Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5659/17.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDA VENTURA
Descritores: CRIME SEMI-PÚBLICO;
ACUSAÇÃO PARTICULAR SEM A PRECEDÊNCIA DE ACUSAÇÃO PÚBLICA;
NULIDADE INSANÁVEL;
FALTA DE PROMOÇÃO DO PROCESSO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 06/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 48.º A 52.º, 119.º, AL. B), 122.º, N.º 1, E 285.º, N.º 4, DO CPP
Sumário:
I – Instaurado inquérito por crime de natureza semi-pública, ocorre a nulidade prevista na al. b) do artigo 119.º do CPP se o MP determina a notificação do assistente para apresentar acusação particular e, deduzida esta, profere despacho nos termos do disposto no artigo 285.º, n.º 4, do mesmo diploma.
II – Nulidade que, afectando o acto processual de encerramento de inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes (artigo 122.º n.º 1 do CPP), determina o retorno dos autos ao MP para que este realize os actos processuais legalmente adequados.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo local Criminal-Juiz 2- A… deduziu acusação particular contra B… pela prática em autoria material de um crime de injúrias agravado, p. e p. pelos artigos 181º, nº 1, 183º, 184º ex vi do artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal, acusação essa que não foi acompanhada pelo MP.

Remetidos os autos para julgamento, o Mº juiz rejeitou a acusação, com fundamento na ilegitimidade do assistente para deduzir acusação já que o crime imputado ao arguido é de natureza semi- pública.

2. Inconformado o assistente interpôs recurso deste despacho, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do despacho, proferido nos autos, datado de 12.12.2017, que rejeitou a acusação particular deduzida pelo assistente, aqui recorrente, ao abrigo do disposto no art.º 311º n.º 1 do CPP.
2. O recorrente discorda do despacho ora recorrido, pois, mui respeitosamente, considera que foi feita uma incorrecta aplicação do direito vigente, e, por conseguinte, devia aquela acusação particular ter sido admitida, juntamente com o PIC formulado pelo recorrente e ter sido designada data para audiência de discussão e julgamento, seguindo os seus ulteriores termos até final.
3. Na verdade, não se encontrando prevista no art.º 119.º do CPP, a nulidade da acusação é sanável, pelo que não sendo deduzida pelo arguido no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida em momento posterior, nomeadamente ao abrigo do disposto no art.º 311.º ou no art.º 338.º n.º 1, ambos do CPP – vide Acórdão da Relação de Évora, de 10.12.1999 (Proc. 17/07.4GBORQ.E1).
4. O arguido notificado da acusação particular não reclamou para o titular do inquérito ou para o superior hierárquico, nem requereu a abertura de instrução, para que fosse conhecida a eventual nulidade, pelo que ficou precludida ao tribunal a possibilidade de a declarar em momento posterior, já que o arguido se conformou com a mesma.
5. A acusação particular só pode ser rejeitada nas situações taxativamente previstas no art.º 311.º n.ºs 2 e 3 do CPP,
6. Sendo certo que a falta de legitimidade, como é o caso presente, que apenas afecta a qualificação do crime, mas deixa subsistir o crime simples, não vem prevista na lei como causa de rejeição nem como nulidade ou irregularidade – vide o Ac. da Relação de Guimarães, de 22.02.2010 (Proc. 411/09.6TABRG).
7. A qualificação jurídica, por banda do assistente, não vincula o tribunal; constatando o excesso dos art.ºs 184.º ex vi art.º 132.º do CPP, na indicação das normas aplicáveis exigida pelo art.º 285.º n.º 3, por força do art.º 283.º n.º 3, nunca o tribunal a quo poderia rejeitar a acusação particular, mas, sim, reduzi-la ao crime de injúria simples.
8. Seria incompreensível que, pela simples indicação de um artigo ou de uma alínea a mais, o ofendido visse frustradas as suas legítimas expectativas, tanto mais que os factos da denúncia são exactamente os mesmos da acusação [vide Ac. da Relação de Guimarães, de 22.02.2010 (Proc. 411/09.6TABRG)].
9. No caso sub iudice a acusação tornou-se definitivamente apta para suportar a acção penal em julgamento e os vícios previstos no n.º 3 do art.º 311.º [incluindo a al. d)], a existirem, apenas relevarão na apreciação do mérito da causa (e já não enquanto vício formal lesivo da validade da acusação), de acordo com o regime processual aplicável em audiência e o direito substantivo igualmente aplicável.
10. O despacho recorrido violou as disposições legais dos art.ºs 118.º a 123.º, 283.º n.º 3, 285.º n.º 3, 311.º n.ºs 2 e 3, 358.º e 359.º do CPP, devendo ser revogado e substituído por outro que, nos termos do art.º 311.º, aprecie a acusação particular, sem atender à indicação do art.º 184.º, mas tão só à imputação do crime de injúria, p. e p. no art.º 181º, nº 1, com a agravação do art.º 183.º n.º 1, al. a), todos do Código Penal.
11. Ao longo do inquérito e no despacho de encerramento de inquérito a que se reportam os presentes autos, houve absoluta omissão de pronúncia do magistrado do MP sobre um crime semipúblico que lhe tinha sido denunciado pelo ofendido – a injúria por si sofrida enquanto prestava declarações no Proc. 1734/11.0TBVIS (art.º 184.º ex vi do art.º 132.º n.º 2, alínea l) do Código Penal).
12. Tal omissão equivale a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art.º 48.º do CPP, constituindo nulidade insanável, expressamente prevista no art.º 119.º, al. b) do CPP.
13. Apesar de o processo ter vindo da fase de inquérito, nada há a afastar a aplicabilidade pelo juiz do regime geral das invalidades processuais constante dos artigos 118.º a 123.º do Código do Processo Penal.
14. A nulidade insanável em debate afeta todo o acto processual de encerramento de inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes (artigo 122.º n.º 1 do Código do Processo Penal), pelo que deve o procedimento ser retomado pelo MP, nos termos em que o magistrado titular entender adequados.
Termos em que, e nos que como sempre não deixarão de ser proficientemente supridos, por V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e substituída a Decisão recorrida, admitindo-se a acusação particular sem atender à indicação do art.º 184.º do CP ou então deve o MP retomar os autos, nos termos em que o magistrado titular entender adequados, seguindo-se os ulteriores termos do processo.

3. A Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso, conclusivamente nestes termos:
1º O crime denunciado e investigado nos autos e imputado ao arguido reveste natureza semi- pública e não particular.
2º Instaurado inquérito por crime de natureza semi- pública, ocorre a nulidade insanável do artigo 119º al. b) do CPP, se o MP encerrar o inquérito, determinando a notificação do assistente para deduzir acusação particular e, posteriormente, limitar-se a acompanhar (ou não) o impulso processual do assistente.
3º A Mmº Juiz ao não conhecer oficiosamente da nulidade insanável prevista no artigo 119º al. b) do CPP- falta de promoção do MP nos termos do artigo 48º- e que no caso dos autos se verifica- violou o disposto no artigo 119º b) do CPP;
Constatada a existência de tal nulidade, não devia a Mmº Juiz rejeitar a acusação particular e decidir o arquivamento dos autos, mas declarar a nulidade do despacho de encerramento do inquérito do processado subsequente e determinar que o processo regressasse aos Serviços do MP para que fosse suprido o vício.
Termos em que,
Deverá ser concedido provimento ao recurso interposto pelo recorrente/assistente, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que aprecie e conheça da nulidade insanável, prevista no artigo 119ºal. b) do CPP e determine a remessa dos autos aos Serviços do MP.

4. Neste Tribunal da Relação, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto apôs apenas o seu visto.

Colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. Fundamentação:
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).

Assim, no caso sub judicie cumpre apreciar:
Nulidade por falta de promoção do MºPº;
Eventual restrição da acusação (para apenas crime particular).

2. A decisão recorrida é a seguinte:
Dispõe o artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal, que “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”.
Compulsados os autos constatamos que o assistente A… deduziu acusação particular contra o arguido B…, pelos factos contantes de fls. 1085 e segs, imputando-lhe a prática de um crime de injúrias agravado, p. e p. pelos artigos 181º, nº 1, 183º, 184º ex vi do artigo 132º, nº 2, alínea l)do Código Penal, acusação essa que não foi acompanhada pelo MP.
Ora, o referido ilícito penal imputado ao arguido reveste natureza semi-pública, e não particular.
Com efeito, tanto o crime de difamação – art. 180.º, n.º 1 do CP – como o de injúria – art. 181.º, n.º 1 do CP – são agravados se a vítima for uma das pessoas elencadas no art. 132.º, al. l) do Código Penal no exercício das suas funções ou por causa delas, tal como decorre do art. 184.º do CP. Nestes termos, de harmonia com o art. 188.º do CP, “o procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo (dos crimes contra a honra) depende de acusação particular”, ressalvando-se, porém, duas excepções, entre as quais os casos previstos no art 184.º do CP (difamação ou injúria agravada pela qualidade do agente), em que o procedimento criminal revestirá natureza semi-pública.
Nos termos dos artigos 284º e 285º do C.P.P. o assistente não tem legitimidade para acusar por crimes públicos ou semipúblicos.
Revestindo o dito crime de injúria agravado, p. e p. pelos artigos 181º, nº 1, 183º, 184º ex vi do artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal natureza semi-pública o assistente não goza de legitimidade para acusar se o Ministério Público não o tiver feito (cfr. art. 284 nº 1 a contrario sensu, do C.P.P.).
Apenas o crime de natureza particular pode ser acusado directamente pelo assistente (cfr. art. 285º nº 1 do CPP).
Após uma eventual acusação do Ministério Público pelo referido crime de natureza semi-pública é que o assistente poderia ter aderido a tal acusação, e não foi isso que se passou.
Nesta decorrência terá a acusação particular de ser rejeitada.
Em face do exposto, decide-se rejeitar a acusação particular deduzida pelo referido assistente, por falta de legitimidade processual.
(…)
Relativamente ao pedido de indemnização civil formulado pelo referido assistente e demandante A… contra o referido arguido/demandado constante de fls. 1089 e segs, uma vez que os factos que sustentam tal pedido dizem respeito ao crime de injúria agravado que era imputado ao referido arguido na acusação particular, a qual foi rejeitada, tornou-se impossível a sua apreciação nestes autos, pelo que julgo extinta a instância cível relativamente ao mesmo, por impossibilidade superveniente da lide nos termos do disposto no art.º 277º alínea e) do Código Processo Civil.

3. Mérito do recurso:
Como referido, em resumo, as questões a conhecer são as seguintes:
Nulidade por falta de promoção do MºPº.
Eventual restrição da acusação (para apenas crime particular).

Vejamos:
A nulidade insanável prevista no art.º 119, al. b) do CPPenal – “A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º”, como exemplarmente se consignou no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/02/2014, proc. 154/11.0GBCVL.C1, sendo dele relatora a desembargadora Maria Pilar de Oliveira, considera duas concretas hipóteses, “não só situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere àquele legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o MP acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.º do compêndio legislativo referido”. No mesmo sentido o acórdão desta mesma Relação, de 22/04/2015, proc. 43/13.4TASBG-B.C1, sendo relator o desembargador Luís Teixeira, onde expressamente se fez consignar: “Da forma como interpretamos o poder/dever de promoção processual do MP, entendemos que o vício de falta de promoção deve ser o mesmo quer nos crimes públicos, quer nos crimes semi-públicos quer nos crimes particulares. Para todos eles existem regras específicas que têm que ser observadas. Se é de entender que nos crimes públicos e nos crimes semi-públicos a falta de acusação pelo MP corresponde a uma falta de promoção processual, logo, constitui a nulidade do artigo 119º, alínea b), do C.P.Penal, também a falta de promoção do MP com vista à dedução de acusação particular pelo assistente, tem de conduzir ao mesmo vício e resultado”.
Decorre do artigo 48º do Código de Processo Penal que a legitimidade para promover o processo penal cabe ao MP, com as restrições dos artigos 49º a 52º, do mesmo diploma. O MP, titular da acção penal, promove-a, oficiosamente, (nos crimes públicos), mediante queixa (nos crimes semipúblicos) e constituição de assistente e dedução que acusação particular (nos crimes particulares).
Havendo notícia e queixa por um crime de natureza semi-pública, o Ministério Público tem o poder-dever de determinar e dirigir o conjunto de diligências que visam investigar a existência desse crime e determinar os seus agentes.
Terminado o inquérito, ao MP cabe, em exclusivo, a legitimidade exclusiva para tomar uma das posições previstas no artigo 276º, nº1 do Código de Processo Penal: de arquivamento (nas modalidades previstas no artigo 277º do Código de Processo Penal) ou de acusação.
Afigura-se-nos como inequívoco que ao longo do inquérito e no despacho de encerramento de inquérito a que se reportam os presentes autos, houve absoluta omissão de pronúncia do magistrado do MP sobre um crime semi-público que lhe tinha sido denunciado pelo ofendido.
No artigo 119º, al. b), do Código de Processo Penal, a lei adjectiva qualifica expressamente a falta de promoção do processo penal pelo Ministério Público como uma nulidade insanável.
A lei não restringe a previsão à situação em que o inquérito tenha sido promovido ou impulsionado por outra entidade e aplica-se sempre que se verifique falta de promoção pelo titular da acção penal.
Apesar de o processo ter vindo da fase de inquérito, não se vislumbra fundamento que afaste a aplicabilidade pelo juiz do regime geral das invalidades processuais constante dos artigos 118.º a 123.º do Código do Processo Penal.
Nestes termos, verifica-se efectivamente uma nulidade que afecta todo o acto processual de encerramento de inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes (artigo 122.º n.º 1 do Código do Processo Penal) e deve o procedimento ser retomado pelo MP, nos termos em que o magistrado titular entender adequados.
Neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Évora, de 29/05/2012, proc. 1.7TASTB-A.E1, sendo relator o desembargador SÉNIO ALVES: “ Ao declarar-se a nulidade de falta de promoção do inquérito pelo Ministério Público, a consequência lógica é a remessa dos autos ao Ministério Público, para que este realize as diligências que entenda serem de levar a cabo, dentro das funções do mesmo (artigos 262º e 263º do Código de Processo Penal)”.


III – Dispositivo:
Em face do exposto, acordam na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em dar provimento ao recurso, declarando a nulidade por falta de promoção do MºPº, sendo nulos todos os actos praticados após o despacho que determinou a notificação ao assistente para dedução de acusação particular, devendo os autos serem remetidos ao MºPº que decidirá nos termos que entender adequados.

Sem custas.

(O presente acórdão compõe-se de 8 folhas com os versos em branco e foi processado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
Coimbra, 13 de Junho de 2018

Fernanda Ventura (relatora)
Elisa Sales (adjunta)