Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
501/08.2JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 05/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 374º,Nº2 ,379º, Nº1, AL.A) DO CPP
Sumário: 1.Sob pena de violação do disposto no nº2 do artigo 374º do CPP, sempre que se verifiquem versões diferentes dos factos, o tribunal não pode aceitar uma e afastar outra, sem que de forma clara e objectiva dê as razões da opção por uma em detrimento da outra.
Decisão Texto Integral: pág. 26
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferida sentença que julgou parcialmente provada e procedente a acusação deduzida contra o arguido:
A, divorciado, reformado, natural de … Carregal do Sal, nascido a 01-…-1933, filho de M e de Ol com última residência em Portugal na Rua ,,, Barreiro e nos Estados Unidos da América ….
Sendo decidido:
- Condenar o arguido pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171, n° 1, do Código Penal, na pena de três (3) anos de prisão.
- Suspender a execução desta pena de prisão ao arguido pelo prazo de três anos.
A suspensão fica subordinada ao pagamento pelo arguido à vítima ZA da indemnização abaixo fixada e respectivos juros de mora, no prazo de seis (6) meses a contar da prolação desta decisão.
- Julgar parcialmente provado e procedente o pedido de indemnização civil e condenamos o demandado A a pagar uma compensação de quinze mil euros (€15.000) por danos não patrimoniais à demandante ZA, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação para contestar até real embolso.
- Absolver o demandado do pedido quanto a danos futuros.
***
Inconformado interpôs recurso, o Magistrado do Mº Pº:
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do seu recurso, e que delimitam o objecto do mesmo:
1- Recorre-se do douto acórdão deste Tribunal de Círculo da Figueira da Foz, de 19-01-2010, constante dos autos de Processo Comum Colectivo n° 501/08.2JACBR, do 2° Juízo, do Tribunal Judicial de Cantanhede,
2- que condenou o arguido A, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, do artigo 171, n° 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, e cuja execução, ao abrigo do disposto nos artigos 50 e 51, ambos do Código Penal, se decidiu suspender pelo correspondente período de três anos, ficando, porém a suspensão subordinada ao pagamento pelo arguido à menor ofendida da indemnização aí fixada.
3- Entende-se, por um lado, que o douto acórdão proferido omitiu factos provados e/ou não provados e não se pronunciou sobre factos concretos da acusação relevantes para a boa decisão da causa, o que acarreta a nulidade da decisão, nos termos do artigo 379°, do Código de Processo Penal, nulidade essa que aqui expressamente se argúi.
4- Na verdade, consta da acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido A no ponto 7°, que no dia 18 de Outubro de 2008, à noite, "...quando a menor se encontrava num dos quartos da casa a escrever uma mensagem, o arguido foi ter com a menor, agarrou-a, deitou-a em cima da cama e meteu a mão no interior das calças e cuecas, introduzindo os dedos na vagina da menor, ao mesmo tempo que a tentava beijar na boca".
5- Sucede que no douto acórdão ora em recurso deu-se como provado que "em 18 de Outubro de 2008, à noite, quando a menor se encontrava num dos quartos da casa a escrever uma mensagem, o arguido foi ter com a menor, agarrou-a, deitou-a em cima da cama e meteu a mão no interior das calças e cuecas dela, tocando com os dedos na vagina da menor".
6- Quanto ao facto concreto, constante da acusação, de o arguido ter nessa ocasião introduzido os dedos na vagina da menor, o tribunal não se pronunciou.
7- Com efeito, não deu tal facto nem como provado, nem como não provado, também não constando da fundamentação a razão por que não se considerou - supostamente - o mesmo provado, quando tal facto é mais do que relevante para a decisão da causa por da sua ocorrência depender a integração da factual idade imputada ao arguido no nº 1 do artigo 171 do Código Penal, ou no nº 2 desse mesmo artigo.
8- Ademais, na fundamentação de facto e de direito consignou-se que foram as declarações para memória futura prestadas pela menor ZA que contribuíram decisivamente para a convicção do tribunal, quando é certo que aquela sempre referiu que o arguido introduziu os dedos na sua vagina (cfr. declarações para memória futura referidas no auto de fls. 110 a 113 e respectiva gravação das suas declarações em audiência, minutos 5 a 15, 57 da segunda fase da gravação).
9- De resto, como igualmente se reconheceu no douto acórdão proferido, não é forçoso que o relatório pericial constate danos físicos, como a laceração do hímen, para se provar o abuso.
10- Deveria, pois, ter-se dado como provado que o arguido introduziu, nas circunstâncias descritas, os dedos na vagina da menor ZA e, consequentemente, condenar o arguido A pela prática de um crime de abuso sexual de crianças do artigo 171, nº 2, do Código Penal.
11- Entende-se, por outro lado, que deverá ser alterada a pena aplicada ao arguido.
12- Com efeito, mesmo que se considere que o douto acórdão proferido nos autos não padece de nulidades, nem de quaisquer vícios, e que face à matéria de facto fixada apenas se verifica a prática pelo arguido do crime do artigo 171, nº 1, do Código Penal, sempre discordaríamos frontalmente da pena de três anos de prisão aplicada ao arguido.
13- Face à moldura penal do crime de abuso sexual de crianças em apreço, a ilicitude - elevada - da conduta do arguido, à circunstância deste nunca ter assumido os factos por ele praticados ou denotado arrependimento, à culpa - elevada - revelada pela reiteração do seu comportamento, levado a cabo com dolo directo e intenso, com gravíssimo e hediondo desrespeito pela dimensão humana da menor ofendida - uma criança, na altura, com doze anos de idade que o via como se fosse seu avô -, e sobretudo às prementes necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir, entendemos que deveria aplicar-se ao arguido uma pena de prisão de 5 (cinco) anos.
14- Muito embora também se entenda que no crime de abuso sexual de crianças, na tarefa de escolha da espécie da pena, a ponderação das necessidades de prevenção especial impedirá, em regra, a aplicação de pena suspensa, compreende-se que se opte pela suspensão da execução da pena de prisão, atendendo sobretudo à idade avançada do arguido, prestes a completar setenta e sete anos de idade.
15- De todo o modo, decidindo como decidiram e como se vê do que precede, violaram os M.mos Juízes recorridos, por erro de interpretação, os artigos 374 e 379 do Código de Processo Penal, 171, nº 2, 40 e 71, nºs 1 e 2, todos do Código Penal.
Deve o recurso ser provido e considerando a existência da referida omissão se declare nula a decisão objecto de recurso, nos termos do artigo 379 do Código de Processo Penal, ou, assim não se entendendo, se reforme o douto acórdão recorrido conforme o proposto, condenando-se o arguido A na pena de 5 (cinco) anos de prisão.
Responde o arguido A concluindo que, o recurso interposto deverá improceder, e confirmar-se in totum a decisão recorrida.
Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto, em parecer emitido, sustenta a procedência do recurso, entendendo que deveria ser dado cumprimento ao disposto no art. 358 do CPP, e entendendo que se verifica o vicio da contradição insanável entre a matéria de facto dada como provada e a fundamentação dos meios de prova que estiveram na base da convicção do tribunal e não omissão de pronúncia.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Foi apresentada resposta pelo arguido onde entende não se verificar o vício da contradição insanável e conclui pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
***
Mostra-se apurada, a seguinte matéria de facto e motivação da mesma:
PROVARAM-SE OS SEGUINTES FACTOS:
O arguido mantinha com a avó da ZA uma relação sentimental, vivendo juntos como marido e mulher já algum tempo nos Estados Unidos; em Março de 2008 regressaram a Portugal, fixando residência na Rua …. Cantanhede.
A partir de Abril de 2008 a ZA passou a frequentar a casa da avó paterna, com mais assiduidade, pelo menos durante o dia, em virtude de o seu pai ter sido preso preventivamente.
Desde a sua fixação da residência em … que o arguido perseguia a menor, tentando "apalpar-lhe os seios", ao mesmo tempo que a tentava beijar na boca.
Em Abril de 2008, em dia que não foi possível determinar, o arguido dirigiu-se ao quarto da sua companheira, avó da menor e verificando que aí se encontrava a menor deitada a ver televisão, abeirou-se da mesma, deitou-se em cima dela, que se encontrava vestida com um pijama de homem, tendo "boxers" com uma abertura junto aos genitais, retirou o seu pénis e tentou inseri-lo na vagina da menor.
Em 18 de Outubro de 2008, à noite, quando a menor se encontrava num dos quartos da casa a escrever uma mensagem, o arguido foi ter com a menor, agarrou-a, deitou-a em cima da cama e meteu a mão no interior das calças e cuecas dela, tocando com os dedos na vagina da menor.
Ao actuar da forma descrita o arguido fê-lo livre e conscientemente, bem sabendo proibida a sua conduta.
Pretendeu praticar na ofendida, tendo pleno conhecimento da sua idade de doze (12) anos, actos sexuais abusivos, contra a autodeterminação daquela e para sua excitação e satisfação do instinto sexual, o que conseguiu.
O arguido não tinha erecção, por ter sido operado à próstata, devido a doença cancerígena.
Era um indivíduo calmo, simpático, aparentando bom carácter e apoiando familiares e amigos antes da ocorrência dos factos acima relatados.
Após a reforma continuou a trabalhar como mecânico de camiões e máquinas.
Em 2007 apresentou um rendimento ilíquido para efeitos fiscais de 10.833 dólares e em 2008 esse valor foi de 2.968 dólares.
Tem despesas domésticas de água, electricidade e gás.
Está actualmente perturbado, triste e deprimido, com a condição de arguido neste processo.
Nada consta do Certificado de Registo Criminal do arguido.
Em consequência da conduta do arguido a ZA teve pesadelos.
Dificuldade de dormir, medo de ir para a cama e de dormir sozinha.
Teve perda de apetite.
Ficou muito irritável.
Desejando faltar às actividades usuais.
Perdeu o interesse nas actividades da sala de aula.
Ficou com dificuldades de aprendizagem na escola, onde passou a mostrar pouca concentração e lapsos de atenção.
Tem beneficiado do auxílio da família e das psicólogas para recuperar progressivamente a sua vida normal.
*
Não se provou que:
A menor já estava a ficar uma mulher.
Durante o mês de Março de 2008 o arguido pediu à menor para levantar a camisola e lhe mostrar os seios, dando-lhe vários beijos nos mesmos.
Em Abril de 2008 o arguido esfregou o pénis na vagina da menor.
No dia 18 de Outubro de 2008 o arguido veio a Cantanhede buscar a menor para a levar para casa da avó, sita no..; no caminho o arguido referiu que à noite se ia embora para o Barreiro e pediu-lhe para lhe deixar apalpar as «mamitas», antes de ele se ir embora.
*
Não se provou a demais matéria do pedido cível, aliás, conclusiva.
Quanto aos danos não patrimoniais do pai, não podem ser dados como provados porque este fez o pedido não em nome próprio ou também em seu nome, mas sim apenas «como legal representante de sua filha menor».
*
FUNDAMENTAÇÃO PROBATÓRIA:
A nossa convicção está alicerçada, entre outras provas, nas declarações para memória futura da menor ZA , referidas no auto de fls. 110 a 113. Ouvida a gravação das suas declarações em audiência (audição que se repetiu na reunião do tribunal colectivo, conforme requereu o ilustre Defensor do arguido, salientando o minuto 15,57 da segunda fase da gravação) constatou-se que, em súmula, no que mais importa para apreciação dos factos imputados ao arguido, a menor referiu o seguinte:
No final do Verão, perto do início da actividade escolar, ela comia, dormia e fazia os deveres escolares em casa da avó paterna, vivendo o arguido com a avó há bastante tempo, tendo vindo com ela dos Estados Unidos da América.
O arguido fazias coisas de que a menor não gostava ...
Numa ocasião no início do período de prisão (preventiva, pelo que se apurou) do pai dela, o arguido agarrou-a com força pelos braços e tentou beijá-la. Às vezes agarrava-a pelo pescoço (pois indicou que a mão dele agarrava o pescoço dela). Não gostava, nunca gostou dele, dessas coisas; ele tratava muito mal a avó.
Acontecia quando estava sozinha a ver TV, pois a avó gostava de ir para o quintal.
O arguido dizia: «não digas nada à tua avó e não sei o quê». Quando a ameaçava para não dizer à avó, largava-a.
Agarrava-a com força e tentava meter a mão por baixo da camisola; uma vez ela deu-lhe um pontapé. Começava a ficar sem ar quando ele a agarrava (nessa parte das declarações, a menor fez uma pausa, chorou, como se ouve na gravação e a diligência foi suspensa durante algum tempo para se acalmar, conforme consta do respectivo auto a fls. 112).
Depois esclareceu ter sido o que se passou nas duas semanas em que ele esteve cá, várias vezes por dia, para lhe apalpar os seios e tentar beijá-la na boca.
Voltou passado um mês e voltou-lhe a fazer aquelas coisas, estava no quarto da avó de pijama que ela lhe tinha trazido, com «boxers de buracos», a ver TV deitada na cama e «ele tentou ... ai, como hei-de dizer ... ele tentou meter aquela coisa lá dentro» e ela deu-lhe um pontapé, estando a avó no quintal.
Ele estava vestido. Acha que «só tirou aquilo das calças» ... não sabe como dizer ... «uma parte íntima dos homens» ... (ri-se por nervosismo) «pronto, não consigo dizer a palavra». O Juiz perguntou-lhe se era o pénis e a menor respondeu: «Isso, o que me estava a escapar!»
Ele entrou no quarto, não sabia se ele já trazia o pénis de fora; agarrou-a com força, deitou-se em cima dela e tentou meter; ela deu-lhe um pontapé e foi-se embora. O Juiz perguntou-lhe se houve contacto do pénis com o corpo dela; respondeu: «Si ... Não.»
Referiu outra situação em que, na sala, ela estava no sofá comprido, o arguido chegou lá, agarrou-a, mas ela «deu um grito» e ele largou-a, estando a avó no quintal.
Outra vez, à tarde, tinha chegado da catequese, foi à casa-de-banho e o arguido foi para dentro de casa, atrás dela e disse-lhe para ela abrir a porta, mas a menor não o fez, porque já sabia o que ele queria.
Posteriormente, num quarto da frente da casa, estava a escrever uma mensagem e de repente ele apareceu lá, agarrou-a com muita força, deitou-a, desapertou-lhe as calças e ela não conseguiu gritar. O arguido agarrou-lhe no pescoço e meteu uma almofada, ela agarrou-a para tapar a sua cara, no quarto de hóspedes. Ele desapertou-lhe então as calças, meteu-lhe a mão dentro das cuecas e meteu na vagina dois dedos - foi quando a avó apareceu; ele fugiu para a casa-de-banho e a avó foi atrás dele. Esta já não viu o que sucedera (no entender da menor); a avó apercebeu-se quando o seguiu.
O arguido disse à avó que fora só uma vez, mas a menor disse que aconteceu várias vezes e nessa ocasião contou à avó o que se passara.
Dessa vez estava no início da escola (Outubro de 2008).
Não gostava dele porque tratava mal a avó, sempre a discutir com a avó e a gozar com o pai.
Estas declarações da menor contribuíram para o que se deu como provado nos pontos 1°, 2°, 3° ,5°, 7°, 8° e 9° da douta acusação e para que se dessem como não provados os pontos 4° e 6° da mesma.
*
A Dr.ª M. foi uma das subscritoras do relatório médico-legal de fls. 49 e ss., onde se concluiu que não se observaram sinais objectivos de lesões traumáticas ou seus vestígios na superfície corporal em geral, bem como na região ano-genital e que não foram encontrados quaisquer elementos que permitissem às Peritas afirmar ou infirmar que sobre a menor tenham sido exercidas práticas sexuais.
A Perita esclareceu que não voltou a ver a menor depois desse exame e aos costumes disse nada, quanto a relações familiares ou de amizade.
Explicou que as Peritas quiseram dizer naquelas conclusões é que não encontraram lesões traumáticas, nem quaisquer outros vestígios, mas não querem dizer não houvesse relações - não deixaram marcas. Podem ter existido, mas não encontraram sinais.
À pergunta se dois dedos deixariam vestígios, provavelmente, disse que sim, por o hímen ser apenas permeável ao indicador.
A menor sabia onde estava, em que ano e dava outras respostas ao que lhe perguntavam, sabendo quem é, o que fazia. Não aparentava ter perturbações mentais.
A Perita explicou que a menor não precisava ficar desorientada à data do exame para se concluir haver a situação criminal em causa; o seu estado era normal para uma criança de 12 anos.
Perguntada se entre o dia 18 e o dia 24 desapareceriam os vestígios, respondeu que não; deixariam marcas, soluções de continuidade.
Conclui-se, pois, que a actuação do arguido não deixou marcas físicas na menor.
*
MI, divorciada, doméstica, avó paterna da menor, disse que se casou com o arguido segundo a lei dos E.U.A., nunca tendo sido registado esse matrimónio em Portugal. No entanto, o arguido prestou termo de identidade e residência (fls. 245) onde consta como divorciado e na sua declaração de rendimentos de 2008 a fls. 200 e segs. refere várias vezes o estado de solteiro, optando-se por o identificar nesta decisão como divorciado, por ser assim que consta do T.I.R. por ele assinado e por ser assim que também a companheira se identificou.
O seu depoimento foi apreciado com reserva, quanto à situação que disse ter visto entre a neta e o companheiro, por ter razões de queixa do arguido e ter afirmado querer seja castigado. Foi advertida de incorrer em sanções criminais se mentisse, tendo a mesma dito não ficar impedida de dizer a verdade.
Viveu 21 anos com o arguido e vieram a 6 ou 7 de Março de 2008 dos E.U.A. ..
A menor ZA e o irmão de 21 anos, tal como a companheira do filho da testemunha (pai da menor, preso então preventivamente) iam sempre a sua casa.
Ensinou os netos a chamar avô ao arguido e julgava que os gestos dele perante a menor eram feitos por afecto: pôr-lhe a mão pelo pescoço e chegar-se a ela: Às vezes a ZA dizia: chega-te para lá, deixa-me!
Não se recordou bem das datas dos factos.
Referiu uma situação em que o arguido teve oportunidade de ir com menina para casa, onde entraram os dois, mas não ficaram a ver TV. A testemunha viu-os no quarto da frente, que diziam ser o dela. Ele em cima da menor, todo desabotoado e calças dela desabotoadas.
Que «ele não tinha nada para lhe fazer mal, mas loucura na cabeça», bastava-lhe mexer e apalpar; tinha problema na próstata e o mesmo procedimento com a testemunha. «Ele mais vermelho que esta carpete» (refere-se à da sala de audiência), «mexia-lhe nas maminhas e vagina. Ela tola, com os olhos ...».
A menor disse que a avó não chegou a ver a situação senão no final, quando o arguido fugiu para a casa-de-banho, pelo que ficam dúvidas sobre se a avó viu o que o companheiro acabara de fazer. Aliás, a menor não disse que o arguido lhe tivesse acariciado os seios nessa oportunidade.
Aceita-se o que a menor disse nessa parte e não o que a avó, extremamente exaltada, referiu no julgamento. O depoimento da menor revelou-se sincero, o da avó mostrou-se vingativo. Não é por faltar o testemunho presencial da avó, que surpreendeu o arguido quase em flagrante delito, que deixa de se valorar o depoimento singelo e sincero da neta, pois a regra testis unus, testis nullus já em meados do passado século fora substituída pelo regime da prova livre (António Simões Correia, Dic. Adágios e Princ. Jurídicos, 1958, I, 444).
A avó referiu que começou a gritar, (e se fosse hoje mandava-o para o hospital») e ele pediu que o desculpasse, que fora acto de loucura. Não sabia se havia de o expulsar de casa ou chamar a polícia. O irmão da menor disse-lhe que se fosse embora e ele foi. Participaram à polícia e ele foi para a América antes da viagem marcada.
Entende que o arguido só agiu assim desde quando «quis tomar posse da sua menina», sempre a comprar-lhe perfumes e a ir buscá-la à escola.
Após a prática dos factos, o arguido pediu perdão, que ia para América e se ela precisasse de alguma coisa, lhe pedisse.
A menor não se mostra alegre, nem quer brincar.
Compram-lhe roupa, mas ela sente sempre vergonha. Quis sair da escola de Cantanhede, por os garotos seus colegas, os professores e a psicóloga saberem o que se passou.
Depois de saber que seria realizado o julgamento, a menor ficou nervosa e teve vómitos.
Nunca tinha chumbado e este ano chumbou, o que poderia suceder por causa da situação do pai, mas que a testemunha entende ter sido tudo por isto (que está nos autos).
A menor começa uma conversa e não a acaba.
Praticamente não se relaciona com ninguém, por mais que tentem; só o faz com família.
Tem medo que lhe falem e lhe perguntem do caso.
Quando querem por a manta por cima ao deitar, ela tem medo que lhe toquem.
Nem uma injecção um médico parecido com arguido lhe pôde dar, soube por pessoa da família. Nem quis falar com ele. Por isso foram à Drª Jaqueline com o medicamento.
Dorme sempre com a luz acesa por medo de alguém ir ter com ela. Agora dá pulos na cama, levanta-se.
Por mais que tentem, comprem, façam, lhe «metam na cabeça», não reage, está muito decaída.
Nem com os psicólogos quer falar, por vergonha; não pode crer que o «avô» lhe tenha feito aquilo.
Às vezes vai para falar e pára. Sempre com dores de cabeça. Não «puxa» para nada, só anda com a «cadelita».
Chora por tudo e por nada, não tem vontade nenhuma nos estudos; «o pai ameaça-a para ver se sim» e vai buscá-la à escola. Mas sempre fora boa aluna. Hoje (dia de julgamento), sem vontade de se levantar, não foi à escola, apesar de pai lhe dizer para vestir roupa linda e ela ...
Ela já era meio traumatizada, exaltada por qualquer coisa, mas passou todos os anos.
Com esta situação dos autos ficou doente, chorava, não comia nada.
No entender da avó, a Perita disse o que disse porque certamente só a viu nesse momento (do exame) e a testemunha convivia com ela diariamente.
A menor tem andado em consultas com psicólogos, levada pela companheira do pai.
A situação da oferta de perfumes foi nesta última viagem, de Agosto a Setembro; o arguido estava mais acessível tanto para a menor, como para consigo.
Vai-te embora, sai daqui, dizia a menor.
Quanto a datas a testemunha não mostrou total lembrança.
Disse que em Março/Abril o arguido estava cá, a neta «chumbou» em 2008/09 e passara no ano lectivo anterior.
Que a situação que presenciara entre eles fora em Outubro, pouco antes de ele se ir embora.
O arguido não tinha erecção, «a tolice dele era só na cabecinha», ficando pior depois de operado à próstata.
Negou que a neta usasse linguagem obscena.
*
L, solteira, auxiliar de farmácia desempregada, companheira do pai da menor há 7 anos, disse conhecer a menor desde os 5 anos de idade. Era bem disposta, alegre, sociável, brincava e tratava o arguido como avô.
A avó da menor telefonou-lhe exaltada pelas 8 ou 8,30 horas, em dia de Outubro de 2008, que tinha encontrado o arguido em cima da «miúda» apalpando-lhe os seios; em «estado de nervos», contou-lhe o que se passara. Deslocaram-se a…, mas o arguido já ali não estava. A menor, assustada, relatou-lhe o que a avó tinha visto e que não era a primeira vez. Já da outra vez que cá esteve queria que lhe mostrasse os seios e apalpou-a.
A testemunha trabalhava até tarde. Às 10 ou 10,30 horas, ao chegar a casa da avó, a menor queria logo ir-se embora, mas calada, não falava em nada, nem com ninguém. Agora é que associam que já era disso.
A menor tem tido acompanhamento psicológico, crises de ansiedade e «nervos» que a levaram ao hospital. Não se sentia à vontade com a psicóloga e esta até disse que deixasse as consultas, para não a perturbar; agora só é vista pela psicóloga da escola.
A menor reagiu muito mal, muito revoltada, refugia-se em casa, não convive com ninguém, muito afectada psicologicamente. Teve muito receio de falar consigo.
Por duas ou três vezes em casa da avó o arguido pediu à menor para mostrar os seios, apalpou-os uma vez, mostrou-lhe o pénis e outra vez foi buscá-la à escola e pediu-lhe para mostrar o seios. A «miúda» disse que ele a agarrou e a deitou quando falava ao telemóvel - a avó viu (nesta parte, atendeu-se ao que disse a menor, pois a versão da companheira do pai não coincide plenamente com a da vítima).
Pediu transferência de escola por ali ter vergonha - todos ali sabiam. Não convive com ninguém, não quer estar com «miúdos».
Teve crise em que foi com diarreia a um médico de certa idade e a menor recusou-o, tal como a medicação, sempre receosa de «pessoas de idade».
Só por lhe puxar a manta, acordava com medo; dormia de luz acesa, sempre com alguém ao pé dela.
Não tem muito apetite; teve muitas crises de ansiedade com a chegada do dia do julgamento, não come quase nada há duas semanas, que não queria voltar a falar, lhe custara dizer o que se passara, da outra vez; em dois ou três dias tivera de relatar isso quatro ou cinco vezes (situação que, a par do que se constatou a propósito das declarações para memória futura, levou o Tribunal Colectivo a indeferir o requerimento da Defesa para que fosse de novo ouvida).
Que a menor não tem motivação para a escola, nem para brincar, como anteriormente tinha.
Tem medo de tudo, de qualquer acção que possa fazer.
A menor escondeu as fotografias da avó com o arguido e outros objectos trazidos por ele.
Uma semana ou duas antes destes factos ela começou a não querer estar em casa da avó.
Pela última vez o arguido esteve cá cerca de um mês. Das outras vezes não viu comportamentos anormais da ZA
Era normal, não muito expansiva. Momentos em que estava mais sossegada, outros mais irrequieta. Palavrões, podia dizer, mas não era frequente.
Antes o arguido não queria fazer nada e depois queria sempre ir buscá-la à escola. Este depoimento mostra credibilidade, salvo quanto ao que se passou na citada situação de Outubro, pois a testemunha não a presenciou.
*
LT solteira, ajudante de farmácia, amiga da família da menor, só conhece o arguido de vista e nunca falou com ele.
Notou que algo se passara porque a menor era criança bastante extrovertida e depois ficou introvertida, tendo comportamento diferente, mesmo no carro mostra-se mais pensativa e calada.
Acabou por se «abrir» e dizer o que se passara; que já não era a primeira vez que o arguido tentara alguma coisa com ela; indo de carro, punha-lhe mão na perna; forçou a mão dela para a colocar no órgão genital dele; foi preciso estar ali a dizer-lhe não tenhas medo, dando-lhe o máximo apoio para ela conseguir dizer. Na noite em que se passou, 18/10/2008, dormiu consigo e gritava «não!», com pesadelos.
Tenta que ela se anime porque sente que alguma coisa nela não é o mesmo que era.
Não quis puxar mais a conversa para não a traumatizar. A escola não correu muito bem; agora está em colégio privado, com transporte de ida e volta, tendo psicólogo na escola.
Aqui as coisas sabem-se e mudou de escola - disseram-lhe os familiares. Agora a menor está com mais apoio, no colégio.
*
JR, divorciado, empresário de bebidas, sobrinho do arguido, disse que fala com ele, que chora muito, isto traz-lhe grande confusão.
Almoçaram em Cabanas de Viriato a última vez que estiveram juntos. O tio chegou minutos antes e a menina não largava o arguido, agarrava-se ao pescoço dele, em Abril do ano passado (2008).
Conhece o tio há muito tempo.
Quando velhotes falavam de mulheres, o tio até se afastava, que aquilo já não era com ele.
A menina contou anedotas «picantes» que envergonharam as pessoas da mesa. «Alhos e bugalhos» que nem quer referir. Nunca mais viu a moça desde esse fim de semana.
Até com mulheres de mais idade ou com mulheres jovens, ou o tio muito o enganou, ou a testemunha está estupefacta com o que se está a passar.
Se se passou tem muita pena, mas acaba por chorar com ele quando agora fala que dá um tiro em si, que tem a vida desgraçada. Está desorientado.
Ele diz que não é como pintam; se calhar se deixou levar. Se voltasse atrás, não se metia nisto - voltar para cá. Gostava dela, avó, com problemas por causa do filho. Veio e devia ter ficado (nos E.U.A.).
Voltar a fazer o mesmo nem pensar, com medo da situação; se pudesse recuar meia dúzia de anos, teria agido de forma diferente, mas gostava dela, avó e endireitou a vida com ela, mas deixaria de viver com a avó.
Dizia que nunca mais teve relação com mulher nenhuma. Respondeu que não, à pergunta se o arguido tem erecção.
Esclareceu que o tio tem família nos E.U.A. e vive em casa perto da de um primo da testemunha. Reformado, mas trabalha ainda, por ser excelente mecânico de camiões e máquinas.
*
AF casado, condutor, residente em New Jersey, E.U.A., é sobrinho do arguido, que considera pessoa estupenda, que vivia com a esposa e vive só agora. Um filho dele, que lá reside, frequentava a casa quando podia. Foi um casamento com discussões, até em casa da testemunha (como se disse, esse casamento não está documentalmente provado).
O arguido viveu em Angola, aqui, nos E.U.A. e nunca teve algum problema em Tribunal (o que esta testemunha disse coincide com o certificado de registo criminal, no que respeita a Portugal).
O arguido vive do outro lado da rua da testemunha, não sai de casa ultimamente, muito deprimido, pensativo.
Um médico aconselhou-o a não vir já. Foi operado duas vezes a cancro da próstata, há anos, ficando impotente. Foi a todos os médicos com ele.
Depois da operação a avó da menor passou a «disparatar» com ele de vez em quando, parece que ... ela é mais nova e sentia falta de um homem ao lado.
A última vez com que a testemunha esteve com a menor foi em Maio de 2008, rectificando para Abril/Maio, após insistência do Defensor.
Estavam o tio, a menor, a testemunha, a sua esposa, JR, seu primo (testemunha anterior), é possível que estivessem os seus sogros, todos num almoço. A menor contou anedotas um pouco «picantes» para uma moça; pensou que ela tivesse uns 13/14 anos e tinha 12. As anedotas falavam de sexo; não achou graça, levantou-se desagradado e foi à casa-de-banho.
Ela agarrava-se ao arguido, abraçava-o; ele, «coisa de avô» - não viu excesso dele.
Quando o tio voltou para os E.U.A. vinha muito transtornado, que o acusaram de abuso ou coisa assim, da ZA
*
MF casada há 30 anos, empregada de laboratório nos E. U.A., viu a menor lá quando era pequenina, mas cá só o ano passado, uma vez.
Considera o arguido uma belíssima pessoa, que trata bem as outras pessoas. De atracção do arguido por garotas, nunca deu conta.
Desde que o arguido fez operação à próstata a avó da menor gritava muito com ele, sempre a discutir, que ele já não era homem para ela - ela dizia muita vez que desde que ele foi operado não tinha relações sexuais e lamentava a sua sorte, que ele como homem não dava nada.
Agora ele não sai se não o forem buscar; sente-se mal e fecha-se em casa.
Em Portugal, foram a Cabanas de Viriato, a um almoço de enguias. Achou a moça muito mexida, não estava quieta, contava anedotas com linguagem imprópria para idade dela, com palavras muito feias para a essa idade.
Ela sempre debaixo do arguido, «ferrou-lhe» dois murros nas costas e a avó ralhou; a menor respondeu-lhe: cala-te estúpida. Era uma «miúda viva».
*
MF casado, repórter de imagem, … residente em Oeiras, filho do arguido, viveu nos E.U.A. onde fez os estudos secundários.
Sente que o pai está perturbado com a situação, a que reage mal. «Farta-se» de chorar ao telefone.
Na vida dele nunca teve problemas com a polícia, nem sequer uma multa de trânsito.
É pessoa «normalíssima, mais para o tímido», pessoa «muito fechada».
Da última vez que esteve com ele o pai queixou-se: o que é que ando aqui a fazer, nem uma mulher posso ter. Havia qualquer coisa que o angustiava na Páscoa de 2008.
Nota-se que há diferença de mentalidade, tristeza, cada vez mais, quando fala com ele.
Pela maneira como ele fala, a tristeza, tem a opinião de que há algo por trás (mas a testemunha não especificou o quê).
Garante que o pai não fez isto (o que é mera convicção), que era incapaz de o fazer e lidou com muitas crianças, meninas inclusive.
*
ME, casada, secretária de administração, nora do arguido, nunca teve qualquer atrito com ele, que é calmo, simpático, de bom carácter e a apoia quando precisa.
Ele não tem vindo cá, devido a problemas de próstata e tratamentos, alguns derivados da idade.
Pelo que ele chora ao telefone e pelo que ele diz de lhe armarem uma cilada e lhe estragarem a vida, a testemunha tem dificuldade de tocar nestes assuntos. Nunca lhe fez perguntas.
Comentou com o marido que tem receio que ele cometa suicídio pelo desespero das conversas que ele tem tido ao telefone.
Caiu numa estupidez, uma situação destas.
Não consegue acreditar, pela maneira de ser e de estar dele perante as pessoas. É surreal.
Entende que há armadilhas hoje postas a pessoas de idade só para conseguir dinheiro.
*
JT, divorciado, aposentado da função pública, residente em Oeiras, conhece o arguido desde os tempos de Angola e tem uma filha que nunca teve nada com ele. O arguido é amigo do seu amigo. A «miúda» às vezes ficava com o arguido enquanto a testemunha e a mulher do arguido iam ao café e nunca houve queixas de nada.
O arguido disse-lhe, choroso, que era uma ratoeira, nem parecia o Sr. F, que há pessoas capazes disto para ganhar dinheiro.
Era problema de divórcio, que a mulher precisava de dinheiro e o filho dela fora duas vezes preso por droga, uma lá e outra aqui.
*
Constata-se pelos depoimentos das testemunhas de defesa que algumas destas tentaram apresentar a menor, apesar de apenas ter 12 anos à data dos factos, como jovem devassa e malcriada, que teria provocado sexualmente o companheiro da avó paterna. Ora, pelo depoimento da mesma e pelo que disseram em audiência as técnicas, a avó e a companheira do pai, não se aceita que uma criança daquela idade, que frequentava a escola e a catequese numa localidade rural, fosse capaz de provocar ânimo libidinoso ao arguido, o qual tratava como se fosse seu avô, sendo este, ao invés, quem mostrou instintos sexuais ilícitos, tendo ao seu dispor, como é notório, a televisão, o cinema, as revistas e demais meios de diversão ao dispor de adultos em Nova Jérsia que lhe poderiam despertar tais intentos abjectos.
A menor nem se recordava da palavra «pénis» quando quis referir o órgão viril do arguido e quando o Juiz na fase de inquérito lhe perguntou se era o «pénis» que queria referir, a menor respondeu: «Isso, o que me estava a escapar!», o que mostra a sua falta de experiência na discussão de assuntos desse jaez, entendendo-se como normal que contasse anedotas aprendidas com os colegas de escola com alguns «palavrões», correntes nos meios rurais, sem que compreendesse perfeitamente o significado de alguns substantivos ou adjectivos desadequados em termos morais.
O Juiz da fase de inquérito perguntou à menor se houve contacto do pénis com o corpo dela e quando a mesma ia para responder precipitadamente que sim, disse não, pelo que não se mostra tivesse sido industriada pela avó ou por outra pessoa de família para dar uma versão empolada dos factos com vista a prejudicar o arguido. O facto de este não ter erecção não o impedia de tentar friccionar o pénis na vagina da menor, para satisfazer o desvario da sua líbido, mas ela deu-lhe um pontapé e o arguido foi-se embora.
As testemunhas de defesa apenas se aceitam como abonatórias do comportamento deste, pois nada presenciaram dos factos de que o arguido vem acusado, vivendo qualquer delas bem longe de Cantanhede.
A hipótese da cilada montada ao arguido pela avó ou outros familiares da menor não colhe, por falta de prova.
Colhe aproveitamento, sim, a tese da acusação, pois as regras da experiência mostram que nestes casos os abusos sexuais são feitos sem alarido, em lugar não sujeito a olhares de outrem e por pessoas da família ou das relações de amizade das vítimas, que pela sua pouca idade, temor reverencial, vergonha, medo de represálias, ou outras razões, acabam por só a muito custo revelar a traumática situação a que são sujeitas ao longo de dias, semanas, meses ou anos.
Por outro lado, não é indispensável que o relatório pericial constate danos físicos, como a laceração do hímen, para se provar o abuso. Toda a situação relatada pela Perita e pelas testemunhas da acusação é compatível com outras situações já apreciadas em Tribunal, em que as vítimas menores só com grande dificuldade acabam por dar a conhecer abusos sexuais iniciados muito tempo antes.
*
Tivemos igualmente em conta:
O relato de diligência externa da Polícia Judiciária, a fls. 32/33, onde se apurou que o arguido chegou a Portugal em 11 de Setembro de 2008 e tinha viagem de regresso aos E. U.A. em 23 de Outubro do mesmo ano, mas após a prática dos factos referidos no ponto 70 da acusação, antecipou a viagem de regresso para 21 de Outubro de 2008, pelo que esses factos ocorreram em Outubro, como referiu a menor ofendida, tendo a testemunha L a referido concretamente o dia 18, tal como o relatório pericial do exame médico feito à menor dois dias depois, que consta de fls. 49 a 53.
Tivemos ainda em conta as declarações fiscais e de despesas domésticas apresentadas pelo arguido a fls. 179 e segs.
Do Certificado de Registo Criminal do arguido a fls. 233 nada consta.
*
Relativamente a danos futuros da menor, teriam de existir outros exames que convencessem o Tribunal da sua provável ocorrência. Não se poderia dar como provada a matéria conclusiva constante do pedido cível, somente se dando como provados factos concretos mencionados pelas testemunhas L, companheira do pai, L amiga da família e pela avó paterna. No relatório médico, realizado dois dias após o último acto abusivo do arguido, não se referem danos imediatos da vítima.
O pai da menor não surgiu como demandante cível, pelo que não podem ser considerados os danos morais que alegou.
***
Conhecendo:
No recurso, o recorrente Mº Pº insurge-se contra:
- Omissão de factos (não pronúncia);
- Medida concreta da pena, pugnando pelo agravamento.
Nesta Instância, a Ex-mª PGA suscita a questão do não cumprimento do disposto no art. 358 do CPP e a verificação do vicio da contradição insanável.
***
Omissão de pronúncia:
Melhor seria que o julgador ao alterar um facto desse a versão da acusação (ou contestação) como não provada, e desse modo não restariam dúvidas.
Mas tal não se insere no vício de omissão de pronúncia, mas em incumprimento do estatuído no art. 374 nº 2 do CPP (enumeração de factos provados e não provados). Mas, o Tribunal Colectivo pronunciou-se e indica o modo de actuação do arguido, só que de maneira diferente, e só haveria omissão de pronúncia se nada tivesse dito sobre a actuação do arguido, não referisse tocar, introduzir ou outro termo de actuação que se tivesse provado.
Mas, na acusação referia-se que o arguido teria introduzido dedos na vagina da ofendida.
E no acórdão deu-se como provado que o arguido tocou com os dedos na vagina.
Donde resulta que o julgador se pronunciou sobre tal facto, descrevendo-o como ficou provado. E se tocar é diferente de introduzir, ficando provado que tocou, resulta, logicamente, não provado que introduziu.
Porém, como o art. 374 nº 2 do CPP manda enumerar os factos provados e não provados, melhor seria que no acórdão constasse provado que “tocou” e ainda, como não provado, que “introduziu”.
Assim como deve ser dado cumprimento ao estatuído nos arts. 358 e 359, conforme o aplicável, quando se verifica alteração não substancial, ou substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Vícios do art. 410 nº 2 do CPP:
Os vícios elencados no art. 410 nº 2, do CPP, a contradição entre factos e fundamentação e na própria fundamentação, e ainda a insuficiência da matéria de facto para a decisão, devem constar do próprio texto da decisão recorrida e são de conhecimento oficioso, mesmo que não invocados no recurso (in casu é suscitado, nesta Instância, o vício da contradição insanável, previsto no art.410 nº 2 al. b) do CPP).
Contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão:
Este vício há-de manifestar-se por uma incoerência, oposição incompatibilidade manifesta entre a fundamentação ou entre esta e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir - cfr., entre outros vários, Acs. STJ de 22/5/96 in Proc. 306/96 de 12/127)9 in Proc. 1046/98 in Sumários nº 36.
Verifica-se quando sobre o mesmo facto ou sobre a mesma questão constam, do texto da decisão recorrida, posições antagónicas e inconciliáveis, haja oposição entre factos que mutuamente se excluam por impossibilidade lógica ou de outra ordem por versarem a mesma realidade.
E tanto pode respeitar à fundamentação da matéria de facto como à contradição na própria matéria de facto.
O mesmo vício pode ter lugar quando se dá como provado um facto mas da respectiva motivação resulta que assim não pode ser considerado, o que igualmente integra o erro notório na apreciação da prova.
No caso concreto:
Consta como facto provado que (e reproduz-se porque não se fez a enumeração dos factos provados –art. 374 nº 2 do CPP),” Em 18 de Outubro de 2008, à noite, quando a menor se encontrava num dos quartos da casa a escrever uma mensagem, o arguido foi ter com a menor, agarrou-a, deitou-a em cima da cama e meteu a mão no interior das calças e cuecas dela, tocando com os dedos na vagina da menor(sublinhado nosso).
Por outro lado, consta da motivação, e reportando-se ao depoimento da menor ofendida, “Posteriormente, num quarto da frente da casa, estava a escrever uma mensagem e de repente ele apareceu lá, agarrou-a com muita força, deitou-a, desapertou-lhe as calças e ela não conseguiu gritar. O arguido agarrou-lhe no pescoço e meteu uma almofada, ela agarrou-a para tapar a sua cara, no quarto de hóspedes. Ele desapertou-lhe então as calças, meteu-lhe a mão dentro das cuecas e meteu na vagina dois dedos - foi quando a avó apareceu; ele fugiu para a casa-de-banho e a avó foi atrás dele. Esta já não viu o que sucedera (no entender da menor); a avó apercebeu-se quando o seguiu” (sublinhado nosso).
Acrescentando-se que, “Estas declarações da menor contribuíram para o que se deu como provado nos pontos 1°, 2°, 3° ,5°, 7°, 8° e 9° da douta acusação e para que se dessem como não provados os pontos 4° e 6° da mesma”.
Sendo o ponto 7 da acusação, do seguinte teor: “Ainda nesse mesmo dia (1810-2008), à noite, quando a menor se encontrava num dos quartos da casa a escrever uma mensagem, o arguido foi ter com a menor, agarrou-a, deitou-a em cima da cama e meteu a mão no interior das calças e cuecas, introduzindo os dedos na vagina da menor, ao mesmo tempo que a tentava beijar na boca” (sublinhado nosso).
Parece-nos inexistir a alegada contradição porque o que o julgador pretendeu (tanto quanto entendemos daquele parágrafo da motivação), é que o depoimento da menor ofendida contribuiu “para o que se deu como provado” da matéria de facto dos, (“nos” na motivação) pontos… e 7 , da acusação. Contribuindo apenas para o que se deu como provado, inexiste aquela contradição insanável.
Porém, outra questão se levanta.
Considerando-se relevante o depoimento da menor, “A nossa convicção está alicerçada, entre outras provas, nas declarações para memória futura da menor ZA referidas no auto de fls. 110 a 113”.
E, referindo a menor que o arguido lhe meteu dois dedos na vagina, porque motivo não se deu como provado tal facto que, é manifestamente relevante na qualificação jurídica dos factos?
Seria por causa do depoimento da perita médica?
Que referiu a ausência de vestígios, e que estes se manteriam até ao exame médico caso tivessem acontecido “deixariam marcas, soluções de continuidade”.
Seria porque a menor nesse ponto especifico não depôs de forma convincente?
É esta análise que cumpria fazer e não o foi, apesar da “quase” descrição da prova na extensa motivação.
Há manifesta insuficiência na análise crítica da prova.
Face à motivação e, neste particular, entendemos que é insuficiente a justificação, o que constitui falta/insuficiência de exame crítico das provas, em violação do disposto no art. 374 nº 2 do CPP.
Quando há versões diferentes, mesmo que substancialmente divergentes, não se pode aceitar uma e afastar outra, sem qualquer explicação plausível e coerente o que, inexistindo, constitui violação do estatuído no art. 374 nº 2 do CPP “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, convicção positiva ou negativa.
Haveria que ser justificado o depoimento da menor quanto àquele aspecto, até porque quanto ao mais se teve tal depoimento como relevante.
Como refere o Ac. do STJ de 30-01-2002, proc. 3063/01- 3ª, SASTJ, nº 57, 69, “A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (sublinhado nosso).
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo –Ac. do STJ de 12-04-2000.
A insuficiente justificação, constitui falta de análise critica da prova, que gera nulidade da sentença, nos termos do art. 379 nº 1 al. a) do CPP.
Com estes fundamentos, se julga procedente o recurso, ficando prejudicado o conhecimento das questões suscitadas e não analisadas.
Decisão:
Face ao exposto, acordam no Tribunal da Relação de Coimbra e Secção Criminal, em, com outros fundamentos, julgar o recurso procedente e em consequência:
1- Nos termos e com os fundamentos expostos, anula-se a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que, se necessário com recurso a repetição de prova, colmate as lacunas apontadas, decidindo em conformidade.
Sem custas.
Coimbra,
__________________

__________________