2 deste mesmo art.º, que pode o juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, tudo nos termos dos art.ºs seguintes.

Assim, é lícito corrigir erros de escrita ou de cálculo ou outras inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto (art.º 614.º, n.º 1, do mesmo Cód.).

E também é possível, a requerimento das partes, a reforma da sentença quanto a custas e multa (n.º 1 do art.º 616.º da lei adjetiva). Porém, a reforma – sempre por manifesto lapso do juiz e a requerimento de alguma das partes – nos casos de erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica, tal como em caso de constarem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, sem mais, impliquem necessariamente decisão diversa, só será permitida se não couber recurso da decisão (n.º 2 do mesmo art.º 616.º).

Fora desse quadro excecional, que para o caso não releva, é certo que, proferida a decisão (constante de sentença ou despacho, designadamente despacho saneador que conheça de matéria de exceção), logo fica esgotado o poder jurisdicional do respetivo juiz, que não a pode reexaminar, muito menos alterar, esteja ou não sob recurso, transite ou não em julgado.

Assim, tendo os RR. deduzido, na contestação, a exceção de caso julgado – ali afirmaram que, com fundamento em sentença proferida na anterior ação de reivindicação, existe caso julgado que define os limites do terreno dos AA., impedindo o prosseguimento da ação de demarcação –, e vindo ainda, depois, em adicional argumentação, concluir pelo reconhecimento da autoridade de caso julgado da sentença proferida no processo de reivindicação, absolvendo-se os demandados do pedido, o Tribunal recorrido conheceu dessa matéria de exceção, na fase do saneamento do processo, âmbito em que decidiu no sentido da improcedência de tal exceção, por isso determinando o prosseguimento dos autos.

Entendeu aquele Tribunal que, na presente ação de demarcação, se pressupõe a existência de um litígio sobre a linha divisória entre dois prédios contíguos, o qual se mantém, por não ter sido dirimido na ação de reivindicação mencionada, inexistindo identidade de causa de pedir e de pedidos entre as duas ações.

Em coerência com o assim entendido, foi designada data para audiência final, por se considerar que o conhecimento de mérito dependia da prova a produzir.

Com o que ficou decidida a questão do invocado caso julgado e seus reflexos sobre os presentes autos, vincando-se que, na improcedência da exceção de caso julgado, a ação de demarcação teria de prosseguir para julgamento, ao que nada obstava, na ótica do julgador.

O facto de os demandados não se terem conformado com o assim decidido, inclusivamente com interposição de recurso do despacho saneador, concluindo dever ser julgada procedente – pela Relação – a dita exceção de caso julgado, recurso esse que veio a ser admitido como de apelação a subir a final, com efeito meramente devolutivo, termos em que não ocorreu trânsito em julgado, em nada altera a circunstância de ter ficado esgotado o poder jurisdicional da 1.ª instância e de ter de ser o Tribunal superior a pronunciar-se, em recurso, sobre a deduzida matéria de exceção e respetivas consequências processuais.

Daí que não fizesse o menor sentido, salvo o devido respeito, que os RR. viessem insistir na questão já decidida no saneador e em relação à qual, por isso, se extinguira o poder jurisdicional da 1.ª instância.

Restava-lhes aguardar, a seu tempo, a decisão do recurso interposto e admitido, pelo que tudo o que a respeito voltassem a trazer (em recidiva) à apreciação do julgador a quo estaria forçosamente votado ao insucesso, apenas traduzindo inconsequente inconformismo, o qual, em caso algum, poderia justificar o enxamear do processo com sucessivos requerimentos sobre matéria já decidida, que apenas teriam o condão de dificultar a tarefa de quem tem de disciplinar os autos, mantendo, por seu lado, escorreito o processado, com vista à boa e célere decisão da causa.

Ora, não foi isso que fizeram os RR., antes insistindo em (re)colocar ao Tribunal recorrido questão essencialmente já decidida, posto que já havia sido decidido que a exceção do caso julgado improcedia e os autos deviam seguir para julgamento, o que forçosamente afastava, como é bom de ver, a (depois) invocada extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, tal como a viabilidade da insistência em que a questão (da demarcação) já se encontrava dirimida na ação de reivindicação.

Ao assim agir, não podiam ignorar os RR. – patrocinados por Exm.º Mandatário – que procediam ao arrepio da normação que estabelece o esgotamento do poder jurisdicional e que determina que, interposto recurso, se aguarde a decisão do Tribunal superior, em vez de recolocar sucessivamente à 1.ª instância a questão já objeto de decisão sua e que a esta estava vedado reapreciar ([12]).

Por isso, o requerimento sobre que recaiu o despacho agora recorrido é, efetivamente, um requerimento processualmente descabido, que deu azo a um incidente anómalo, por totalmente fora dos cânones da lei processual civil, que esta não pode admitir, e que, ademais, é gerador de confusão e morosidade na tramitação dos autos, tornando-a mais complexa e menos célere (retardando-a sem motivo justificado).

É, pois, de manter a qualificação no sentido de se tratar, in casu, de «incidente de tramitação anómala dos autos», a dever, por isso, ser censurado com a taxa sancionatória excecional (na decisão recorrida chama-se-lhe “multa”, em jeito sancionatório, de que tal taxa se reveste) a que alude o art.º 10.º do RCProc., em conjugação com o disposto no art.º 531.º do NCPCiv., por a parte ter deduzido requerimento (corporizando pretensão) manifestamente improcedente e não ter agido, ante as circunstâncias dos autos, com a prudência/diligência que podia e devia ter adotado ([13]).

Mas, mesmo que assim não se entendesse (quanto à aplicação daquela taxa sancionatória excecional e respetivos pressupostos), a parte não poderia fugir à taxa de justiça devida pelo incidente/procedimento anómalo a que deu causa, nos moldes previstos no art.º 7.º, n.ºs 4 e 8, do RCProc., em conjugação com a tabela II anexa, termos em que o valor fixado (de «2 Uc’s») sempre se justificaria a esta luz, taxa de justiça essa que, todavia, não foi imputada aos RR. no despacho recorrido – nem o poderia ser agora –, sendo, por fim, que estes, enquanto recorrentes, não discutiram o concreto montante estabelecido/imposto, sobre o qual, por isso, não cabe emitir pronúncia recursiva.

Em suma, improcede o recurso, com o esclarecimento de que a imposição do montante sancionatório de «2 Uc’s» tem a qualificação de taxa sancionatória excecional, ao abrigo do disposto no art.º 10.º do RCProc., em conjugação com o art.º 531.º do NCPCiv..

(…)


***

V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na improcedência do recurso, em manter a decisão recorrida, com o esclarecimento de que o sancionamento, no montante fixado, é em taxa sancionatória excecional.

Custas da apelação pelos RR./Apelantes – vencidos no recurso (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 13/12/2023

        

Vítor Amaral (relator)

Carlos Moreira

                                     

Fonte Ramos


([1]) Cujo teor se deixa transcrito (destaques retirados).
([2]) Subida imediata (autonomamente), em separado e com efeito suspensivo, ao abrigo do disposto no art.º 644.º, n.º 2, al.ªs d) e e), do NCPCiv..
([3]) Considera-se, todavia, atento o teor do despacho recorrido, que a apelação autónoma se justifica apenas perante a al.ª e) do n.º 2 do art.º 644.º do CPCiv., tendo em conta que na decisão recorrida não se admite ou rejeita qualquer articulado ou meio de prova (matéria que melhor se desenvolverá a jusante).
([4]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) Com base no que consta destes autos de recurso e do processo principal, de que foi extraído, consultado este último, nesta Relação, no sistema informático Citius.
([6]) Aquando da prolação do despacho de admissão do recurso, o Julgador a quo entendeu inexistir nulidade, para o que enfatizou assim: «O Tribunal considerou que a apresentação do requerimento com a ref.ª 43412309 constitui um incidente anómalo e extemporâneo, não havendo qualquer fundamento legal para apresentação daquele articulado nesta fase processual visto que, a questão suscitada no referido articulado e que os réus pretendem que seja declarada pelo Tribunal – extinção por inutilidade superveniente da lide – foi objeto de decisão no despacho saneador ao ser conhecida a exceção de caso julgado que os réus invocaram, a qual foi julgada improcedente, tendo os réus interposto recurso sobre tal decisão de improcedência, o qual aguarda decisão. // Assim sendo, é nosso entendimento que não se verifica a nulidade de fundamentação invocada pelos réus ao abrigo do art. 154.º, n.º 1 do C.P.Civil.».

([7]) É pacífico o entendimento de que a fundamentação insuficiente ou deficiente da sentença não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, mas apenas a falta absoluta da respetiva fundamentação. Com efeito, a causa de nulidade referida na al. b) do n.º 1 do dito art.º 668.º (actual art.º 615.º do NCPCiv.) ocorre quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, violando o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (cfr., desde logo, o art.º 208.º, n.º 1, CRPort.). Como refere, a este propósito, Teixeira de Sousa – cfr. “Estudos sobre o Processo Civil”, p. 221 –, “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”. Também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º,4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, ps. 735 e seg. – esclarecem que “Há nulidade (…) quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão”, não a constituindo “a mera deficiência de fundamentação”. Por sua vez, Alberto dos Reis enfatizava – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 140 – que deve distinguir-se “a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
([8]) Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 614, referindo que podem «ocorrer novos factos – ou elementos de facto – constitutivos da situação jurídica do autor (…) ou factos modificativos ou extintivos dessa situação», em termos de superveniência objetiva, ou, embora anteriormente ocorridos, só conhecidos após o tempo processual adequado para a sua alegação (superveniência subjetiva), quadro em que, invariavelmente, «pode ter lugar articulado superveniente em que a parte a quem o facto aproveita o alegará, a fim de, uma vez provado, vir a ser tomado em conta na sentença (art. 611.º)». No mesmo sentido, considerando que os articulados supervenientes só são admissíveis quanto à alegação dos «chamados factos (objetiva ou subjetivamente) supervenientes», impondo-se «carrear para o processo tais factos, sendo essa a função dos articulados supervenientes», pode ver-se, entre outros autores, Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 670.
([9]) Cfr. Ac. STJ de 26/03/2015, Proc. 2992/13.0TBFAF-A.E1.S1 (Cons. Tomé Gomes), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «Assim, nos termos do n.º 6 do art.º 27.º do RCP, é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, das decisões que condenem em multa, penalidade ou taxa sancionatória excecional, fora dos casos de litigância de má fé, mas apenas em um grau, por paralelismo com o disposto no n.º 3 do art.º 452.º do CPC.». No mesmo sentido, entre outros, o Ac. STJ de 16/06/2015, Proc. 1008/07.0TBFAR.D.E1.S1 (Cons. Gregório Silva Jesus), também em www.dgsi.pt, e, na doutrina, Abrantes Geraldes e outros, op. cit., p. 754. Anteriormente, porém, era entendido por alguma doutrina e jurisprudência somente ser admissível recurso, fora dos casos de penalização por litigância de má-fé, se o montante da multa/penalidade não fosse inferior a metade da alçada do tribunal, defendendo-se que o simples facto de alguém ser condenado em multa não obstava à aplicação da regra geral em matéria recursiva (limites impostos pelo valor do processo e da sucumbência) – cfr., sobre o tema, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 51 e seg. e Ac. TConst. n.º 496/96, citado por aquele Autor.
([10]) Assim, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 490. No mesmo sentido se pronunciam, por todos, Abrantes Geraldes e outros (op. cit., p. 605), enfatizando que a «causa de pedir tem um substrato fáctico, aí radicando a fundamentação da pretensão formulada em juízo», com reporte ao «quadro factual atinente ao tipo legal de que [o autor] pretende prevalecer-se», não prescindindo, pois, de «concretos factos» de suporte da pretensão, ao ponto de ser «exigível a indicação específica ou concreta dos factos constitutivos do direito feito valer», sendo, assim, «pela demonstração desses factos em juízo que o autor alcançará a tutela jurisdicional desejada».
([11]) Já na ação de reivindicação – onde não se pretende uma demarcação entre dois prédios (mas o reconhecimento do direito de propriedade do autor e a decorrente restituição de imóvel) – caberá ao demandante o ónus da alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar o seu pretendido direito de propriedade sobre a coisa reivindicada – cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv. –, prova essa a ser efetuada através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio, por sua parte ou dos seus antecessores na posse. Quando, porém, a aquisição for derivada terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, exceto nos casos em que ocorra presunção legal de propriedade (cfr. art.ºs 349.º e 350.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CCiv.), como a resultante da posse ou do registo definitivo de aquisição. É, pois, com base no reconhecimento, pela via judicial, desse direito de propriedade que o reivindicante poderá, consequentemente, demonstrando a ilicitude da ocupação, pedir (e obter, judicialmente), nesse âmbito, a restituição do respetivo bem imóvel (assim reivindicado).
([12]) Sendo bem sabido que, decididas, em determinado sentido, certas questões jurídicas no processo, mediante sentença ou despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz da causa nessa matéria, o qual não pode depois, em nova decisão, reapreciar ou dar sem efeito o anteriormente decidido, a inobservância das imposições legais implicadas faria incorrer o mesmo juiz em excesso de pronúncia – ao conhecer de questão que, por já decidida, não poderia conhecer – e, bem assim, em ilegalidade, por violação de lei processual expressa, o que obrigaria à revogação da eventual segunda decisão.
([13]) Como refere Salvador da Costa, visa-se «essencialmente a moralização e a normalização da atividade processual e obstar à litigância imponderada ou irrefletida das partes nos tribunais» – cfr. As Custas Processuais - Análise e Comentário, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 160.