Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
282/11.2TTCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE LOUREIRO
Descritores: ESTADO DE NECESSIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
LEGISLAÇÃO DE TRABALHO
Data do Acordão: 01/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 34º E 35º, Nº 1 DO CÓDIGO PENAL; 264º/3/4 E 554º/4/B DO C. TRABALHO DE 2009.
Sumário: I – O estado de necessidade pode revestir a natureza de um verdadeiro direito de necessidade (artº 34º do C. Penal), sendo então uma causa de exclusão da ilicitude, ou de estado de necessidade desculpante (artº 35º C. Penal), caso em que constitui uma causa de exclusão ou de diminuição da culpa.

II – A norma do artº 35º, nº 1 do C. Penal reporta-se unicamente à defesa de bens jurídicos eminentemente pessoais, do agente ou de terceiro, e exige que o perigo que ameaça bens dessa natureza seja actual, que a conduta adoptada pelo agente seja o único modo de o remover, e que, segundo as circunstâncias do caso, não seja razoável exigir-lhe comportamento diferente.

III – O princípio da proporcionalidade está consagrado no artº 18º/2 da Constituição, o qual se analisa em três subprincípios: necessidade (ou exigibilidade), adequação e racionalidade (ou proporcionalidade em sentido restrito).

IV – O Tribunal Constitucional tem entendido que, gozando o legislador ordinário de uma ampla liberdade na definição de crimes e na fixação de penas, apenas é de considerar violado o princípio de proporcionalidade, consagrado no artº 18º/2 da Constituição, em casos de inquestionável e evidente excesso.

V – Não deve ser considerada como inconstitucional a coima abstractamente estabelecida para a contra-ordenação p. e p. nos artºs 264º/3/4 e 554º/4/b do C. Trabalho de 2009.

Decisão Texto Integral: I) Relatório

A AUTORIDADE PARA AS CONDIÇÕES DO TRABALHO, Unidade Local da Covilhã, condenou a recorrente SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE A..., com sede na rua ..., na coima de 3.270,00 pela prática da contra-ordenação muito grave negligente prevista e punível pelos arts. 264º/3/4 e 554º/4/b do CT/09.


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Inconformada, deduziu a arguida impugnação judicial, tendo a decisão da entidade recorrida sido integralmente confirmada pelo Tribunal do Trabalho da Covilhã (fls. 280 a 284).

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Mais uma vez inconformada, recorreu a arguida para esta Relação, pugnando pela revogação da sentença e pela sua absolvição da contra-ordenação pela qual foi condenada; a não entender-se assim, deveria a recorrente ser sancionada com uma simples admoestação; a não se entender assim, deveria ser reduzido a metade o limite mínimo da coima aplicável, pois que está em causa uma actuação da recorrente meramente negligente.

Apresentou as seguintes conclusões:

1- O pagamento não atempado do subsídio de férias, deveu-se ao facto de a Instituição estar a atravessar uma fase difícil a nível económico e financeiro.

2- Por este motivo, a Instituição agiu ao abrigo de um estado de necessidade desculpante, previsto no artigo 35º do Código Penal, pelo que inexiste qualquer culpa, devendo assim ser absolvida.

3- Deve respeitar-se o princípio da proporcionalidade.

4- No caso tal principio não foi respeitado pelo legislador, ao estabelecer quantias demasiado elevadas, mais ainda quando aplicadas ao caso concreto, pelo que deve considerar-se inconstitucional a norma do artigo 554º, nº4, al.b) do Código do Trabalho, por violação do princípio da proporcionalidade.

5- Uma pena de admoestação seria suficiente e adequada ao caso, e caso esta não fosse possível reduzir a metade o limite mínimo aplicável, uma vez que a actuação da recorrente foi quanto muito negligente.”.


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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando pela integral improcedência do recurso e manutenção do julgado.

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Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público entende que o recurso não merece provimento.

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Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir.

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II) Questões a decidir

São as seguintes as questões a decidir no âmbito deste recurso:

1ª) se a culpa da recorrente deve ter-se por excluída pelo facto de ter actuado em situação de estado de necessidade desculpante;

2ª) se a norma (art. 554º/4/b do CT/09) que prevê a medida abstracta da coima correspondente à contra-ordenação pela qual a recorrente foi condenada é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade;

3ª) se a recorrente deve ser sancionada apenas com uma admoestação;

4ª) se o limite mínimo da coima aplicável deve ser reduzido a metade pelo facto da actuação da recorrente ter sido meramente negligente.


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III) Fundamentação


A) De facto.
[…]


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B) De direito

Atento o disposto no art. 75º/1 do RGCO (DL 433/82, de 27/10, na redacção em vigor), os poderes de cognição deste tribunal abrangem apenas a matéria de direito.

Primeira questão: se a culpa da recorrente deve ter-se por excluída pelo facto de ter actuado em situação de estado de necessidade desculpante.

A única causa de exclusão da culpa invocada nas alegações de recurso é a do estado de necessidade desculpante previsto no art. 35 CP, aqui aplicável ex vi do art. 32º do RGCO, sendo que, por isso, apenas nos referiremos a ela.

O estado de necessidade pode revestir a natureza de um verdadeiro direito de necessidade (art. 34º do CP), sendo então uma causa de exclusão da ilicitude, ou de estado de necessidade desculpante (art. 35º do CP), caso em que constitui uma causa de exclusão ou de diminuição da culpa.

De acordo com o nº 1 do artigo 35º do CP, “Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

Esta norma reporta-se unicamente à defesa de bens jurídicos eminentemente pessoais, do agente ou de terceiro, e exige que o perigo que ameaça bens dessa natureza seja actual, que a conduta adoptada pelo agente seja o único modo de o remover, e que, segundo as circunstâncias do caso, não seja razoável exigir-lhe comportamento diferente.

Ora, face aos factos dados como provados e desconhecendo-se que concreta utilização foi dada aos montantes necessários para serem pagos os subsídios em dívida, é impossível afirmar-se que a conduta ilícita da recorrente, materializada no não pagamento dos subsídios em questão, se destinou a  remover um perigo actual e não removível de outro modo, que ameaçava a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade de quem quer que fosse.

De resto, conforme ensinava Cavaleiro Ferreira “…a desculpabilidade terá lugar quando não seja razoável exigir dele (agente), segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente…” (in Lições de Direito Penal I, Editorial Verbo, Lisboa, 1987, pág.167).

Para tanto dever-se-á ponderar, em concreto, o valor determinante do motivo que animou o agente, o fim subjectivo pretendido e o seu estado emotivo em contraposição com o desvalor objectivo do ilícito praticado.

Ora, os factos provados não permitem, manifestamente, determinar-se e ponderar-se o motivo que animou a recorrente quando decidiu não pagar os subsídios e quando executou essa decisão, o fim subjectivo assim prosseguido, em consequência do que não é possível fazer-se a contraposição a que aludia aquele ilustre professor.

Consequentemente, não tem aplicação o nº 1 do artigo em análise.

Nos termos do nº 2 do mesmo preceito “Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.”.

Ou seja, a defesa de bens ou interesses jurídicos que não os indicados no nº 1 do art. 35º citado, ainda que verificados os requisitos exigidos por esta norma, não afasta a culpa do agente, mas apenas a mitiga, constituindo mera circunstância passível de atenuar especialmente a pena ou, em casos excepcionais, fundamento para que esta seja dispensada.

Ora, não se conhecendo a concreta utilização que foi dada aos montantes necessários para serem pagos os subsídios em dívida e desconhecendo-se, mesmo, se a recorrente estava realmente incapacitada de pagar tais subsídios ou se apenas estava em causa uma situação de grande dificuldade em pagá-los, é impossível afirmar-se que a conduta ilícita da recorrente em análise se destinou a remover um perigo actual que ameaçava interesses jurídicos de quem quer que fosse.

Além disso, os factos provados também não permitem sustentar que a recorrente não tivesse ao seu alcance outras vias (v.g. o recurso ao crédito, o deferimento do pagamento de outros encargos …) para conseguir a remoção do perigo que se terá pretendido remover com a utilização dos montantes necessários para pagamento dos subsídios com finalidades distintas dessa.

Logo, não pode sequer afirmar-se que esse outro perigo não podia ser removido de outro modo.

Em conclusão, não há lugar ao afastamento da culpa da recorrente por, desde logo, não estarem em causa bens jurídicos eminentemente pessoais, e também não há lugar à dispensa da pena nem à sua atenuação especial por não se mostrarem preenchidos os requisitos de que também o nº 2 do art. 35º as faz depender.


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Segunda questão: se a norma (art. 554º/4/b do CT/09) que prevê a medida abstracta da coima correspondente à contra-ordenação pela qual a recorrente foi condenada é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade.

A recorrente funda o seu juízo de inconstitucionalidade numa alegada violação do princípio da proporcionalidade.

Esse princípio está consagrado no art. 18º/ 2, da CRP, o qual se analisa em três subprincípios: necessidade (ou exigibilidade), adequação e racionalidade (ou proporcionalidade em sentido restrito).

Como vem sendo entendido, a necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido e de uma circunstância que imponha intervenção ou decisão.

A adequação significa que a providência se mostra adequada ao objectivo almejado, se destina ao fim da norma e não a outro.

A racionalidade implica justa medida; que o órgão competente proceda a uma correcta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos), que a providência não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido.

A falta de necessidade ou de adequação traduz-se em arbítrio. A falta de racionalidade traduz-se em excesso – cfr. Jorge Miranda/Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 148-163, Gomes Canotilho/Vital Moreira, CRP Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, p. 144-154, Santiago Mir Puig, O princípio da proporcionalidade enquanto fundamento constitucional de limites materiais do Direito Penal, publicado na RPCC, Ano 19, nº 1, Janeiro-Março 2009, Coimbra Editora, p. 7-38.

O Tribunal Constitucional tem entendido que, gozando o legislador ordinário de uma ampla liberdade na definição de crimes e na fixação de penas, apenas sendo de considerar violado o princípio de proporcionalidade, consagrado no artigo 18º/2 da Constituição, em casos de inquestionável e evidente excesso, essa liberdade ainda será mais ampla, quando não se está perante matéria criminal, mas apenas de mera ordenação social.

No seu acórdão nº 132/2011, disponível em www.tribunalconstitucional.pt., o Tribunal Constitucional referiu o seguinte:

“[…] Como tem este Tribunal entendido, a fixação da dosimetria sancionatória, maxime, em sede contra-ordenacional, encontra-se no âmbito de um amplo espaço de conformação do legislador, só devendo ser censuradas “as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, pois tal proíbe o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição” (cfr. Acórdão n.º 574/95, disponível no mesmo sítio da internet).

Tal asserção é sobretudo significativa no domínio do ilícito de mera ordenação social, porquanto – pode ler-se no mesmo aresto – “as sanções não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais – para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social”.

Como se refere no acórdão n.º 67/2011:
“(…) o legislador ordinário goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das coimas aplicáveis, desde que respeitados os limites fixados pelo regime geral do ilícito contra-ordenacional e que as sanções aplicadas sejam “efectivas”, “proporcionadas” e “dissuasoras”, de modo a garantir o efeito preventivo daquelas, sob pena de os destinatários das normas não se sentirem compelidos a cumpri-las (com efeito, a fixação de coimas com montantes irrisórios face ao benefício colhido da prática do ilícito contra-ordenacional tende a enfraquecer o próprio cumprimento da lei; assim, ver Paulo Otero / Fernanda Palma, Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social, in «RFDUL» (Separata), 1996, n.º 2, pp. 562 e 563).

Neste sentido, o Tribunal Constitucional tem reconhecido ao legislador ordinário uma livre margem de decisão quanto à fixação legal dos montantes das coimas a aplicar (ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95 e n.º 547/00, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade ou de excessiva amplitude entre os limites mínimo e máximo.
(…)
Na linha da jurisprudência consolidada neste Tribunal, a propósito da fixação dos montantes das coimas a aplicar (a título de exemplo, ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95 e n.º 547/2000, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o Tribunal Constitucional deve coibir-se de interferir directamente nesse espaço de livre conformação legislativa, apenas lhe cabendo – sempre que necessário – acautelar que tais opções legislativas não ferem, de modo flagrante e manifesto, o princípio da proporcionalidade. A este propósito, deve sempre ter-se presente que “Só um método interpretativo rigoroso e controlado limita a invasão pelos tribunais constitucionais da esfera legislativa e impede a actividade judicativa de se tornar um «contra-poder legislativo»” (Fernanda Palma, O legislador negativo e o intérprete da Constituição, in «O Direito», 140º (2008), III, 523)”.

Ora, no caso em apreço, está em causa uma contra-ordenação que o próprio legislador configurou de muito grave.

Por outro lado, está em causa um relevante interesse jurídico dos trabalhadores que pretende proteger-se com a incriminação, qual seja o do recebimento tempestivo das retribuições devidas por causa do regime jurídico do trabalho subordinado.

Neste enquadramento, não vislumbramos que a coima abstractamente estabelecida para a contra-ordenação cometida pela recorrente revele a flagrante desproporcionalidade ou a excessiva amplitude entre os limites mínimo e máximo que justifiquem um juízo de inconstitucionalidade.

Como assim, não se vislumbra que a norma em causa seja inconstitucional.


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Terceira questão: se a recorrente deve ser sancionada apenas com uma admoestação.

Tratando-se de uma contra-ordenação que o próprio legislador qualificou de muito grave e tendo em conta que o não pagamento do subsídio de férias se registava em relação à maioria dos trabalhadores da recorrente, não tinha a autoridade e o tribunal recorridos, nem este tribunal tem, sequer, a possibilidade de equacionar a aplicação da medida de admoestação que só pode aplicar-se em situações de reduzida gravidade (art. 51º do RGCO).


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Quarta questão: se o limite mínimo da coima aplicável deve ser reduzido a metade pelo facto da actuação da recorrente ter sido meramente negligente.

A resposta a esta questão tem de ser negativa.

O facto de estar em causa uma infracção de carácter negligente não permite que se reduza o limite mínimo da moldura abstracta da coima a metade.

Não existe, que conheçamos, dispositivo legal que consagre essa possibilidade, sendo que a recorrente também não invoca qualquer dispositivo nesse sentido.

A circunstância de estar em consideração uma contra-ordenação de carácter negligente é considerada pelo próprio legislador ao cominar para essa forma de contra-ordenação uma moldura abstracta menos grave (de 32 Uc´s a 80 Uc´s) do que a cominada para a mesma contra-ordenação na forma dolosa (de 85 Uc´s a 190 Uc´s).

O único instituto jurídico que conhecemos e que permitiria a redução dos limites mínimo e máximo da coima a metade era o da atenuação especial (art. 18º/3 do RGCO ex vi do art. 549º CT/2009).

Porém, nem sequer se nos afigura legítima a aplicação desse instituto ao caso dos autos, pois que não se conhecem as reais motivações subjacentes ao não pagamento do subsídio de férias à maioria dos trabalhadores da recorrente (90), que assim ficaram penalizados em relação a uma minoria a quem os subsídios foram pagos, sem que se vislumbre o critério justificador da discriminação, do mesmo modo que não se conhece se a recorrente tinha ou não outros antecedentes contra-ordenacionais, para lá de que nem sequer resulta dos factos provados uma efectiva impossibilidade da recorrente ter pago os subsídios de férias em causa antes do momento em que efectivamente foram pagos, já depois, necessariamente, da intervenção pressionadora da ACT.


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IV) Decisão

Termos em que se delibera no sentido de julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.


 Jorge Manuel Loureiro (Relator)

 Ramalho Pinto