Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5739/17.9T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
CONFINÂNCIA
ARRENDAMENTO RURAL
DENÚNCIA
ARRENDATÁRIO
CÔNJUGE
Data do Acordão: 12/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1682-B, 1380 CC, DL N.º 384/88, DE 25/10, DL Nº 385/88 DE 25/10, DL Nº 294/2009 DE 13/10
Sumário: 1. A prova da veracidade de documento particular (da letra e da assinatura nele apostas, conteúdo e circunstâncias da sua entrega), pode/deve ser livremente apreciada pelo julgador.

2. Não prevê o art.º 18º do DL n.º 385/88, de 25.10, que o contrato de arrendamento apenas poderá ser validamente denunciado caso nele intervenha o titular do direito de arrendamento acompanhado do seu cônjuge, nem consta da lei qualquer protecção adicional do cônjuge do arrendatário, ainda que casado sob o regime da comunhão geral de bens, para além da possibilidade de transmissão do direito de arrendamento, em caso de morte do titular (art.º 23º), contrariamente ao estabelecido, por exemplo, no art.º 1682º-B do CC, sobre a necessidade do consentimento de ambos os cônjuges se estiver em causa o arrendamento da casa de morada de família.

3. De entre os pressupostos do direito real de preferência atribuído pelo art.º 1380º do CC exige-se que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante e que o prédio do proprietário (confinante) que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura, requisito este afastado pelo n.º 1 do art.º 18º do DL n.º 384/88, de 25.10.

4. Se a demandada (adquirente) era proprietária de um terreno confinante, não existe o pretenso direito de preferência do A..

Decisão Texto Integral:            







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. M (…) viúva, e A (…) e mulher, A (…) instauraram a presente acção declarativa de preferência contra A (…) e mulher, D (…) (1ºs Réus), e J (…) e mulher, I (…) (2ºs Réus), com fundamento na relação de arrendamento rural não extinta e também na contiguidade do “lote 40” com o “lote 41”, pertença dos AA., pedindo:

“a) Ser a A. declarada a legítima e exclusiva arrendatária ou titular do contrato (ou contratos) de arrendamento sobre os prédios rústicos ou lotes 40 e 140 (correspondentes ou com origem nos prédios rústicos inscritos na respectiva matriz sob os artigos 866/metade, 1614/metade, 2058 e 2202) do Perímetro de Emparcelamento Rural da Margem Esquerda - Bloco 16 do Aproveitamento Hidroagrícola do Baixo Mondego, da União das Freguesias de Taveiro, Ameal e Arzila, concelho de Coimbra, devendo os RR. serem condenados a tal reconhecer.

b) Serem os AA. declarados e reconhecidos os legítimos e exclusivos proprietários e possuidores do prédio rústico ou lote 41, sito no mesmo Perímetro de Emparcelamento Rural e Bloco, e que este prédio rústico ou lote confina, a nascente, com o prédio rústico ou lote 40.

c) Ser declarado e reconhecido que a A., enquanto actual arrendatária, tem o direito de preferência na aquisição dos prédios rústicos ou lotes em causa (40 e 140 ou artigos rústicos correspondentes, que lhes deram origem), vendidos pelos 1ºs aos 2ºs Réus, e que, por isso, tem o direito de haver para si tais prédios (ou lotes ou artigos), pelo preço de venda de € 2 720 (ou por este valor acrescido de despesas com a escritura).

d) No caso de assim se não entender, deve ser declarado e reconhecido que os AA., enquanto donos de prédio confinante (lote 41), têm o direito de preferência na aquisição do prédio rústico ou lote 40, e que, por isso, têm o direito de haverem para si tal prédio pelo preço de € 2 409,56 (correspondente à sua proporção no preço (global) da venda) ou por qualquer outro preço, no caso de outro preço se apurar, incluindo a proporção de despesas feitas com a venda, se se considerar no preço também o pagamento de despesas.

e) Ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição dos prédios rústicos ou lotes (ou dos artigos rústicos, nas proporções vendidas, referidas no pedido a), que lhes deram origem) a favor dos 2.ºs Réus ou de qualquer outro registo que a eles respeitem.”

Alegaram, em síntese: são donos e possuidores do lote 41 do Perímetro de Emparcelamento Rural da Margem Esquerda - Bloco 16 do Aproveitamento Hidroagrícola do Baixo Mondego, sito em Prazados, União das Freguesias de Taveiro, Ameal e Arzila, concelho de Coimbra, com a área de 51 570 m2, a confrontar do nascente com o lote 40 do mesmo Perímetro; o lote 40 há mais de 20 ou 30 anos que se encontrava arrendado a A (…), marido da A. M (…) e pai do A. A (…), nas proporções indicadas no art.º 16º da petição inicial (p. i.), por alteração superveniente à descrição em resultado da extinção das anteriores freguesias, após a operação de recomposição predial executada pela DGADR e dando origem aos lotes 40 e 140 do dito Perímetro de Emparcelamento Rural, constituindo dois prédios rústicos com as áreas de 5 786 m2 e 768 m2; o referido contrato perdura até hoje e as rendas foram sempre pagas em dinheiro; após a suspensão dos trabalhos, o A. recebeu, em nome do pai, que se encontrava muito doente, as quantias de € 4 799,05 e € 44 922,24, a título de indemnização pela perda de cultivo dos terrenos (próprios e arrendados, incluindo os aqui em apreço) no ano de 2015, motivada pelas aludidas operações de emparcelamento; descobriram, em Março de 2017, que os Réus tinham inscrito em seu nome a propriedade dos lotes 40 e 140, tendo de imediato enviado cartas informando do óbito do pai do A., informando da transmissibilidade do direito de arrendamento e solicitando a redução a escrito do contrato de arrendamento, pedidos que foram ignorados pelos Réus.

Os 2.ºs Réus contestaram a acção, pugnando pela sua improcedência, alegando, por um lado, que o falecido pai do A. entregou as terras, denunciando o contrato de arrendamento rural verbal anteriormente celebrado, e, por outro, a inadmissibilidade da invocada preferência sobre o lote 40, verificado que os Réus são titulares do direito de propriedade sobre o lote 39, com aquele confinante, assim também preferentes.

Contestaram também os 1.ºs Réus, fazendo seus os articulados dos 2.ºs Réus, sendo que, verificada a incapacidade para receber a citação do 1º Réu, foi a sua mulher nomeada “curador provisório”.

Os AA. responderam à matéria de excepção (e impugnaram os documentos juntos pelos Réus), pugnando pela sua improcedência.

Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

 Os AA. insurgiram-se contra o aperfeiçoamento do “tema da prova n.º 2” e reclamaram e recorreram de despachos intercalares que afirmaram a regularidade da instância, tendo esta Relação (e Secção), por acórdão de 17.3.2020, mantido as decisões intercalares recorridas (cf. apenso A).

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 14.10.2019, julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido.

Inconformados, os AA. interpuseram a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…)

Não houve resposta.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar se existe o apontado erro (de direito) na afirmação da realidade dita em II. 1. 14), supra, e, depois, se ocorrem os pressupostos do invocado direito de preferência (máxime, os factos constitutivos do direito de preferir alegado na p. i., sobre os lotes 40 e 140, através de preferência atribuída pela relação de arrendamento rural, por transmissão por morte do falecido pai do A.[1], ou os factos constitutivos do direito de preferir através da relação de confinância entre os lotes 40 e 41 - contrapondo os Réus a inexistência de contrato de arrendamento sobre as parcelas que integraram os lotes 40 e 140, validamente denunciado pelo pai do A., ou, então, igual direito de preferência sobre o lote 40, por confinância do lote 39).


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1) O lote n.º 41 do Perímetro de Emparcelamento Rural da Margem Esquerda - Bloco 16 do Aproveitamento Hidroagrícola do Baixo Mondego, sito em Prazados, União das Freguesias de Taveiro, Ameal e Arzila, concelho de Coimbra, com a área de 51 570 m2, a confrontar do norte com vala, do sul e poente com caminhos públicos e do nascente com o lote 40 do mesmo Perímetro de Emparcelamento e Bloco 16, omisso na matriz e no Registo Predial, constitui um prédio rústico e resultou, física e juridicamente, de uma operação de recomposição predial executada pela Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (doravante DGADR).

2) Os AA., por si e antepossuidores que legalmente representam, desde há mais de 20 e até 30 anos, vinham cultivando, desde a preparação dos terrenos, até à recolha das produções, conservando e vigiando, os prédios que deram origem ao lote 41 e após a constituição e entrega deste lote ao proprietário, até hoje, continuaram a praticar esses mesmos actos sobre o prédio rústico que o constitui, de forma ininterrupta, à vista de todos, e não a ocultas, sem oposição de pessoa alguma e sem violência, de boa-fé, porquanto sem lesar ou ofender os direitos ou interesses de ninguém, na convicção fundada de que são os legítimos e exclusivos donos e possuidores do lote em questão, por si e antepossuidores que legalmente representam, sempre assim se tendo considerado e sempre assim tendo sido reconhecidos pelos locais e entidades.

3) Há mais de 20 e até 30 anos, A (…), marido da A. M (…)s e pai do A. A (…), tomou de arrendamento, verbalmente, aos 1.ºs Réus, os seguintes prédios rústicos, nas proporções indicadas:

- metade do prédio rústico sito em Entre-Valas, da (extinta) freguesia de Ribeira de Frades, então inscrito na respectiva matriz sob o artigo 588.

- metade do prédio rústico sito em Cabeceiros, da (extinta) freguesia de Taveiro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 167.

- prédio rústico sito em Prazados, da (extinta) freguesia de Taveiro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 320.

- prédio rústico sito em Felícia, da (extinta) freguesia de Taveiro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 391.

4) Os prédios tomados de arrendamento estão hoje inscritos na respectiva matriz sob os artigos 866, 1614, 2058 e 2202, respectivamente, o primeiro, da actual União das Freguesias de S. Martinho do Bispo e Ribeira de Frades, e os restantes da União das freguesias de Taveiro, Ameal e Arzila, concelho de Coimbra, por alteração superveniente à descrição em resultado da extinção das anteriores freguesias e após a operação de recomposição predial executada pela DGADR no âmbito dos DL 384/88 e 103/90, deram origem, física e juridicamente, aos lotes 40 e 140 do Perímetro de Emparcelamento Rural da Margem Esquerda - Bloco 16 do Aproveitamento Hidroagrícola do Baixo Mondego, constituindo dois prédios rústicos com as áreas de 5 786 m2 e 768 m2, sitos em Prazados e Prensinhas, respectivamente, da União das Freguesias de Taveiro, Ameal e Arzila, concelho de Coimbra, omissos na matriz e no registo predial.

5) No dia 26.02.2015, o A (…) (pai) outorgou procuração ao A. A (…) a quem, entre outros poderes conferiu “os poderes especiais para com livre administração, reger e gerir todos os bens móveis e imóveis, dele mandante, receber quaisquer importâncias, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou a vencer, qualquer que seja a sua proveniência, inclusive rendas e indemnizações, podendo passar recibos e passar quitações; / Fazer contratos de arrendamento, contratos de locação, estipulando as cláusulas e condições, aceitar e recusar inquilinos, autorizar sublocações, receber e dar as chaves de imóveis, rescindir contrato, promover despejos e celebrar acordos; / comprar ou prometer comprar, vender ou prometer vender, permutar ou prometer permutar quaisquer bens móveis ou imóveis, ou direitos prediais, podendo assinar e outorgar as necessárias escrituras e contratos de compra e venda ou permuta; / contratar as obras necessárias à segurança e conservação dos imóveis pertencentes ao mandante”.

6) Em 21.8.2015, o A. A (…) declarou aceitar, em nome do pai, a quantia de € 44 922,24, a título de indemnização pela perda de cultivo dos terrenos, no ano de 2015, motivada pelas operações de emparcelamento do Bloco da Margem Esquerda do Aproveitamento Hidroagrícola do Baixo Mondego.

7) Em 30.10.2015, o A. enviou à Ré D(…) uma carta registada c/A.R., que ela recebeu, em que solicitava que lhe fosse dado conhecimento da entrega dos lotes, para poder iniciar o seu cultivo, e assim, dar continuidade ao contrato (ou contratos) celebrados com o pai e em que também a informava sobre quem, doravante, iria pagar as rendas, tendo ainda solicitado que os contratos de arrendamento fossem reduzidos a escrito até 15 de Dezembro seguinte, ficando a marcação ao encargo dela.

8) Em 30.8.2016, faleceu A (…), no estado de casado no regime da comunhão geral com a A. M (…)

9) Em 30.12.2016, o A. A (…) enviou à proprietária/senhoria e Ré D (…) uma carta registada c/A.R., em que lhe deu conhecimento do óbito do pai, remetendo-lhe cópia do respectivo assento e notificou-a de que a mãe vinha por esse meio exercer o direito, conferido por lei, de assumir a titularidade nos contratos de arrendamentos anteriormente celebrados com o pai, em substituição deste, em relação aos prédios/lotes em questão.

10) Em 20.3.2017, os AA. enviaram uma carta registada c/A.R., dirigida aos 1.ºs Réus comunicando que o 2º Réu havia arrancado um marco numa das estremas do lote 40, carta essa que os 1.ºs Réus se recusaram a receber.

11) Em momento não concretamento apurado, após Março de 2017, os 2.ºs Réus lavraram os lotes 40 e 140 com tractores.

12) Em momento não concretamente apurado, em Março de 2017, os AA. tiveram conhecimento que os prédios se encontravam inscritos em nome dos 2.º Réus.

13) No dia 28.4.2016, por escritura pública de compra e venda, os 1.ºs Réus declararam vender aos 2.ºs Réus e estes declararam comprar, pelo preço global de € 2 720, os prédios rústicos que deram origem, física e juridicamente, aos lotes 40 e 140 do Perímetro de Emparcelamento da Margem Esquerda - Bloco 16.

14) Em momento não concretamente apurado, nos meses de Novembro-Dezembro de 2014 o falecido A (…) contactou pessoalmente os senhorios, ou familiares na sua ausência, a quem entregou uma carta com o valor da renda daquele ano, em envelope onde deixou escrito pelo seu punho “a terra fica entregue”, e “a terra está entregue” e a quem declarou não pretender continuar a tratar dos prédios, por se encontrar cansado e doente.

15) O lote 39 confronta com o lote 40, que por sua vez confronta com o lote 41.

16) No dia 15.02.2015, pelas 10 horas, no Perímetro de Emparcelamento da Margem Esquerda - Bloco 16, do Aproveitamento Hidroagrícola do Baixo Mondego, compareceu a Ré I (…), na qualidade de proprietária, que tomou conhecimento da localização da área do lote que lhe foi atribuído, identificados como lotes 39 (com 30 186m2 de área), 64, 93 e 133 do Perímetro de Emparcelamento Rural da Margem Esquerda, sita na União de Freguesias de Arzila, Ameal e Taveiro, do Concelho de Coimbra.

17) A presente acção foi instaurada no dia 20.7.2017.

            2. E deu como não provado:

a) Que o falecido A (…), tenha suspendido o cultivo dos seus terrenos (próprios e arrendados) no final de 2014, disso tendo dado conhecimento, no caso dos arrendados, aos senhorios.

b) Que o valor da renda fosse de € 20 a aguilhada (correspondendo a 540 m2).

c) Que o A. tenha recebido em nome do pai a quantia de € 4 799,05, a título de indemnização pela perda de cultivo dos terrenos, no ano de 2015, motivada pelas operações de emparcelamento do Bloco da Margem Esquerda do Aproveitamento Hidroagrícola do Baixo Mondego.

d) Que o A. tenha recebido em nome do pai a quantia de € 44 922,24, a título de indemnização pela perda de cultivo dos terrenos próprios e arrendados, incluindo os aqui em apreço, no ano de 2015, motivada pelas operações de emparcelamento do Bloco da Margem Esquerda do Aproveitamento Hidroagrícola do Baixo Mondego.

e) Que em Março de 2017 os 2.ºs Réus[2] tenham desfeito os trabalhos preparatórios que o A. e a mãe tinham efectuado para cultivar os lotes 40 e 140.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Diz o A./recorrente, no exórdio da fundamentação da alegação de recurso, que o recurso fica “limitado à matéria de direito”, sendo pois evidente que não impugna a decisão sobre a matéria de facto e não observa o ónus previsto no art.º 640º do CPC.

No entanto, baseado no expendido na sua resposta de fls. 76 verso (art.ºs 23º e 24º), o recorrente questiona o ter sido dada como provada a factualidade dita em II. 1. 14), supra, porquanto, incumbindo aos Réus, que alegaram o facto e juntaram o documento particular de fls. 73 verso e seguinte, “fazer a prova do facto e da veracidade do documento (sublinhado nosso), nos termos dos arts. 342º, n.º 1 e 374º, n.º 2, do CC, a fim de se saber se o referido documento foi ou não escrito pelo pai do A. e a que terra se refere, sob pena de não produzir prova quanto às declarações atribuídas ao seu autor, conforme o disposto no art.º 376º, n.º 1, do CC[3], o certo é que - remata o A./recorrente -, “compulsada a longa motivação da sentença, quanto à matéria do ponto em questão, não se vislumbra que as testemunhas a quem foi atribuída credibilidade, apesar do seu manifesto interesse na decisão do processo, tenham sido confrontadas com o doc., para lhe dar força probatória”, concluindo, ainda, que “o ponto 14) dos factos provados, não foi devidamente fundamentado, e a sua fundamentação viola o disposto nas referidas normas do CC” (cf., ainda, as “conclusões 2ª a 5ª”, ponto I., supra).

            Ora, tratando-se de uma porventura discutível forma de impugnar - pois não se vê clara, concreta e especificadamente impugnada a decisão sobre a matéria de facto e a respectiva fundamentação -, dir-se-á, por um lado, que, ao elaborar o documento em causa, o falecido pai do A./recorrente, naturalmente, quis aludir às quatro parcelas da “terra” arrendada [cf. o art.º 16º da p. i.; II. 1. 3), supra e as cadernetas prediais rústicas reproduzidas a fls. 18 verso a 20, donde resulta uma área global de 7656 m2], e, por outro lado, que os Réus não deixaram de fazer a prova da veracidade de tal documento (da autoria - da letra e da assinatura nele apostas -, conteúdo e circunstâncias da sua entrega aos 1ºs Réus), podendo/devendo ser “livremente apreciado pelo julgador[4].

            Assim, cremos que nada se poderá objectar à matéria dada como provada em II. 1. 14), supra, e bem assim ao caminho probatório que lhe subjaz e à fundamentação apresentada pela Mm.ª Juíza a quo[5].

            4. Nenhuma dúvida se suscita quanto à titularidade do direito de propriedade sobre os diversos prédios (ou lotes) mencionados em II. 1., supra, sendo que constitui questão prejudicial, numa acção em que se discuta o direito de preferência de proprietários confinantes, a prova da titularidade do direito de propriedade dos prédios descritos e a sua confinância (cf. art.º 1380º do CC).

Na verdade, assim ficou demonstrado quer quanto aos lotes n.º 39 e 41, inexistindo qualquer facto impeditivo da presunção da titularidade do direito de propriedade (cf. II. 1. 1), 2) e 16), supra), quer em relação aos prédios sob disputa (agora, lotes n.º 40 e 140), registados a favor da Ré Isabel, que os adquiriu aos 1.ºs Réus, anteriores proprietários, posteriormente às descritas operações de emparcelamento (cf., ainda, II. 1. 13), supra).

5. Ficou provado que sobre os prédios que hoje compõem os “lotes 40 e 140”, o pai do A. celebrou contrato de arrendamento rural com os 1.ºs Réus, vigente durante mais de 20 anos, mas menos de 30, sem respeito pela forma legal.

Enquanto que o A. alega a vigência desse contrato, os Réus contrapõem que o contrato se extinguiu na sequência de denúncia por parte do falecido pai do A. (arrendatário)[6] consubstanciada no comportamento declarativo referido em II. 1. 14), supra, e “suas circunstâncias”.

Tratando-se de problemática não isenta de dificuldades, afigura-se que o decidido em 1ª instância é conforme com a factualidade apurada e o regime jurídico aplicável.

6. O pai do A. fez cessar tal relação contratual, exprimindo, então, de forma inequívoca, na qualidade de arrendatário e, certamente, enquanto cônjuge-administrador (e, ao que tudo indica, no interesse do casal), a vontade de se liberar da relação de arrendamento.

E não prevê o art.º 18º do DL n.º 385/88, de 25.10[7] [aqui aplicável - cf. II. 1. 3), supra, e os art.ºs 39º, 43º, alínea a) e 44º do DL 294/2009, de 13.10], que o contrato de arrendamento apenas poderá ser validamente denunciado caso nele intervenha o titular do direito de arrendamento acompanhado do seu cônjuge, nem consta da lei (especial) qualquer protecção adicional do cônjuge do arrendatário, ainda que casado sob o regime da comunhão geral de bens [como sucede no caso em análise - cf. II. 1. 8), supra, e os art.ºs 1732º e 1733º do CC] para além da possibilidade de transmissão do direito de arrendamento, em caso de morte do titular (art.º 23º do mesmo regime legal), contrariamente ao estabelecido, por exemplo, no art.º 1682º-B do CC, sobre a necessidade do consentimento de ambos os cônjuges se estiver em causa o arrendamento da casa de morada de família[8].

Daí que se conclua - como na 1ª instância - que a lei não protege o direito do cônjuge do arrendatário, em contratos de natureza rural, com a amplitude invocada pelo A., impondo-se declarar extinta a relação de arrendamento rural sobre os prédios que na sequência das referidas operações de emparcelamento vieram a dar origem aos “lotes n.ºs 40 e 140”.[9]

Extinta a relação de arrendamento, falta o principal requisito do direito de preferência previsto no art.º 28º do DL n.º DL n.º 385/88, de 25.10, com a consequente improcedência da acção no que respeita ao “lote n.º 140”.

            7. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante (art.º 1380º, n.º 1 do CC).

Contudo, nos termos do n.º 1 do art.º 18º do DL n.º 384/88, de 25.10 [diploma que estabeleceu o novo regime de emparcelamento rural], “os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no art.º 1380º do Código Civil, ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura”.

            O direito real de preferência constitui a figura mais importante dos direitos reais de aquisição, conferido ao respectivo titular o poder de adquirir sobre determinada coisa, quando ocorrem certos pressupostos, um direito real de gozo (direito de propriedade).

            As normas que criam um direito de preferência e estabelecem o respectivo regime revestem natureza imperativa.[10]

            8. De entre os pressupostos do direito real de preferência atribuído pelo art.º 1380º do CC exige-se que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante e que o prédio do proprietário (confinante) que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura[11], pressupostos cuja verificação deverá reportar-se à data da alienação[12] e sendo que o referido normativo do DL n.º 384/88, de 25.10, prescinde deste segundo requisito.

 No caso em análise, a 2ª Ré (adquirente) era proprietária de um terreno confinante [cf. II. 1. 13), 15) e 16), supra] e o prédio rústico do A. tinha área superior à unidade de cultura da região [cf. II. 1. 1), supra e art.º 1º da Portaria n.º 202/70, de 21.4, nos termos do qual a área de unidade de cultura fixada para a zona em análise é/era de 2 hectares (20 000 m2) para os terrenos de regadio arvenses e os terrenos de sequeiro e de 0,50 (5 000 m2) para os terrenos de regadio hortícolas].[13]

Por conseguinte, também por aqui se conclui pela improcedência da pretensão deduzida em juízo - o prédio rústico alienado (“lote n.º 40”) não podia ser objecto da preferência regulada por qualquer dos referidos normativos, sendo que a situação dos autos deverá ser vista à luz do regime jurídico instituído pelo DL n.º 384/88, de 25.10, no âmbito do qual foram realizadas as operações de emparcelamento/“recomposição predial” documentadas nos autos [cf., v. g., documentos reproduzidos a fls. 14 e 69 verso; II. 1. 4) e 16), supra e os art.ºs 62º, 64º e 65º da Lei 111/2015, de 27.8].[14]

            9. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

III. Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida, com fundamentação parcialmente diversa.  

Custas pelo A./apelante.


*

14.12.2020

Fonte Ramos ( Relator)

Alberto Ruço

Vítor Amaral





[1] Por sentença de 22.01.2020, transitada em julgado, foi o A. A (…)declarado habilitado como sucessor da A. M (…), falecida em 30.6.2019.
[2] Rectificou-se lapso manifesto (cf. o art.º 44º da p. i.).
[3] Rezam os referidos normativos:
   A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras (art.º 374º, n.º 1 do CC). Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade (n.º 2).
   O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (art.º 376º, n.º 1 do CC).

[4] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 14.02.2017-processo 2294/12.0TVLSB.L1.S1, publicado no “site” da dgsi.

   Vide ainda, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 329.
[5] Que, com sublinhado nosso, aqui se reproduz:

«O tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade julgada provada no teor dos documentos juntos aos autos, conjugados e apreciados criticamente com o teor das declarações das partes e das testemunhas, nos termos que ´infra` se passam a expor./ (…)/ Relevaram-se também os seguintes documentos, com as ressalvas expostas ´infra`:/ (…)/ - cópia simples de envelope contendo escrito à mão “a terra fica entregue”, “a terra está entregue”, de fls. 73v-74;/ Com efeito, digladiam-se nos presentes autos duas versões antagónicas relativas à interpretação do acto de entrega das terras pelo falecido A (…) Do lado dos autores, através da alegação expendida nos articulados e nas testemunhas que arrolaram, pretendem que seja julgado provado que as terras foram entregues a título provisório, sem que a relação de arrendamento rural, de longa data e não vertida por escrito tivesse alguma vez cessado por vontade do falecido arrendatário, A (…) - pai. Do lado dos réus defende-se tese oposta, que o falecido arrendatário cansado e desgostoso, no final da vida, deslocou-se a casa dos 1ºs réus, como fazia todos os anos, pessoalmente, para entregar os envelopes com as rendas em mão, no final do ano de 2014 e como fez em relação a todos os demais senhorios e entregou, para além da renda relativa ao ano transacto, a declaração de não pretender continuar a agricultar as terras./ Em face da apresentação de duas versões opostas, teve o Tribunal em consideração os depoimentos das testemunhas (…), que relataram de forma essencialmente concordante como o A (…), pai, em finais do ano de 2014 percorreu as casas dos vizinhos e senhorios, entregando o dinheiro das rendas, em envelope, como sempre tinha feito, mas desta vez deixando escrito nos envelopes, escrito na sua letra e pelo seu punho quea terra fica entregue” (sic), “a terra está entregue” (sic), dizendo que já não tinha saúde para amanhar as terras./ Esta versão dos factos não foi contraditada pela testemunha (…) (…), de 59 anos, que acompanhava o falecido A (…), arrolado pelos autores, o qual prestou depoimento de forma contrita, algumas vezes conclusiva e comprometida, esclarecendo que acompanhou o falecido A (…), que tanto o viu a entregar dinheiro em mão como dentro de envelopes, relatando que sabia que se tratava do dinheiro das rendas. Relatou igualmente “que não houve qualquer entrega” e que não ouviu qualquer troca de palavras. Também esclareceu a testemunha que nem sempre se encontrava mesmo ao lado do falecido A (…), que nalgumas casas se deslocaram a pé e noutras numa carrinha, que era a testemunha a conduzir, pelo que, em rigor, podiam ter sido trocadas palavras breves que a testemunha não teria ouvido./ Deste modo, apesar das referidas testemunhas terem elas próprias processos em tribunal em que são parte ou familiares de parte, contra os autores, não têm qualquer interesse no resultado desta demanda e o por si relatado, usando expressões adequadas à idade, instrução e género, demonstram de forma inequívoca e coerente a versão apresentada pelos réus: de o falecido A (…) no final da vida, pretendeu entregar as terras que tinha arrendadas./ Acresce aos relatos das testemunhas as declarações de parte de (…), os quais relataram terem-se encontrado muitas vezes com o A (…), pai, no barracão perto de uma das propriedades que lhe pertencia, e de o terem ouvido relatar os desentendimentos que teria com o filho, de como não pretendia continuar a explorar as terras que tinham em arrendamento e que quando morresse o filho tinha terra suficiente, das por ele detidas como proprietário para agricultar, se quisesse. Esclarecedor é também o facto de as rendas não terem sido entregues ou depositadas, nem os autores terem logrado produzir prova sobre o concreto valor que seria pago todos os anos: um escrito no qual o A (…), pai, tivesse deixado uma orientação para o filho saber que terrenos tinham sido tomados de arrendamento, que valor pagavam de renda ou qualquer outro elemento demonstrativo da vontade hipotética do A (…), pai./ A procuração forense outorgada pelo A (…), pai, ao filho, não tem a virtualidade de demonstrar que, por sua livre e espontânea vontade, não tenha entregue as terras, declarando entregá-las definitivamente, como o fez aquando as visitas para o pagamento das rendas, uma vez que a procuração apesar de muito extensa e pormenorizada, em parte alguma refere os prédios tomados de arrendamento./ Assim, em face do supra expendido, impôs-se julgar os factos descritos em 14) como provados. (…)»
[6] À data, com idade não inferior a 75 anos e tendo a esposa idade próxima daquele - cf., v. g., os documentos de fls. 35 verso e 214 verso.

[7] Diploma que estabeleceu o “novo regime de arrendamento rural”, dispondo o referido art.º: «Os contratos de arrendamento a que se refere este diploma consideram-se sucessiva e automaticamente renovados se não forem denunciados nos termos seguintes: a) O arrendatário deve avisar o senhorio, mediante comunicação escrita, com a antecedência mínima de um ano, relativamente ao termo do prazo ou da sua renovação, ou de seis meses, se se tratar de arrendamento a agricultor autónomo; (…) (n.º 1). A denúncia do contrato de arrendamento inclui obrigatoriamente todo o seu objecto (n.º 2).»

[8] Que estabelece o seguinte: “Relativamente à casa de morada de família, carecem do consentimento de ambos os cônjuges: a) A resolução, a oposição à renovação ou a denúncia do contrato de arrendamento pelo arrendatário; b) A revogação do arrendamento por mútuo consentimento; c) A cessão da posição de arrendatário; d) O subarrendamento ou o empréstimo, total ou parcial.”

   Vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. IV, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 306.

[9] E, cremos, outro não deverá ser o entendimento, mesmo que se considere os contratos de arrendamento rural comunicáveis ao outro cônjuge (não contraente), porquanto inseridos no domínio dos bens comuns do casal - cf. o acórdão da RE de 30.4.1987, in CJ, XII, 2, 309.

   Relativamente à problemática da denúncia, sobretudo, por banda do senhorio, cf., de entre vários, os acórdãos da RP de 10.11.1992-processo 9240658 [assim sumariado: «I - O direito ao arrendamento rural é comunicável ao cônjuge do arrendatário, no regime de comunhão geral de bens. II - O arrendatário rural, casado nesse regime de bens, tem legitimidade para, desacompanhado do seu cônjuge, intentar uma acção contra o senhorio para obstar à efectivação da denúncia do contrato.»], da RL de 12.10.1995-processo 0006236 [com o sumário: “A acção de denúncia de contrato de arrendamento rural deve ser proposta, sempre e apenas, contra o cônjuge arrendatário.”] e da RG de 09.7.2015-processo 2528/10.5TBBCL.G1 [tendo-se concluído, numa situação de arrendamento rural em que ficou  demonstrado que dos prédios arrendados fazia parte integrante a casa de morada de família: «I - O direito ao arrendamento rural, representando um bem patrimonial, comunica-se ao cônjuge do arrendatário, no regime da comunhão (geral ou de adquiridos) de bens. II - Assim sendo, estando-se perante um bem comum do casal, além do Réu, arrendatário, também o seu cônjuge, terá imperativamente que ter avisado da denúncia pretendida pelos senhorios, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 18º do RAR, por forma a também lhe possibilitar a dedução de oposição à denúncia, de acordo com o preceituado no art.º 19º do mesmo regime, mediante a instauração de acção judicial para prova de que o despejo põe em risco sério a sua subsistência económica e do seu agregado familiar.»], publicados no “site” da dgsi.

   Diga-se, ainda, que a comunicabilidade do direito ao arrendamento para habitação está hoje consagrada no art.º 1068º do Código Civil (redacção da Lei n.º 6/2006, de 27.02).
[10] Neste sentido, entre outros, M. Henrique Mesquita, RLJ, 126º, pág. 63.
[11] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 270, salientando que “pelo Código só gozam deste direito os ´proprietários de área inferior à unidade de cultura`. Trata-se, como se diz no texto legal, de um direito ´recíproco` entre proprietários de terrenos confinantes, com áreas que não atingem essa unidade”.
[12] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cit., pág. 271.

[13] A Portaria n.º 219/2016, de 09.8 - que revogou a Portaria n.º 202/70, de 21.4 -, entrou em vigor no dia 10.8.2016, data posterior à da escritura de compra e venda (28.4.2016).
[14] Antolha-se, pois, desnecessário saber se e em que medida teríamos uma diferente solução se fosse de aplicar o preceituado no art.º 21º, n.º 1 da Lei 111/2015, de 27.8 (que revogou o DL n.º 384/88, de 25.10) e que estabelece o seguinte: “Os proprietários de parcelas e prédios rústicos abrangidos pelo projecto de emparcelamento gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de transmissão a título oneroso de qualquer das parcelas ou prédios rústicos aí inscritos (…). E o n.º 3: “Ao exercício do direito de preferência é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime previsto no Código Civil para os pactos de preferência.”