Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
129/22.4T8SCD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ACORDO FIRMADO PELOS PROGENITORES
CLÁUSULA NÃO JUDICIALMENTE HOMOLOGADA
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 12.º; 33.º E 42.º, 4, DO RGPTC
ARTIGOS 986.º, 2 E 987.º, DO CPC
Sumário: I - Nos processos de jurisdição voluntária, máxime nos atinentes à regulação das responsabilidades parentais, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita podendo/devendo atuar, tanto na condução do processo como na prolação da decisão, com prudente liberdade, se tal se revelar necessário para a, efetiva e rápida, defesa dos interesses em causa – artºs 986º e 987º do CPC, aplicáveis ex vi dos artºs 12º e 33º do RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08.09.
II - Destarte, não pode ser liminarmente desatendida a pretensão do pai em ver alterada uma cláusula de acordo firmado pelos progenitores, com chamamento do artº 42º nº4 do RGPTC e com o único argumento de que tal cláusula não se mostra homologada judicialmente, se ela foi implementada e se a alteração previsivelmente se mostra necessária à defesa dos superiores interesses da menor e dos próprios interesses dos pais.
Decisão Texto Integral: Relator:
Carlos Moreira
Adjuntos:
Vítor Amaral
Luís Cravo



ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA, com os sinais dos autos, instaurou contra BB ação de alteração da regulação das responsabilidades parentais relativas à sua filha CC, nascida a .../.../2010.

Alegou, para tanto:

No ano de 2015 foi celebrado acordo acerca do exercício das responsabilidades parentais quanto à CC.

No decurso dos auto de incumprimento (a que estes autos se encontram apensados) o qual foi fundamentado no incumprimento do regime de convívios entre o requerente e a filha, as partes lograram alcançar um acordo em 2022 nos termos do qual a CC passará a frequentar as consultas de psicologia, na clínica e com o psicólogo com quem anteriormente teve consultas.

Entende que a psicóloga não está a fazer um bom desempenho da sua profissão, e uma vez que a sua filha continua a manter-se distante.

Assim, requereu:

Se altere a referida cláusula do mencionado acordo celebrado nos autos de incumprimento e que se proceda à nomeação de nova psicóloga, e que seja designado um médico psiquiátrico para exame especializada ao requerente, à requerida e à CC, a fim de detetar eventuais perturbações de personalidade ou comportamentais que possam estar a interferir com a situação atual de limitado exercício das responsabilidades parentais, particularmente com a impossibilidade prática do cumprimento do acordo celebrado em 2015.

2.

Seguidamente foi proferido o seguinte despacho:

«Nos termos do artigo 42º, número 4, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, junta a alegação ou findo o prazo para a sua apresentação, o juiz, se considerar o pedido infundado ou desnecessária a alteração, manda arquivar o processo, condenando em custas o requerente.

Ora, nos termos do número 1 do citado artigo 42º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, quando o acordo ou a decisão final não sejam cumpridos por ambos os pais ou, ou por terceira pessoa a quem a criança haja sido confiada, ou quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido, qualquer um daqueles ou o Ministério Público podem requerer ao tribunal que no momento for territorialmente competente nova regulação do exercício das responsabilidades parentais.

Como da norma citada resulta, o acordo ou a decisão final de regulação do exercício das responsabilidades parentais pode ser alterado, sendo pressupostos de tal alteração: i. Incumprimento por ambos os pais do acordo ou decisão final; ii. Ocorrência de circunstâncias supervenientes que  justifiquem essa alteração.

No caso destes autos, a regulação das responsabilidades parentais relativas a CC foi definida por acordo celebrado em 2015 pelos seus progenitores.

Acontece que nos autos de incumprimento não foi homologado o acordo cuja cláusula se pretende ser aqui alterada – vide o teor da Ata de conferência realizada a 5 de abril de 2022 da qual resulta que a instância foi declarada extinta por efeito de desistência, não tendo sido proferida qualquer sentença homologatória do acordo que agora se pretende alterar.

Quanto ao demais peticionado, não tem qualquer cabimento legal no âmbito desta Ação, considerando o pedido deduzido…

DECIDINDO

Nestes termos e com tais fundamentos, considerando não existir acordo homologado por sentença para alterar nos termos requeridos, determina-se o arquivamento dos autos.

Custas pelo requerente.»

3.

Inconformado recorreu o requerente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A douta sentença recorrida desvalorizou/ignorou os factos alegados pelo recorrente na sua petição, justificativos do direito a requerer a alteração do exercício das responsabilidades parentais;

2. A douta sentença recorrida ignorou o acordo a que as partes chegaram na audiência de 5 de abril de 2022, antes valorando a desistência da instância que se reportava apenas ao objeto da ação por incumprimento, que o progenitor ora recorrente quis que não prosseguisse por entender que poderia perturbar e tornar mais difícil o funcionamento do regime acordado e, assim, prejudicar a filha de ambos;

3. A douta sentença recorrida não teve em conta tratar-se de um processo de jurisdição voluntária, não extraindo desse facto as inerentes consequências jurídico-processuais;

4. A douta sentença recorrida não fez o que podia e devia ter sido feito, a saber, o convite ao requerente para aperfeiçoar a sua petição, esclarecendo ou completando-a;

5. A douta sentença recorrida, na interpretação e na aplicação que fez do caso concreto, violou as regras dos artigos nºs 590 nº 2 b), 986 e 988, todos do Código de Processo Civil e,

6. Ao decidir que não existiu acordo homologatório, considerou como objeto da alteração apenas o acordo de 5 de abril de 2022, ignorando, mal, no entender do Recorrente, o acordo de 2015.

NESTES TERMOS,

E nos mais que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser julgado procedente por provado o presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e proferido douto Acórdão que julgue a petição apta para o pedido formulado e ordene o prosseguimento dos autos.

Contra alegou o Digno Curador pugnando pelo provimento do recurso, com a seguinte argumentação:

Desde logo, analisada a ata da conferência de pais, datada de 5-04-2022 (autos principais), pese embora seja formalmente correto dizer-se que as cláusulas de alteração à regulação das responsabilidades parentais não foram objeto de sentença homologatória, resulta, a nosso ver, evidente que tal facto resulta, ou de um lapso de omissão de decisão da Meritíssima Juiz, que presidiu a tal conferência, ou mesmo da elaboração da própria ata, pois não se vislumbra desta qualquer razão de discordância do Ministério Público, ou do próprio Tribunal que justificasse a não homologação do acordo.

Ora, para o recorrente e entendemos que, para todos os demais sujeitos processuais, aquela omissão formal jamais impedia a vigência do referido clausulado de alteração à regulação das responsabilidades parentais. Ainda que o entendimento do Tribunal, fosse, como foi, diverso, sempre teria o Tribunal recorrido que considerar que, decidindo em processo de jurisdição voluntária, havia razões para alterar o primitivo acordo de regulação das responsabilidades, em consonância com aquela que havia sido a pretensão dos pais, a quando da conferência do dia 5-04-2022, bem com o que viesse a ser decidido/acordado, por força da alteração, requerida nos presentes autos, o que só poderia ser alcançado pela realização de uma conferência de pais.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é  a seguinte:

Ilegalidade do despacho que ordenou o arquivamento dos autos, devendo estes prosseguir os seus termos.

5.

Apreciando.

Este processo tutelar cível assume o jaez adjetivo de processo de jurisdição voluntária – artº 12º do RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro.

No âmbito destes processos  a amplitude do exercício dos poderes/deveres do julgador vêm definidos no regime adjetivo comum do CPC, aplicável ex vi do artº 33º da aludida lei.

Assim e nos termos do artº 986º nº 2 do CPC  «O tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.».

Ademais e nos termos do Artigo 987.º:  «Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.»

Ora se assim é em geral, por maioria de razão  - argumento a fortiori - o deve ser em sede de regulação do exercício das responsabilidades parentais.

Isto porque o fito primordial e último de tais processos é a prossecução e consecução da defesa dos superiores interesses do menor na mais ampla perspetiva.

Para se atingir este desiderato a lei exime o juiz – livra-o das amarras -  de uma atuação unicamente pautada pelo cumprimento, seco e formal, do procedimento adjetivo estatuído.

Ademais permitindo-lhe que - posto que razoavelmente e sem postergação infundamentada do iter processual previsto -  possa decidir – rectius, no que para o caso vertente releva: conduzir o processo – segundo critérios de oportunidade e conveniência.

A   tendencial  prudente liberdade e a abrangência na atuação e na prolação da decisão  do julgador nos processos de jurisdição voluntária vem resumida no Ac. do STJ de 10.01.2023, p. 1281/19.1T8VCD.P1.S1, in dgsi.pt, a saber:

«I. É admissível nos processos de jurisdição voluntária a decisão mais conveniente e oportuna que o Tribunal entenda dever proferir ainda que não seja aquela decisão que foi pedida, importando, no entanto, que haja uma conexão ao nível da decisão entre o que se decidiu e o que se pediu.

II. Nos processos de jurisdição voluntária não é absoluta a regra do artigo 609 nº1 do CPC tendo sido já admitida (desde há muito) a condenação ultra petitum designadamente no âmbito de processo tutelares cíveis embora essa possibilidade de não restrinja aos que tenham esse objeto.

III. Porque o tribunal nos processos de jurisdição voluntária não está sujeito a critérios de legalidade estrita tal liberdade de ação pode implicar uma condenação qualitativamente diversa justificada por a latitude na indagação e fixação dos factos e a obrigação de uma solução equitativa não pode estar limitada pelo pedido, o qual deve entender-se ser uma indicação.»

In casu.

Como bem alega o Digno Curador, a não abrangência pela sentença homologatória prolatada nos autos de incumprimento do acordo dos pais quanto ao acompanhamento da menor em consultas de psicologia parece ter-se devido a lapsus calami.

Mas tal falta de homologação formal não retira, porque reportado à defesa dos superiores interesses da menor os quais urge defender para além da presença de pressupostos processuais formais,  relevância substantiva ao dito acordo.

Aliás, tão importante ele foi considerado pelos pais e pelo tribunal que ficou a constar, adrede, na ata daquele incidente.

E, ademais, na prática e na vida quotidiana da menor, ele passou a ser  efetivado/implementado.

Acresce que um pedido de alteração pode ser deduzido tanto por reporte  a clausulas anuídas e homologadas, como, inclusive, por motivo de terem surgido circunstâncias supervenientes que, mesmo que não se reportem diretamente a tais cláusulas homologadas, imponham ou  aconselhem tal alteração.

Tanto basta para que, independentemente de homologação, o acordo e a cláusula em causa devam ser considerados e relevados e, assim, também a alegação do pai nestes autos a eles atinente, deva ser considerada e relevada.

Por conseguinte, o segmento normativo invocado na decisão, a saber o nº4 do artº 42º do RGPTC  não tem aqui aplicação/cabimento, pois que o pedido não se revela  liminarmente infundado ou a alteração desnecessária.

Quando muito poderá existir uma desadequação processual formal, pois que os autos de incumprimento consubstanciam um incidente da instância e o pedido de alteração origina, ou pode originar, uma nova ação.

Mas se assim for entendido terá de se proceder à adequação processual formal que for tida por mais certa, que não desatender liminarmente o pedido

Nesta conformidade se atingindo a final conclusão que a decisão recorrida não se mostra a mais adequada e conforme à defesa dos interesses da menor e dos pais, desde logo porque  impede, ou, no mínimo, protela, a apreciação da alteração de uma questão que se vislumbra de claro interesse, e  assim, com necessidade de, no mais curto lapso de tempo e com a maior economia de meios possíveis, ser (re)apreciada.

Procede o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar o despacho recorrido, e ordenar o prosseguimento dos autos com convocação dos pais para a legal conferência.

Custas recursivas pelos progenitores com taxa de justiça mínima.

Coimbra, 2024.01.23.