Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
130/12.6TBFND-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
ACTOS PREJUDICIAIS
RESOLUÇÃO
OPONIBILIDADE A TRANSMISSÁRIOS POSTERIORES
BOA FÉ
HIPOTECA REGISTADA
Data do Acordão: 10/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – FUNDÃO – INST. CENTRAL – SEC. COMÉRCIO-
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 46º, 47º, 120º E 124º DO CIRE.
Sumário: I – O processo de insolvência, enquanto processo de execução universal, caracteriza-se por nele intervirem todos os credores do insolvente e ainda porque é tendencialmente atingido todo o património do devedor, ao invés do que ocorre nas execuções singulares (cf. art.ºs 46.º e 47.º do CIRE).

II - Prevê e permite o art.º 120º do CIRE que os actos prejudiciais à massa insolvente que sejam praticados (ou omitidos) dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência possam ser resolvidos em benefício da massa.

III - Conforme decorre do preceituado no n.º 1 do art.º 124º do CIRE, a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores pressupõe a má-fé destes (ressalvados os casos de se tratar de sucessores a título universal ou a nova transmissão tiver ocorrido a título gratuito). Este regime é aplicável “com as necessárias adaptações, à constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiros” (vide nº 2 do preceito).

IV - Daqui decorre que no caso do transmissário posterior de boa-fé constituir hipoteca sobre bem alienado pelos devedores insolventes que se encontre no património do terceiro adquirente, a resolução não lhe é oponível, subsistindo a hipoteca.

V - Não obstante quanto vem de se referir, cremos que por força do disposto no antes citado art.º 47º, nº 1, o terceiro de boa-fé titular de direitos sobre o bem transmitido, adquire, por força do reingresso do bem na massa insolvente, a qualidade de credor da insolvência, o que ocorre tão logo a resolução do acto translativo lhe seja oposta.

VI - Acresce que produzindo a resolução os seus efeitos, nos termos gerais, com o conhecimento pelo destinatário da declaração resolutiva, esta torna-se inatacável decorrido que seja o prazo de impugnação em relação a todos os que tenham legitimidade para instaurar a ação respectiva.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:

C..., com sede na Rua ..., veio instaurar acção para verificação ulterior de créditos, sendo requeridos a massa insolvente de J... e A..., os credores da massa insolvente e ainda os identificados devedores, tendo em vista obter o reconhecimento de que detém sobre estes um crédito no montante de €154 033,31 (cento e cinquenta e quatro mil e trinta e três euros e trinta e um cêntimos).

Em fundamento alegou, em síntese, que se encontra registada a seu favor hipoteca sobre o imóvel que identificou, a qual foi constituída para garantia do integral cumprimento das obrigações assumidas por D... no âmbito do contrato de mútuo com este celebrado em 29 de Julho de 2010. Sucede que a aquisição a favor do mutuário foi objecto de cancelamento em 19/6/2015, tendo sido efectuado subsequente registo da declaração de insolvência através da Ap. ... de 2015/07/2010, o que confere legitimidade à demandante para a propositura da acção, atento o disposto na al. b) do n.º 2 do art.º 146.º do CIRE, disposição legal que expressamente invocou.

A massa insolvente veio contestar a acção nos termos da peça que consta de fls. 61 a 67 dos autos, na qual invocou a caducidade do direito de acção, por ter sido ultrapassado o prazo consagrado no convocado art.º 146.º, tendo impugnado especificadamente a demais factualidade alegada.

A autora respondeu à matéria da excepção, defendendo a tempestividade da acção.

Teve lugar audiência prévia, após o que foi proferido douto saneador-sentença que, na procedência da excepção invocada -que qualificou de excepção processual-, julgou extinto o direito da autora ver reconhecido o seu crédito no âmbito do processo de insolvência.

Inconformada, apelou a autora CEMG e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:

“1.ª Por carta datada de 30 de Maio de 2014, notificou a administradora de insolvência a ora apelante da sua intenção de proceder à resolução em benefício da massa insolvente do negócio de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra E-5, correspondente ao terceiro andar retaguarda E do prédio urbano constituído no regime da propriedade horizontal sito na Av.ª ..., celebrado entre os insolventes J... e A... e D..., resolução que a impugnante não impugnou.

2.ª Entendeu a Mm.ª juíza “a quo” que ficou consolidada na esfera patrimonial dos insolventes a propriedade do imóvel objecto do negócio de compra e venda resolvido pela administradora da insolvência logo após o decurso do prazo para impugnação de tal resolução por parte da apelante.

3.ª A apelante desconhecia, sem ter obrigação de conhecer, se outros interessados haviam sido notificados da resolução e se, consequentemente, na medida em que quanto aos mesmos poderia ainda não se ter esgotado o prazo para a respectiva impugnação, aquela se tinha efectivamente convertido em definitiva.

4.ª Aliás, sendo a resolução efectuada pela AI mediante o envio de carta registada com aviso de recepção para todos aqueles que possam ser afectados pela mesma, correndo prazo relativamente a cada um dos notificados -que pode não ser uno- para impugnação, que outra forma existe, para além do registo da declaração de insolvência, para assegurar de forma indubitável a definitividade da resolução em benefício da massa insolvente?;

5.ª Com efeito, apenas o registo do cancelamento do negócio ou facto resolvido é passível de confirmar o decurso do prazo ou prazos de impugnação sem que a mesma tenha sido deduzida ou que tenha sido deduzida sem êxito.

6.ª Apenas assim, e porque a resolução tem o seu espaço de eficácia confinado às partes da particular relação contratual a que visa pôr fim, não atingindo os direitos que, com origem em qualquer dos pólos de tal relação, terceiros hajam meio tempore adquirido, ficará assegurado o exercício de tais direitos de terceiro no processo de insolvência;

7.ª Dispõe o n.º 1 do art.º 47.º do CIRE que “Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio”.

8.ª Assim, apenas posteriormente à apreensão à ordem da massa insolvente do imóvel sobre o qual se encontra registada hipoteca a favor da apelante -apreensão publicitada com o registo da declaração de insolvência sobre o imóvel em causa- esta teria legitimidade, atento o disposto no art.º 128.º do CIRE, para reclamar os seus créditos nos presentes autos através de uma acção de verificação ulterior de créditos, o que fez tempestivamente”.

Indicando como violadas as disposições legais contidas nos art.ºs 47.º, n.º 1 e 128.º do CIRE, pugna pela revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que considere tempestiva a acção de verificação ulterior de créditos por si intentada.

Não houve contra alegações.

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão sujeita à apreciação deste Tribunal consiste em determinar se a acção de verificação ulterior de créditos foi tempestivamente proposta pela recorrente, conforme esta pretende ou, ao invés, se extinguiu o direito de praticar o acto.

II. Fundamentação

De facto

Sem impugnação, são os seguintes os factos a atender, tal como enunciados na decisão apelada:

1. Em 29 de Julho de 2010 a C... celebrou com D... um contrato de mútuo com hipoteca, no âmbito do qual emprestou a este a quantia de €150 000,00, montante de que o mutuário se confessou devedor, tendo sido convencionada a taxa de juro anual e actualizável de 3,612%, regendo-se pelas demais condições constantes do contrato e do documento complementar anexo ao mesmo.

2. O contrato referido em 1. foi alterado por adicionais celebrados em 29 de Julho de 2010 e 7 de Setembro de 2011.

3. O montante do capital mutuado foi disponibilizado ao mutuário D... e por este integralmente utilizado.

4. Encontram-se em dívida (tendo por referência a data da propositura da acção) os seguintes valores: a) capital €151 550,86: b) juros vencidos desde 28/5/2015 até 19/8/2015, às taxas contratuais sucessivamente em vigor, agora fixada em 3,284%, € 1 331,53; indemnização de 3% ao ano, calculada sobre o capital em dívida desde a data da entrada em mora €1 037,43; seguros €113,14; juros moratórios sobre seguros € 0,35.

5. Nos termos do contrato referido em 1. o mencionado D... constituiu a favor da autora hipoteca sobre a fracção autónoma designada pela letra E-5, correspondente ao terceiro andar retaguarda E do prédio urbano constituído no regime da propriedade horizontal sito na ... que, por contrato de compra e venda exarado na mesma data e no mesmo título em que foi lavrado o supra aludido contrato de mútuo com hipoteca, adquirira aos insolventes J... e A...

6. Tal aquisição foi registada através da Ap. ..., de 2010/07/29.

7. O negócio celebrado entre D... e os insolventes foi objecto de resolução pela Ex.mª Sr.ª AI nomeada no processo de insolvência apenso, tendo o imóvel sido apreendido a favor da massa insolvente.

8. No dia 30 de Maio de 2014, mediante carta registada com a/r, foi a autora notificada pela Sr.ª AI nos seguintes termos:

“Na qualidade de administradora de insolvência nomeada nos autos de processo n.º 130/12.6 TJFND, que corre termos pelo 2.º juízo do Tribunal Judicial do Fundão, em 26/07/2012 foram ambos declarados insolventes, Venho notificar V.ªs Ex.ªs do seguinte:

1.º

Em 20/02/2012 foi apresentado que o Sr. J... e sua esposa A..., contribuintes n.ºs ..., respectivamente, fossem declarados em estado de insolvência.

2.º

Por sentença, já transitada em julgado, foi proferida sentença declaratória da insolvência, incumbindo-me o Tribunal, entre outras funções, de proceder à apreensão para a massa insolvente dos bens que à data da insolvência se mantinham na titularidade dos insolventes, bem como daqueles que nela se manteriam, caso não houvessem sido praticados por eles aqueles actos prejudiciais para a massa.

E foi já no exercício das minhas funções que tomei conhecimento de que no dia 29/07/2010, na Conservatória do Registo Predial do ..., os insolventes celebraram com D..., com a participação da C..., na pessoa do Sr. ..., na qualidade de credora, e com o consentimento de E..., um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, que teve como objecto a fracção E-5 (terceiro andar retaguarda E) no prédio urbano sito na ..., pelo preço total de €150 000,00.

4.º

Esta transmissão foi registada na CRP do ... pela apresentação n.º ... de 29/07/2010.

5.º

Neste contrato, as partes declararam que o preço de venda do imóvel já foi entregue.

6.º

Ora, o processo de insolvência teve início em 20.02.2012, com a apresentação em juízo do pedido de declaração de insolvência de J... e sua esposa, A... e, como tal, aquele acto foi praticado dentro dos dois anos anteriores (29.07.2010).

7.º

E foi prejudicial à massa, porquanto não foi recebido o preço declarado nos contratos, apesar de os insolventes declararem que receberam o preço de €150 000,00.

8.º

Esta quantia não foi entregue nas contas bancárias abertas em nome dos insolventes, nem foi por qualquer outra forma pago.

9.º

Com a declaração das partes de que o preço dos prédios já havia sido pago, as partes visavam retirar do património dos insolventes os prédios indicados.

10.º

Isto é, o contrato foi simulado: naquela data os insolventes efectuaram realmente a doação do prédio a D..., com o intuito de o remover do seu património, com isso prejudicando os credores (na medida em que diminuíram a garantia patrimonial que é o seu património).

11.º

Esta doação cabe na previsão da alínea b) do art.º 121.º do CIRE, na parte em que determina que são resolúveis em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos, os actos “celebrados pelo devedor a título gratuito nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência”.

12.º

Por isso, em 22.01.2013 comuniquei aos intervenientes que o contrato supra indicado se encontrava resolvido em benefício da massa insolvente.

(…)

35.º

Esta comunicação de resolução em benefício da massa insolvente não foi contestada nos termos do disposto no artigo 125.º do CIRE, pelo que transitou em julgado.

36.º

Acontece que o imóvel em causa foi dado a V.ªs Ex.ªs como garantia real, através da constituição de hipoteca voluntária para garantia do capital mutuado de €150 000,00, e com o montante máximo assegurado de €194 266,50.

37.º

Tal hipoteca foi registada pela Ap.... de 2010/07/29.

38.º

Não recolhi nenhum indício de que V.ªs Ex.ªs, no momento da celebração do mútuo com hipoteca, se encontrassem de má-fé.

39.º

Que fosse vossa intenção prejudicar os credores dos insolventes, ou que fosse do vosso conhecimento que os insolventes se encontravam em situação de insolvência iminente.

40.º

Pelo que, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 124.º do CIRE, não vos é oponível tal resolução em benefício da massa insolvente.

41.º

E não obstante ser válida e eficaz a resolução em benefício da massa no que diz respeito à transmissão do direito de propriedade dos insolventes para D...

42.º

Deve manter-se inalterado o direito real de garantia de que V.ªs Ex.ªs beneficiam.

43.º

Assim, e caso não seja deduzida por vós impugnação nos três meses posteriores à vossa notificação, nos termos do disposto no art.º 125.º do CIRE,

44.º

É minha intenção proceder ao registo da resolução em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda citado.

45.º

Termos em que deverão V.ªs Ex.ªs reclamar nos presentes autos, e nos termos legais, os créditos que detenham com garantia sob bens apreendidos para a massa insolvente (…)

9. A 19.06.2015 foi efectuado o cancelamento do registo a favor de D...

10. A presente acção de verificação ulterior de créditos deu entrada em juízo a 18.08.2015.

De Direito

Conforme a Mm.ª juíza com rigor sintetizou, a agora apelante defende a tempestividade da propositura da presente acção face à consideração de que a comunicação que lhe foi feita pela Sr.ª AI se destinou, em primeira linha, a conceder-lhe a possibilidade de, querendo, deduzir impugnação à anunciada resolução do negócio jurídico celebrado entre os devedores insolventes e o mutuário D..., sendo certo que apenas depois de se ter esgotado o prazo previsto no art.º 125.º do CIRE em relação a todos os afectados pelo negócio é que tal resolução se tornaria definitiva e poderia a Sr.ª AI promover o respectivo registo (de declaração da insolvência, precedido do cancelamento da inscrição de aquisição a favor do terceiro adquirente). Daí que apenas após a feitura deste, e não antes, estaria a apelante habilitada a reclamar o seu crédito, lançando mão da acção prevista no art.º 146.º do CIRE, por se encontrar então já esgotado o prazo geral consagrado no art.º 128.º do mesmo diploma.

Apreciando a questão colocada, começou a Mm.ª juíza por considerar, na esteira do entendimento perfilhado em arestos que identificou, que o prazo a que alude a al. b) do n.º 2 do art.º 146.º do CIRE tem natureza adjectiva, tratando-se portanto de um prazo para a prática de um acto. E tratando-se de um prazo peremptório, o seu decurso extinguiu o direito de o praticar, sem contudo afectar o direito, neste caso de crédito, titulado pela recorrente[1].

Sem questionar propriamente tal entendimento, discorda a apelante da decisão apelada quando aqui se considera que o início da contagem deste prazo se deu com o termo daqueloutro consagrado no art.º 125.º do CIRE, tendo terminado portanto a 30-11-2014.

Não questionando que a autora ficou legitimada para impugnar o acto resolutivo, escreveu-se na sentença recorrida a propósito da questão que nos ocupa:

“(…) Certo é que a autora não usou de tal faculdade e não impugnou a dita resolução no prazo legal de três meses de que dispunha, cf. art.º 125.º do CIRE, e que terminou a 31.08.2014.

Não tendo impugnado a resolução, e não obstante seja pacífica a sua boa-fé no negócio em que interveio (…), a Autora acabou por aceitar a tramitação processual que a Sr.ª Administradora da Insolvência lhe impôs -necessidade de reclamar os seus créditos no processo de insolvência, assim lhe permitindo salvaguardar os seus legítimos interesses e direitos – cf. art.º 124.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE.

Aqui chegados, cumpre, então, responder à seguinte questão: qual o efeito da recepção da comunicação extrajudicial da resolução efectuada pela Sr.ª Administradora de Insolvência à Autora?

Voltando a acompanhar Fernando Gravato Morais in op. cit., pág. 181 e ss., diremos que a declaração resolutiva provoca a cessação do vínculo entre o insolvente e o seu contratante e tal ocorre a partir do momento da recepção pelo destinatário (seja ele qual for) da carta registada com aviso de recepção, se tiver sido esse o instrumento utilizado pelo Administrador de Insolvência (art.º 224.º, n.º 1 do Código Civil) e sem prejuízo da impugnação da resolução.

A este respeito (impugnação da resolução) defende o mesmo Autor, a fls. 169, que se a acção for não procedente, a resolução é a partir de então inatacável, produzindo os efeitos previstos no art.º 126.º do CIRE; sendo procedente tudo se passa como se ela não tivesse ocorrido.

Significa isto que uma vez esgotado o prazo de três meses sem que tenha sido exercido o direito de impugnar a resolução em benefício da massa insolvente ocorre a extinção deste direito, por efeito da caducidade, pelo que, a partir de então, a resolução torna-se inatacável, produzindo os efeitos inter partes previstos no art.º 126.º, n.º 1 do CIRE (…).

E decidido que fica, em termos definitivos, que os bens fruto da resolução do acto ou negócio passam a integrar a massa insolvente e a servir de instrumento de pagamento para os credores da massa, produzem-se a partir de então todos os efeitos jurídicos conexos com a aludida integração, designadamente, e ao que aqui interessa, o direito de um credor hipotecário (de boa-fé) que vê o bem sobre o qual detém garantia ser apreendido para a massa insolvente vir reclamar o seu crédito.

Levando a cabo, aqui, uma exegese extensiva do disposto na al. b) do art.º 146.º do CIRE, concluímos que o crédito da autora se constituiu, no sentido de poder vir a ser reclamado no processo de insolvência -cf. ainda o art.º 47.º, n.º 1 do CIRE- no momento em que a resolução deixou de poder ser atacada por todos os destinatários da comunicação efectuada pela Administradora de Insolvência em virtude do decurso de todos os prazos de impugnação.

Em face do exposto, a partir desse momento dispunha a Autora do prazo de três meses para reclamar o seu crédito, o qual terminava a 30-11-2014”.

Vejamos, pois, se assiste ou não razão à apelante quando, dissentindo dos argumentos vindos de transcrever, pretende ser tempestiva a propositura da acção.

Conforme é sabido, o processo de insolvência, enquanto processo de execução universal, caracteriza-se por nele intervirem todos os credores do insolvente e ainda porque é tendencialmente atingido todo o património do devedor, ao invés do que ocorre nas execuções singulares (cf. art.ºs 46.º e 47.º do CIRE[2]).

Nos termos deste art.º 47.º “Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio” (vide n.º 1). E consoante dispõe o n.º 3 do preceito “São equiparados aos titulares de créditos sobre a insolvência à data da declaração da insolvência aqueles que mostrem tê-los adquirido no decurso do processo”.

Conforme anotam os Profs. J. Labareda e C. Fernandes[3] “(…) há a natural consideração de que, uma vez proferida a decisão declaratória da insolvência, todos os credores do devedor passam a ser havidos como credores da insolvência, com a particularidade de fazer abranger nesse universo também aqueles que não sendo, em rigor, titulares de créditos sobre o insolvente, dispõem, todavia, de garantias constituídas sobre bens seus para segurança de dívidas de terceiros” (é nosso o destaque).

No caso que nos ocupa, à data da declaração de insolvência dos devedores J... e A..., a ora recorrente não era titular de crédito sobre os insolventes, nem tão pouco a garantia hipotecária incidia sobre bem que integrasse a massa insolvente, donde não lhe poder ser imposto que reclamasse o seu crédito no prazo para tanto fixado na sentença declaratória da insolvência (cf. art.º 128.º, n.º 1).

Todavia, prevê e permite o art.º 120.º que os actos prejudiciais à massa insolvente que sejam praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência possam ser resolvidos em benefício da massa. E tal foi precisamente o que ocorreu no caso em apreço, tendo a Sr.ª AI emitido declaração resolutiva do negócio de compra e venda celebrado entre os devedores e D... tendo por objecto o imóvel identificado.

A resolução, é sabido, consubstancia-se na destruição da relação contratual - que se constituiu validamente - por um dos contraentes, com base em facto posterior à celebração do contrato e com a intenção de fazer regressar as partes à situação em que se encontrariam se não o tivessem celebrado[4]. Com a resolução dá-se, assim, a extinção do vínculo contratual, efeito extintivo que se produz logo que a declaração de vontade chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida (art.º 224.º, n.º 1 do Código Civil).

Nos termos do art.º 433.º do mesmo diploma legal, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico tendo, via de regra, eficácia retroactiva (vide n.º 1 do art.º 434.º e n.º 1 do art.º 289.º ainda do CC). Visando colocar as partes na situação em que estariam caso não tivessem celebrado o contrato, pretende-se, por esta via, restabelecer o “status quo ante”[5].

Dissolvido o vínculo contratual, e como efeito da resolução, cada uma das partes terá pois de restituir à contraparte tudo o que indevidamente mantenha em consequência da cessação. A retroactividade dos efeitos implica assim e fundamentalmente a restituição das prestações efectuadas, ficando as partes adstritas à obrigação de devolver as prestações que hajam recebido em cumprimento do contrato (art.º 289.º, n.º 1), devendo as obrigações recíprocas ser cumpridas simultaneamente (cf. art.º 290.º).

Não se afastando do modelo de resolução extra judicial consagrado no Código Civil, também o CIRE prevê que a resolução se faça por mera declaração às partes contratantes -pese embora se trate de uma resolução vinculada à verificação de determinados pressupostos, os quais deverão ser revelados pelo Sr. AI- ainda que se exija como formalidade mínima o envio de carta registada com a/r (cf. art.º 123.º). E a declaração resolutiva, uma vez conhecida do declaratário (ou por ele cognoscível) tem como consequência o reingresso do bem transmitido na massa insolvente (cf. art.º 126.º, n.º 1, que estabelece a retroactividade dos efeitos da resolução, “devendo reconstituir-se a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado ou omitido, consoante o caso”).

No entanto, conforme decorre do preceituado no n.º 1 do art.º 124.º -e num desvio ao regime regra do art.º 435.º do CC- a resolução é oponível a terceiros a quem tenham sido transmitidos os bens objecto do negócio resolvido quando a transmissão tenha sido feita a título gratuito, independentemente da boa ou má-fé do transmissário, e quando a transmissão, ainda que onerosa, tenha sido feita a transmissário de má-fé (e também nos casos, que aqui não relevam, de se tratar de sucessores a título universal do transmitente). Este mesmo regime é aplicável “com as necessárias adaptações, à constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiros” (vide n.º 2 do preceito).

Resulta do preceito a que nos vimos reportando que no caso de terceiro de boa-fé, como é aqui a apelante, constituir hipoteca sobre bem alienado pelos devedores insolventes que se encontre no património do terceiro adquirente, a resolução não lhe é oponível, subsistindo a hipoteca, tal como, de resto, foi reconhecido pela Sr.ª AI (cf. pontos 41.º e 42.º da missiva enviada à recorrente). Sendo esta a solução que decorre do dispositivo em referência, ainda reintegrando o bem a massa insolvente por força da resolução operada, pareceria que, faltando ao terceiro transmissário de boa-fé -no caso o banco apelante, na qualidade de credor hipotecário do adquirente que foi contraparte dos devedores no negócio translativo- a qualidade de credor dos insolventes (posto que é titular de um crédito, mas sobre o adquirente ou primeiro transmissário), não poderia reclamar tal crédito na insolvência, daqui decorrendo que o bem só poderia ser liquidado enquanto bem onerado, por não ser então possível extinguir a hipoteca[6].

Não obstante quanto vem de se referir, cremos que por força do disposto no antes citado art.º 47.º, n.ºs 1 e 3, o terceiro de boa-fé titular de direitos sobre o bem transmitido, adquire, por força do reingresso do bem na massa insolvente, a qualidade de credor da insolvência, o que ocorre tão logo lhe sejam dados a conhecer os efeitos da resolução do acto translativo.

A apelante faz notar que a retroactividade por lei associada à resolução sofre naturalmente as limitações decorrentes do seu carácter relativo, invocando que “(…) a resolução tem, em princípio, o seu espaço de eficácia confinado às partes da particular relação contratual a que visa pôr fim, não atingindo os direitos que com origem em qualquer dos pólos de tal relação -maxime com origem no destinatário da declaração- terceiros hajam meio tempore adquirido”[7].

Pois bem, na natureza receptícia da declaração resolutiva, faz assentar alguma doutrina a conclusão de que, tendo a resolução em benefício da massa por finalidade extinguir o acto que foi realizado pelo devedor insolvente, a declaração não carece de ser dirigida ao terceiro transmissário, tanto mais que o já citado art.º 124.º “permite opor a resolução do acto (…) aos sucessivos transmissários que tenham actuado de má-fé”[8]. Abre-se aqui um parêntesis para referir que a oponibilidade, pressupondo embora a má-fé do transmissário (com as já assinaladas excepções de estarmos perante acto gratuito ou sucessão universal), funciona sem qualquer limitação quanto ao número de transmissões, devendo entender-se como transmissário posterior “no quadro do art.º 124.º, n.º 1 do CIRE (…) o transmissário sucessivo por referência àquele que contratou com o insolvente.

Desta sorte, terceiro transmissário, para efeitos da oponibilidade da resolução, é um qualquer transmissário da contraparte do devedor do insolvente, ou ainda um qualquer ulterior transmissário, para quem foram transmitidos, definitiva ou temporariamente, bens ou constituídos direitos sobre esses mesmos bens”[9].

Seja qual for o entendimento perfilhado quanto à necessidade de dirigir a declaração resolutiva apenas às contrapartes no negócio prejudicial ou ainda aos transmissários a quem a resolução é oponível, o que parece incontroverso é que o terceiro afectado tem legitimidade para impugnar o acto resolutivo, em acção para tanto instaurada nos termos e prazos previstos no art.º 125.º, o que só poderá fazer a contar da data do conhecimento da resolução e seus fundamentos. Com efeito, não nos dizendo embora o preceito a quem é reconhecida legitimidade activa para a impugnação, “Em termos gerais, ela tem de caber a quem é afectado pela resolução; assim, desde logo, à outra parte no acto resolvido, mas também a terceiros a quem a resolução seja oponível”[10].

Todavia, no caso que nos ocupa, e conforme resulta da matéria de facto apurada, à apelante, enquanto titular de boa-fé de direito real de garantia constituído sobre o bem transmitido não era, como se referiu, oponível a resolução. Não obstante, tomou a Sr.ª AI a iniciativa de lhe comunicar, não só que procedera à resolução -no caso até incondicional- do negócio translativo, mas ainda que, dado o decurso do prazo para a propositura da acção de impugnação pelos afectados com a declaração sem que tivesse sido “contestada nos termos do art.º 125.º”, a mesma “transitara em julgado” (cf. ponto 35 da missiva). E mais: tendo por inequívoco escopo opor a resolução assim operada também à agora apelante, comunicou-lhe que poderia impugnar o acto, contando-se naturalmente o prazo para a propositura da pertinente acção da recepção da missiva que com este conteúdo lhe foi enviada.

Acresce que, conforme a Mm.ª juiz fez notar, produzindo a resolução os seus efeitos, nos termos gerais, com o conhecimento pelo destinatário da declaração resolutiva, esta torna-se inatacável decorrido que seja o prazo de impugnação em relação a todos os que tenham legitimidade para instaurar a acção respectiva.

No caso em apreço, aquando da comunicação pela Sr.ª AI, e conforme resulta dos termos da mesma, já haviam decorrido os prazos de impugnação quanto aos intervenientes no acto prejudicial à massa, pelo que os efeitos produzidos pela resolução se encontravam estabilizados, com o consequente e definitivo reingresso do imóvel transmitido na massa insolvente. Daí que a ora recorrente pudesse, ou melhor, devesse, a partir de então, reclamar o seu crédito na insolvência, atento o disposto no citado art.º 47.º, n.º 1, na sua parte final, e n.º 3. Na verdade, enquanto terceira não afectada pelo acto resolutivo, uma vez que não lhe era oponível, parece-nos que não teria até legitimidade para o impugnar, pelo que o seu crédito (que não tem a natureza de subordinado, ao invés do que ocorre, nos termos do art.º 48.º, al. e), com o crédito titulado pelo terceiro de má-fé) se constituiu sobre a massa a partir do momento em que lhe foi dado a conhecer que os efeitos da resolução se haviam tornado definitivos pelo decurso dos prazos de impugnação.

Não obstante quanto vem de se referir constata-se que, algo contraditoriamente -uma vez que, reafirma-se, a resolução lhe não era oponível- veio a Sr.ª AI conceder à apelante a faculdade de, também ela, impugnar o acto, pelo que deverá entender-se que o prazo para a propositura da acção de verificação ulterior do crédito se iniciou no final do prazo de 3 meses a que alude o art.º 125.º (o qual havia já decorrido em relação a todos os afectados).

Pretende a recorrente que, por não ter modo de saber quando é que a resolução se tornou definitiva e inatacável, uma vez que, podendo ser diversos os com ela afectados, o prazo para instauração da acção corre da data do conhecimento de cada um, a acção foi tempestivamente instaurada, elegendo como momento a partir do qual se iniciou a contagem do prazo -de natureza processual, conforme se referiu- o do registo do acto resolutivo, rectior, do cancelamento da inscrição de aquisição a favor do terceiro adquirente e subsequente registo da declaração de insolvência, uma vez que a resolução, se extra judicialmente exercitada, não se encontra sujeita a registo.

Não cremos, porém, que tal argumentação proceda. Com efeito, nos termos do art.º 146.º, n.º 2, al. b) o prazo de 3 meses aqui previsto conta-se da data da constituição do crédito. Ora, este crédito sobre a insolvência constituiu-se quando a Sr.ª AI comunicou à agora apelante a resolução do acto translativo, sem possibilidade de impugnação, por ter decorrido o prazo para a instauração da respectiva acção em relação a todos os afectados. E este prazo, que deste modo se teria iniciado com a comunicação, só foi estendido por três meses mais dada a circunstância da Sr.ª AI ter aparentemente reconhecido legitimidade à recorrente para, também ela, atacar o acto resolutivo, sendo certo que não deixou de afirmar a definitividade da resolução operada, mediante a afirmação -que embora pouco rigorosa, é seguramente impressiva- de que “transitara em julgado”[11]. Foi assim com o conhecimento da estabilização dos efeitos da resolução que nasceu o direito de crédito da autora aqui recorrente sobre a insolvência, que a partir de então poderia/deveria ter instaurado a acção para o seu reconhecimento ulterior nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 47.º, n.º 1 e 146.º, n.º 2, al. b) para o que, para além do mais, foi também notificada (cf. ponto 45 da missiva que pela Sr.ª AI lhe foi enviada).

Acrescenta-se que o registo da declaração de insolvência visa primordialmente a tutela da massa, uma vez que poderão ser eficazes os actos onerosos que, não integrando a previsão do n.º 1 do art.º 121.º, o declarado insolvente, depois da declaração, mas anteriormente ao registo, venha a celebrar com terceiros de boa-fé (cf. art.º 81.º, n.º 6 do CIRE). Reconhecendo-se que por ele fica igualmente conhecida de terceiros a situação do prédio, a verdade é que a recorrente tomou prévio conhecimento com a necessária segurança de que o bem reingressara na massa, efeito que nada depende da realização do registo. Uma vez que é a reintegração na massa que marca a constituição do crédito a que se alude no art.º 146.º, n.º 2, al. b), “in fine”, o prazo para a propositura da acção conta-se do conhecimento do credor.

Resulta do que se deixou exposto que tendo o prazo para a propositura da acção terminado três meses depois da apelante ter deixado decorrer o prazo para a propositura da acção de impugnação -30 de Novembro de 2014, conforme correctamente se considerou na decisão apelada- tendo a acção entrado em juízo cerca de um ano depois, é claramente intempestiva, do que decorre a improcedência do recurso.

III. Decisão

Acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão apelada.

Custas a cargo da apelante.

Coimbra, 25/10/2016

Relator:

Maria Domingas Simões

Adjuntos:

1º - Jaime Ferreira

2º - Jorge Arcanjo


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[1] Afigura-se tratar-se de entendimento largamente maioritário. Cf., a título exemplificativo, arestos da Relação do Porto de 10/4/2014, processo n.º 1218/12.9 TJVNF-P-P1 e da Relação de Lisboa de 28/4/2014, processo 664/10.7 TYLSB-AB L1-7 e de 6/7/2016, processo n.º 1567/13.9 TYLSB6, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

[2] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[3] CIRE Anotado, 2.ª edição, comentário ao art.º 47.º, pág. 306.

[4] Prof. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, II, 4ª ed., pág. 265.

[5] Pedro Romano Martinez, “Da cessação do contrato”, 2.ª edição, pág. 190.

[6] Solução esta que, de resto, e num desvio à regra geral do n.º 2 do art.º 824.º do CC, vem prevista no n.º 5 do art.º 164.º para o caso do bem ter sido dado em garantia de dívida de terceiro ainda não exigível pela qual o insolvente não responda pessoalmente, exceptuadas as situações previstas na parte final da disposição. Parece ser também o entendimento defendido pelo Prof. M Teixeira de Sousa em https://blogippc.blogspot.pt/2015/09/, quando escreve a propósito da “Posição do transmissário posterior na sequência de uma resolução em benefício da massa insolvente”.

[7] Do parecer proferido no P.º RP 202/2008 SJC-CT, in www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2008

[8] Gravato de Morais, “A resolução em benefício da massa insolvente no CIRE”, págs. 150-151. Todavia, em sentido contrário, defendendo a necessidade da comunicação a terceiro, ainda que no caso de resolução incondicional, como forma de lhe opor a resolução, acórdão da Relação de Lisboa de 23/10/2014, processo n.º 5572/10.9TBCSC-G.L1-8, em www.dgsi.pt.

[9] Prof. Gravato de Morais, ob. cit., págs. 174 e 178.

[10] Profs. Carvalho Fernandes e J. Labareda, CIRE anotado, 2.ª edição, comentário ao art.º 125.º, págs. 538/539 e Gravato de Morais, ob. cit., pág. 166.

[11] Não tem assim razão a apelante quando, sem rigor, afirma na conclusão 1.ª, ter a Sr.º AI comunicado “a intenção de proceder à resolução”.