Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1640/19.0T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
CASO JULGADO
PRECLUSÃO
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 343.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 577º, I), 576.º, N.º 2, E 584.º, N.º 2, TODOS DO C. P. CIVIL.
Sumário: I - Numa acção de simples apreciação negativa, a falta de invocação pelo demandante, na réplica, de factos extintivos do direito cuja existência é alegada pelo demandado na contestação, determina a preclusão da invocação dessa excepção extintiva.

II –Em consequência, provando o réu, numa acção negatória de servidão, ser titular de um direito de servidão constituído por usucapião, está vedado ao autor propor nova acção visando a extinção dessa servidão com fundamento na respectiva desnecessidade.

Decisão Texto Integral:

Relatora: Sílvia Pires
Adjuntos: Henrique Antunes
Mário Rodrigues da Silva


Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Os Autores intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra os Réus AA e BB, peticionando que seja declarada extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem, de pé e carro, judicialmente reconhecida como tendo sido constituída sobre o prédio dos Autores, em benefício do prédio dos Réus e, consequentemente, que os Réus sejam condenados a absterem-se de atravessar o prédio dos Autores e de sobre ele praticarem quaisquer atos que impeçam, frustrem ou diminuíam o exercício do direito de propriedade dos Autores sobre o seu prédio.
Para fundamentarem a sua pretensão alegam, em síntese, o seguinte:
- foi constituída judicialmente uma servidão de passagem sobre o prédio propriedade dos Autores, a favor do prédio rústico pertencente aos Réus inscrito na respetiva matriz predial sob o n.º ...11º;
- os Réus são, igualmente, proprietários do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o n.º ...12, sendo que este e o prédio inscrito na matriz predial sob o n.º ...11º constituem uma unidade económica, porquanto são tratados como um só;
- os Réus acedem e têm a possibilidade imediata de aceder ao prédio aludido ou unidade económica através dos três acessos que enumeram, não tendo necessidade de esventrar o prédio dos Autores.
- a servidão de passagem em causa desvaloriza o prédio dos Autores, bem como o danifica e causa devassa e diminuição da vida privada dos Autores.

Contestaram os Réus, alegando o seguinte:
- a presente ação constitui uma violação do caso julgado, uma vez que já foi reconhecida na anterior ação a existência deste direito de servidão.
- os prédios de que são proprietários e em causa nos autos não configuram uma unidade económica, não sendo possível o acesso entre o prédio rústico inscrito sob o art.º matricial n.º sob o n.º ...11º e aquele inscrito sob o n.º ...12, devido ao terreno desnivelado e alagado e à existência de um poço.
- não é possível os Réus acederem ao prédio rústico inscrito sob o art.º matricial n.º sob o n.º ...11º mediante outro acesso que não aquele que constitui a servidão de passagem.
Peticionam que os Autores sejam condenados como litigantes de má-fé.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção do caso julgado invocada pelos Réus.

Após realização de audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a ação e absolveu os Réus dos pedidos formulados.

Os Autores interpuseram recurso desta decisão, tendo concluído as respetivas alegações do seguinte modo:
I. O Tribunal recorrido violou o princípio do dispositivo, previsto no art.º 264.º do C.P.Civil, ao dar como provada a factualidade dos pontos 23), 26) e 31) da matéria de facto cujo teor aqui se dá por reproduzido, a qual não foi alegada pelos RR. na contestação, nem em parte alguma dos autos, no que concerne ao alegado acesso de “veículo automóvel ligeiro de passageiros e/ou mercadorias à palheira”, dos RR. ao seu prédio rústico, pela servidão de passagem em causa nos autos. Pelo que, o Tribunal não pode dar tal factualidade como provada.
II. A sentença proferida na acção 1345/17.5T8CVL declarou “constituída uma servidão de passagem a pé e veículo automóvel, por usucapião, a favor do prédio dos réus, inscrito na matriz sob o n.º ...11º”, através da qual os RR. satisfazem as necessidades e fins agrícolas dados como provados nos pontos 12) a 20) do seu prédio rústico, que se concretizam com a passagem de um tractor ou outras máquinas agrícolas, e não com a passagem de veículos automóveis ligeiros de transporte de passageiros e/ou mercadorias. Atento o disposto no art.º 1565.º do C.Civil, violado pelo Tribunal, a expressão “veículo automóvel” utilizada na sentença proferida na acção n.º 1345/17.5T8CVL refere-se à espécie de veículos de tracção mecânica que se pretende fazer passar pela servidão assim declarada constituída para o prédio rústico dos RR., quais sejam, tractores e máquinas/alfaias agrícolas, por serem aptos a satisfazer as necessidades do prédio rústico dos RR. em causa nos autos. Pelo que,
III. a passagem com “veículo ligeiro de passageiro e/ou mercadoria” não cai no âmbito do exercício do direito de passagem constituído em benefício do prédio rústico dos RR. e não proporciona aos RR. a satisfação das necessidades agrícolas do mesmo. Pelo que, a factualidade dada como provada em 23), 26) e 31) da matéria de facto (além de não ter sido alegada pelos RR., tal como já se deixou demonstrado) não pode servir para aferir da necessidade da servidão cuja extinção se pede, uma vez que a mesma servidão se destina a satisfazer os fins/necessidades agrícolas do prédio rústico dos RR., os quais não são satisfeitos com recurso à utilização de veículo ligeiro de passageiros e/ou mercadorias. Sendo certo que,
IV. essas utilidades que os RR. retiram da unidade económica agrícola constituída pelos dois prédios rústicos de que são proprietários, dadas como provadas nos pontos 12) a 20) da matéria de facto, são também proporcionadas pelos demais caminhos dados como provados nos pontos 24) e 28) da matéria de facto. Pelo que a passagem em causa nos autos, cuja extinção se requer não tem qualquer utilidade para o prédio dominante. Acresce que,
V. a testemunha CC, aos minutos 21:16 a 22:17 do seu depoimento (transcrito supra no art.º 48.º, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais), referiu que a utilidade proporcionada pela servidão de passagem em causa nos autos cuja extinção se requer é examente a mesma que é proporcionada pelos caminhos dados como provados na matéria de facto dada como provada em 24) e 28).
VI. O Tribunal fez errada interpretação e aplicação do Direito aos factos, no que concerne ao requisito da superveniência da desnecessidade da servidão de passagem, uma vez que, nos caso de servidão voluntária, como é o dos autos, constituída por usucapião, não se pode exigir, quanto à respectiva extinção, a superveniência da desnecessidade em relação à constituição da servidão, já que a necessidade não foi aferida no momento da declaração de constituição da servidão por usucapião (Cfr. acórdão Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 30.04.2019 e de 13.05.2014, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.10.2011, e o acórdão da Relação de Guimarães de 31-03-2016.).
VII. O Tribunal recorrido violou o princípio do valor extraprocessual das provas, previsto no art.º 421.º, n.º 1 do C.P.C, ao dar como provada a factualidade vertida no ponto 10) uma vez que “não são os factos provados numa acção que podem ser invocados noutra, antes e apenas pode o Tribunal, nesta segunda acção, servir-se dos meios de prova (depoimentos e arbitramentos) que foram utilizados no anterior. (…) Não pode confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes. Efectivamente, "o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto. Ou melhor: estes fundamentos não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. (...) “ (Miguel Teixeira de Sousa, "Estudos sobre o Novo Processo Civil", Lisboa, 1977, pags. 579 e 580. Cfr. Ac. STJ de 20/04/2004, e Ac. RE de 29/09/94) (…) Transpor os factos provados numa acção para a outra - constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.” (Ac. do S.T.J. de 12.10.2004, e Ac. da Relação de Guimarães de 06.05.2021). Pelo que, o Tribunal não pode dar como provada a factualidade vertida no ponto 10) da matéria de facto. Acresce,
VIII. Sem prescindir do que se disse supra, o Tribunal não podia ter dado como provada a factualidade vertida no ponto 31) da matéria de facto, uma vez que:
a) os depoimentos das testemunhas CC, cujos excertos se transcreveram supra nos arts.º 66.º a 77.º e cujo teor aqui se dá por reproduzido, e DD, cujos excertos se transcreveram supra nos arts.º 85.º a 89.º e cujo teor aqui se dá por reproduzido, não foram aptos a tal, pois foram contraditórios e titubeantes e revelaram pouco conhecimento dos factos em causa nos autos, sendo, pouco credíveis. Sendo certo que,
b) do teor dos mesmos depoimentos, transcritos supra nos arts.º 80.º e 93.º cujo teor aqui se dá por reproduzido não resultam afirmações que permitam dar a referida factualidade como provada; e
c) o Tribunal também não se podia ter-se socorrido do auto de inspecção judicial ao local lavrado no processo n.º 1354/17.5T8CVL, para dar tal factualidade como provada, uma vez que a prova por inspecção judicial não cai no âmbito do art.º 421.º, n.º 1 do C.P.Civil, que se refere apenas à “prova por depoimento de parte, a prova por inquirição de testemunhas, a prova por exame, vistoria e avaliação. Ficam excluídas a prova documental e a prova por inspecção judicial". (Alberto dos Reis, in "C. P. Civil Anotado", vol. III, 4ª edição, Reimpressão, Coimbra, 1985, pag. 344.).
IX. Mal andou o Tribunal ao dar como não provada a matéria de facto vertida nos pontos j), k) e l) e por entender que: “não se vislumbra que a manutenção da servidão de passagem pelo prédio dos Autores seja um encargo que, só por si, traga um ónus ou mesmo uma significativa desvalorização para aquele prédio – o prédio serviente – ou bem assim que este obtenha significativas vantagens em dela se libertar, uma vez que:
a) o Tribunal deu como provado, “22) A passagem mencionada em 21) atravessa da extrema norte até à extrema sul do prédio referido 1);
b) do depoimento das testemunhas EE, FF e GG transcritos supra nos arts.º 101.º a 103.º cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o Tribunal tinha que ter dado como provada a factualidade vertida nos pontos j) e k) da matéria de facto não provada e
c) do depoimento conjugado das testemunhas EE, FF, GG e HH, trsncritos supra nos arts.º 105.º a 108.º, cujo teor aqui se dá por reproduzido, o Tribunal tinha que ter dado a factualidade vertida no ponto l) como provada e, bem assim, a factualidade alegada no art.º 40.º da p.i..
X. Em suma: provado que o prédio dominante, composto pelos art.ºs rústicos ...11 e ...12 da freguesia ... (emparcelados), com todos os seus componentes – cfr. pontos 6 e 9 dos factos provados – tem acesso livre e imediato de pé e carro, sem necessidade das obras que os AA. se disponibilizaram a fazer caso fosse necessário – cfr. pedido dos AA. Formalizado na p.i. – desde a via pública, por caminhos com largura de 2,5 metros, um, que vai desde o cruzamento sito à Ponte da Ribeira ... até ao limite sul do prédio dos RR., e outro, que vai desde o cruzamento dos ... até ao limite este do prédio dos RR. – cfr. pontos 24 e 28 dos factos provados – encontram-se reunidos todos os pressupostos de que a lei faz depender a extinção da servidão de passagem em causa nos autos, por se mostrar absolutamente desnecessária ao prédio dominante, na exacta medida em que as necessidades de acesso e exploração do prédio rústico, emparcelado, dos RR., com todos os seus componentes, se satisfazem, plenamente com os dois acessos por caminho público e, como tal, sem necessidade do sacrifício para o prédio serviente dos AA – cfr. art.º 1569.º, n.º 2 C.Civil.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, por provado, e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que julgue a ação procedente.

Não foi apresentada resposta.

As partes foram convidadas a pronunciarem-se sobre a possibilidade do mérito da ação não poder ser conhecido, por violação do caso julgado, na vertente da preclusão extraprocessual da defesa por exceção, tendo os Autores apresentado requerimento em que alegam que a exceção do caso julgado já foi julgada por decisão transitada em julgado neste processo e que, em todo o caso, essa exceção não se verifica.

                                       *

I – Da preclusão da causa de pedir da presente ação
Previamente a apreciarmos o mérito do recurso interposto, por dever de ofício, há que ter presente o sucedido no processo que antecedeu a propositura da presente ação.
Da sentença junta com a petição inicial e do acórdão junto com a contestação, relativos ao Processo n.º 1354/17.5T8CVL.C1, constata-se que os Autores, anteriormente à propositura da presente ação, instauraram contra os Réus uma outra ação declarativa, sob a forma de processo comum, em que pediram que estes fossem condenados a:
  1- Reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio sito ao ..., inscrito na matriz sob o art. ...05 da freguesia ..., concelho ..., com as confrontações e limites que exibe o levantamento topográfico junto a fls. 9 verso;
2- A absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam, frustrem ou diminuam o exercício do direito de propriedade dos autores sobre o seu prédio, incluindo o de se absterem de o atravessar, ou de por ele passarem quer a pé, de tractor, ou de camião, e
3 - Pagar aos autores uma indemnização no valor de € 10.340,00, por danos patrimoniais e não patrimoniais (sendo € 340,00 de patrimoniais e o restante de não patrimoniais), acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento (…).
Após contestação dos Réus, réplica dos Autores e audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação e, consequentemente, condenou os réus, AA e mulher BB, a:
a) Reconhecer que os autores, II e mulher JJ, são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no ponto 1) da factualidade provada.
b) Absterem-se de praticar actos que impeçam, frustrem ou diminuam o direito de propriedade dos autores sobre o prédio acima mencionado, com excepção da passagem nos termos declarados infra.
c) No demais, julga-se improcedente a presente acção absolvendo os réus do peticionado.
II- Julga-se parcialmente procedente o pedido dos réus e, consequentemente declara-se que sobre prédio identificado no art.º 1º da factualidade provada se encontra constituída uma servidão de passagem a pé e veículo automóvel, por usucapião, a favor do prédio dos réus, inscrito na matriz sob o art.º ...11º, identificado art.º 5º da factualidade provada e que tem por objeto o caminho mencionado no art.º 11º da factualidade provada;
III- No demais, julga-se não verificada a litigância de má fé absolvendo os autores da indemnização e multa contra si peticionadas.

Desta sentença foi interposto recurso de apelação pelos Autores, tendo este Tribunal da Relação, por acórdão de 15.1.2019, decidido o seguinte:
Julga-se parcialmente procedente a acção e condenam-se os RR. a:
a) Reconhecer que os AA. são proprietários do prédio identificado no ponto 1 da factualidade provada.
b) Absterem-se de praticar actos que impeçam, frustrem ou diminuam o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio acima mencionado, com excepção dos actos compreendidos no exercício e extensão da servidão com o conteúdo constante dos pontos 11 a 13 da factualidade provada.
c) Indemnizar os AA. em € 700,00 – sendo € 200,00 a título de danos patrimoniais e € 500,00 a título de danos não patrimoniais – quantia a que acrescem juros legais desde a presente data.
d) No demais, julga-se improcedente a acção, absolvendo os RR. do peticionado.
Em nota de rodapé (32) aposta a esta decisão, o Tribunal da Relação esclareceu o seguinte:
Não se incluindo, como supra se explicou, um qualquer segmento, no trecho decisório, sobre o desfecho do pedido de reconhecimento da servidão (uma vez que os RR. não formularam um qualquer pedido reconvencional); e mantendo-se, claro está (não faz parte do objecto do recurso), a não condenação dos AA. como litigantes de má-fé.
Na verdade, conforme resulta da fundamentação deste acórdão, entendeu-se que os Réus não haviam formulado qualquer pedido reconvencional no sentido de ser reconhecido um direito de servidão sobre o prédio dos Autores, tendo-se efetuado a seguinte leitura dos articulados das partes:
(...) bem vistas as coisas, a matéria respeitante à servidão de passagem invocada, segundo os AA., às “ocultas” pelos RR., nem será no contexto do litígio dos autos uma verdadeira excepção, uma vez que, na parte respeitante à servidão, o litígio se apresenta como uma acção de simples apreciação negativa, em que os AA., logo da PI, dizem que, embora os RR. queiram e insistam em passar pelo seu prédio, inexiste um qualquer direito de servidão, passando de imediato o ónus da prova da existência de tal direito de servidão aos RR, que, quanto à existência da servidão, passam a ter a posição material de autores, pelo que vir dizer, como os AA/apelantes fazem, que a apreciação e consideração da matéria respeitante à servidão de passagem invocada pelos RR. “consubstancia manifesta violação das regras procedimentais e violação do princípio da igualdade das parte e do princípio do contraditório” é, isso sim, violador do princípio da boa-fé processual, na medida em que na PI, em termos uteis e práticos, interpelam os RR. para demonstrar que têm o direito de servidão de que se arrogam e agora vêm invocar – o que só por sofisma pode ser feito – que correram o risco, por os RR. não terem dito que se defendiam por excepção, de não se aperceber que os RR. invocaram a existência dum direito de servidão.
(...)
Temos pois que a presente acção – qualificável, na parte mais viva do litígio, como “negatória” de servidão –– é uma acção em que compete aos RR./apelados (proprietário do prédio pretensamente dominante) provar o direito de servidão que invocam.
(...).
Num pedido de simples apreciação negativa o demandante pede ao tribunal que declare que um determinado direito ou facto jurídico não existe, verificando-se uma situação de inversão das posições das partes, conforme resulta do disposto no art.º 343º, n.º 1, do C. Civil. É ao réu que cabe alegar e demonstrar os factos constitutivos do direito negado, competindo ao autor, na réplica - art.º 584º, n.º 2, do C. P. Civil, impugnar esses factos ou alegar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito, o que equivale à apresentação de defesas por impugnação ou exceção.
Tendo os Réus naquela ação invocado, na contestação apresentada, a constituição de um direito de servição sobre o prédio dos Autores, por usucapião, competia aos Autores, para obstar à prova da existência desse direito, a alegação da sua extinção, por desnecessidade - exceção perentória extintiva.
Os Autores não alegaram esse tipo de defesa na réplica, pelo que a questão da desnecessidade da servidão não foi apreciada naquela ação.
Ora, a força do caso julgado de uma sentença só permite formular contra o direito por ela apreciado e reconhecido, os factos extintivos ou modificativos posteriores ao encerramento da discussão, conforme resulta do disposto no art.º 729º, n.º 2, g), do C. P. Civil.
A segurança jurídica exige que definido judicialmente a existência de um direito, essa existência não possa voltar a ser discutida em nova ação, mediante a alegação de novos factos extintivos do mesmo que, apesar de não terem sido apreciados na primeira ação, já se verificavam no momento em que se encerrou a audiência de discussão e julgamento. Apenas a verificação de factos posteriores a esse momento poderá permitir a reabertura da discussão sobre a existência desse direito.
Este é o efeito preclusivo do caso julgado, em matéria de defesa por alegação de exceção perentória [1].
E numa ação de simples apreciação negativa, em que se verifica uma inversão da posição das partes, quanto ao ónus de alegação e prova, a falta de invocação pelo demandante, na réplica, de determinados factos extintivos do direito cuja existência é alegada pelo demandado na contestação, por identidade de razões, também determina a preclusão da invocação dessa exceção extintiva. Tendo resultado provada a existência do direito em discussão nessa ação, não pode o demandante propor nova ação, visando o reconhecimento da inexistência desse direito, em que a causa de pedir seja constituída por factos extintivos que não aduziu na réplica da primeira ação. Tendo-se concluído pela existência do direito, o que determinou a improcedência do pedido de apreciação negativa, a segurança jurídica impõe que, inexistindo factos supervenientes, essa existência não volte a ser discutida.
É precisamente essa impossibilidade que ocorre com a presente ação, em que se pretende discutir a existência de um direito que já foi reconhecido em ação anterior, com um fundamento que não tendo sido analisado nessa ação, os factos que o integram não são alegados como supervenientes.
Na verdade, na ação anterior entre os mesmos Autores e Réus foi o reconhecimento da existência de um direito de servidão, constituído por usucapião que impediu a procedência de pedido de simples apreciação negativa da existência desse direito.
Nessa ação, não se discutiu, porque tal questão não foi colocada pelos Autores na réplica, a eventual extinção desse direito por desnecessidade do mesmo, pelo que a invocação dessa defesa por exceção, com a prolação da sentença de improcedência do pedido de simples apreciação negativa precludiu,
Assim, não é possível, através da propositura da presente ação, voltar a discutir a existência do direito de servidão, já reconhecida na anterior ação, tendo como fundamento a extinção desse direito, sem que sejam aduzidos factos supervenientes ao encerramento da discussão e julgamento na primeira ação.
Ora, os Autores alegam como causa de pedir da presente ação a possibilidade de acesso ao prédio dos Réus, através de outro prédio destes, que na sua perspetiva formam uma unidade económica, com ligação a dois caminhos públicos.
Não só não se alega que esta situação é superveniente ao termo da audiência de discussão e julgamento da anterior ação, como da análise do anterior processo se constata que essa situação já então se verificava, sem que então tenha sido invocada a extinção do direito de servidão por desnecessidade.
Estamos, pois, perante um caso em que a propositura da presente ação se traduz numa infração ao efeito preclusivo extraprocessual do caso julgado, respeitante às defesas por exceção perentória.
Essa infração é do conhecimento oficioso e impede a apreciação do mérito da presente ação, conduzindo à absolvição da instância dos Réus - art.º 577º, i), e 576.º, n.º 2, do C. P. Civil.
O facto de no despacho saneador proferido na audiência prévia se ter já decidido que não se verificava a exceção do caso julgado formado pela decisão proferida na anterior ação, não impede que agora se considere que a propositura da presente ação infringe o efeito preclusivo daquele caso julgado.
Lendo a fundamentação daquela decisão, constata-se que a mesma, além de ter analisado os reflexos da autoridade do caso julgado na decisão de mérito a proferir, apenas se pronunciou sobre a exceção do caso julgado, na vertente da impossibilidade de repetição de ações, tendo apenas analisado a identidade das partes, do pedido e da causa de pedir, concluindo que as causas de pedir eram distintas. Tal despacho não se debruçou e, por isso, não decidiu sobre o efeito preclusivo do caso julgado, relativamente à dedução de exceções perentórias, pelo que não é possível afirmar que esse efeito específico do caso julgado já havia sido objeto de decisão anterior transitada em julgado neste processo - caso julgado formal.
Por estas razões, deve, oficiosamente, substituir-se a decisão recorrida, por outra que absolva os Réus da instância, por ofensa do efeito preclusivo do caso julgado, relativamente às defesas por exceção perentória, ficando prejudicado o conhecimento das questões colocadas no recurso interposto pelos Autores.

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Decisão
Pelo exposto, acorda-se em substituir a decisão recorrida pela absolvição dos Réus da instância.

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Custas da ação e do recurso pelos Autores.

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                                                                     11.10.2022






[1] Sobre este efeito e a sua inclusão no caso julgado, Castro Mendes, Do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, 1968, pág. 174-178 e183-186, Teixeira de Sousa, Preclusão e Caso Julgado, Blog do IPCC, Lebre de Freitas, Um Polvo Chamado Autoridade do Caso Julgado, na R.O.A., Ano 79.º, n.º 3 e 4, pág. 692-693.