Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1817/08.3TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: DECLARAÇÕES DE PARTE – MEIO PROBATÓRIO.
REQUISITOS
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JC CÍVEL DE LEIRIA – J5
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGAMENTO ANULADO
Legislação Nacional: ARTº 466º NCPC
Sumário: I- Com a entrada em vigor do atual CPC as declarações de parte foram introduzidas no nosso ordenamento jurídico-processual como um novo meio de prova, sujeito, em termos de força probatória, à livre apreciação do tribunal (salvo quando a parte em que se apresentem confessórias), e que não se confunde com o depoimento de parte.
II- São pressupostos legais da admissibilidade da prestação das declarações de parte: a) que elas sejam requeridas pela própria parte; b) que sejam requeridas até ao início da fase das alegações orais na audiência de discussão e julgamento em 1ª instância; c) que elas se reportem a factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto; d) e que esse factos sejam indicados pelo requerente no requerimento em que formula esse seu pedido.
III- A tomada das requeridas declarações de parte só pode ser recusada pelo tribunal quando os factos indicados no requerimento já estejam plenamente provados por documentos ou por outro meio de prova com força obrigatória plena.
IV- Ao tribunal a quo está vedado recusar essa diligência de prova, em audiência de julgamento, com o fundamento de já se considerar suficientemente esclarecido sobre os factos em discussão e a considerar, assim, inútil.
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. Através dos autos que correm atualmente no Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, o autor, F..., instaurou (em 08/08/2008) contra os réus, C... e mulher E..., todos com os demais sinais dos autos, a presente ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo no final:
a) A resolução do contrato-promessa celebrado entre o A. e o R. marido;

b) A condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia recebida a título de sinal, em dobro, no valor de €62.848,52, acrescida de juros legais desde a citação até efetivo e integral pagamento; e,

c) A condenação solidária dos RR. a pagar ao autor a quantia de €5.000,00 de indemnização (relativa a despesas com o processo e a honorários de mandatário), acrescida de juros de mora à taxa legal até efetivo e integral pagamento.

Para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte:
Por contrato escrito celebrado em 12/02/1998 autor prometeu comprar ao réu, e este prometeu vender-lho, um o prédio urbano nele identificado pelo preço de esc. 21.000.000$00/€31.424,26, tendo-lhe entregue nessa data, a título de sinal, a quantia de esc. 6.300.000$00/€31.424,26, ficando estipulado que o remanescente daquele preço (esc. 14.700.000$00/€73.323,29) seria pago na data da outorga da escritura definitiva, a qual, conforme o acordado, deveria ser marcada pelo réu no prazo máximo de 5 meses, avisando o autor com 15 dias de antecedência.
Porém, até à data o réu não procedeu marcação da referida escritura definitiva, e não obstante o autor o ter, em 28/05/2008, notificado judicialmente para o efeito, sendo certo que chegou ao seu conhecimento que os RR. terão, entretanto, já vendido o prédio a terceiro, o que conduz a que se considere o contrato definitivamente incumprido, por culpa do réu.
Sendo os RR. casados no regime de comunhão de adquiridos, e aquela quantia que o réu recebeu a titulo de sinal sido utilizada em proveito e benefício do casal, a ré mulher é também responsável pelo pagamento das quantias por si peticionadas.
2. Contestaram os réus, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Para tanto, alegaram, em síntese, o seguinte:
O referido contrato/negócio a que alude o autor foi, na realidade, celebrado entre o R. marido e o irmão daquele, A..., embora com a condição do autor assinar o mesmo, que então era emigrante e, ao contrário do seu irmão, por ter capacidade financeira para proceder ao pagamento do sinal nele estipulado. E daí que tenha sido o A. a assinar tal contrato e pagar a quantia estabelecida a título de sinal, tendo o irmão do mesmo entregue um cheque ao R. marido titulando a quantia remanescente do preço devido a ser depositado aquando da celebração da escritura definitiva, sendo certo que entre os irmãos existiria um acordo subjacente no sentido de o prédio a vender ficar depois para os dois.
É assim que, em 16/02/2000, é outorgada a escritura pública na qual o irmão do autor interveio como comprador do prédio que fora antes objeto daquele contrato-promessa.
Como, porém, o referido irmão do autor não veio a pagar o remanescente do preço em dívida (esc. 14.700.000$00/€73.323,29), cujo montante era titulado por aquele cheque que antes o mesmo entregara para o efeito ao R. marido, ficou então acordado entre ambos que o mesmo venderia o dito prédio ao R. marido e a um tal M..., tal como veio a suceder através da outorga da escritura pública que veio a ser outorgada em 12/03/2003, tendo ainda ficado acordado entre aqueles dois que o montante que fora pago a título de sinal na sequência do sobredito contrato-promessa não seria restituído, pois que ficaria para o R. marido para o compensar dos montantes que o irmão do autor lhe devia, e que depois este último faria contas com o autor.
Mais tarde aqueles dois irmãos desentenderam-se (desconhecendo se por causa da referida situação ou de outra) e só depois disso é que o A. veio a instaurar a presente ação.
Para além de terminarem os RR. por pedir a improcedência da ação e a condenação do A. como litigante de má fé, requereram ainda a intervenção principal do referido irmão do autor e da sua mulher, defendendo ainda a sua ilegitimidade por estarem na ação desacompanhados, para além daqueles, do acima referido M... e da sua mulher em nome dos quais o dito prédio se encontra atualmente registado.
3. Replicou então o A. contraditando a versão dos RR. e pedindo a improcedência das exceções de ilegitimidade aduzida pelos mesmos.
4. Por despacho datado de 03/02/2016 foi indeferido o sobredito pedido formulado pelos RR. de intervenção principal na ação do irmão do A. e da sua mulher, o qual veio a ser confirmado por acórdão desta Relação, na sequência da apreciação do recurso dele interposto pelos RR..
5. Após algumas vicissitudes processuais, veio a ser proferido, em 08/06/2016, despacho saneador, no qual, depois de se julgarem improcedentes as sobreditas exceções de ilegitimidade aduzidas pelos RR., se afirmou a validade e a regularidade da instância, enunciando-se ainda aí o objeto do litígio e os temas de prova, num despacho que não mereceu reclamação.
6. Mais tarde, realizou-se a audiência de discussão e julgamento (com a gravação da mesma).
6.1 Na 2ª sessão dessa audiência de julgamento, realizada em 21/12/2016, foi proferido despacho que indeferiu o pedido formulado no início da mesma pela ilustre mandatária dos RR. no sentido de, ao abrigo do disposto no artº. 466º do CPC, ser tomadas declarações de parte ao R. marido.
7. Seguiu-se a prolação da sentença que, no final, decidiu nos seguintes termos:
« Declara-se resolvido o contrato-promessa assinalado em §5.1., condenando-se os RR. a entregarem a quantia de €62.848,52 (sessenta e dois mil e oitocentos e quarenta e oito euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, absolvendo-se os RR. do mais peticionado. (…). »
8. Inconformado com tal sentença, e bem assim com do despacho preferido em 6.1, os réus interpuseram recurso de apelação, concluindo as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
...
9. Contra-alegou o autor, pugnando pela improcedência total do recurso e pela manutenção do julgado.
10. No despacho de fls. 495 o sr. juiz a quo pronunciou-se no sentido da inexistência da nulidade da sentença.
11. Colhidos os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.

II- Fundamentação
1. Do objeto do recurso.
Como é sabido, e é pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, e 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

1.1 Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso da ré, verifica-se que as questões nelas colocadas, e que cumpre aqui apreciar (numa sequência cronológica e lógica), são as seguintes:

a) Do despacho impugnado que indeferiu o pedido de tomada de declarações de parte ao R. marido, formulado pelo próprio através da sua mandatária em audiência de julgamento;
b) Da nulidade da sentença;
c) Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto;
d) Do erro julgamento de direito quanto ao mérito da causa.
2. Pelo tribunal da primeira instância foram dados como provados os seguintes factos (mantém-se a numeração que consta da sentença, para melhor compreensão do recurso dado que a ela se faz referência e o mesmo sucedendo na própria sentença que para ela se remete):
...

3. Quanto à 1ª. questão.

- Da não audição pelo tribunal a quo do Réu marido em declarações de parte.

Tal como decorre do ponto 6.1 do Relatório, da respetiva ata e do respetivo CD com o registo da gravação que nos foi remetido, no início da 2ª. sessão da audiência de discussão e julgamento, realizada em 21/12/2016, no final da produção de prova que fora indicada e antes de se iniciar a fase da alegações orais, pela ilustre mandatária dos RR. foi pedida a palavra e no uso dela requereu que, ao abrigo do disposto no artº. 466º do CPC, o R. marido fosse ouvido em declarações de parte relativamente aos factos alegados em sede de contestação e levados/erigidos como temas da prova, por deles ter conhecimento direto e pessoal.

Depois do ilustre mandatário do autor se ter pronunciado contra essa pretensão, o sr. juiz a quo, em despacho ali proferido, indeferiu tal pedido, esgrimindo para o efeito a seguinte fundamentação:

« A faculdade legal é tão só uma faculdade legal.

As declarações de parte visam esclarecer seja alegações em sede de articulados, seja eventualmente factos fundamentais que tenham surgido no decurso da audiência.

Não é argumento o facto de alguém ter assistido ao decurso da audiência e depois ter voltado a ser inquirido que inibe a prestação de declarações ou depoimento.

É de presumir a responsabilidade de todo e qualquer ser humano, digno desse nome, que sabe dizer a verdade, independentemente das relações ouvidas ou não ouvidas por parte de outrem.

É isto que se exige na sociedade civil amadurecida e livre.

Em relação ao requerido pelo réu C... importa dizer que o Tribunal está suficientemente esclarecido, mas também importa dizer que objectivamente a audiência decorreu sem dúvidas ou afirmações genéricas que nada valem ao direito.

Assim, a diligência é inútil. » (sublinhado nosso)

Os RR. apelantes insurgem-se contra tal decisão, impugnando-a, com o fundamento, na sua essência, de que a mesma os limitou no seu direito de defesa e meios de prova, tanto mais que o A. foi ouvido em depoimento de parte, violando-se, assim, com tal ainda o princípio de igualdade entre as partes.

Apreciando.

A questão que se coloca, e importa decidir, traduz-se em saber se se impunha ou não ao tribunal a quo que tivesse ouvido o R. marido em declarações de parte, na sequência do sobredito requerimento que para o efeito lhe foi dirigido pela sua mandatária no final da produção da prova testemunhal e antes de dar inicio à fase das alegações orais.

Importa começar por dizer que não obstante a presente ação se encontrar pendente aquando da entrada em vigor do nCPC, a questão em apreço será a analisada da à luz deste atual diploma do CPC, face ao disposto no artº. 5º, nºs. 1 e 4 – fine -, do DL nº. 41/2013, de 26/06, que o aprovou e ao facto de na sequência do despacho de fls. 213/214, proferido em 01/02/2016, ter sido, pelas razões aí aduzidas, anulado todo o processado após os articulados e, pelo despacho de fls. 248 (datado de 09/03/2016), terem sido as partes notificadas nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 5º, nº. 4, daquele DL, ou seja, para apresentarem novos requerimentos probatórios ou alterarem os que já haviam apresentado, e com a advertência de caso nada dissessem se entenderia que mantinham esses requerimentos já apresentados.

Posto isto, dispõe o artº 466º do nCPC que:

1- As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.
2- Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
3- O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.” (sublinhado nosso)
Com a entrada em vigor do atual CPC introduziu-se, através referido normativo, no nosso ordenamento jurídico-processual um novo meio de prova: as declarações de parte.
Com tal visou-se responder a uma cada vez significativa corrente de opinião que se vinha densificando no sentido de considerar e valorizar o depoimento de parte, ainda que sem caráter confessório, e de livre apreciação pelo tribunal, desde que o mesmo viesse a revelar um efeito útil para a descoberta da verdade material.
Esse novo meio de prova que a lei adjetiva veio consagrar, constitui uma homenagem ao direito à prova (com eco constitucional) – pois que em muitos casos pode ser difícil ou mesmo impossível demonstrar certos factos por via diversa da do próprio relato das partes -, e ao princípio/finalidade da descoberta da verdade - pois que muitas das vezes as partes terão conhecimento privilegiado dos factos que alegam ou presenciaram. (Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 2º, Almedina, 3ª ed., pág. 307.”).
Dissertando sobre esse novo meio de prova (no estudo denominado “As malquistas declarações de parte”, disponível em http://julgar.pt/as-malquistas-declaracoes-de-parte/) Luís Filipe Pires de Sousa escreve a dada altura “(…) Em caso de dúvida sobre a relevância final da prova, atento o direito constitucional à prova (analisado infra) e as consequências gravosas da eventual procedência de recurso sobre o despacho que rejeite o meio de prova (…) deverá ser adotado o princípio pró-admissão da prova ou princípio de inclusão (…).
(...). Daqui se infere que o nosso paradigma se consubstancia numa tutela reforçada do direito à prova. Assim, o direito constitucional à prova e a sua regulação no processo civil opõem-se a que o juiz possa dispensar a produção de um meio de prova por entender que o enunciado fáctico em causa já está suficientemente provado.

(...) Por outro lado, não cabe ao juiz antecipar - no decurso da audiência – a explicitação de qual a convicção formada quanto à (in)suficiência da prova sobre os enunciados fácticos em discussão. A convicção que existe nesta fase é – por natureza e definição - provisória, sempre sujeita a revisão face à ponderação mais refletida e abrangente que será feita após a conclusão do julgamento. A audiência insere-se no contexto de descobrimento da prova e a subsequente decisão escrita ancora-se no contexto de justificação da prova que se regem por paradigmas diversos.

(...) Feito todo este excurso, concluímos que o juiz não pode rejeitar o requerimento de prestação de declarações de parte pela simples razão de entender que o mesmo é desnecessário face à prova já produzida.

(...) O que o juiz pode fazer é rejeitar a prestação de declarações de parte por inadmissibilidade legal, o que pode ocorrer em duas situações:

(i)- quando os factos sobre que a parte se proponha prestar declarações já estejam plenamente provados por documento ou por outro meio de prova com força probatória plena (Art. 393.2. do Código Civil, por analogia);

(ii)- quando os factos sobre que a parte se proponha prestar declarações beneficiem de prova pleníssima, designadamente os casos de presunções legais inilidíveis, casos em que não é admissível prova em contrário. (sublinhado nosso)

Na mesma linha foi, a propósito desse mesmo meio de prova, o Ac. da RL de 29/04/2014 (sumariado in “CJ, Ano XXXIX/2014, T2- 325”), ao concluir, de forma em que nos revemos, que (…) “Se tal meio prova ganha particular interesse em matérias do foro íntimo ou pessoal dos litigantes, não presenciadas por terceiros e, à partida de mais difícil demonstração, também é certo que a lei não restringe a sua admissão esses casos, antes estabelecendo como requisito de admissibilidade, no que respeita à incidência, que as declarações de parte respeitem a factos em que o litigante interveio pessoalmente ou de que teve conhecimento direto.
Estamos no âmbito mais amplo do direito que assiste à parte de provar os factos por si alegados e que sustentam a sua pretensão, ou mesmo até de fazer a contra prova dos factos contra si invocados, no quadro do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva (artº. 20º da CRP), pelo que, nessa medida, é a cada uma das partes que incumbe eleger os meios de prova adequados à demonstração com que está onerada ou que, de algum modo, convém à prossecução dos seus interesses. Tal não significando que não devam impor-se certas limitações aos meios de prova utilizáveis em cada caso, mas essas limitações devem mostrar-se materialmente justificadas e respeitadoras do princípio da proporcionalidade. Pelo que assim sendo, a menos que seja evidente a redundância em sentido favorável à parte requerente, será sempre temerário justificar a recusa de um meio de prova com a invocação de o tribunal já estar convencido de uma certa versão dos factos. Donde estando em causa um meio de prova ao alcance dos litigantes que a lei expressamente consagra (…) não se vislumbra razão bastante para a sua recusa, desde que nada permita concluir pela sua inutilidade.” (sublinhado nosso)
No mesmo sentido vai ainda o recente acórdão da RL de 08/02/2018 (proc. 1193/13.2TVLSB-A.L1-6, disponível em dgsi.pt) ao concluir, estar “vedado ao juiz a rejeição do requerimento para prestação de declarações de parte por (…) que é desnecessário face à prova já produzidae quetal rejeição só é possível em situações de inadmissibilidade legal, designadamente quando os factos indicados no requerimento já estejam plenamente provados por documentos ou por outro meio de prova com força obrigatória plena.” (sublinhado nosso)
Meio de prova esse que, como ressalta do que se deixou exarado, não se confunde com a prova confessória adveniente do próprio depoimento de parte, estando, ao contrário daquele, sujeito à livre à apreciação do tribunal – salvo se dessas declarações configurarem em si uma confissão do declarante (nº 3 do citado artº 466º). E percebe-se que assim seja, pois que não pode desconsiderar-se que essas declarações são prestadas por uma parte diretamente interessada no desfecho da ação, e daí que se imponha ao julgador algum cuidado na análise crítica e valoração dessas declarações, as quais, no seu final, - e como meio legítimo de prova que são e com a força probatória que é idêntica àquelas outras provas igualmente sujeitas à livre apreciação do tribunal –, tanto poderão merecer do julgador muita, como pouca ou nenhuma credibilidade. (Cfr. nesse sentido, e por todos, Ac. da RG de 02/05/2016, in “proc. 2745/15.1T8VNF-A.G1, disponível em dgsi.pt).
Como decorre do citado artº. 466º, nº.1 do CPC, são pressupostos legais da admissibilidade da prestação das declarações de parte: a) que elas sejam requeridas pela própria parte (ao contrário do que sucede com o depoimento de parte); b) que sejam requeridas até ao início da fase das alegações orais na audiência de discussão e julgamento em 1ª. instância; c) que elas se reportem a factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto.
Por força da decorrência daquele último requisito, em conjugação com o nº.2 daquele preceito legal e o 452º, nº.2 do mesmo diploma legal (donde decorre, nomeadamente, ser aplicáveis, com as devidas adaptações, as regras procedimentais referentes aos depoimentos de parte), o requerente deve indicar ainda no seu respetivo requerimento os factos sobre os quais devem incidir as suas declarações, sendo certo que vem constituindo entendimento, que se vem afirmando prevalecente, de que a falta de tal indicação não deve determinar, desde logo, o indeferimento liminar do requerimento mas antes o convite ao suprimento dessa deficiência ou omissão. (Cfr., por todos, Ac. da RG de 07/01/2016, in “CJ Ano XLI/2016, T1- 251” e Ac. da RL de 21/12/2015, in “proc. 4059/15.8T8LSB-4, disponível em dgsi.pt).
Tendo presente o que se deixou expendido, revertamo-nos agora para o caso sub júdice.
O R. marido no uso de um direito de prova que lhe assiste, no início da 2ª. sessão da audiência de discussão e julgamento, realizada em 21/12/2016, no final da produção de prova que fora indicada (vg. depoimento de parte do A. e das testemunhas) e antes de se iniciar a fase da alegações orais, requereu ao tribunal, através da sua mandatária, e ao abrigo do disposto no artº. 466º do CPC, que fosse ouvido em declarações de parte relativamente aos factos por si alegados em sede de contestação e levados/erigidos como temas da prova, por deles ter conhecimento direto e pessoal.
É inolvidável que tal requerimento/pedido foi feito por quem tinha legitimidade para tal e dentro do tempo legalmente estatuído para o efeito.
Indicou como objeto das suas declarações os factos por si alegados em sede contestação (cuja essência acima deixámos vertida) e que foram erigidos como temas da prova.
No despacho saneador foram dados como não controvertidos, entre outros, os seguintes factos:
(…)

Compulsando o final desse despacho saneador foram nele erigidos os seguintes temas da prova:
1- Condições em que foi negociado o acordo referido em a) e por quem;
2- Se na data da assinatura do acordo referido em a) foi entregue ao réu um cheque no valor de 14.700.000$00 por A... e para que efeitos;
3- Motivações subjacentes à realização da escritura referida em g);
4- Da litigância de má-fé do autor.”

Tendo em conta o que se discute na ação (vg. saber com quem na realidade R. marido celebrou/negociou o negócio/contrato-promessa, se com A. se com o seu irmão A... e os termos acordados nessa negociação, e se houve incumprimento contratual daquele), afigura-se-nos ser patente que o R. requereu a prestação de declarações relativamente a factos sobre os quais não só interveio pessoalmente como deles tem conhecimento direto, sendo certo que esses factos sobre os quais deviam incidir as suas declarações se mostram, a nosso ver, suficientemente indicados/precisados, e mesmo que o não estivessem sempre poderia o sr. juiz a quo convidá-lo a concretizar melhor essa indicação.

Estavam, e estão, assim preenchidos todos os requisitos legais acima enunciados para que o réu fosse ouvido em declarações de parte na audiência de discussão.

Ao ver rejeitado pelo tribunal a quo o seu pedido para prestar declarações na audiência de discussão e julgamento, o réu foi, assim, privado de um direito de prova que lhe assiste.

O tribunal a quo não poderia recusar essa diligência de prova com o fundamento da sua inutilidade, por já se considerar suficientemente esclarecido e a audiência ter decorrido sem dúvidas ou afirmações genéricas.

Como resulta do que supra deixámos expendido, não pode o juiz antecipar no decurso da audiência de discussão e julgamento a formação da sua convicção, alicerçada na prova já produzida, e dispensar a prestação de declarações de parte.

A convicção que exista nessa fase será – por natureza e definição – provisória, sempre sujeita a revisão face à ponderação mais refletida e abrangente que será feita após a conclusão do julgamento.

Na verdade, constituindo as declarações de parte um meio de prova legalmente previsto - com a força probatória idêntica àquela outra que, tal como ela, está sujeita livre apreciação do julgador (vg. prova testemunhal) - só no final de toda a produção de prova (vg. aquando da elaboração da sentença final – cfr. artº. 607º, nºs. 4 e 5, do CPC), e após ponderação refletida e conjugada sobre toda ela, é que o tribunal está em condições de formar conscientemente a sua convicção definitiva sobre os enunciados fácticos em discussão. E nessa equação ponderativa e formativa da convicção não se podem excluir os tribunais de recurso da Relação sempre que, como sucede no caso dos autos, sejam chamados a pronunciar-se sobre a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, os quais devem ter ao seu dispor todos de prova produzidos ou a produzir.

E nessa ponderação de prova o tribunal, aquando da apreciação e decisão da matéria de facto, tanto pode atribuir às declarações de parte muita, como pouca ou nenhuma relevância para o efeito, numa análise crítica das mesmas que, pelas razões que supra se deixaram expendidas, dever ser feita no caso sempre com particular cuidado.

Note-se ainda que no caso presente essa requerida audição mais se impõe pois que, por um lado, toda a versão factual alegada pelos RR., em abono da sua pretensão, foi dada como não provada e, por outro, que o autor, como parte contrária, foi ouvido pelo tribunal, embora em depoimento de parte, e cujo depoimento o julgador terá atribuído relevância ao concluir, no final da motivação da decisão da matéria de facto e na sequência da analise crítica da prova produzida, que “que independentemente da posição processual, o certo é que só as declarações do A. fazem sentido com o documentado.” E tanto mais ainda quando ao procedermos à audição do registo da prova ouvida em audiência de julgamento a mesma não se não se nos afigurou que fosse “absolutamente” cristalina e esclarecedora no que concerne aos factos em discussão.
Concluindo, perante o que se deixou exposto, não poderia o tribunal a quo ter recusado, nos termos e com os fundamentos aduzidos para o efeito, a prestação de declarações de parte pelo R. marido, pelo que se impõe revogar o sobredito despacho impugnado que consubstanciou/formalizou essa recusa, determinando-se, em consequência, a anulação da sentença recorrida e a reabertura da audiência de discussão e julgamento a fim de aquele ser ali ouvido em declarações de parte sobre os factos que indicou para o efeito, e com a subsequente observância da tramitação do ritual processual legalmente previsto.

Assim se julgando, nessa medida, procedente o recurso, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões acima elencadas que integravam o seu objeto.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se, na procedência do recurso, em revogar o sobredito despacho impugnado e anular, em consequência, a sentença final proferida nos autos, determinando-se a reabertura da audiência de discussão e julgamento a fim de o Réu marido aí ser ouvido em declarações de parte, nos termos que supra se deixaram exarados, após que os autos devem prosseguir os seus ulteriores trâmites processuais legalmente previstos.

Custas do recurso pelo autor - que nele ficou vencido – (artºs. 527º, nºs 1 e 2, do CPC e 7º, nº 2, do RCP).

Coimbra, 5 de junho de 2018


Isaías Pádua
Manuel Capelo
Falcão de Magalhães