Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5418/19.2T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONDIÇÕES DE VERIFICAÇÃO
Data do Acordão: 12/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 3º DO CIRE.
Sumário: 1. O incumprimento generalizado das obrigações vencidas não é bastante para se verificar uma situação de insolvência atual.

2. O que carateriza a situação de insolvência é a impossibilidade de cumprimento enquanto incapacidade económico-financeira, o que exige uma avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as obrigações vencidas.

3. Ainda que se verifique o incumprimento de todas as dívidas vencidas, se os elementos existentes apontam no sentido da superioridade do ativo sobre o passivo, não se pode afirmar que a herança se encontre em situação de insolvência atual.

Decisão Texto Integral:









Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

Nos presentes autos de Processo Especial para Acordo de Pagamento, instaurado pela Herança Ilíquida e Indivisa por óbito de H..., foi proferido despacho a indeferir liminarmente o procedimento em causa, com fundamento em que os factos alegados pela requerente permitem concluir que a mesma se encontra já em situação de insolvência.

Não se conformando com tal decisão, a Requerente dela interpõe recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

I- O PEAP deveria ter sido deferido liminarmente.

II- Apenas os factos alegados pela Recorrente da existência de um passivo um crédito vencido de €195.000,00 e de uma ativo de €922.281,36, não podiam ser suficientes, de molde a poder permitir ao Tribunal “a quo” a conclusão de “que a Requerente se encontra impossibilitada de cumprir, de forma generalizada, as suas obrigações vencidas.”

III- A afirmação “tivesse a mesma qualquer tipo de liquidez não estaria em dívida, desde logo à Autoridade Tributária, no valor de 15.000,00€, sendo que só pelo facto de ter na sua titularidade bens imóveis que podem ter um valor global superior ao valor da dívida não a coloca numa situação de solvência nem numa situação económica apenas difícil (que pressupõe ainda, não obstante a dificuldade, a possibilidade de cumprir a generalidade das suas obrigações ou a iminência do seu incumprimento).” é falaciosa e totalmente desprovida de sentido, na medida em que permite a confusão entre “liquidez” e “situação de insolvência”, quando na verdade são realidades absolutamente distintas.

IV- Não existem no articulado factos que permitem ao Tribunal concluir ainda que a Recorrente “se encontra impossibilitada de cumprir, de forma generalizada, as suas obrigações vencidas, tendo já ultrapassado os limites da iminência (de insolvência), integrando uma verdadeira situação de insolvência, na definição contida no artigo 3.º, n.º 1, do CIRE”, pois ao longo de toda a PI a Recorrente afirmou precisamente o contrário - padecendo assim, a sentença de falta de fundamentação.

V- Num PEAP a análise da efetiva situação económico-financeira do devedor depende de uma multiplicidade de fatores e circunstâncias e bem assim da sua própria evolução; fatores e circunstâncias essas cuja apreciação, nesta fase tão precoce, o Tribunal não tem tempo para fazer, devendo, assim e na dúvida, deferir o PEAP, permitindo à Requerente do mesmo a possibilidade de se recuperar.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais ao abrigo do nº 4 do artigo 657º CPC cumpre decidir do objeto do recurso.  
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se o circunstancialismo de facto alegado no requerimento inicial denuncia uma situação de insolvência atual.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A primeira decisão judicial a proferir, quer no Processo Especial de Revitalização (PER), quer no Procedimento Especial de Apresentação a Pagamento (PEAP), é o despacho de nomeação do administrador judicial provisório, que equivale a um despacho de deferimento ou de abertura do processo[1].

No caso em apreço o juiz a quo proferiu despacho de indeferimento liminar, com fundamento em que, destinando-se o procedimento em causa aos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente eminente, dos factos alegados pela requerente resulta, desde logo, ter a mesma ultrapassado os limites da iminência, integrando uma verdadeira situação de insolvência atual.

Insurge-se a apelante quanto a tal apreciação, com fundamento em que, resultando da sua alegação:

- ser o seu ativo (no valor de 922.281,36€) 6 vezes superior ao seu passivo (no valor global de 195.000,00€);

- ter apenas três credores;

- auferir rendimentos anuais de um dos imóveis no valor 12.000,00€,

e que, não obstante reconhecer encontrar-se em situação económica difícil e que nem sempre consegue cumprir de forma pontual as suas obrigações, tal não significa que se encontre totalmente impossibilitada de as cumprir.

Mais alega a Apelante que na decisão recorrida se confunde falta de liquidez com a situação de insolvência.

Vejamos, assim, quais os factos alegados pela apelante no seu requerimento inicial que possam ter interesse para a avaliação da sua situação económica:

- no ano 2000 o falecido decidiu criar uma empresa de construção civil que veio a ser declarada insolvente em 27 de abril de 2012;

- o falecido e alguns dos seus herdeiros haviam avalizado as dividas de tal empresa;

a requerida está a ser alvo de acionamento do Banco X... (única dívida à Banca), que contra si instaurou no corrente mês uma ação de insolvência;

- a requerente tem os seguintes credores:

i) autoridade tributária, vencido em 2019, no montante de 15.000,00 €;

ii) X... , vencido em 2018, de cerca de 150.000,00 €;

iii) F..., vencido em 2012, no montante de 30.000,00 €)

- o falecido era casado no regime da comunhão de adquiridos;

- do património comum do dissolvido casal, fazem parte 7 imóveis, no valor global de 922.281,36€;

- um dos imóveis  encontra-se arrendado pela renda anual de 12.000,00 €,

 O processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor, que não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento (artigo 222º-A do CIRE).

Não definindo o Código o que pode entender-se por insolvência “iminente”, tratar-se-á necessariamente de um estado anterior à insolvência, o que nos remete para a noção de insolvência, definida pelo nº 1 do artigo 3º CIRE como a situação “do devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

A insolvência iminente é a situação em que é possível prever/antever que o estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações num futuro próximo, designadamente quando se vencerem estas obrigações[2].

No caso de pessoas coletivas e patrimónios autónomos – a herança é um património autónomo[3] – por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente por forma direta ou indireta, o nº 2 do artigo 3º CIRE consagra um segundo fundamento para a declaração da situação de insolvência – manifesta superioridade do passivo sobre o ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis[4].

Já a situação económica difícil é definida pelo artigo 222º-B como a situação do devedor que “encontrar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”.

Segundo Nuno Salazar Casanova e David Serqueira Dinis, na situação económica difícil o devedor não poderá estar impossibilitado de cumprir a generalidade das suas obrigações. Pode cumpri-las, ainda que com sérias dificuldades, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito. “É o caso de o devedor que tem património para responder perante as suas dívidas, mas não tem fundos suficientes e, como tal, apenas consegue extinguir as suas obrigações, através de pagamentos em espécie, dações em cumprimento ou cessão de créditos ou outros direitos (o que pressupõe o acordo de credores) ou vendendo os seus ativos a um preço abaixo do valor de mercado a fim de obter liquidez imediata[5]”.

O caso em apreço assume a particularidade de se tratar de uma herança indivisa em que se pode afirmar, face à factualidade alegada, verificar-se já um incumprimento da generalidade das suas obrigações vencidas, o que levou o juiz a quo a qualificar tal situação como de insolvência “atual”.

Contudo, não é o incumprimento, ainda que generalizado das suas obrigações vencidas, que carateriza a situação de insolvência, mas a “impossibilidade de cumprimento”, impossibilidade esta que não se reporta ao conceito de incumprimento tal como é definido pelo direito civil[6].

O termo impossibilidade é mais económico-financeiro do que técnico jurídico. Ele reporta-se à falta de meios económicos, em particular numerário, ou à falta de meios financeiros da empresa (porque goza de crédito), nos quais se incluem as possibilidades de financiamento que, uma vez mobilizadas, permitiriam fazer face às suas obrigações vencidas assegurando a sua viabilidade económica[7].

Tal como a doutrina vem entendendo, o incumprimento é um facto, enquanto a insolvência é um estado ou uma situação patrimonial do devedor[8].

O estado de insolvência exige um plus em relação ao incumprimento: enquanto este se refere a uma só obrigação individualmente considerada, a insolvência tem em consideração o património do devedor, assumindo um carater geral[9].

O que releva para o “estado” de insolvência não é o incumprimento das obrigações vencidas, em si mero facto, mas antes a impossibilidade de o devedor as vir a cumprir, simplesmente porque não tem meios. O incumprimento de uma ou mais obrigações só tem importância na estrita medida em que resulte da situação de insuficiência do ativo para fazer face ao passivo vencido. O incumprimento aparece como uma manifestação externa da situação de ruína financeira – é a impossibilidade de pagar e não o incumprimento em si, o elemento essencial da insolvência[10].

Como sustenta Manuel Requicha Ferreira[11], a verificação desta incapacidade económico-financeira exige uma avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as obrigações vencidas deste. A capacidade de cumprir exige uma análise do ativo e do passivo para aferir da existência de meios económicos e financeiros, mas atende igualmente às manifestações daquela incapacidade de cumprir através de determinados fatores externos, incluindo o incumprimento.

 Voltando ao caso em apreço, e ainda que apreciado o património da herança de um ponto de vista mais realista do que o da Requerente – das certidões matriciais que acompanham o requerimento inicial resulta um valor patrimonial dos imóveis no montante global de 580.980,62€; tratando-se de bens comuns do dissolvido casal, a herança será constituída unicamente pela meação no património comum (correspondente a metade daquele valor) –, ainda assim o valor do ativo, no montante de 290.980,62€ (acrescido de um rendimento anual de 12.000,00€, resultando do arrendamento de um dos imóveis) permaneceria superior ao valor do passivo alegadamente existente no montante global de 195.000,00€.

Constituindo a herança um património autónomo destinado a extinguir-se com a partilha, mais sentido faz fazer coincidir a sua situação de insolvência com a mera superioridade do passivo sobre o ativo.

Concluindo, a factualidade alegada pela Requerente (e neste momento só a esta nos podemos ater, não se exigindo a alegação da recuperabilidade do devedor nem comprovação da sua situação de pré-insolvência, para além da junção do atestado referido no nº 2 do art. 222º-A e dos doc. previstos no nº 3 do art. 222º-C) não nos permite, por si só, concluir que a herança se encontre numa situação de insolvência atual.

Não se confirmando o fundamento de rejeição do requerimento inicial, a Apelação é de proceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, devendo ser proferida decisão nos termos previstos no nº 4 do artigo 222º-C do CIRE.

Sem custas.

                                                       Coimbra, 03 de dezembro de 2019

                                                                             

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

1. O incumprimento generalizado das obrigações vencidas não é bastante para se verificar uma situação de insolvência atual.

2. O que carateriza a situação de insolvência é a impossibilidade de cumprimento enquanto incapacidade económico-financeira, o que exige uma avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as obrigações vencidas.

3. Ainda que se verifique o incumprimento de todas as dívidas vencidas, se os elementos existentes apontam no sentido da superioridade do ativo sobre o passivo, não se pode afirmar que a herança se encontre em situação de insolvência atual.


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[1] Neste sentido, Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, p.378.
[2] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2019, p.63. Em igual sentido, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, “Curso de Direito Comercial”, Vol. I (Introdução, Actos de Comércio, Comerciantes, Empresas, Sinais Distintivos), Almedina, 10ª ed., 2016, p.139, e Miguel Pestana de Vasconcelos, “Recuperação de empresas: o processo especial de revitalização”, 2017, Almedina, p. 41. Tal avaliação resultará de um juízo de prognose: “a eminência da insolvência carateriza-se pela existência de circunstâncias que, não tendo conduzido ainda ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já atual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exatamente pela insuficiência do ativo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível” – Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., 2015, QUID JURIS, p.87.
[3] Só a herança responde pelas suas dívidas e os bens hereditários só por elas respondem, traços esses próprios dos patrimónios autónomos – Luís A. Carvalho Fernandes, “Lições de Direito das Sucessões”, QUID JURIS, p.328.
[4] Para Catarina Serra, a explicação para a existência de tal fundamento radica em que, naqueles casos, a superioridade manifesta do passivo sobre o ativo se traduz normalmente na impossibilidade de cumprir obrigações vencidas, pois não existe, em princípio, possibilidade de “crédito pessoal – “A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito”, Coimbra Editora, págs. 239 e 240.
[5] “PER, O Processo Especial de Revitalização”, Comentários aos artigos 17º-A a 17º-I do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora 2014, pp.22-23.
[6] Não se identificando com a impossibilidade, objetiva ou subjetiva, temporária ou definitiva, de cumprimento prevista nos arts. 790º, 791º, 792º e 801º, do Código Civil.
[7] Manuel Requicha Ferreira, “Estado de Insolvência”, in Direito da Insolvência, Estudos, Coord. Rui Pinto, Coimbra Editora, págs. 228 e 229.
[8] Catarina Serra, “A Falência no Quadro (…), pág. 234. Para esta autora, “A impossibilidade caraterizadora da insolvência é o que pode chamar-se um “conceito funcional”, conceito que, por força do seu enquadramento normativo e da função que desempenha, deve ser associado a uma determinada situação patrimonial, económica ou contabilística do devedor, susceptível de afectar de forma indeterminada ou não imediatamente determinável, a generalidade das suas obrigações” (obra citada, p. 236, nota 622).
[9] Manuel Requicha Ferreira, “Estado de Insolvência”, in “Direito da Insolvência, Estudos”, Coordenação de Rui Pinto, pág. 221.
[10] Nuno Maria Pinheiro Torres, “Pressuposto Objetivo do Processo de Insolvência”, Direito e Justiça, Vol. XIX 2005, T II, Universidade Católica Portuguesa Faculdade de Direito, p. 169.
[11] Artigo e local citados, pág. 230.