Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
300/14.2GCTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
ASSISTENTE
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
APERFEIÇOAMENTO
DISPENSA DE PENA
Data do Acordão: 07/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL DE TONDELA– SECÇÃO COMPETÊNCIA GENÉRICA – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 69.º, 127.º, 401.º, 412.º E 431.º, DO CPP; ART. 186.º DO CP
Sumário: I - Para o assistente poder recorrer, não há que fazer-lhe outras exigências para além das que o artigo 401.º, n.º 1, alínea b), comporta: que a decisão seja relativa a um crime pelo qual se constituiu assistente (legitimidade) e seja contra ele proferida (interesse em agir).

II - Segundo a doutrina fixada no citado assento [Assento n.º 8/99, de 30/10/1997], o reconhecimento da legitimidade há-de ser aferido e reconhecido (ou não) caso a caso, ou seja, avaliando, em concreto, se a posição do assistente é afectada pela natureza ou medida da pena imposta ao arguido na condenação.

III - Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

IV - A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.

V - Na circunstância do não acatamento do ónus de impugnação especificada, tem-se entendido, como decorrência da sua própria noção, não ocorrer o condicionalismo referido na alínea b) do artigo 431.º, tornando-se inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, o que implica que se tenha a mesma por assente.

VI - Uma vez que os factos provados permitem concluir que a ofensa do arguido foi provocada por uma conduta repreensível do assistente, não merece censura a sentença recorrida ao decretar a dispensa ou isenção de pena em relação ao crime de injúria, nos termos do n.º 2 do artigo 186.º do Código Penal.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No processo comum singular n.º 300/14.2GCTND, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Tondela – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1, realizado o julgamento, foi proferida a sentença de fls. 232 a 254 com o dispositivo seguinte:

«Por tudo o exposto o tribunal julga parcialmente procedente, porque apenas em parte, provada a acusação pública formulada contra os arguidos A... e B... , bem como a acusação particular formulada contra o arguido A... , e, em consequência disso:

I. Condena o arguido A... , pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, na pessoa de G... pena de 30 dias de multa, à taxa diária de €15,00, o que perfaz um total e €450,00, e que corresponde à pena de 20 dias de prisão subsidiária;

II. Declara que o arguido A... , praticou um crime de injúria, na pessoa de G... , previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1 do Código Penal e isenta-o de pena.

III. Absolve o arguido B... da imputação da acusação;

IV. Condena o demandado A... a pagar ao demandante G... a quantia de €120,10 a título de indemnização pelos danos patrimoniais, absolvendo o demandado do restante pedido.

V. Absolve o demandado B... do pedido de indemnização civil, contra si formulado.

VI. Fixa as custas penais fixadas em 4 UC para o arguido e em 4 UC para o assistente.

VII. Condena o demandante e demandado A... a pagar as custas cíveis, na proporção da sucumbência.

VIII. Declara cessadas as medidas de coacção aplicadas ao arguido B... .

                                                        ***

Notifique e proceda a depósito na secretaria (artigo 372º, nº 5 do Código de Processo Penal).

                                                        ***

Após trânsito remeta boletins ao registo criminal.»

2. Inconformado, o assistente G... recorreu da sentença, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. A discordância do recorrente reside no erro de apreciação sobre a matéria de facto, que o Tribunal recorrido deu como provados os artigos 4º, 8º e 9º da sentença.

2. Não provados os artigos supracitados, erradamente, inquinou e condicionou a justeza do arguido A... ser condenado pelo crime de injúria.

3. Pois, ao contrário do concluído pelo Juiz do tribunal recorrido o Assistente sempre percorreu, enquanto estava a ser injuriado, por caminhos públicos e ou do domínio público.

4. Logo, nunca o Assistente teve comportamentos que infiram a aplicação ao caso concreto do nº2 do artigo 186º do CP para não condenar o arguido.

5. À luz do senso comum, ninguém que ande simplesmente em caminhos públicos ou do domínio público, provoca alguém.

6. O Juiz não teve em consideração que o arguido nunca provou em Tribunal que os terrenos que o Assistente pisou lhe pertenciam.

7. O Juiz do Tribunal recorrido baseou a sua decisão apenas nas declarações do arguido, afastando as do Assistente e testemunhas.

8. Por tudo isto e, consequentemente, ponderadas as circunstâncias do caso, a intensidade da culpa, e a gravidade dos factos, reúnem-se os pressupostos da aplicação ao arguido do crime de injúria.

9. Ao decidir como decidiu, o Juiz decidiu erradamente pela não condenação do arguido no crime de injúria que comprovadamente cometeu.

10. O Juiz a quo violou a norma jurídica do artigo 181º do Código Penal, que refere que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.

11. O Juiz interpretou erradamente o nº2 do artigo 186º do mesmo diploma, e em face dos factos que deu também erradamente como provados, isentou de pena o arguido A... do crime de injúria.

12. O arguido não pode ter uma sanção de multa de €450,00, porque é insuficiente para as finalidades das penas perante dois crimes que comprovadamente cometeu, e tendo em consideração a sua condição económica e financeira.

13. Condenar o arguido no pagamento, também da importância de €1500,00, relativamente ao pedido de indemnização cível.

Nestes termos deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência, declarar que o arguido A... cometeu o crime de injúria previsto e punível pelo artigo 181º do Código Penal com as legais consequências. Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»

3. O Ministério Público e o arguido A... responderam ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

4. Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal([1]), emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder.

5. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2, não houve resposta.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida

1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

«1. O arguido A... é dono e possuidor de uma propriedade, composta de vários prédios e com vários hectares, sita no Lugar de Pisões, limite de Nandufe, área deste concelho de Tondela, a qual se encontra vedada com rede.

2. Nessa propriedade o arguido A... explora a criação de vacas.

3. Em data não apurada o arguido A... , decidiu colocar uma ponte sobre o rio Dinha que bordeja a propriedade no sentido de as vacas poderem passar para a outra margem do rio onde possui pastagens.

4. Nessa propriedade encontra-se uma antiga central hidroeléctrica, outrora propriedade da K..., Lda.

5. Para acesso à dita Central existe um caminho que atravessa desde o caminho que provém de Nandufe, encimado por um portão.

6. Tal portão costuma estar fechado com um arame ou cordão.

7. Em tal portão encontram-se dizeres, com um número de telefone, para contacto dos funcionários da EDP, com o aqui arguido A... .

8. No dia 10 de Outubro de 2014, antes das 18H00m, o assistente, munido de um alicate e uma máquina fotográfica, entrou na propriedade de A... sita em Lugar de Pisões – Nandufe.

9. Dirigiu-se, pelos caminhos interiores da quinta à Central Hidroeléctrica dos Pisões.

10. Nesse momento B... , neto do arguido A... , que reside numa das casas da quinta ao avistar G... , telefonou ao arguido A... dando-lhe conhecimento de que o assistente se encontrava no interior da quinta.

11. De imediato o arguido A... se abeirou da zona onde o caminho asfaltado do interior da quinta cruz com o caminho proveniente do portão referido em 5, tendo solicitado a presença de uma patrulha da GNR.

12. Ao avistar o assistente, pessoa com quem tem um diferendo há anos, não tolerando a sua presença no interior da quinta, dirigindo-se a ele, em voz alta, disse-lhe: Ó cabrão, ó filho da puta, não te quero aqui, sai das minhas terras, isto não é público.

13. Ante isso, G... dizia para o arguido A... que se dirigia para a margem do rio.

14. O arguido A... , em resposta, em voz alta, disse a G... : Ó cabrão, ó filha da puta, se o teu pai fosse vivo morria de vergonha de ti. Ó vigarista. Não te quero a pisar as minhas terras, vai pagar o roubo que fizeste à Misericórdia, porque fizeste lá um desfalque.

15. Perante tal o assistente continuou a caminhar junto à margem direita do Rio Dinha, no sentido da ponte e de uma casa de habitação de um dos filhos do arguido que pretendia realizar uma reportagem fotográfica do local em que existe um diferendo, de um grupo de pessoas.

16. Nas imediações da referida ponte, os arguidos B... e A... conseguiram alcançar o assistente G... .

17. A dada altura, o arguido B... que pretendia tirar a máquina fotográfica que o assistente trazia ao pescoço, puxou-a e, por o terreno e encontrar enlameado, este caiu no solo desamparado.

18. O arguido A... ao aperceber-se que o assistente G... se encontrava caído no chão, de barriga para cima, dirigiu-se ao mesmo, tendo-lhe desferido vários pontapés que o atingiram em diversas partes do corpo, para depois o pisar, na barriga, costas e joelho esquerdo.

19. O assistente, para se livrar das agressões a que estava a ser sujeito, largou a máquina fotográfica e telemóvel, o que surtiu efeito.

20. De seguida, o assistente levantou-se, pegou numa pedra, o que fez com que os arguidos fugissem levando os referidos objectos, para mais tarde os devolverem.

21. Devido à actuação do arguido A... sofreu o assistente G... equimose da grelha costal esquerda e equimose da face interna do joelho esquerdo com 2X2 cm, que foram causa directa de um período de 10 (dez) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, conforme relatório médico de fls. 13-14 e 22-23, que se dão por integralmente reproduzidos para os legais efeitos.

22. O arguido A... actuou de forma deliberada, livre e consciente, pretendeu e consegui, atingir e lesar o corpo e saúde do ofendido G... .

23. Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.

Do PIC provou-se que:

24. O demandante despendeu em medicamentos e taxas moderadoras €18,10.

25. O demandante despendeu a quantia de €5,95, na limpeza a seco de um colete que trazia vestido.

26. O demandante pagou a taxa de justiça a quantia de €102,00.

27. O demandante ficou abalado com as palavras que lhe foram dirigidas, por A... bem como com os actos que contra si foram praticados, por este.

28. O demandante constituiu mandatário.

29. O demandante é pessoa conhecida em Tondela, onde durante 14 anos desempenhou as funções de comandante dos bombeiros.

Além da acusação provou-se que:

30. Os arguidos não possuem antecedentes criminais.

31. O arguido A... aufere de reforma a quantia de €1.040,00.

32. Vive em casa própria conjuntamente com a esposa que é doméstica.

33. Despende quantias não apuradas em medicamentos.

34. É pessoa muito conhecida nesta cidade, não havendo conhecimento de factos que desabonem a seu favor.

35. O arguido B... encontra-se a estudar, não possuindo rendimentos próprios.»

*

1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):

«Não se provaram outros factos com relevância para a decisão a causa, nomeadamente que:

O arguido B... tenha desferido um pontapé, nas pernas do assistente com o propósito de o derrubar, e daqui tenham resultado lesões, ou dores.

Que os arguidos tenham retirado o cartão de memória da máquina fotográfica.

Que o assistente tenha pago €1.500,00 de honorários ao seu mandatário.»

                                                        *

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«Para julgar como provados os factos que antecedem o tribunal fundou a sua convicção no conjunto das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, conjugadas com as regras da experiência comum a saber:

Nas declarações dos arguidos que assumiram ter encontrado G... no interior da propriedade, tendo sido B... quem o viu pela primeira vez, quando passava de carro, pela estrada particular asfaltada no inteiro da quinta e que de imediato parou o carro e telefonou para o avó, e este dirigiu-se para a intersecção dos caminhos nas imediações da central dos pisões.

Que telefonaram à GNR para que a mesma viesse ao local, uma vez que não tinham autorizado a entrada no local de tal pessoa, e que a mesma andava munida de uma máquina fotográfica desconhecendo as intenções, pessoa que conheciam e que A... já há uns tempos tinha desaguisados com ela, o assistente G... .

Que A... foi, de carro, abrir o portão de acesso à quinta para entrar o veículo da GNR que dista mais de que 1000 metros do local onde se encontravam.

Que relataram o percurso por onde G... se deslocou desde a central dos pisões até à ponte sobre o rio Dinha, tendo o seguido pela estrada asfaltada e ido ao encontro do mesmo para impedir que o mesmo tirasse fotografias ao que quer que seja, sendo que a ponte está próxima da casa de habitação de um dos filhos de A... .

No depoimento de G... que relatou ter ouvido as expressões dadas como provadas, que foram realizadas em voz alta.

O assistente relatou que B... tentou tirar a máquina fotográfica e que puxou e nesse momento caiu ao chão, e que já no chão foi pontapeado pelo arguido A... .

Tais declarações foram corroboradas pelas testemunhas F... , pessoa que se encontrava no local por ter acompanhado o assistente tendo cumprimentado com um aperto de mão B... , e que conhece A... , pessoa muito conhecida em Tondela, pelas funções que exerceu na Câmara Municipal, e da sua actividade de empresário.

No depoimento de H... , que também acompanhou o assistente, a pedido deste, e depois de ouvir as vozes altas, deslocou-se pela propriedade para local onde pudesse acompanhar, com a visão o assistente.

No auto de reconstituição dos factos realizada em audiência de discussão e julgamento, de onde foi possível verificar a possibilidade de visão das testemunhas para o local onde ocorreram os factos, sendo que a versão do assistente é consentânea com um estado de exaltação do arguido A... .

Estas testemunhas relataram os factos com minúcia e detalhes consentâneos com observação directa dos factos, logrando assim convencer o tribunal da veracidade dos factos.

No depoimento de C... militar da GNR que foi ao local, tendo visto o assistente a provir da zona da margem do rio Dinha, sujo com terra com dificuldades respiratórias e que quando abordado se recusou a responder, dizendo que se iria dirigir ao posto depois, tendo o mesmo saído da quinta pelo portão descrito em 5.

Na altura não notou que tivesse sangue, tendo visto a entrega de um alicate e de uma máquina fotográfica.

No depoimento de D... , Militar da GNR, que foi na companhia da testemunha supra referida e que relatou não ter visto as testemunhas F... e H... , confirmando o relato do outro militar da GNR.

No depoimento de E... , esposa do assistente que relatou o estado de nervos que o mesmo apresentava tendo sido assistido no hospital.

Esta testemunha relatou que a máquina fotográfica possuía cartão de memória, e que foi devolvida sem o mesmo, o que foi confirmado pelas testemunhas F... e H... .

Quanto às lesões referidas nos depoimentos do assistente e das testemunhas H... e F... , os quais referiram ter visto o arguido A... , a bater com o pé, quando o assistente se encontra no chão, a ser pontapeado na zona do tórax deste.

Tal relato é consentâneo com a descrição constante do Exame médico-legal de fls. 13-14 e 22-23, e dos documentos de fls. 43 onde se encontram as descrições das queixas e lesões que apresentava o assistente quando foi assistido no Hospital de S. Teotónio em Viseu.

Na fotografia aérea de fls. 49, documento não impugnado pelos sujeitos processuais e que permite ter a noção do espaço onde ocorreram os factos, havendo apenas discussão/discordâncias sobre o ponto concreto do local onde ocorreram as agressões.

Quanto aos antecedentes criminais no CRC dos autos.

Quanto às condições económicas e sociais nas declarações dos arguidos.

Quanto aos factos do PIC nas declarações do assistente, bem como os relatos médicos e documentos de fls. 122 a 124 de onde resultam as despesas suportadas pelo assistente.

Quanto ao valor da taxa de justiça, no documento de fls. 17.

Quanto aos factos não provados, por o assistente ter assumido em audiência que não foi agredido pelo arguido B... .

Quanto ao cartão de memória por não ter sido relatado tal facto, sendo que os arguidos negam ter retirado o cartão de memória desconhecendo-se o que ocorreu, ter-se-á que lançar mão do princípio in dúbio pro reo.

Quanto aos honorários por não ter sido feita qualquer prova quanto aos mesmos.»

                                                        *

2. Apreciando

2.1. Questão prévia

Estabelece o artigo 69.º do Código de Processo Penal:

1. Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.

2. Compete em especial aos assistentes:

(…)

c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.

Por outro lado, o artigo 401.º do Código de Processo Penal estatui:

1. Têm legitimidade para recorrer:

(…)

b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;

(…)

2. Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

No que diz respeito à legitimidade do assistente para recorrer relativamente à espécie e medida da pena da condenação, a questão continua a ser controvertida, não tendo o nosso mais alto Tribunal uma posição uniforme.

No sentido de que aquela legitimidade é reconhecida ao assistente, caso se demonstre um “concreto e próprio interesse em agir”, destaca-se o Assento n.º 8/99, de 30/10/1997, que decidiu:

«O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir»([2]).

No Acórdão n.º 5/2011, de 9/2/2011, tratando embora de questão diversa, o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência obrigatória:

«Em processo por crime público ou semipúblico, o assistente que não deduziu acusação autónoma nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução requerida pelo arguido, e da sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do Ministério Público»([3]).

Na sua fundamentação refere-se que «[o] assistente só tem legitimidade para recorrer das decisões contra ele proferidas, mas dessas decisões pode sempre recorrer, haja ou não recurso do Ministério Público.

A circunstância de haver ou não recurso do Ministério Público não aumenta nem diminui as possibilidades de recurso do assistente. A única exigência feita pela lei ao assistente para poder recorrer de uma decisão é que esta seja proferida contra ele. Não há que procurar outras a coberto do chamado interesse em agir, a que alude o n.º 2 do artigo 401.º

De facto, sendo a legitimidade, no processo civil, a posição de uma parte em relação ao objecto do processo, justificando que possa ocupar-se em juízo da matéria de que trata esse processo (cf. Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, Faculdade de Direito de Lisboa, Lições, 1973 -1974, p. 151), em processo penal, a legitimidade do assistente para recorrer significa que ele só pode interpor recurso de decisões relativas aos crimes pelos quais se constituiu assistente (cf. Damião da Cunha, ob. cit., p. 646).

Já o interesse em agir do assistente, em sede de recurso, remete para a necessidade que ele tem de lançar mão desse meio para reagir contra uma decisão que comporte para si uma desvantagem, que frustre uma sua expectativa ou interesse legítimos, a significar que ele só pode recorrer de uma decisão com esse alcance, de acordo com Figueiredo Dias, que conclui, citando Roxin: «Aquele a quem a decisão não inflige uma desvantagem não tem qualquer interesse juridicamente protegido na sua correcção, não lhe assistindo, por isso, qualquer possibilidade de recurso» (RLJ, ano 128, p. 348).

Sendo assim, deve concluir -se que o texto da alínea b) do n.º 1 do artigo 401.º já abrange o interesse em agir, ao exigir, para além da qualidade de assistente, que a decisão seja proferida contra ele, ou seja, que lhe cause prejuízo ou frustre uma expectativa ou interesse legítimos. O assistente tem interesse em pugnar pela modificação de uma decisão que não seja favorável às suas expectativas. Parece ser este o pensamento do mesmo autor, quando afirma, referindo-se ao artigo 401.º: «ao demarcar nas alíneas b), c) e d) do n.º 1 a legitimidade dos sujeitos e participantes processuais para além do Ministério Público, aquele preceito legal deixa já no essencial consignado o sentido e alcance do respectivo interesse em agir» (ob. cit., p. 349).

Deste modo, repete -se, para o assistente poder recorrer, não há que fazer -lhe outras exigências para além das que o artigo 401.º, n.º 1, alínea b), comporta: que a decisão seja relativa a um crime pelo qual se constituiu assistente (legitimidade) e seja contra ele proferida (interesse em agir).».

Assim, segundo a doutrina fixada no citado assento, o reconhecimento da legitimidade há-de ser aferido e reconhecido (ou não) caso a caso, ou seja, avaliando, em concreto, se a posição do assistente é afectada pela natureza ou medida da pena imposta ao arguido na condenação.

No caso em apreço, o assistente pede o agravamento da pena de multa aplicada ao arguido A... pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples por entender que «é insuficiente para as finalidades das penas perante dois crimes que comprovadamente cometeu, e tendo em consideração a sua condição económica e financeira.».

Significa isto que o assistente não demonstra que a pena aplicada comporta para si uma desvantagem, a frustração de uma sua expectativa ou interesse legítimo, isto é, que afecta as suas posições e os seus direitos, designadamente os que pretende fazer valer no âmbito do pedido cível.

O que o assistente invoca como justificação para o agravamento da pena aplicada ao arguido A... diz respeito ao interesse punitivo do Estado cuja defesa pertence ao Ministério Público e não ao assistente.

A posição do assistente não é minimamente afectada ou diminuída pela punição imposta ao arguido pelo que, em concreto, carece de interesse em agir para impugnar a medida da pena aplicada no tribunal recorrido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples([4]).

Consequentemente, não se conhece do recurso do assistente na parte relativa à medida da pena aplicada pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples por carecer de interesse em agir.

2.2. Passemos, então, a conhecer do recurso do assistente

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([5]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([6]).

Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, bem como o já decidido em sede de questão prévia, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

- impugnação da matéria de facto;

- dispensa da pena;

- danos patrimoniais.

2.2.1. Da impugnação da matéria de facto

Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.

É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento([7]).

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa([8]).

Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:

«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).

Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º)([9]).

Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite.

Como se entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.

São inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.

Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível (reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1ª instância.

À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.

Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.

Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado([10]).

O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão([11]).

Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos ao recorrente, torna-se evidente que estes não foram observados como se constata da leitura quer da motivação, quer das conclusões do recurso.

Na verdade, se dúvidas não há que o recorrente indicou os pontos de facto que entendeu incorrectamente julgados (pontos 4, 8 e 9 dos factos provados), o mesmo não ocorre com o ónus de indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos suportes técnicos, posto que, tendo sido gravadas as provas orais, em parte alguma da motivação específica por referência aos suportes técnicos as que impõem decisão diversa, isto é, não indica a localização da gravação das declarações através das quais fundamenta a sua discordância relativamente aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto e as provas tenham sido gravadas, o recorrente deve também indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as provas que devem ser renovadas, fazendo tais especificações por referência ao consignado na acta, devendo ainda indicar concretamente as passagens (das gravações) em que funda a impugnação.

Embora tivesse indicado prova, nomeadamente as suas declarações, as declarações do arguido B... e o depoimento prestado pela testemunha H... , que, no seu entender, deveria levar a decisão diferente do tribunal recorrido, certo é que o recorrente não indicou as passagens ou os concretos segmentos de tais declarações e depoimento que tivessem a virtualidade de fazer inverter a decisão proferida sobre a matéria de facto – a alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º reporta-se a provas que imponham decisão de facto diversa([12]).

Ao discorrer sobre a apreciação da prova, fazendo apelo a tais declarações e depoimento, o recorrente dispensou-se de indicar os concretos excertos em que se funda a impugnação, assim como também não os indicou por referência aos suportes técnicos de forma específica e individualizada.

Tendo sido, como foi, consignado em acta o início e o termo das declarações e dos depoimentos, essa especificação não se confunde com a transcrição das declarações prestadas no decurso da audiência de julgamento, como se limitou a fazer o recorrente.

Aliás, o legislador do Código de Processo Penal de 2007, através da Lei n.º 48/07, de 29/8, abandonou a transcrição da audiência de julgamento para pôr termo a uma das principais razões de morosidade na tramitação do recurso; o recorrente pode transcrever as passagens mas não é obrigado; o tribunal “ad quem” é que procede à audição ou visualização das passagens indicadas e outras que, porventura, repute relevantes, clarificou o legislador na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X que precedeu a Lei n.º 48/07, de 29/8.

Assim, tendo sido consignado em acta o início e o termo das declarações prestadas, a prova não deve ser transcrita, devendo o tribunal de recurso proceder ao controlo desta prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (artigo 412.º, n.º 6), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (artigo 412.º, n.º 4), sendo para esse efeito postas à disposição dos sujeitos processuais que o requeiram cópias da gravação (artigo 101.º, n.º 3).

O recorrente não cumpriu, portanto, o ónus de impugnação especificada, apesar de o programa de reprodução da gravação da prova oralmente produzida em audiência de julgamento, auto-executável a partir de suporte informático (CD), no qual foram gravadas as declarações do assistente e dos arguidos e os depoimentos das testemunhas, apresentar todos os elementos necessários à indicação com a maior precisão dos segmentos de prova seleccionados, a saber: número e tipo de processo; data; identificação da diligência, do magistrado que preside, do funcionário que auxilia, nome do declarante, data e hora do início das declarações, econometria integral do andamento das mesmas, ao segundo.

Assim, cada parte seleccionada da gravação pode ser facilmente identificada com indicação da hora, minuto e segundo de início e da hora, minuto e segundo de termo.

A referência aos suportes magnéticos torna-se necessária à praticabilidade do confronto da gravação com as indicadas passagens da prova gravada em que se funda a impugnação e com os pontos controversos da matéria de facto que se pretende ver alterada.

Por isso que o artigo 412.º, n.º 4 refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação”, acrescentando o n.º 6 do mesmo preceito que [no caso previsto no n.º4] o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

O recorrente manifestou discordância sobre a decisão de facto proferida na 1ª instância e ter a intenção de a impugnar mas, para esse efeito, deveria ter dado cumprimento ao ónus de impugnação especificada nos termos do artigo 412.º, nºs 3, alínea b) e 4, o que manifestamente não fez.

O que bem se compreende pois o recurso não é um novo julgamento mas um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada.

Como tem sido repetidamente afirmado, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância([13]) ([14]).

A apreciação da prova no julgamento realizado em primeira instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe: a imediação e a oralidade. E constitui uma manifesta impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro, ao tribunal recorrido, através de um novo julgamento.

Daí a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão.

Assim, sendo certo que o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado, refira-se que tal omissão não dá lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso já que as deficiências afectam o próprio corpo da motivação, ou seja, não estamos perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiência substanciais da própria motivação.

Neste caso, quando o corpo das motivações não contém as especificações exigidas por lei, já não encontramos insuficiência das conclusões mas sim insuficiência do recurso com a cominação de não poder a parte afectada ser conhecida([15]).

A situação em presença é inteiramente similar àquela que levou o Supremo Tribunal de Justiça a referir que o «convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do direito ao recurso»([16]).

Neste sentido se pronunciou também o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 259/2002, ao referir “quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 412º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.”([17]).

A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.

Seguindo esta orientação, que se perfilha, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 140/2004, veio uma vez mais proclamar que não é inconstitucional a norma do art. 412.º n.º 3, al. b) e n.º 4, do CPP quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências([18]).

De acordo com o disposto no artigo 431.º, b), havendo documentação da prova, a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3, o que, como vimos, não ocorre no caso em apreço.

Na circunstância do não acatamento do ónus de impugnação especificada, tem-se entendido, como decorrência da sua própria noção([19]), não ocorrer o condicionalismo referido na alínea b) do artigo 431.º, tornando-se inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, o que implica que se tenha a mesma por assente.

Improcede, portanto, a questão da impugnação ampla da matéria de facto.

2.2.2. Da dispensa de pena

Alega o recorrente que o Ex.mo Juiz a quo interpretou erradamente o n.º 2 do artigo 186.º do Código Penal e, em face dos factos que deu erradamente como provados, isentou de pena o arguido A... relativamente ao crime de injúria.

Como liminarmente se poderá concluir, resultando improcedente o recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, que se mantém intangível, o mesmo terá que necessariamente improceder também no que se refere a esta pretensão.

A este respeito ponderou-se na sentença recorrida que os factos ocorreram num quadro em que o arguido A... sente a sua propriedade, que é vedada devassada por uma pessoa com quem tem desavenças há anos decorrentes de outras questões.

Mais se ponderou que a entrada do assistente na propriedade se fez contra a vontade expressa do arguido, na medida em que procedeu á vedação da mesma e colocou um aviso na zona do portão, dirigido aos funcionários da EDP, portão esse que se encontrava fechado, desconhecendo-se se à chave ou apenas um cordão, mas seguinte com um trinco para impedir que as vacas saíssem do local.

E que o assistente, não obstante saber tais factos, insistiu na sua entrada e após ter sido alertado da falta de consentimento teimou em continuar pelo que se concluiu pela existência de injusta provocação por parte do assistente e, consequentemente, pela aplicação do regime do artigo 186.º, n.º 2 do Código Penal.

Deste modo, concluiu-se que a injúria, sendo adjectiva e referencial à circunstância concreta, será não punível nos termos do n.º 2 do artigo 186.º do Código Penal, isentando-se, assim, de pena o arguido A... .

Por conseguinte, uma vez que os factos provados permitem concluir que a ofensa do arguido A... foi provocada por uma conduta repreensível do assistente, não merece censura a sentença recorrida ao decretar a dispensa ou isenção de pena em relação ao crime de injúria, nos termos do n.º 2 do artigo 186.º do Código Penal.

Improcede, portanto, esta questão

2.2.3. Dos danos patrimoniais

A título de danos patrimoniais, ao nível de danos emergentes, reclama o assistente/demandante o pagamento da importância de € 1.500,00 relativa aos honorários devidos ao seu ilustre mandatário.

Nos termos do disposto no artigo 129.º do Código Penal a indem­nização por perdas e danos emergentes de um crime é re­gulada pela lei civil.

O princípio geral que rege nesta matéria é o consignado no artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil, segundo o qual “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente um direito de outrem (...) fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Daqui resulta que são pressupostos do dever de indemnização, decorrente de responsabilidade civil por factos ilícitos: o facto; a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo causalidade entre o facto e o dano.

Discutida a causa o tribunal a quo considerou como não provado que o assistente tenha pago a importância de € 1.500,00 de honorários ao seu mandatário, facto este que não foi impugnado pelo recorrente.

Assim, uma vez que o assistente/demandante não logrou demonstrar, como lhe competia, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, a existência deste dano de natureza patrimonial, há-de improceder, nesta parte, o pedido de indemnização civil formulado contra o arguido/demandado A... por faltar, desde logo, um dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos.

Improcede, portanto, também esta questão.

                                          *

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente G... e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

                                          *

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

                                          *

(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

                                          *

Coimbra, 6 de Julho de 2016

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[2] - Publicado no Diário da República, I-A Série, de 10/8/1999.
[3] - Publicado no Diário da República, I Série, de 11/3/2011.
[4] - O interesse em agir tem que poder ser controlado pelo tribunal superior, em ordem a decidir sobre a admissibilidade do recurso, como decorre do disposto nos artigos 414.º, nºs 2 e 3 e 420.º, n.º 1, b) do Código de Processo Penal. Por isso, para este efeito, só se pode entrar em linha de conta com as tomadas de posição do assistente que estejam documentadas no processo, as únicas susceptíveis desse controlo – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2011, Diário da República, I Série, de 11/3/2011, p. 1415.
[5]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[6] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[7] - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recurso em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.
[8] - Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[9] - Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de bastar, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012, de 8/3, publicado no DR, I Série, de 18/4/2012.
[10] - Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.

[11] - Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[12] - Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Julho de 2006, www.stj.pt, com este normativo “visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Terá, pois, de se ir para uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos”.
[13] - Cfr. Germano Marques da Silva, Código de Processo Penal, vol. II, Lisboa 1999, pág. 65; Cunha Rodrigues, Recursos, in O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra, 1989, pág. 393; José Manuel Damião da Cunha, A estrutura dos recursos na proposta de Revisão do CPP - Algumas Considerações, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260; Vínicio Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra, 2008, págs. 848-849; na jurisprudência, os Acórdãos do TC n.º 59/2006, 677/99, 322/93, 124/90, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 11-11-2004, Proc.º n.º 04P3182, de 17-2-2005, Proc.º n.º 04P4324, de 17-3-2005, Proc.º n.º 05P129, 15/12/2005, Proc. 2951/05, de 23-3-2006, Proc.º n.º 06P547, de 20-7-2006, Proc.º n.º 06P2316, de 10/1/2007, Proc. 06P3518, de 31-5-2007, Proc.º n.º 07P1412, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e de 18-10-2006, in CJ, ACSTJ, ano XIV, tomo 3, pág. 210.
[14] - «(…) O julgamento em 2ª instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas e admitidas alegações escritas)» - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/2006, de 18/01/2006.
[15] - Acórdão da Relação de Coimbra de 25/6/2008, disponível em www.dgsi.pt/jtrc.
[16] - Acórdão do STJ de 31/10/2007, disponível em www.dgsi.pt/jstj.
[17] - Acórdão de 18/6/2002, publicado no D.R., II Série, de 13/12/2002.
[18] - Acórdão de 10/3/2004, publicado no D. R., II Série, de 17/4/2004.
[19] - Um ónus consiste na necessidade de observância de determinado comportamento como pressuposto de obtenção de determinada vantagem, que até pode cifrar-se em evitar a perda de um benefício ou faculdade, no caso, a de viabilizar o recurso sobre a matéria de facto.