Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL PAGAMENTO PREÇO PRESCRIÇÃO | ||
Data do Acordão: | 02/07/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | MANGUALDE – 2.º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | CONVENÇÃO RELATIVA AO CONTRATO INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA E ARTIGO 309.º DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | 1. Do contrato de transporte decorrem as obrigações principais do transporte/deslocação, para o transportador, e do pagamento do preço/frete, para o expedidor. 2. O prazo prescricional estatuído no art. 32. º da Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada não é aplicável ao direito do transportador ao pagamento do preço/frete; sendo, tão só, aplicável aos direitos indemnizatórios do expedidor/carregador por incumprimento da obrigação de deslocação a cargo do transportador. 3. Sendo a Convenção CMR omissa quanto ao prazo de prescrição do direito do transportador ao pagamento do preço/frete, estando-se perante uma situação absolutamente internacional, a solução terá de ser encontrada na Lei que ao caso for aplicável. 4. E tendo-se a Lei portuguesa como a aplicável, o prazo de prescrição do direito do transportador ao pagamento do preço/frete por parte do expedidor/carregador é o prazo ordinário de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309.º do Código Civil. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório A..., S.A., com sede na E.N. ..., em Mangualde, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra B..., sociedade comercial de direito francês, com sede em ..., França, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 38.070,00, acrescida de € 5.846,00, a título de juros de mora vencidos, bem como os vincendos desde a propositura da acção até efectivo e integral pagamento, à taxa legal supletiva dos juros comerciais. Alega para tal, em resumo, que, no exercício da sua actividade de transportadora rodoviária de mercadorias, prestou à R., a pedido desta, serviços de transporte rodoviário de mercadorias discriminados nas facturas e guias CMR que juntou, no montante total de € 38.070,00; e que a ré não procedeu ao seu pagamento que, em conformidade com o acordado entre as partes, deveria ter sido efectuado no prazo de 60 dias a contar da emissão de cada uma das facturas.
A R. contestou, invocando, em síntese, a prescrição do crédito peticionado pela autora, por ter decorrido o prazo de 1 ano, previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Convenção relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada – CMR; concluindo, por tal razão, pela improcedência da acção.
Replicou a A., sustentando que tal prazo de 1 ano não é aplicável ao pagamento do preço de transporte; concluindo pela improcedência da prescrição e procedência da acção.
Findos os articulados, foi a instância declarada totalmente regular – estado em que se mantém – após o que, entendendo o Ex.mo Juiz que os autos contêm todos os elementos de facto para uma decisão de mérito da causa, passou de imediato a apreciá-la e a proferir sentença em que, a final – julgando improcedente a prescrição e procedente a acção – condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 46.760,81, acrescida de juros de mora à taxa legal de 8,25%, ou a que vier a ser fixada como taxa supletiva de juros moratórios relativa a créditos de que são titulares empresas comerciais, sobre a importância de € 38.070,00, que se vencerem desde 05/10/2011, inclusive, até integral pagamento.
Inconformada com tal decisão, interpôs a R. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que julgue verificada a prescrição invocada e que, em consequência, julgue a acção totalmente improcedente e a absolva do pedido. A A. não respondeu. Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. * II – Fundamentação de Facto São os seguintes os factos apurados com relevo para a apreciação do recurso: 1. A autora é uma sociedade comercial anónima que tem por objecto e se dedica efectivamente ao transporte rodoviário de mercadorias. 2. A ré é uma sociedade comercial que tem por objecto e se dedica efectivamente ao transporte rodoviário de mercadorias. 3. No exercício daquelas actividades, a solicitação da ré, a autora procedeu à realização dos seguintes transportes rodoviários de mercadorias: 4. Os preços unitários referidos no artigo anterior correspondem aos montantes acordados entre autora e ré. 5. Autora e ré acordaram que o pagamento dos montantes referidos nas facturas mencionadas no artigo terceiro seria efectuado nas datas nelas constantes, ou seja, no prazo de 60 dias a contar da data da emissão de cada uma delas, através de cheque a enviar para a sede da Autora, ou, em alternativa, através de transferência bancária para a conta de que a Autora é titular no balcão de Mangualde do BPI. 6. A autora remeteu à ré os originais das facturas referidas no artigo terceiro, que foram recebidos pela ré. 7. A autora intentou a presente acção em 30 de Novembro de 2010 e a ré foi citada em 16 de Março de 2011. * III – Fundamentação de Direito Na origem do litígio dos autos/recurso está – é absolutamente pacífico e incontrovertido pelas partes – um contrato de transporte, na modalidade de transporte simples (uma vez que efectuado por um único transportador) e de coisas (de acordo com o critério material), sendo terrestre/rodoviário (de acordo com o critério das vias ou meios utilizados) e internacional (de acordo com o critério do seu âmbito geográfico, segundo o qual é “internacional” quando a deslocação implica a travessia de fronteiras entre os locais de partida e de destino); visando a A/apelada, enquanto transportadora, que a R/apelante, enquanto expedidora/carregadora, lhe pague a retribuição/frete; pretensão que a sentença recorrida lhe concedeu. Contrato de transporte que pode ser definido como o “contrato pelo qual uma das partes (transportador) se obriga perante a outra (passageiro ou carregador), mediante retribuição, a deslocar determinadas pessoas ou coisas e a colocar aquelas ou a entregar estas pontualmente, ao próprio ou a terceiro (destinatário), no local do destino[1]; e que é fonte duma pluralidade de direitos e obrigações para os vários intervenientes na relação jurídica de transporte, sendo a tal propósito de destacar a nuclear obrigação (de resultado) de deslocação a cargo do transportador, que tem como reverso, integrando o núcleo central do sinalagma contratual, a obrigação do pagamento do preço do transporte – a normalmente designada obrigação de pagamento do frete – a cargo do expedidor/carregador. É justamente nesta obrigação do pagamento do frete que se situa toda a questão/controvérsia dos autos/recurso. O que significa que não estamos perante um caso de incumprimento da obrigação (de resultado) de deslocação a cargo do transportador, que ocorre, tendo-se este obrigado a deslocar e colocar pontualmente determinadas pessoas ou coisas no lugar de destino convencionado, quando e sempre que tal não suceda; que ocorre quando e sempre que se verifica a perda total ou parcial das coisas tarnsportadas (v. g. incêndio, queda, furto, extavio, etc.), a avaria das coisas transportadas ou o atraso na sua colocação à disposição do destinatário. Obrigação (de resultado) de deslocação a cargo do transportador que, a nosso ver, é a única que é visada e a que se dirigem as disposições constantes dos art. 17.º e ss. da Convenção CMR[2]; disposições em que se prevêm indemnizações do transportador pelo incumprimento de tal obrigação, limites indemnizatórios (cfr. 23.º e 25.º da CMR), causas especiais de exclusão e exoneração da indemnização do transportador (cfr. 17.º, n.º 4 e 18.º da CMR), o direito a formular reclamações por parte do destinatário nos casos de perda parcial, avarias e atrasos (mas também o dever de as fazer sob pena de perder o direito a posterior reclamação ou acção) e prazos especiais de prescrição para as acções judicais respeitantes às indemnizações, antes previstas, pelo não integral e pontual cumprimento da obrigação (de resultado) de deslocação a cargo do transportador. Com o que, isto dito, antecipámos a nossa posição sobre a questão sucitada nos autos e no recurso, posição esta que é concordante com a da decisão impugnada. Estamos, inquestionavelmente, como já se referiu, perante um contrato de transporte internacional de mercadorias por terra, a que é aplicável a Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada – vulgo, CMR; que se aplica a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada, a título oneroso, em veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto estão situados, como é o caso, em dois países diferentes, sendo um destes, como também é o caso, país contratante, independentemente do domicílio e nacionalidade das partes (cfr. art.1.º/1 da CMR). Do contrato de transporte decorrem, como também já se referiu, as obrigações principais do transporte/deslocação para o transportador e do pagamento do preço/frete para o expedidor. A propósito do integral e pontual cumprimento da obrigação de transporte/deslocação nenhuma dúvida ou reserva se suscita. Pelo que, tendo a A/apelada cumprido a sua obrigação de deslocação das mercadorias, lhe assiste o direito a exigir o pagamento do preço/frete, pagamento este que a R/apelante não contesta – e que tão pouco invoca ter efectuado – mas de que diz ter a faculdade de recusar o seu cumprimento por estar prescrito o direito da A/apelada ao preço/frete. Invocando para tal o estatuído no art. 32.º da Convenção CMR; em que se dispõe: “1. As acções que podem ser originadas pelos transportes sujeitos à presente Convenção prescrevem no prazo de um ano. No entanto, a prescrição é de três anos no caso de dolo, ou de falta que a lei da jurisdição a que se recorreu considere equivalente ao dolo. O prazo de prescrição é contado: a) A partir do dia em que a mercadoria foi entregue, no caso de perda parcial, avaria ou demora; b) No caso de perda total, a partir do 30º dia após a expiração do prazo convencionado, ou, se não tiver sido convencionado prazo, a partir do 60º dia após a entrega da mercadoria ao cuidado do transportador; c ) Em todos os outros casos, a partir do termo de um prazo de três meses, a contar da conclusão do contrato de transporte. O dia indicado acima como ponto de partida da prescrição não é compreendido no prazo. 2. Uma reclamação escrita suspende a prescrição até ao dia em que o transportador rejeitar a reclamação por escrito e restituir os documentos que a esta se juntaram. No caso de aceitação parcial da reclamação, a prescrição só retoma o seu curso para a parte da reclamação que continuar litigiosa. A prova da recepção da reclamação ou da resposta e restituição dos documentos compete à parte que invoca este facto. As reclamações ulteriores com a mesma finalidade não suspendem a prescrição. 3. Salvas as disposições do parágrafo 2 acima, a suspensão da prescrição regula-se pela lei da jurisdição a que se recorreu. O mesmo acontece quanto à interrupção da prescrição. 4. A acção que prescreveu não pode mais ser exercida, mesmo sob a forma de reconvenção ou excepção”. Efectivamente, quando foi instaurada a presente acção (30/11/2010) já havia decorrido mais de 1 ano, quer em relação à data do transporte das mercadorias (que decorreu de 01/09/08 a 22/12/08), quer em relação ao vencimento da última factura (01/03/09), mesmo considerando-se o decurso do prazo de três meses a contar da conclusão do contrato de transporte (cfr. art.º 32.º/1, alínea c)). Sucede, porém, como se sustentou, que o art. 32.º da Convenção CMR não é aplicável ao direito do transportador ao pagamento do preço/frete; sendo tão só aplicável, como também se explicou, aos direitos indemnizatórios do expedidor/carregador por incumprimento da obrigação de deslocação a cargo do transportador[3]. Foi, a nosso ver, apenas para as questões que se possam suscitar à volta do integral e pontual cumprimento da obrigação do transportador – designada e principalmente, da perda, demora ou avaria – que a Convenção CMR delineou o esquema rápido e expedito, sob pena de prescrição, de exercício de direitos por parte do expedidor/carregador. É certo que no art.º 32.º/1, alínea c) se diz, “em todos os outros casos, a partir do termo de um prazo de três meses, a contar da conclusão do contrato de transporte”, induzindo a ideia, defendida pela R/apelante, do art. 32.º incluir no seu âmbito todas e quaisquer acções, incluindo a decorrente, como é o caso, do não pagamento do preço/frete. Trata-se, todavia, de argumentação literal com influência limitada. O próprio corpo do artigo 32.º/1 alude a “transporte” e não a “contrato de transporte” (como acontece, v. g. com os art. 1.º/1, 4.º e parte final da alínea c) em causa), o que, mantendo-nos ao nível da argumentação literal, também permite afirmar que a previsão do preceito é justamente apenas e só o “transporte”, o mesmo é dizer, a obrigação (de resultado) de deslocação a cargo do transportador, sendo apenas para as questões/acções que o cumprimento ou não de tal obrigação pode originar que a Convenção estabele prazos curtos de prescrição (cfr. art. 32.º). Ainda no mesmo plano, literal, o que se diz no art. 32.º/2 – em que se prevê uma suspensão da prescrição, justificada pela apresentação de reclamação ao transportador – faz pressentir o raciocínio de que se está exclusivamente a pensar e a criar uma disciplina uniforme para o incumprimento da obrigação a cargo do transportador, Disciplina convencional uniforme, exclusivamente para a responsabilidade do transportador, que é visível noutras modalidades de transportes internacionais, como é caso do transporte por mar; efectivamente, resulta do art. 3.º/6 da Convenção de Bruxelas de 1924 e das Regras de Hamburgo de 1978 que o prazo de prescrição de 1 ano ali previsto é apenas para a responsabilidade por perdas e danos do armador e do navio[4]. Exclusividade prescricional, para as acções por responsabilidade do transportador, que está clara no art. 27.º/2 do DL 352/86, de 21-10, em que se diz que o prazo de 2 anos aí previsto “é para os direitos de indemnização previstos no mesmo diploma”; exclusividade que também está explicitamente expressa no art. 24.º/1 do DL 239/2003, de 04-10 – sobre o transporte rodoviário nacional de mercadorias – em que se diz “o direito à indemnização por danos decorrentes de responsabilidade do transportador prescreve no prazo de um ano”, assim como no art. 9.º do DL n.º 321/89, de 25-09 – sobre o transporte aéreo em Portugal – em que o prazo de prescrição de 3 anos diz apenas respeito à “acção de responsabilidade para reparação dos danos previstos no art. 3.º”. Enfim, em síntese, para o prazo de prescrição do direito do transportador ao pagamento do preço/frete não dá a Convenção CMR qualquer contributo. Razão pela qual, sendo a tal propósito omissa a Convenção CMR, a solução terá que ser encontrada na Lei – estando-se perante uma situação absolutamente internacional – que é ao caso aplicável. Para o que, começando pelo apuramento de tal Lei, vale o disposto no art. 41.º do C. Civil, segundo o qual a Lei competente para reger as obrigações nascidas de negócios jurídicos é a determinada pela escolha ou designação das próprias partes (“princípio de autonomia” em DIP); escolha/liberdade que não é ilimitada, uma vez que deve recair sobre uma Lei que tenha uma conexão objectiva com o negócio (cfr. 41.º/2 do C. Civil), como será, v. g., o lugar da conclusão do negócio, o lugar da execução do mesmo, a nacionalidade ou residência das partes, etc. Escolha que, embora possa ser tácita, não se vislumbra como, no caso, possa ser inferida, em face dos parcos contributos circunstanciais alegadas; restando-nos a solução decorrente do critério subsidiário, que aponta, no caso, para a Lei do lugar da celebração do contrato (cfr. art. 42.º/2, parte final, do C. Civil). E mesmo a tal propósito (do lugar da celebração do contrato) o máximo que podemos afirmar é que os contributos circunstanciais alegados – em que apenas se inclui o facto da a R., sediada em França, ter solicitado à A., sediada em Portugal, a realização dos transportes rodoviários de mercadorias (com carga em França e descarga em Espanha e Portugal) – admitem que haja sido Portugal o lugar da conclusão/celebração do contrato, nada havendo que afaste tal hipótese em detrimento doutra melhor e mais provável; e, por isso, admitem que seja a Lei portuguesa a aplicável. E tendo-se a Lei portuguesa como a aplicável – à prescrição do direito do transportador ao pagamento do preço/frete por parte do expedidor/carregador – vale para o caso o prazo ordinário de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309.º do Código Civil, improcedendo assim a excepção de prescrição e, em consequência, a presente apelação. * IV - Decisão Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se totalmente a sentença recorrida. Custas a cargo da R/apelante.. * Barateiro Martins (Relator)
Arlindo Oliveira
Emídio Santos [1] Cfr. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, pág. 725 [2] Assinada em Genebra em 19/05/1956 e aprovada pelo DL 46.235, de 18/03/1965, in DG, I Série, n.º 65; alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado em Portugal pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro. |