Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1846/12.2TBFIG-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INSOLVÊNCIA
DÍVIDA NÃO ACEITE PELO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
MEIOS AO ALCANCE DO CREDOR
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 89º, NºS 1 E 2 DO CIRE.
Sumário: I - Não aceitando o administrador da insolvência a qualificação de uma dívida como sendo da massa insolvente não compete ao juiz do processo decidir incidentalmente a questão e ordenar o seu pagamento.

II - Ao credor respetivo cabe então instaurar contra a massa a ação ou execução em que essa natureza seja invocada, observado o disposto no art.º 89º, nºs 1 e 2 do CIRE.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de insolvência de F..., Lda, veio o Sr. Administrador da Insolvência requerer que se declarasse que um conjunto de dívidas atinentes a um veículo apreendido para a massa insolvente inerentes a taxas de portagem, coimas, juros de mora e custas que foram reclamadas pela Autoridade Tributária não são dívidas da massa insolvente mas exclusivamente do gerente da devedora (uma vez que teriam resultado do uso do veículo em seu único proveito após a declaração de insolvência).

Por despacho datado de 12.12.2019 foi o requerimento indeferido com o fundamento de que, não reconhecendo o administrador da insolvência tal dívida como sendo da massa insolvente, não era ao juiz da insolvência que competia impor essa qualificação, antes cabendo ao credor instaurar (na sede própria) a acção destinada a obter a condenação da massa no respectivo pagamento.

Em 01.07.2020 voltou o Mº Pº a requerer que as dívidas reclamadas pela Autoridade Tributária no valor de € 8.115,79 fossem qualificadas como dívidas da massa insolvente, ordenando-se o seu pagamento.

Sobre este novo requerimento recaiu o despacho proferido em 11.12.2020 no qual se indeferiu o requerido por se encontrar esgotado o poder jurisdicional com o anterior despacho de 12.12.2019.

Inconformado, deste veredicto recorreu o Mº Pº, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São estes os pressupostos da decisão recorrida:

1.Por sentença de 23.08.2012 foi declarada a insolvência de F..., Lda;

2. A Autoridade Tributária e Aduaneira de Coimbra remeteu ao Sr. Administrador da Insolvência uma certidão de dívida da devedora em 02.12.2019 no valor de €8.035,48, referente a IUC, taxas de portagem, coimas e juros de mora;

3. Desse valor o Sr. Administrador da Insolvência pagou apenas as dívidas de IUC no montante de € 2.292,91.

4. O restante montante em dívida foi gerado por portagens devidas entre a data da declaração de insolvência e 10.10.2013, data da venda do veículo ....

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação – e delimitam o presente objeto recursivo – o apelante levanta como única questão a que se prende com saber se deveria ter sido ordenado ao Sr. Administrador da Insolvência que pagasse a dívida constante da certidão fiscal junta por se tratar de uma dívida da massa insolvente com pagamento prioritário nos temos dos art.ºs 51º e 172º, nºs 1 e 3 do CIRE.

Contra-alegou a Massa Insolvente, representada pelo AI, pugnando pela confirmação do decidido.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

Apreciando.

A decisão recorrida indeferiu a pretensão do Mº Pº- agindo este em representação do Estado – Autoridade Tributária e Aduaneira – com o fundamento de que, tendo havido já um pronunciamento sobre o tema em decisão proferida em 12.12.2019 a requerimento do Administrador da Insolvência, estava esgotado o poder jurisdicional do tribunal, ex vi do art.º 613º, nº 1, do CPC, uma vez que naquela anterior decisão se negou que competisse ao juiz da insolvência impor ao Administrador da Insolvência a qualificação de uma dívida como dívida da massa insolvente, devendo tal qualificação ter lugar em acção intentada pelo credor com vista à respectiva cobrança. 

Insurge-se o apelante Mº Pº contra o assim prolatado por nem ele nem a Autoridade Tributária e Aduaneira terem sido notificados do despacho de 2019.

Mas não tem razão.

Com efeito, nem o Mº Pº nem a ATA (Autoridade Tributária e Aduaneira) tinham até então requerido o que quer que fosse, pelo que, sem embargo de terem um evidente interesse na questão, não se impunha a sua notificação.

A decisão proferida em 2019 remeteu a questão da qualificação da dívida como dívida da massa para uma acção a intentar pelo credor, rejeitando a forma meramente incidental da sua apreciação pelo juiz da insolvência. Admitir agora que, a requerimento do Mº Pº (em representação da ATA), se passasse a aceitar aquela decisão incidental no processo de insolvência, não só seria contraditório e proibido pela regra do esgotamento do poder jurisdicional do nº 1 do art.º 613º do CPC, como afrontaria o caso julgado formal (art.º 620º do CPC) resultante da não impugnação daquele precedente despacho.

A decisão recorrida não merece, por isso, qualquer crítica.

Mas ainda que assim não fosse, sempre se dirá que o entendimento de fundo que ficou subjacente ao despacho ora recorrido – no sentido de a qualificação da dívida como dívida da massa não poder ser incidentalmente decidida pelo juiz da insolvência – não suscita qualquer reparo ou objecção.

Com efeito, dívidas da massa insolvente são aquelas que estão previstas nas várias alíneas do nº 1 do art.º 51º do CIRE, “além de outras como tal qualificadas neste Código”, salvo preceito expresso em contrário.

Esta qualificação não cabe unilateralmente aos credores, mas, em primeira linha, ao administrador da insolvência que as deve pagar “nas datas dos respectivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo”, devendo ainda assegurar e provisionar o seu pagamento quando seja previsível a sua constituição ou reconhecimento – cfr. os nºs 1, 3 e 4 do art.º 172º do CPC.

Recusado o pagamento da dívida pelo administrador da insolvência, o apuramento da natureza do crédito, ou o contraditório da massa insolvente, só são adequadamente alcançados no quadro de uma acção declarativa ou de uma oposição numa acção executiva. Uma decisão meramente incidental e sumária da qualificação da dívida como dívida da massa seria sempre aligeirada, correndo o risco de ser injusta ao desprezar a audição do credor e a prova que este poderia carrear.

Quando o pagamento de uma dívida da massa insolvente pelo administrador não ocorra no tempo devido não fica o credor da massa impedido de fazer valer o seu crédito. Se dispuser de um título executivo poderá executar os bens da massa após o decurso de três meses sobre a declaração de insolvência[1]; não tendo título executivo, terá de lançar mão de uma acção visando o reconhecimento do seu crédito e a condenação da massa insolvente no respectivo pagamento (como dívida da massa), de harmonia com o disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 89º do CIRE. Esta acção correrá por apenso ao processo de insolvência, salvo quanto às dívidas tributárias, em que a sua execução – e de execução se trata porque aqui não é necessária a instauração de acção declarativa para a condenação do devedor – terá de correr no tribunal materialmente competente (cfr. o nº 2 do art.º 89º do CIRE).

Em suma: o credor da massa insolvente por dívida abrangida pelo art.º 51º do CIRE deve aguardar pelo seu pagamento na data do vencimento pelo administrador da insolvência; na hipótese de tal não acontecer – designadamente quando este não a considere dívida da massa – resta-lhe a propor contra esta a acção declarativa ou executiva, consoante o título de que disponha, destinada a fazer valer o seu crédito, sem que lhe seja permitida a instauração de execução antes de decorridos três meses sobre a declaração de insolvência.   

Em consequência, o recurso soçobra.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Sem custas.

                                            Coimbra, 9 de Março de 2021

Sumário
1. Não aceitando o administrador da insolvência a qualificação de uma dívida como sendo da massa insolvente não compete ao juiz do processo decidir incidentalmente a questão e ordenar o seu pagamento.
2. Ao credor respetivo cabe então instaurar contra a massa a ação ou execução em que essa natureza seja invocada, observado o disposto no art.º 89º, nºs 1 e 2 do CIRE.

 


***


[1] Ao invés do que vem alegado pelo recorrente, não é para aqui invocável o disposto no art.º 90º do CIRE, pois que não só os credores da massa insolvente não estão submetidos à forma de exercício dos direitos dos credores da insolvência durante o processo de insolvência como o seu pagamento é anterior ao pagamento destes, nos termos do nº 1 do art.º 172º do CIRE.