Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7497/17.8T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: LITISPENDÊNCIA
FINALIDADE
REQUISITOS
Data do Acordão: 01/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUIZO DO TRABALHO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 581º, Nº 1 DO NCPC.
Sumário: I – A finalidade da litispendência é a de obviar a que o afirmado pelo tribunal numa ação seja reproduzido ou contrariado pelo que se venha a afirmar pelo mesmo ou por outro tribunal noutra ação, sendo este um critério a utilizar para efeitos de aferir de uma situação de litispendência, para lá mesmo do critério formal da tríplice identidade enunciada no art. 581º/1 do NCPC.

II - A litispendência pode ocorrer em situações em que se registe uma identidade material de objecto entre a questão fundamental de uma e outra de outra, apesar de inexistir uma rigorosa identidade formal do pedido feito nas duas ações.

III - Ainda assim, do que a excepção de litispendência não prescinde é que em duas ações distintas tenham sido deduzidos pedidos de que resulte a identidade material de objecto supra referida.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

A autora propôs contra a ré a presente acção com a forma de processo comum e emergente de contrato de trabalho, deduzindo o pedido seguidamente transcrito: “Nestes termos, e nos melhores de Direito, que V. Exa. doutamente suprirá, deverá a presente acção ser julgada totalmente procedente, por provada, e, em consequência, ser a ré condenada no pagamento à autora do montante total de 54.652,94€ (cinquenta e quatro mil seiscentos e cinquenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos), correspondente aos créditos laborais em dívida melhor descritos no articulado, e ainda no pagamento dos juros vincendos, desde a data da citação até à data do seu efectivo e integral cumprimento.”.

Alegou, como fundamento da sua pretensão, que: foi trabalhadora subordinada da ré entre 4/10/2011 e 22/10/2016; esteve de licença sem vencimento, pelo período de 48 meses, com termo inicial em 1/11/2012; apesar disso, a ré sempre exigiu à autora que continuasse a prestar a sua actividade como até então sucedia, continuando a autora a prestar o seu trabalho à ré, por exigência desta, conforme até então tinha prestado, desempenhando exactamente as mesmas funções que até então desempenhou; a ré não lhe pagou o salário, subsídio de alimentação subsídios de férias e de Natal correspondentes ao trabalho prestado por exigência da ré entre 1/11/2012 e 22/10/2016, em período de licença sem vencimento, tudo no valor global de 54.652,94€; as únicas quantias pagas pela ré nesse período eram referentes exclusivamente à bolsa do programa de doutoramento em empresa devida no âmbito de um Contrato de Bolsa de Doutoramento em Empresa no qual outorgaram a ré, a autora e a FCT, num valor inicial de 490,00€ e que a partir de 13/5/2014 a ré decidiu majorar em 200,00.

A ré contestou sustentando, em resumo e com relevo para esta decisão, que ocorria uma situação de litispendência entre esta acção e aquela que no tribunal recorrido correu termos sob o nº ...

O tribunal recorrido proferiu decisão julgando procedente essa excepção de litispendência e absolveu a ré da instância.

Não se conformando com o assim decidido, apelou a autora, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

Não foram apresentadas contra-alegações.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Dispensados os vistos legais, importa decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se ocorre a excepção de litispendência afirmada pelo tribunal recorrido;

2ª) se são inconstitucionais os arts. 580.º e 581.º do NCPC na interpretação que deles foi feita pelo tribunal recorrido.

III – Fundamentação

A) De facto

Dão-se aqui por reproduzidos os factos enunciados no relatório deste acórdão.

No processo ... a aqui ré (empregadora) pediu a condenação da aqui autora (trabalhadora) a pagar-lhe o montante de €29.322,80, acrescido dos juros de mora vencidos até integral pagamento e ainda custas e demais despesas, bem como a quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença relativa ao investimento total realizado no âmbito do doutoramento.

Alegou, em síntese e na parte com relevo para esta decisão, que: foi empregadora da trabalhadora, sendo que ambas outorgaram com a Fundação ... num Contrato de Bolsa de Doutoramento em Empresa, com aprovação do respectivo programa e do seu financiamento através de bolsa a ser suportada em partes iguais pela empregadora e pela F...; empregadora e trabalhadora acordaram, no âmbito desse programa de doutoramento, em que a trabalhadora ficaria em licença sem vencimento por um período de 48 meses a partir de 1/11/2012, na condição acordada entre ambas de a trabalhadora voltar à empresa da empregadora após o termo do doutoramento e por um período mínimo de 5 anos, sob a cominação da trabalhadora indemnizar a empregadora no valor proporcional ao investimento realizado no âmbito do programa de doutoramento; a trabalhadora violou aquele pacto de permanência, pois denunciou o contrato de trabalho com efeitos reportados a 22/10/2016; o investimento suportado pela empregadora a título de bolsa e do qual deve ser indemnizada pela trabalhadora importou num valor não inferior a €28.520,00, correspondendo a 48 meses de bolsa suportados pela empregadora que inicialmente era no valor mensal de €490,00, tendo esta decidido posteriormente, como forma de incentivo, efectuar uma majoração dessa bolsa num valor mensal de €200,00; a violação desse pacto de permanência provocou na empregadora outros danos cuja indemnização deve ser quantificada em ulterior liquidação.

A trabalhadora contestou a acção, concluindo assim: “Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exa. doutamente suprirá:

I – Deverá a presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, ser a ré totalmente absolvida do pedido;

II – Ser a autora condenada como litigante de má-fé, no pagamento de uma multa e de uma indemnização à ré, no montante que o Tribunal julgar mais adequado.”.

Alegou, em resumo e na parte que releva para efeitos desta decisão, que: é verdade ter celebrado o Contrato de Bolsa de Doutoramento em Empresa e o acordo de licença sem vencimento alegados pela empregadora; não foi outorgado entre ambas qualquer pacto de permanência, nem qualquer indemnização pela sua violação; é verdade que denunciou o contrato de trabalho nos termos relatados pela empregadora; apesar de se encontrar em licença de vencimento, por exigência da empregadora, continuou a trabalhar para a mesma, cumprindo os mesmos horários e realizando os mesmos trabalhos que até então realizava, em prejuízo do desenrolar dos trabalhos do seu doutoramento, tendo-lhe a ré pago, apenas, a bolsa de formação devida no âmbito do programa de doutoramento, inicialmente no valor de €490,00, posteriormente acrescida da bonificação de €200,00 referida pela empregadora; despendeu no programa de doutoramento valores que eram da responsabilidade da empregadora e que esta se recusa a suportar; outorgou com a empregadora e  a Universidade do ... num outro contrato, do qual resultou para a empregadora a propriedade intelectual de uma ferramenta com um valor que ultrapassa largamente aquele que a empregadora exige na acção, além de que a empregadora se recusa a cumprir o acordado nesse contrato em termos de repartição dos lucros decorrentes da exploração daquele direito de propriedade intelectual; a empregadora litiga de má-fé.

A acção viria a ser julgada por sentença de cujo dispositivo consta o seguinte: “Julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada a presente acção, e, consequentemente, condeno a Ré:

- a pagar à Autora, a quantia global de €23.520,00 - vinte e três mil, quinhentos e vinte euros - correspondente ao montante que esta investiu de €490,00/mês, durante 48 meses, a título da sua quota parte, na Bolsa da Ré, para realização do Doutoramento em Empresa.

- a que acrescem os juros moratórios, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a data de citação, como peticionado e até efectivo e integral pagamento - artigo 609º nº1 do Código de Processo Civil.”

Absolvo a Ré dos demais pedidos formulados pela Autora”.

Para fundamento do assim decidido, discorreu-se, designadamente, assim:

Em função do que vem de dizer-se afigura-se-nos resultar provado que as partes tinham a condição por aceite, logo, incumprida esta, haverá que, como também se tem por aceite pelas partes, devolver o investimento feito.

Aliás, o mesmo decorre do disposto no artigo 137º do C.T., chamado até á colação pela própria Ré, cujo, no seu artigo nº 1 estatui que “ As partes podem convencionar que o trabalhador se obriga a não denunciar o contrato de trabalho, por um período não superior a três anos, como compensação ao empregador por despesas avultadas feitas com a sua formação profissional.”

E no nº 2 estatui que “O trabalhador pode desobrigar-se do cumprimento do acordo previsto no número anterior mediante pagamento do montante correspondente às despesas nele referidas”

Não obstante a conclusão supra e com vista a decidir da questão em apreço - (se é devida à Autora a quantia que peticiona da Ré – importa ainda apurar qual o efectivo e concreto montante, que a Autora despendeu, que se possa então considerar a título de investimento, na Formação Profissional da Ré.

Da carta a que supra se alude (junta a folhas 15) consta então que “ …Caso seja vontade da A... sair antes do período estipulado anteriormente, a empresa terá de ser indemnizada no valor proporcional ao investimento realizado no âmbito do Doutoramento em empresa….”; e resulta daquela outra junta a folhas 21 que, “… procedemos à liquidação da indemnização devida pela não observância da condição de permanência na empresa, no valor de €28.520,00. Mais informamos que no cálculo do referido valor apenas foi considerado o investimento suportado a título de bolsa, mantendo a nossa disponibilidade e colaboração para a conclusão da tese no âmbito do programa de doutoramento em empresa…”;

Resulta da matéria dada por provada que, “O investimento suportado pela Autora, a título de bolsa, importou no valor de €28.520,00” - vd. artigo 23 - e que “A Autora pagava à Ré, uma bolsa de inicialmente €490,00, que veio a ser majorada em mais €200,00, para compensação da disponibilidade da Ré, no desempenho das funções a que se alude a 31) em conjunto com outros €490,00, estes, pagos pela Fundação ...” – vd. artigo 33.

Ora, se é certo que entendemos ser devido à Autora, o reembolso das despesas inerentes ao investimento feito com a Formação Profissional da Ré, e sendo que, aquando da concessão da licença e portanto da aceitação pelas partes, das condições a ter em conta, a sua quota-parte, na Bolsa da Ré, era no montante de €490,00, e que a majoração da mesma em mais €200,00, não se deveu a maiores custos daquela formação profissional, antes se deveu, a uma compensação que a Autora entendeu ser devida à Ré, por esta se disponibilizar a exercer algumas funções laborais, a partir de certa altura (não obstante o seu contrato de trabalho estar suspenso mercê da licença sem vencimento).

Assim entendemos que no cálculo a considerar, serão apenas devidos os €490,00/mês, durante todo o período da licença sem vencimento - 48 meses – ou seja, num total de €23.520,00.”.

Para se fundamentar a decisão ora recorrida que decretou a procedência da excepção de litispendência, discorreu-se, designadamente, assim:

No caso vertente, temos que, no outro processo anteriormente pendente entre as mesmas partes, a aí A. veio pedir o pagamento da “indemnização pelo investimento suportado” com a bolsa que pagou à aí R. enquanto esta esteve numa situação de licença sem vencimento, que se defendeu ao referir que se manteve sempre a trabalhar para a aí A., que lhe pagava a bolsa “acrescida de uma bonificação de 200,00€” em virtude desse trabalho e que vem agora pretender que a aqui R. lhe pague todos os créditos laborais que lhe serão devidos em virtude das funções laborais que terá continuado a exercer durante o seu período de licença sem vencimento.

Assim, não obstante a aqui A. não ter deduzido qualquer reconvenção contra a R. nesse outro processo, a verdade é que se defendeu com base nos mesmos factos que agora fundam o seu pedido principal, que foram devidamente apreciados nesse outro processo, em que foi já entendido que os € 200 pagos adicionalmente pela aqui R. correspondiam à sua retribuição pelo exercício dessas funções, não tendo a aqui A. sido condenada no seu pagamento à aqui R..

E, cumpre precisar que se adota uma noção ampla de litispendência (e também, claro, do caso julgado, que apenas se distingue da litispendência em virtude da fase em que se encontra a outra ação com as mesmas partes), tal como defendida por TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., p. 578, considerando que “o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”, pois não se pode isolar a decisão dos seus fundamentos, uma vez que é o resultado do silogismo judiciário operado com base nesses mesmos fundamentos.

Assim, e continuando a citar TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., p. 579, “O caso julgado da decisão também possui um valor enunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada. Excluída está, desde logo, a situação contraditória: se, por exemplo, o autor é reconhecido como proprietário, então não o é o demandado; se o autor é reconhecido como herdeiro, o réu não pode instaurar uma ação de apreciação negativa desta mesma qualidade” (nosso destacado).

E, no presente processo sub judicio, a A. pretende agora que a R. seja condenada a pagar-lhe mais do que os €200 que já recebeu mensalmente, quando, na anterior ação, nada referiu a esse respeito e foi decidido que esses € 200 lhe eram devidos como retribuição do seu trabalho, não tendo a aqui A. direito a manter na sua posse as restantes quantias que lhe foram pagas pela aqui R., levando o Tribunal a contradizer, diretamente, o já anteriormente decidido na sentença objeto de recurso.

A A. pretende, assim, que o Tribunal desdiga o que disse anteriormente (ou, se ação improceder, repita a decisão anterior), considerando que a aqui A. tinha direito ao pagamento de uma retribuição superior, quando já invocou esse meio de defesa na anterior ação, tendo o mesmo sido devidamente atendido na sentença aí proferida, que decidiu, em virtude do alegado pela aí R., que esta não seria obrigada a restituir os já mencionados €200.

E como resulta do já exposto, o tríplice critério formal supra referido para a existência de caso julgado/litispendência não é o único, devendo atender-se “também à diretriz substancial traçada no n.º 2 do artigo 497º, onde se afirma que exceção de litispendência (tal como a do caso julgado) tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” – ANTUNES VARELA/MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.º Edição, Coimbra, 1985, p. 302.

É que, como conclui CALVÃO DA SILVA, «Caso Julgado Material e Resolução do Contrato-Promessa» in Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Pareceres), Coimbra, 1999 p. 234, itálico do autor, “não obstante a inexistência de rigorosa identidade formal do pedido feito nas duas ações, é inegável a identidade material de objeto entre a questão fundamental de uma e outra ação. Tanto basta para que se deva ter por irrecusável o caso julgado material, vista a identidade do pedido, não em função do escopo final de uma e outra ação, mas do objeto fundamental de que dependa o êxito de cada uma delas” (cfr., em idêntico sentido, ANTUNES VARELA/MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, ob. cit., p. 714, nota 2).

De resto, temos que o que a A. visa obter com a presente ação é, tão somente, uma decisão que contradiga a anterior (pretendendo que “entre pela janela”, com esta ação, o que já “saiu pela porta” face à procedência da ação que anteriormente lhe foi movida pela R., em que se sempre se poderia ter defendido alegando que teria direito a mais do que os € 200 que lhe eram pagos mensalmente), apesar de terem por objeto os mesmos factos concretos (a mesma específica parcela da realidade, dizendo respeito ao que sucedeu entre A. e R. enquanto a trabalhadora esteve na situação de licença sem vencimento), que já foram apreciados anteriormente.

Não se compreenderia como poderia o Tribunal, num volte face em relação à decisão anterior, vir declarar que, afinal e apesar de tudo o já decidido, a aqui A. teria direito ao pagamento de uma retribuição superior aos € 200 já pagos pela aqui R., contradizendo a sentença anterior, que decidiu que só esses € 200 (e não as outras quantias já pagas pela R.) seriam devidos à aqui A. e poderiam ficar na sua posse.”.

B) De direito

Primeira questão: se ocorre a excepção de litispendência afirmada pelo tribunal recorrido.

A excepção de litispendência pressupõe a repetição de uma causa (art. 580º/1 do NCPC), se a repetição se verifica antes de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, sendo que a causa se repete quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art. 581º/1 do NCPC).

A excepção em questão deve ser aferida, quanto à identidade da causa de pedir e do pedido, em face do alegado pelas partes como fundamento fáctico das pretensões sujeitas à apreciação e decisão jurisdicionais e do que concretamente se peticiona com base naquele fundamento.

Como fui do que acima se deixou enunciado, na primeira acção que a empregadora propôs contra a trabalhadora, aquela alegou que esta violou um pacto de permanência entre ambas celebrado, razão pela qual esta deveria restituir-lhe, designadamente, 28.520,00 € que lhe pagou a título de bolsa de doutoramento, nos quais se incluía a majoração mensal dessa bolsa que a partir de certa altura decidiu pagar à trabalhadora, no valor mensal de € 200,00 (arts. 43º, 44º e 45º da petição inicial).

Perante tal pretensão da empregadora e da fundamentação fáctica para tanto aduzida, a trabalhadora pugnou pela improcedência da acção, não deduziu reconvenção e peticionou a condenação da primeira como litigante de má-fé, tudo nos termos exactos que supra se deixaram transcritos.

O pedido correspondente à litigância de má-fé não releva para os efeitos que estão em análise, pois que na presente acção tal pretensão não vem renovada pela trabalhadora, inexistindo a esse respeito a repetição do pedido que a excepção de litispendência pressupõe.

Assim sendo e na ausência de qualquer outra pretensão que a trabalhadora tenha ali deduzido na contestação afigura-se-nos impossível divisar-se uma repetição de pedidos que a declaração da litispendência pressupõe.

Na decisão recorrida sustenta-se, contudo, que um dos fundamentos em que a trabalhadora assentou a defesa ali apresentada é exactamente o mesmo que agora se convoca para fundamento da pretensão condenatória deduzida no âmbito desta acção, a saber: apesar da trabalhadora se encontrar de licença sem vencimento, o certo é que a empregadora continuou a exigir-lhe a prestação do trabalho nos exactos termos em que o exigia antes dessa licença, pagando-lhe como contrapartida do trabalho assim prestado uma bonificação de 200 euros mensais com que majorou a bolsa de formação devida pela empregadora à trabalhadora.

Neste enquadramento, ao pretender através desta acção obter a condenação da empregadora a pagar-lhe todos os créditos laborais devidos por causa da prestação efectiva de trabalho durante o seu período de licença sem vencimento, a trabalhadora coloca o tribunal na contingência de contradizer ou repetir a decisão proferida na primeira acção em que se reconheceu que a trabalhadora apenas prestou algum trabalho – que não todo o trabalho – daquele que prestava antes da licença, correspondendo aqueles 200 euros à retribuição paga por essa prestação parcial de trabalho em período de licença sem vencimento.

Por isso, sustenta o tribunal recorrido estar-se perante uma situação de litispendência que, justamente, pretende obviar a tais riscos de contradição ou repetição.

Comece por dizer-se que não acompanhamos a decisão recorrida quanto à identidade de fundamentos – da defesa naquele processo e da acção neste processo - afirmada na decisão recorrida.

Com efeito, na defesa daquele processo jamais a trabalhadora sustentou que a aludida bonificação de 200 euros constituía remuneração de trabalho prestado à empregadora durante a licença sem vencimento.

Os referidos 200 euros sempre foram encarados pela trabalhadora, na primeira acção, como um acréscimo à bolsa de formação (art. 51º da contestação), na senda, aliás, do ali igualmente sustentado pela empregadora (art. 44º da petição).

Não se regista, assim, a identidade de fundamentos de que a decisão recorrida parte para afirmar a litispendência.

Num segundo plano, admite-se, até por imposição legal (art. 580º/2 do NCPC), que a finalidade da litispendência seja a de obviar a que o afirmado pelo tribunal numa acção seja reproduzido ou contrariado pelo que se venha a afirmar pelo mesmo ou por outro tribunal noutra acção, sendo este um critério a utilizar para efeitos de aferir de uma situação de litispendência, para lá mesmo do critério formal da tríplice identidade enunciada no art. 581º/1 do NCPC – Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 302.

Assim como se admite que o litispendência possa ocorrer em situações em que se registe uma identidade material de objecto entre a questão fundamental de uma e outra de outra, apesar de inexistir uma rigorosa identidade formal do pedido feito nas duas acções – Calvão da Silva, Caso Julgado Material e Resolução do Contrato-Promessa, in Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Pareceres), Coimbra, 1999 p. 234.

Ainda assim, do que a excepção de litispendência não prescinde é, a nosso ver, que em duas acções distintas tenham sido deduzidos pedidos de que resulte a identidade material de objecto supra referida.

Ora, não ocorre no caso em apreço “identidade material” entre a pretensão deduzida neste processo pela trabalhadora (condenação da ré a pagar-lhe o salário, subsídio de alimentação, subsídios de férias e de Natal correspondentes ao trabalho prestado durante o período de licença sem vencimento) e qualquer pedido que a mesma trabalhadora tenha deduzido naquele primeiro processo, onde apenas deduziu um pedido de condenação da empregadora como litigante de má-fé.

Num terceiro plano, refira-se que a excepção de litispendência deve ser equacionada nos justos limites objectivos das questões que o tribunal seja convocado a ponderar e a decidir nas acções judiciais por referência às quais aquela excepção se suscita, tudo de forma a impedir que o tribunal seja convocado a pronunciar-se mais do que uma vez sobre a mesma questão suscitada entre as mesmas partes e por referência à qual tenham sido deduzidas pretensões substancialmente idênticas e com idênticas causas de pedir.

Ora, no primeiro processo que decorreu entre as partes do presente, o tribunal foi chamado a pronunciar-se sobre o seguinte: i) existência ou não de um pacto de permanência entre as partes; ii) violação ou não desse pacto por parte da trabalhadora e consequente obrigação da mesma indemnizar a empregadora por essa violação; iii) ponderação ou não dos referidos € 200 – além de outros valores que agora não importa considerar – para efeitos da fixação do montante indemnizatório a pagar.

Assim, no quadro decorrente dos limites objectivos acabados de identificar e definir, o tribunal não foi chamado a pronunciar-se sobre se a empregadora devia ou não ser condenada a pagar à trabalhadora o salário, subsídio de alimentação, subsídios de férias e de Natal correspondentes ao trabalho prestado durante o período de licença sem vencimento, e, na afirmativa, sobre se os referidos € 200 deveriam ser computados para efeitos de quantificação do que a esse respeito se considerasse em dívida, sendo estas as questões sobre as quais o tribunal é chamado a pronunciar-se no presente processo.

Naquele processo, o tribunal respondeu afirmativamente às questões referidas em i) e ii) supra enunciadas, tenho respondido negativamente à iii) com o fundamento de que os €200 em causa não representavam despesas de formação suportadas pela empregadora, estando em causa uma liberalidade da empregadora para com a trabalhadora, uma vez que “… a majoração … em mais €200,00, não se deveu a maiores custos daquela formação profissional, antes se deveu, a uma compensação que a Autora entendeu ser devida à Ré, por esta se disponibilizar a exercer algumas funções laborais, a partir de certa altura (não obstante o seu contrato de trabalho estar suspenso mercê da licença sem vencimento).” – negrito da nossa responsabilidade.

Neste processo, o tribunal não tem que decidir outra vez sobre se os € 200 devem ou não ser computados para efeitos da indemnização a pagar pela trabalhadora à empregadora, reproduzindo ou contraditando o já decidido na primeira acção.

O que o tribunal aqui tem de decidir é algo de substancialmente distinto, a saber: se durante o período de licença sem vencimento a trabalhadora tem direito a receber da empregadora o salário, subsídio de alimentação, subsídios de férias e de Natal que lhe seriam devidos se não tivesse ocorrido aquela licença, posto que durante o período desta a trabalhadora terá continuado a prestar à empregadora, por exigência desta, o mesmo trabalho que antes lhe prestava.

É certo que se o tribunal responder afirmativamente a esta questão, poderá ter de confrontar-se com uma sub-questão sobre se no valor que assim considerar devido deve ou não imputar os valores já pagos pela empregadora a título de majoração de bolsa.

Ainda que assim seja, menos certo não é que essa sub-questão não se confunde com a questão suscitada naquele primeiro processo de saber se essa mesma majoração deveria ou não ser considerada para efeitos de quantificação da indemnização devida pela violação do pacto de permanência, não se correndo o risco pressuposto pela litispendência de o tribunal reafirmar ou contradizer o que afirmou no sentido de que tal majoração não representava despesas de formação, mas sim uma liberalidade decidida e praticada pela empregadora em função de uma disponibilidade que trabalhadora revelou para prestar algum trabalho durante a licença sem vencimento, por consequência do que não devia ser computada para efeitos da quantificação da indemnização a pagar pela trabalhadora à empregadora.

Se o tribunal concluir por aquela resposta afirmativa e sustentar a respeito da dita sub-questão que deve ser feita aquela imputação dos valores decorrentes da majoração, o que se afirmará neste processo será que a empregadora deve à trabalhadora aquelas prestações, mas que ao valor global das mesmas deverá ser abatido o valor pago a título da referenciada majoração, inexistindo, assim, reprodução ou contradição do anteriormente decidido

Por outro lado, se nesta acção o tribunal decidir negativamente a questão supra identificada referente ao direito a que trabalhadora se arroga a receber os referenciados salário, subsídio de alimentação, subsídios de férias e de Natal do período de licença sem vencimento, também não vislumbramos que se reproduza ou contradiga o decidido no primeiro processo no sentido de que a referenciada majoração não devia ser contabilizada para efeitos de quantificação da indemnização por violação do pacto de permanência, pois que nesse enquadramento aquele pretensão da autora improcederá absolutamente e nem sequer terá que ser abordada, por inutilidade e consequente proibição legal, a sub-questão da natureza e fundamentos da dita majoração (real majoração de bolsa ou substancial retribuição de algum trabalho prestado) e da imputação ou não da mesma em valores alegadamente devidos pela empregadora à trabalhadora.

Concluindo: não se nos afigura que se registe entre a presente acção e aquela que correu termos sob o nº ... a identidade de pedidos ou o risco de reprodução ou contradição que a afirmação de uma situação de litispendência exige.

Procede, pois, a apelação.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação procedente, julgando-se improcedente a excepção de litispendência suscitada pela ré, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos com conhecimento, no saneador ou na sentença final, das demais questões suscitadas no âmbito desta acção, se outras de conhecimento oficioso a tanto não obstarem.

Sem custas.

Coimbra, 18/1/2019


(Jorge Manuel Loureiro)

(Paula Maria Roberto)

(Ramalho Pinto)