Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
348/13.4GBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: FURTO
INDEMNIZAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CONDENAÇÃO EM DANO FUTURO
Data do Acordão: 01/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CALDAS DA RAINHA (SECÇÃO CRIMINAL - JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 473.º E 474.º, DO CC; ART. 410.º, N.º 2, AL. A), DO CPP; ARTS. 609.º, N.º 1, E 615.º, N.º 1, AL. E), DO CPC
Sumário: I - O arguido absolvido por crime de furto, pelo corte de eucaliptos, não pode ser condenado em indemnização cível, com base no enriquecimento sem causa, dada a natureza subsidiária desta obrigação, uma vez que a herança enquanto lesada pode e deve demandar o co-herdeiro responsável que autorizou o arguido à prática do acto danoso, por se arrogar dono da propriedade que lhe prometeu vender.

II – Tendo a demandante formulado pedido de indemnização pelos prejuízos, reportados à data da prática dos factos, não pode o tribunal condenar o demandado cível no valor que os eucaliptos teriam em data posterior, adequada para corte, traduzindo-se em dano futuro, não formulado, sob pena de nulidade da sentença, por condenação em pedido superior, com violação dos artigos 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

No processo supra identificado, foi o arguido A... , solteiro, nascido a 17/09/1966, em Bombarral, filho de (...) e de (...), empresário, residente na Rua (...) Óbidos, julgado pela prática de um crime de furto p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, do CP.

A demandante, Herança Aberta por Óbito de B..., representada pela cabeça de casal, C..., deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), correspondente ao valor da madeira que o arguido alegadamente lhe furtou.

Tendo sido realizada perícia para determinação da quantidade e qualidade dos eucaliptos que terão sido cortados pelo arguido, veio a demandante civil a reduzir o pedido cível para a quantia de € 3.637,31.

O arguido foi absolvido do crime que lhe era imputado e condenado no pedido de indemnização cível, de € 3.637,31(três mil, seiscentos e trinta e sete euros e trinta e um cêntimos), com base no enriquecimento sem causa.


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Da sentença interpôs recurso o arguido, pugnando pela revogação da mesma e consequente ser absolvido do pedido cível, não podendo ser condenado por enriquecimento sem causa e alegando ainda existir nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, ao condená-lo em dano futuro, cujo fundamento não constava do pedido formulado.

Formula as seguintes conclusões:

I - No caso em apreço, o arguido foi absolvido do crime de furto por que vinha acusado, por o Tribunal a quo ter considerado, e bem, não estar verificado o elemento subjectivo do tipo de crime tendo, consequentemente, considerado o pedido de indemnização civil deduzido pela queixosa improcedente, por não provado.

II - No entanto, proferiu Sentença a condenar o demandado/arguido a pagar à demandante/queixosa a quantia de € 3.637,31 (três mil seiscentos e trinta e sete euros e trinta e um cêntimos), a título de Enriquecimento Sem Causa.

III - Ao decidir desta forma, o Tribunal a quo não teve em consideração que tal Instituto não serviu de fundamento pela demandante para dedução do Pedido de Indemnização Civil, nem tão pouco que este Instituto nunca foi alegado pela mesma em alguma fase do processo, extravasando desta forma os poderes jurisdicionais que lhe foram atribuídos.

IV - Assim mesmo tem entendido a melhor Doutrina e Jurisprudência, conforme Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-03-2013, disponível in www.dgsipt, que refere que "Constitui nulidade processual, nos termos do Art. 668.º, n.º 1, al. d), do CPC, a sentença que, conhecendo de questão que não lhe fora suscitada, considerou que o direito da Autora resultava do disposto no Art. 473.º, do CC, ou seja, no instituto do enriquecimento sem causa, porquanto a Autora não invocou na petição inicial o enriquecimento sem causa".

V - Salientando ainda que "Revela-se pacífico na jurisprudência o entendimento de que o enriquecimento sem causa não é susceptível de conhecimento ex oficio [A título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 23-05-1985, proferido no Processo n.º 072389, também acessível no site da DGSI], como se ilustra com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.10.1998", disponível in www.dgsi.pt, o qual refere expressamente que «O enriquecimento sem causa não é de conhecimento oficioso, tendo que ser oportunamente invocado pelo interessado no articulado respectivo».

VI - Deste modo, e uma vez que o Instituto do Enriquecimento Sem Causa não é do conhecimento oficioso, a Douta Sentença padece de nulidade, por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379.°, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, e no art. 668.°, do Código de Processo Civil, na alínea d) do n.º 1, actual art. 615.° do NCPC: “A sentença é nula quando o tribunal (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

VII - Por outro lado, e relativamente aos pressupostos da aplicação do Instituto do Enriquecimento Sem Causa, dispõe o art. 473.°, n.º 1, do Código Civil que "Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou".

VIII - Ora, na presente situação, o Tribunal a quo deu como provado que "(…) foi possível concluir que o arguido, em face das negociações que manteve com vista à aquisição do imóvel onde se encontravam implantados os eucaliptos a que respeitam os autos, e perante a autorização daquela que se lhe apresentou como sendo a herdeira a quem caberia o dito imóvel em partilhas e com a qual negociou a respectiva aquisição, formou a convicção de que a transmissão da propriedade do imóvel estaria iminente e que se mostrava legitimado a proceder ao corte das árvores".

IX - Ou seja, dúvidas não restam que entre a demandante e o demandado foi celebrado um contrato verbal de compra e venda, que à data ainda não se tinha formalizado apenas, e tão só, porque as partes estavam a aguardar a recolha de toda documentação necessária para a realização da respectiva escritura de compra e venda, existindo assim uma causa justificativa para a deslocação patrimonial em causa.

X - d mesmo entendimento é perfilhado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 29-05-2014, disponível in www.dgsi.pt, ao referir que "…a causa do enriquecimento sempre emergiria do contrato celebrado, do qual resultam os deveres de prestação das partes, não podendo falar-se de inexistência de causa justificativa para prestação contratual realizada".

XI - Deste modo, e mesmo partindo do princípio errado que o Instituto do Enriquecimento Sem Causa poderia ser do conhecimento oficioso, o mesmo nunca poderia ser aplicado no caso subjudice porquanto, e salvo melhor entendimento, não estão preenchidos todos os seus pressupostos.

XII - Finalmente, o art. 615.°, n.º 1, alínea e) do NCPC, anterior art. 668.°, n.º 1, alínea e), estabelece que o Tribunal não pode condenar em quantidade superior ao peticionado, no entanto, e salvo o devido respeito, tal principio não foi tido em consideração na Douta Sentença.

XIII - Ora, pela queixosa foi deduzido Pedido de Indemnização Civil, peticionando, a título de danos patrimoniais, o montante de € 15.000,00 (quinze mil euros) referente ao valor dos eucaliptos à data do corte, acrescido de juros vincendos até integral pagamento, o qual foi reduzido para a quantia de € 3.637,31 (três mil seiscentos e trinta e sete euros e trinta e um cêntimos) após realização de perícia.

XIV - De acordo com a perícia realizada, o montante de € 3.637,31 (três mil seiscentos e trinta e sete euros e trinta e um cêntimos) refere-se ao valor que a madeira teria na data aconselhável para o corte (2019), e não na data efectiva do mesmo (Abril de 2013), o qual ascendia a €1.649,88 (mil seiscentos e quarenta e oito euros e oitenta e oito cêntimos).

XV - Deste modo, tendo apenas sido peticionado, pela demandante, o montante referente ao valor dos eucaliptos à data do corte, e não os lucros cessantes, não poderia o Tribunal, salvo o devido respeito, condenar o arguido ao pagamento do valor que a madeira teria na data aconselhável para o corte.

XVI - Pelo que se considera que a Douta Sentença padece de nulidade ao abrigo do disposto no art. 615.°, n.º 1, alínea e) do NCPC, anterior art. 668.°, n.º 1 alínea e).


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A herança aberta por óbito de B..., demandante cível afectada pelo recurso, exerceu o direito de resposta ao abrigo do disposto no art. 413.º, do CPP, sustentando que deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se integralmente a sentença recorrida, aderindo aos fundamentos dela constantes.

Nesta instância, os autos tiveram visto do Ex. mo Senhor  Procurador-geral Adjunto.


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Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre decidir.

Vejamos a factualidade, com interesse para a apreciação das questões suscitadas no recurso que consta dos autos e respectiva motivação.

Factos provados

«1. No mês de Abril de 2013, em data que não se pôde precisar, o arguido dirigiu-se ao prédio rústico denominado “Vale do Junco” sito em Vidais, Caldas da Rainha.

2. Tal prédio fazia parte da herança de B..., sendo que C... e D... eram os seus únicos herdeiros.

3. Ali chegado, o arguido procedeu ao corte dos eucaliptos que ali se encontravam plantados.

4. Aos referidos eucaliptos foi atribuído pelos proprietários o valor de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).

5. C... era a cabeça de casal da herança aberta por óbito de B....

6. O valor da madeira retirado do imóvel identificado em 1., em Abril de 2013 era de € 1.649,88.

7. O valor daquela madeira à data aconselhável de corte, no ano de 2019, era de € 3.637,31.

8. Em data que não se pode precisar mas situada entre Janeiro e Abril de 2013, o arguido foi autorizado por E..., a proceder ao corte dos eucaliptos existentes no imóvel identificado em 1.

(…)».


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Factos não provados

«a) Que o arguido tenha procedido ao corte dos eucaliptos existentes no terreno identificado em 1., sem autorização dos proprietários.

b) Que fossem cerca de 7.500 (sete mil e quinhentos) os eucaliptos que o arguido cortou.

c) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que os eucaliptos que cortou e fez seus, não lhe pertenciam, e que agia contra a vontade dos seus proprietários.

Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

d) Que os proprietários não tenham dado autorização para o corte dos eucaliptos.

e) Que os referidos eucaliptos tinham o valor de € 15.000,00.

f) Que em consequência do comportamento do demandado descrito em 3. a demandante teve um prejuízo patrimonial de € 15.000,00».


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Motivação

O Tribunal atendeu desde logo ao teor das declarações prestadas pelo arguido cuja versão dos factos difere da acusação sobretudo quanto à falta de autorização para proceder ao corte dos eucaliptos em causa nos autos.

Na verdade, o arguido confirmou ao Tribunal ter sido o autor do corte dos eucaliptos a que respeitam os autos, o que referiu ter levado a cabo na sequência da negociação com as herdeiras, com vista à compra, do terreno identificado em 1., no qual se encontravam implantados os eucaliptos em causa, e que culminou com o acordo com uma das respectivas herdeiras, a E..., quanto à aquisição do mesmo pelo valor de € 5.000,00, a qual, sob sua solicitação, lhe deu autorização para proceder ao aludido corte.

Mais referiu que sempre foi sua intenção adquirir o imóvel onde se encontravam plantados os eucaliptos, pelo qual ofereceu o valor que considerou justo em função das respectivas características, e que estava convicto que o negócio estava definitivamente acordado, faltando a respectiva formalização com a realização da escritura de compra e venda cuja realização estava dependente da partilha entre as co-herdeiras e da rectificação de áreas e descrição do prédio que as herdeiras vinham levando a cabo.

Veio, pois, o arguido relatar ao Tribunal que meses antes dos factos em causa nos autos manifestou junto das herdeiras do imóvel identificado em 1., nomeadamente junto de C..., intenção de adquirir o referido imóvel. Referiu o arguido que tendo começado por negociar a aquisição do prédio identificado em 1. com a cabeça de casal, C..., lhe foi por aquela dito que o prédio em causa iria, por força da respectiva partilha, preencher o quinhão hereditário das suas sobrinhas, designadamente da E..., sobre cuja decisão quanto à venda e respectivo valor devia também aquela pronunciar-se. Que, por essa razão, passou a negociar directamente com a E..., a qual lhe declarou que pelo preço final que aquele propunha, € 5.000,00, venderia o terreno, caso a sua tia e irmã, restantes herdeiras, concordassem com aquele preço e que, paralelamente iria providenciar por reunir e entregar ao respectivo solicitador toda a documentação necessária à realização da escritura de compra e venda. Mais referiu que não tendo tido notícias da parte da referida E..., formou a convicção que o negócio estaria definitivamente assente nos termos previamente discutidos, assumindo que o negócio estaria concluído, faltando apenas a respectiva formalização.

Esclareceu ainda o Tribunal sobre o facto de ser proprietário de um terreno confinante com aquele a que se referem os autos, e que, encontrando-se ali a fazer o corte de madeiras, telefonou à E..., referindo que era sua intenção cortar, desde logo, os eucaliptos existentes no terreno que lhes adquirira a fim de proceder à replantação do mesmo de forma uniforme com os demais da sua propriedade e que aquela lhe deu autorização para tanto, motivo pelo qual cortou os eucaliptos ali existentes no pressuposto de que a copra e venda estaria definitivamente firmada.

Mais referiu que pretende proceder ao pagamento da madeira em causa, pelo valor justo, caso aquelas já não tenham interesse na venda do terreno, posição que, aliás, assumiu desde o momento em que C... lhe telefonou na sequência do dito corte.

Refira-se que o arguido manteve um discurso lógico, coerente, o qual não foi contraditado pela versão das testemunhas inquiridas seja porque as mesmas não tinham conhecimento pessoal dos factos por não terem sido intervenientes na negociação, ou em todos os momentos desta, seja por não se mostrarem sustentáveis quando analisadas criticamente em conjugação com os demais elementos de prova. Tal foi, designadamente, o caso do depoimento prestado pelas testemunhas C... e E..., únicas com conhecimento pessoal das negociações.

Assim, a cabeça de casal da demandante civil, C..., prestou declarações, no âmbito das quais referiu que efectivamente manteve com o arguido negociações com vista à aquisição, por aquele do dito terreno tendo, no entanto, referido que, por não aceitar os valores propostos pelo arguido, decidiu não vender o imóvel. Confirmou no entanto, ter conhecimento que, a dada altura, o arguido passou a negociar directamente com a sua sobrinha E..., desconhecendo o teor das conversações mantidas entre ambos, não crendo que aquela tenha aceite vender o imóvel por tão baixo preço. Mais referiu que lhe foi dito pela sobrinha não ter dado qualquer autorização para o corte das madeiras.

Por sua vez, a referida E..., confirmou que manteve com o arguido negociações com vista à venda do imóvel em causa o qual, iria integrar o quinhão do seu pai, e, por via disso, seria herdado por si ou pela sua irmã de acordo com discussões já mantidas entre si, a sua irmã e a tia C..., e que, por sua vontade, o venderia pelo valor oferecido pelo arguido, tendo confirmado a versão daquele quanto à sua declaração de aceitação e ainda que, se as demais herdeiras aceitassem o valor proposto (já que teria procedido a uma avaliação do imóvel que as levou a concluir que se vendido por € 5.000,00, não estaria mal vendido), venderia o imóvel, tendo-se prontificado a recolher a documentação necessária à realização da escritura de compra e venda, o que fez, tendo-a entregue ao solicitador que, por sinal, era comum ao arguido.

Negou, no entanto, que tivesse aceite, em definitivo, a celebração do negócio e bem assim, ter-lhe dado autorização para proceder ao corte dos eucaliptos.

Sucede que o depoimento da testemunha foi feito de forma hesitante, pouco assertiva e comprometida, deixando no Tribunal a ideia de que a testemunha não terá esclarecido com rigor as circunstâncias em que negociou com o arguido.

Na verdade, da confrontação entre as declarações do arguido e as declarações da própria testemunha E..., e das testemunhas F... e G..., que adiante melhor se explanarão, resulta que o arguido formou, com base na posição que a E... terá sido assumido perante si, a firma convicção de que o negócio de compra e venda do imóvel se teria firmado, designadamente, por aquela lhe ter adiantado a intenção de vender o imóvel, (apesar de aparentemente sem que tal intenção estivesse definitivamente consolidada entre si, a sua irmã e a sua tia), deixando que o arguido formasse a convicção de definitividade da compra e venda, e através do seu comportamento ao recolher e entregar ao solicitador, que também era o do arguido, a documentação necessária e ao declarar ao arguido, na sequência da avaliação que fez ao imóvel, que o vendia pelo preço oferecido pelo mesmo, perspectivando este que o negócio viria a ser formalizado logo que concluído o processo de rectificação de áreas e a partilha entre as herdeiras.

Sendo certo que as versões do arguido e de qualquer das duas herdeiras quanto ao modo como decorreram as negociações não é coincidente, a verdade é que a versão do arguido, embora oposta, não é frontalmente contrariada pela da testemunha C..., na medida em que a questão relacionada com a conclusão das negociações quanto à aquisição do imóvel e quanto ao destino dos eucaliptos ali plantados não foi concluída com aquela. Acresce ainda que aquela versão do arguido, embora contrariada pela da testemunha E..., não o foi de forma que ao Tribunal tenha permitido formar uma firme convicção, livre de qualquer dúvida quanto aos termos do comprometimento daquela perante o arguido que permitam afastar a razoabilidade da convicção daquele quanto à conclusão do negócio, confirmando, pelo contrário, a tese aventada pelo arguido.

Nessa conformidade, formou o Tribunal a convicção de que a co-herdeira E... terá efectivamente autorizado o arguido a proceder ao corte dos eucaliptos. A versão do arguido quanto a tal facto, paralelamente às fragilidades do depoimento da testemunha E..., sai reforçada, desde logo por um argumento de ordem lógica que resulta do facto de sendo o arguido um negociante de madeiras, fazendo dessa actividade a sua profissão ter este, naturalmente, como propósito dessa actividade a obtenção do lucro. Ora, é manifesto nos autos que a madeira em causa era uma madeira nova, de fraca qualidade e que o corte realizado em 2013, o foi antes da data aconselhável para o mesmo – tal resulta confirmado pelo relatório pericial -, donde se conclui que a argumentação expendida pelo arguido no sentido de que, estando seguro da aquisição do terreno em causa, e encontrando-se preparar a plantação de novas árvores no seu terreno, contíguo ao da demandante, pretendia uniformizar aquela plantação, tendo, por isso, requerido a dita autorização para proceder ao corte da madeira e a fim de posteriormente proceder à dita plantação de toda a área a fim de rentabilizar a colheita futura. Tal argumentação mostra-se lógica e razoável face a critérios de experiência comum, levando o Tribunal a concluir nos termos em que o fez.

Com efeito, as declarações prestadas pela testemunha E..., nomeadamente quanto à circunstância por si relatada de ter recolhido e entregue ao solicitador os elementos necessários à celebração da escritura de compra e venda do imóvel, quando conjugadas criticamente com as demais declarações prestadas pelas demais testemunhas com intervenção directa nos factos, e o modo comprometido com que relatou os factos levou a que o Tribunal desse como provados, e não provados, os factos supra referidos nos termos expostos.

O depoimento da testemunha F..., pouco contribuiu para o esclarecimento dos factos em causa nos autos, senão na parte em que permitiu dar credibilidade à versão do arguido no que respeita à sua intenção de adquirir o prédio em que se encontravam plantados os eucaliptos, visto que confirmou ter sido por aquele contactado com tal propósito. A mesma testemunha referiu ter sido quem contactou C..., dando-lhe conhecimento de que o arguido se encontrava a proceder ao corte dos ditos eucaliptos. No mais, não soube esclarecer por desconhecer quaisquer detalhes relativos à negociação.

Do depoimento da testemunha I..., topógrafo contratado pela cabeça de casal da demandante civil para efectuar levantamento topográfico do imóvel com vista à rectificação das referidas áreas, pese embora prestado com objectividade e isenção, não se retirou também qualquer contributo válido para a decisão, na medida em que aquele não revelou ter qualquer conhecimento referente aos factos em causa, nos autos.

O tribunal não valorou o depoimento da testemunha J..., solicitador de quem se socorriam quer o arguido quer a testemunha E..., para resolução de assuntos pessoais que reclamassem o exercício da solicitadoria.

Com efeito, todo o depoimento da testemunha em causa versou sobre factos de que o mesmo teve conhecimento no exercício, e por causa da sua actividade profissional, o que determina que a sua inquirição sobre tais assuntos deveria ter sido precedida de pedido de levantamento de sigilo profissional por parte do mesmo junto da Câmara dos Solicitadores, o que não ocorreu nos autos.

Tal não impede, porém, que se tenha tido em consideração a intervenção do mesmo na preparação do processo que conduziria à realização da escritura de compra e venda, dado que tal facto foi relatado ao Tribunal não só pelo arguido como pela testemunha E..., a qual confirmou ter entregue no escritório da referida testemunha a documentação necessária para tanto.

As testemunhas G... e H... prestaram depoimentos de forma desinteressada e equidistante relativamente ao objecto dos autos, descrevendo, o primeiro, as características do prédio, bem como dos eucaliptos que ali encontrou quando ali se deslocou a fim de proceder ao corte em causa nos autos.

Pronunciou-se ainda a testemunha sobre as características da madeira ali existente, as quais foram coincidentes com as já descritas pelas demais testemunhas ouvidas acerca daqueles factos, nomeadamente a circunstância de se tratar de madeira nova, com cerca de 4 ou 5 anos decorridos sobre o anterior corte e que foi confirmada pelas conclusões a que chegou o relatório pericial junto aos autos. Confirmou ainda as declarações do arguido no que respeita à intenção daquele relativamente à aquisição do terreno em causa.

A segunda daquelas testemunhas depôs, no essencial sobre as condições pessoais e o caracter do arguido.


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O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questões a decidir:

a) Suprimento oficioso do vício de insuficiência da matéria de facto para uma decisão segura, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.

b) Apreciar se o arguido absolvido do crime de furto, p. e p. pelo art. 203.º, do CP, pode ser condenado na indemnização cível, com base no enriquecimento sem causa, cujo fundamento não constava do pedido cível formulado, sendo que o arguido foi autorizado a cortar os eucaliptos pela co-herdeira, que se assumiu como dona, na sequência de negociações encetadas para lhe vender o prédio.

c) Aferir se a sentença recorrida está ferida de nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por excesso de pronúncia, e art. 661.º, n.º 1 e 668.º, n.º 1, al. e), do anterior CPC e art. 609.º, n.º1 e 615.º, n.º 1, al. e), do actual CPC, ao condenar o arguido na indemnização de €3.637,31, correspondente ao valor dos eucaliptos aptos para o corte em 2019, sendo que à data do corte (2013), à qual se reporta o pedido da demandante, tinham o valor de €1.649,88.


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a) Suprimento oficioso do vício de insuficiência da matéria de facto para uma decisão segura, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.

As questões submetidas a apreciação deste tribunal de recurso foram de forma sintética devidamente identificadas nas conclusões da motivação de recurso pela ilustre defensora do arguido.

A factualidade dada como provada, não permite imputar ao arguido, em termos subjectivos, a prática do crime de furto de que vinha acusado.

Porém, a sentença recorrida é mais cuidada e explícita na motivação da convicção do que na matéria de facto dada como provada, a qual devia ser mais precisa quanto às razões que motivaram o afastamento do elementos subjectivo do crime de furto imputado ao arguido e que se revelam importantes para fundamentar não só a decisão absolutória relativamente ao crime de furto, como alicerçar a decisão sobre a apreciação do pedido cível.  

Na motivação da matéria de facto, refere a senhora juíza que “resultou não provado que o arguido tivesse agido sem autorização da herdeira com quem negociara a aquisição do prédio onde se encontravam plantados os eucaliptos que cortou e removeu”.

Por outro lado acrescenta que “resultou, pois, não provado que o arguido tivesse agido com intenção de desapropriação dos proprietários de coisa que sabia não ser sua, e de, subsequentemente dela se apoderar e de a integrar no seu património, sabendo que agia de forma ilegítima e contra a vontade e em prejuízo daqueles, agindo assim, de forma livre e deliberada com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

Depois conclui, com relevância para a matéria de facto:

“Antes foi possível concluir que o arguido, em face do resultado das negociações que manteve com vista à aquisição do imóvel onde se encontravam implantados os eucaliptos a que respeitam os autos, e perante a autorização daquela que se lhe apresentou como sendo a herdeira a quem caberia o dito imóvel em partilhas e com a qual negociou a respectiva aquisição, formou a convicção de que a transmissão da propriedade do imóvel estaria iminente e que se mostrava legitimado a proceder ao corte das árvores”.

Ora, tal não resulta depois com clareza da matéria de facto dada como provada, havendo por isso insuficiência da matéria de facto, concretamente do ponto 8, para que se possa decidir com clareza e segurança.

E tal vício, implicando alteração da matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, pode e deve ser suprido oficiosamente pelo tribunal ad quem, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, para concluirmos por uma decisão com formulação de um juízo seguro de direito na fundamentação da apreciação do pedido cível, que seja de condenação quer seja de absolvição, uma vez que do texto resultam desde que do texto da sentença resultem os elementos pata tal (Ac. do STJ proferidos nos Processos n.º 3372/08-3.ª Secção, de 26/11/2008 e n.º 3174/06-5.ª Secção, de 8/02/2007)

A devida alteração justifica-se, pois o arguido, conforme resulta abundantemente da motivação da matéria de facto, procedeu ao corte de eucaliptos na propriedade da demandante Herança Aberta por Óbito de B..., da qual é cabeça de casal C..., o que fez com autorização da co-herdeira E..., sobrinha da cabeça de casal e filha do também herdeiro D..., entretanto falecido.

 Ora, consta do ponto 2 da sentença que o dito prédio fazia parte da herança de B..., sendo que C... e D... eram os seus únicos herdeiros (doc. de fls. 31 a 33).

Mas, a final, à data dos factos, a E... também já era co-herdeira, por ir integrar, juntamente com sua irmã o quinhão de seu pai, entretanto falecido (fls. 135, da motivação da sentença).

E esta questão não é de somenos importância, para melhor se compreender a absolvição do arguido em termos responsabilidade criminal, que aqui não se discute, mas essencialmente para apreciar a condenação do arguido no pedido cível, designadamente com base no enriquecimento sem causa.

Face ao exposto altera-se oficiosamente a matéria de facto, constante dos pontos 2 e 8, dos factos dados como provados, nos seguintes termos:

Facto 2:

«2. Tal prédio fazia parte da herança de B..., sendo que C... e D... eram os seus únicos herdeiros, conforme habilitação de herdeiros de 28/03/2003, constante de fls. 30 a 33».

Facto 8:

«Em data que não se pode precisar mas situada entre Janeiro e Abril de 2013, o arguido foi autorizado por E..., na qualidade de co-herdeira, por ir integrar, juntamente com sua irmã o quinhão de seu pai, entretanto falecido, a proceder ao corte dos eucaliptos existentes no imóvel identificado em 1, na sequência de negociações encetadas para lhe vender o imóvel identificado em 1, por perspectivar que lhe caberia em partilhas».


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b) Condenação do arguido na indemnização cível, pelos danos causados, com base no enriquecimento sem causa, apesar de tal fundamento não constar do pedido cível formulado e o arguido ser autorizado a cortar os eucaliptos por uma co-herdeira.

A demandante civil, Herança Aberta por Óbito de B..., veio pedir a condenação do demandado, com o fundamento de que, aquele procedeu ao corte dos eucaliptos que se encontravam plantados num imóvel da sua propriedade, o que fez de forma ilegítima, sem a sua autorização e contra a sua vontade, com o que lhe causou um prejuízo de € 15.000,00.

Tal pedido foi deduzido, em curto articulado de 7 artigos, com base na responsabilidade criminal do arguido.

Já na fase de julgamento, procedeu-se à realização da perícia para determinação do valor da madeira cortada, tendo a demandante reduzido o pedido para € 3.637,31, correspondendo ao valor daquela madeira à data aconselhável de corte, no ano de 2019, segundo o relatório pericial.

Enquanto co-herdeira, esta E..., qualidade que invocou e da qual estava ciente o arguido, perspectivando que lhe caberia o dito imóvel em partilhas, encetou negociações com este com vista à aquisição do imóvel onde se encontravam implantados os eucaliptos a que respeitam os autos, e perante a autorização daquela formou a convicção de que a transmissão da propriedade do imóvel estaria iminente e que por isso se mostrava legitimado a proceder ao corte das árvores.

Em causa está a apreciação da responsabilidade civil do arguido, que se traduz, no essencial, na obrigação de colocar a demandante Herança Aberta por Óbito de B..., com a lesão que adveio do corte dos eucaliptos, na situação em que a mesma estaria se não se tivesse verificado tal lesão.

Face à matéria de facto dada como provada, concluímos que o arguido não poderá ser demandado com base na responsabilidade contratual regulada nos artigos 798.º e segts. do Código Civil, na medida em que não resulta a celebração de qualquer contrato entre demandante, representada pela cabeça de casal C... e demandado, relativamente às madeiras cortadas.

Pelo contrário, o demandado estava consciente de que negociava a venda da propriedade e o corte dos eucaliptos com a pessoa que tinha legitimidade para tal, a co-herdeira E....

Então decidiu-se pelo corte das árvores, após expressa autorização desta.

Nesta conformidade a condenação do arguido só poderá decorrer do recurso ao regime da responsabilidade civil por factos ilícitos ou extra-contratual, e pela verificação, ou não, no caso dos autos, dos respectivos pressupostos, regulada nos artigos 483.º e segts. do Código Civil.

São requisitos para que exista responsabilidade civil extracontratual e consequente obrigação de indemnizar:

- a existência de um facto voluntário do agente;

- que esse facto seja ilícito;

- que exista um nexo de imputação do facto ao lesante;

- a verificação de um dano e ainda que haja um nexo de causalidade entre esse dano e o facto praticado pelo agente.

O primeiro dos seus requisitos é, pois, a existência de um facto voluntário do agente e que esse facto seja ilícito.

Regressando aos termos em que é formulado o pedido cível de fls. 55 e 56, alega a demandante que o demandado A..., praticou um facto ilícito criminal, que configura, em primeira linha, um crime furto, previsto no artigo 203.º, do Código Penal, porquanto cortou e se apropriou, sem a devida autorização, dos eucaliptos existentes num prédio pertença, à data dos factos, da herança aberta por óbito de seu pai.

Ora, face à absolvição do arguido do crime de furto que lhe era imputado temos de nos mover no âmbito da responsabilidade por facto ilícito ou extra-contratual.

E, no caso de responsabilidade extracontratual, é o lesado, que tem o ónus de prova de factualidade que demonstre culpa do alegado lesante, conforme art. 487.º, n.º 1, e 483.º, n.º 1, do CC.

A responsabilidade civil extra-contratual funda-se, em primeira linha, na existência de culpa, seja ela consubstanciada numa conduta dolosa ou negligente, isto e, quando nos reportamos à existência de um facto voluntário e ilícito, esta ilicitude haverá de traduzir-se na culpa.

Toda a responsabilidade assenta, em princípio, na culpa, apenas existindo responsabilidade civil independentemente de culpa nos casos expressamente previstos na lei.

Quanto à culpa ou nexo de imputação do facto ao lesante, só pode dizer-se que alguém agiu com culpa, quando esse alguém é imputável e no caso concreto podia e devia ter agido de outro modo.

A imputabilidade mede-se pela capacidade de entender e querer, nos termos do art. 488.º do CC.

A culpa é fundamental neste tipo de responsabilidade.

Há que procurar estabelecer um nexo psicológico entre o facto e a vontade do lesante e que esse nexo é passível de um juízo de censura, pois só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei, de acordo com o disposto no art. 483.º, n.ºs 1 e 2 do CC.

Porém, face às negociações pre-contratuais entre a co-herdeira E... e o arguido tendo em vista a venda da propriedade a consequente autorização do corte dos eucaliptos, a demandante viu frustrado o ónus que sobre si recaía de provar a existência de um facto ilícito e culposo praticado pelo arguido e causador, em termos de nexo de causalidade, de danos à demandante.

Nesta conformidade o arguido não praticou qualquer acto ilícito, mas antes inserido numa relação negocial, pautado pelas regras da boa-fé, de acordo com os ditames do art. 227.º, n.º 1, do CC.

Face às circunstâncias do caso concreto, ficou demonstrado que o arguido agiu sem culpa e outro comportamento não lhe era exigível, pois ao cortar os eucaliptos com autorização da co-herdeira e na perspectiva de adquirir a propriedade, conforme negociações encetadas, agiu como agiria qualquer cidadão comum naquelas circunstâncias, nos termos do art. 487.º, n.º 2, do CC.

A ser demanda com base na culpa teria de ser a co-herdeira E..., que negociou a venda da propriedade e autorizou o corte dos eucaliptos, sem ter legitimidade para tal, pois não era ela a cabeça de casal.

Afastada está pois a possibilidade do arguido indemnizar a demandante com base na culpa.

Por fim, diremos que o dever de indemnizar com base, não em culpa, mas em situação objectiva, é excepcional e só existe nos casos especificados na lei como decorre do art. 483.º, n.º 2, do CC.

Com efeito, para além desta forma de responsabilidade extra-contratual, baseada na culpa, em que terá de ser o lesado a provar a culpa daquele que provocou os danos, outras formas de responsabilidade extra-contratual poderemos, no entanto, vislumbrar no nosso ordenamentos jurídico-civil, que permite imputar a ocorrência de danos a determinada pessoa, quer porque sobre ela impende uma presunção de culpa, quer porque existe mesmo uma responsabilidade objectiva.

Assim, actualmente, e em paralelo com aquela forma de responsabilidade subjectiva, vem-se acentuando a necessidade, em certas situações, e independentemente que qualquer pressuposto de culpa, até por razões de conveniência social, de reparar o dano sofrido pelo lesado, tratando-se, neste caso, de responsabilidade objectiva ou fundada no risco.

Esta forma de responsabilidade civil extracontratual baseada no risco, prevista designadamente nos art. 499.º e segts. do CC, é apenas, como já foi referido, excepcional, apenas existindo nos casos que a lei expressamente a consagra.

Afastadas as formas de indemnização que atrás abordámos, importa agora averiguar se o arguido deveria ser condenado a indemnizar a demandante nos termos do instituto do enriquecimento sem causa, como o fez a sentença recorrida.

Está consagrado o princípio geral da proibição do enriquecimento injustificado, no art. 473.º, do CC que reza o seguinte:

 “1. Aquele que sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou; 

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”

Como decorre daquele preceito, os pressupostos do enriquecimento sem causa são: enriquecimento; à custa de outrem; sem causa justificativa.

Para além da vantagem económica à custa de outrem, torna-se necessário a verificação de ausência de causa jurídica justificativa da deslocação patrimonial com que o beneficiário se locupletou.

Conforme bem refere o Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 2.ª Ed., vol. I, pág. 350, menciona como fonte de obrigações “situações de enriquecimento sem causa, de enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia”.

Para que se possa recorrer à restituição com base no enriquecimento sem causa é preciso que se demonstre que a transferência não teve causa justificativa, designadamente por não ser devida em função de qualquer título ou acto válido e eficaz (Ac. STJ n.º 2203/09.3TBPVZ, 2.ª Secção, de 19/05/2011).

Porém, como não podia deixar de ser, este instituto jurídico, como fonte de obrigações tem regras que importa compreender.

A falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento tem de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição, de acordo com as exigências do ónus da prova, nos termos dos art. 342.º e 473.º, n.º 1 e 2, do CC (Ac. STJ de 24/04/85, in BMJ 346.º, pág. 254; Ac. STJ de 8/07/97, in CJ V-II, pág. 145 e STJ de 22/06/2004 – Proc. 1688/04.1).

É preciso pois que se prove que não teve causa justificativa a atribuição patrimonial.

E não havendo causa, funciona o próprio mecanismo do enriquecimento sem causa, determinando a obrigação de restituição.

Um enriquecimento de alguém e correlativo empobrecimento de outrem traduz uma realidade que, por regra, tem uma causa.

Mesmo que tal causa traduza um acto não oneroso é ela que confere sentido a essa alteração patrimonial.

Mas vejamos o que dispõe o art. 474.º:

“Não há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição, ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

A obrigação de restituir, fundada no enriquecimento sem causa, tem natureza subsidiária, como se alcança daquele preceito e expressamente consta da epígrafe do próprio artigo.

O carácter subsidiário impõe que se deve lançar mão a meio específico, adequado a desfazer a deslocação patrimonial, não se aplicando assim o recurso ao art. 473.º, do CC (Ac. do STJ, de 4/10/2007).

Isto quer dizer que, não é permitido o exercício da acção de enriquecimento sem causa quando o interessado tenha ao seu dispor outro meio para conseguir ser indemnizado do prejuízo sofrido.

Conclui-se na sentença recorrida que em face da factualidade que resultou provada e não provada é manifesto que a demandante logrou demonstrar o primeiro pressuposto de que dependia o enriquecimento sem causa, a saber, que o arguido se tenha enriquecido à sua custa, sem qualquer causa justificativa, ou seja, por ter resultado provada a deslocação patrimonial da esfera jurídica da demandante para a do demandado, carecida de causa justificativa, do valor correspondente ao da madeira dos eucaliptos.

Discordamos de tal conclusão, pois já resultava da matéria de facto do ponto 8, que “o arguido foi autorizado por E..., a proceder ao corte dos eucaliptos existentes no imóvel”.

Ora, com mais rigor ficou assente agora no ponto 8:

«Em data que não se pode precisar mas situada entre Janeiro e Abril de 2013, o arguido foi autorizado por E..., na qualidade de co-herdeira, por ir integrar, juntamente com sua irmã o quinhão de seu pai, entretanto falecido, a proceder ao corte dos eucaliptos existentes no imóvel identificado em 1, na sequência de negociações encetadas para lhe vender o imóvel identificado em 1, por perspectivar que lhe caberia em partilhas».

Está pois bem demonstrada a causa por que o arguido cortou os eucaliptos, dentro de uma fase negocial absolutamente normal, pois fê-lo em consequência de uma declaração de vontade da interessada E..., que embora não tivesse legitimidade para tal, dispôs dos eucaliptos, autorizando o seu corte, na sequência de negociações que levaram ao acordo na venda da própria propriedade, que pensava caber-lhe em partilhas.

Como atrás ficou dito, o arguido agiu de boa-fé, pois pretendia adquirir a propriedade, por contrato de compra e venda, não merecendo qualquer reparo ou censura o seu comportamento.

Assim, a demandante deve demandar a co-herdeira que sem legitimidade dispôs de um bem da herança, sem embargo de eventualmente ser demandado também o arguido ou contra este ser exercido o direito de regresso.

Nesta conformidade, não pode a demandante ser indemnizada, à custa do demandado, com base no enriquecimento sem causa, atenta a sua natureza subsidiária, por dispor de meio adequado para se ressarcir, nos termos do art. 474.º, do CC.

c) Nulidade da sentença por condenação do arguido na indemnização de €3.637,31, dano futuro não formulado, correspondente ao valor dos eucaliptos aptos para o corte em 2019, sendo que em 2013, data do corte, à qual se reporta o pedido da demandante, tinham o valor de €1.649,88.

A questão está prejudicada por força da absolvição do demandado do pedido cível, com base no enriquecimento sem causa.

Porém, muito sinteticamente, sempre diremos que a sentença recorrida está ferida de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos dos art. por ter condenado o demandante em pedido diverso e superior ao formulado.

Se não vejamos.

A demandante, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), correspondente ao valor da madeira que o arguido alegadamente lhe furtou (fls. 55 e 56).

Tendo sido realizada perícia, na fase de julgamentos, para determinação da quantidade, qualidade e custo dos eucaliptos que terão sido cortados, fixando o perito o valor de €1.649,88, à data do corte e € 3.637,31, como avaliação estimada para o corte em 2019.

Na sequência da peritagem veio a demandante reduzir o pedido cível para a quantia de € 3.637,31 (fls. 122).

Condenou pois a senhora juíza, injustificadamente, no montante que os eucaliptos teriam em 2019, data adequada para o corte.

Ora, o demandado integrou na sua esfera patrimonial em 2013 o valor €1.649,88, correspondente à madeira dos eucaliptos que se encontravam plantados no terreno que negociara com uma das co-herdeiras, assim se enriquecendo à custa da demandante, com o valor que tinham àquela data.

O pedido da demandante reporta-se ao prejuízo directamente causado com o corte dos eucaliptos à data do corte.

Por isso, não podia o tribunal a quo condenar em dano futuro, isto é, o valor que os eucaliptos teriam na data adequada para o corte (2019) e que a demandante não formulou nos autos.

Nunca poderia ser condenado o arguido em pedido superior a €1.649,88 (ponto 6 dos factos provados).

Este, a ser admissível, com base no enriquecimento sem causa, deveria ser o valor da restituição, por corresponder ao valor patrimonial transferido para esfera jurídica do demandado.

Estava-lhe vedado o conhecimento para além do pedido formulado, que se reportou exclusivamente ao dano à data da prática dos factos.

Nesta conformidade a sentença recorrida está ferida de nulidade, por condenar em pedido superior e objecto diverso do pedido, face ao disposto nos art. 661.º, n.º 1 e 668.º, n.º 1, al. e), do anterior CPC e art. 609.º, n.º1 e 615.º, n.º 1, al. e), do actual CPC. 

Também este procedimento é sancionado com nulidade, por excesso de pronúncia, ao condenar em dano futuro não formulado nos autos pela demandante, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.


*

Decisão:

Nestes termos, decidem os juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

a) Alterar oficiosamente a matéria de facto, constante dos pontos 2 e 8, dos factos dados como provados, nos seguintes termos:

Facto 2:

«Tal prédio fazia parte da herança de B..., sendo que C... e D... eram os seus únicos herdeiros, conforme habilitação de herdeiros de 28/03/2003, constante de fls. 30 a 33».

Facto 8:

«Em data que não se pode precisar mas situada entre Janeiro e Abril de 2013, o arguido foi autorizado por E..., na qualidade de co-herdeira, por ir integrar, juntamente com sua irmã o quinhão de seu pai, entretanto falecido, a proceder ao corte dos eucaliptos existentes no imóvel identificado em 1, na sequência de negociações encetadas para lhe vender o imóvel identificado em 1, por perspectivar que lhe caberia em partilhas».

b) Conceder total provimento ao recurso interposto pelo arguido, aqui demandado cível, A..., revogando-se a sentença recorrida, e, consequentemente se absolve do pedido em que foi condenado, com base no enriquecimento sem causa.

 Sem custas.


*

NB: Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP.


Coimbra, 28 de Janeiro de 2015


(Inácio Monteiro - relator)


(Alice Santos - adjunta)