Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1021/13.9TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: DESCAMINHO OU DESTRUIÇÃO DE BENS COLOCADOS SOB O PODER PÚBLICO
SUBTRACÇÃO
DESOBEDIÊNCIA
Data do Acordão: 02/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA [3.º JUÍZO CRIMINAL (ACTUALMENTE EXTINTO)]
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 355.º E 348.º DO CP
Sumário: A simples não entrega dos bens por parte do fiel depositário - mesmo depois de ter sido notificado para esse efeito, com a cominação de incorrer em responsabilidade criminal - não integra, sem mais, a acção típica de subtracção de bens ao poder público, prevista no art. 355.º do CP, nem o crime de desobediência a que alude o artigo 348.º do mesmo diploma.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 1021/13.9TALRA, do (entretanto extinto) 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, em que é arguido A... (melhor identificado nos autos), após realização da audiência de julgamento foi proferida sentença (constante de fls. 188 a 194) onde se decidiu nos seguintes termos (transcrição parcial):

“Face ao exposto, julgo a acusação procedente, por provada e, em consequência, condeno o arguido A..., como autor material de um crime de descaminho  p. e p. pelo artº 355º do Código Penal,  na pena de  9 (nove) meses de prisão, cuja execução lhe suspendo pelo período de um ano.

(…)”

2. Inconformado com o assim decidido, o arguido (a fls. 205 a 211) interpôs recurso, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“A - Definida a moldura penal abstrata, haverá que encontrar o “quantum” concreto da pena a aplicar ao arguido, aqui na segunda e última operação supra referida, pois que o tipo de ilícito apenas a pena de prisão prevê.

B - Na determinação desse “quantum” concreto haverá que fazer apelo às necessidades de prevenção e à culpa da arguida, na sequência do comando contido no artigo 71°, n°2 do Código Penal.

C - É afirmação habitual da doutrina, com seguimento jurisprudencial, - v. g., dos mais recentes, os Acs. do STJ de 24-01-2007 (06P4345), de 25-10-2006 (06P2938) e de 21-03-2007 (07P790) que a prevenção geral positiva ou de integração, com o intuito de tutela dos bens jurídicos é a finalidade primeira da aplicação de uma pena, não fazendo esquecer a prevenção especial ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade - art. 40.°, n.° 1, do CP.

D - Funcionando em “ambivalência” com as necessidades de prevenção, a culpa, a vertente pessoal do crime, o cunho da personalidade do agente tal como vertida no facto, funciona como um limite às exigências de prevenção geral.

E - Assim, o limite máximo da pena fixar-se-á, em função da dignidade humana do condenado, pela medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham, enquanto o seu limite mínimo é delimitado pelo “quantum” da pena que em concreto ainda realize eficazmente aquela proteção dos bens jurídicos.

F - Apuremos, então, quais os elementos de facto determinantes para a determinação da pena concreta, nos termos do artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

G - Desde logo se deve levar em conta a elevada ilicitude dos factos e a necessidade de tutela efetiva dos bens jurídicos protegidos que, aqui, se limitam á segurança rodoviária.

H - Haverá que relembrar que o Recorrente agiu com dolo direto e que a sua culpa é intensa.

I - Ao ora Recorrente não se conhece qualquer tipo de crime praticado, ou seja é primário,

J - O mesmo não ocorre com a necessidade de prevenção de futuros crimes, já que as circunstâncias da prática dos mesmos exigem maior rigor e severidade, dada a atuação em grupo. É prática que, por imposição de defesa da sociedade, se impõe reprovar seriamente.

L - São, pois, circunstâncias atinentes ao facto, sua forma de execução e à personalidade do agente, que determinarão que a pena proposta cumpra a “função contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada”, na terminologia de Jakobs.

M - Entende-se, pois, que se enquadra na culpa do Recorrente a na pena de na pena de 03 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 06 (seis) meses, (art. 50.° do C.P.), recorrido, porque os factos o justificam face ao critério legal permissivo da suspensão, designadamente a “prognose social favorável” pelas razões já apontadas.

Nestes termos:

Deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência:

- Deve condenar o Recorrente como autor material de um crime de descaminho, p. e p. pelo artigo 355.° do C.P., na pena de 03 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 06 (seis) meses, (art. 50.° do C.P.)

VOSSAS EXCELÊNCIAS, PORÉM, FARÃO A COSTUMADA E ESPERADA JUSTIÇA!”

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3. O Ministério Público junto da primeira instância, a fls. 217 a 222, respondeu ao recurso, concluindo que ao mesmo deve ser negado provimento e mantida a decisão recorrida.

4. Nesta Relação, a Exma Procurador-Geral Adjunta (a fls. 232) acompanhando a resposta da magistrada do Ministério Público de 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

5. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.

6. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

No caso vertente, e vistas as conclusões do recurso a única questão suscitada levar-nos-ia a analisar se a pena aplicada ao recorrente era excessiva (considerando o recorrente que deveria ter sido condenado na pena de 3 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 6 meses).

Todavia, uma outra questão importa, oficiosa e previamente, analisar e que consiste em saber os factos provados integram os elementos objectivos e subjectivos do crime de descaminho pelo qual tinha sido condenado na primeira instância.
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Da sentença proferida nos autos, foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):

“1. No âmbito de autos de Execução Comum com o nº. 1053/09.1TBLRA, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria, no dia 26 de Outubro de 2010, às 15 h, na Rua x..., Pombal e na Rua y..., Pombal, foram penhorados a B..., Lda. os seguintes objetos:

- um cilindro “Bomag”, de cor amarela, no valor de € 100;

- um gerador de marca branca com o nº. 338948, no valor de € 150;

- um compressor “Atlas Copco – XAS – 55 de 1992”, no valor de € 280;

- um dumper “Dumec” no valor de € 150;

- uma contralança de “Soima”, no valor de € 200;

- duas betoneiras de cor amarela, no valor de € 200;

- uma plataforma metálica de cor amarela, no valor de € 120;

Tudo no valor de € 1.100.

2. Dos bens penhorados foi constituído fiel depositário o arguido, a quem foi declarado que os objetos ficam à sua guarda e que deve apresentá-los quando lhe for exigido.

3. O arguido foi notificado em 10/05/2011 para, em cinco dias, fazer a entrega do bem neste Tribunal, ou informar acerca do paradeiro desse bem, sob pena de, não o fazendo, ser determinado o arresto em bens seus e determinada extração de certidão para instauração de procedimento criminal contra si.

4. Até à presente data, o arguido não entregou os objetos.

5. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente.

6. Sabia que subtraía os objetos ao poder público a que estava sujeito, que lhe haviam sido entregues na qualidade de fiel depositário e quis esse resultado.

7. Sabia ainda que aquela ordem era legal, que lhe devia obediência e dimanava de autoridade com competência para a dar.

8. Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

9. Tinha capacidade de determinação segundo as prescrições legais.

10. O arguido não tem antecedentes criminais.”

E quanto aos factos não provados foi exarado na sentença:

“Para além dos que ficaram descritos não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a discussão da causa.”
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Previamente à questão suscitada pelo recorrente, analisemos então se a materialidade fáctica apurada integra os elementos objectivos e subjectivos do mencionado tipo legal de crime de descaminho p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal.
Salvo o muito devido respeito por opinião contrária, entendemos que não, essencialmente por duas ordens de razões.

a) Em primeiro lugar, porque a matéria que consta no ponto nº 6, como sendo um facto – “sabia que subtraía os objectos ao poder público a que estava sujeito (…) e quis esse resultado” não configura, a nosso ver um facto material e concreto, mas antes um conceito estritamente jurídico (ainda por cima circunscrito ao tipo subjectivo do ilícito).

O crime de descaminho previsto e punido pelo art. 355º, do Código Penal é cometido por quem «destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer outra forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa eu tiver sido arrestada apreendida ou objecto de providência cautelar».

Não estando demonstrado nos autos que o recorrente tenha destruído, danificado ou inutilizado, total ou parcialmente os objectos que lhe foram confiados, resta, apenas, a acção típica e objectiva da subtracção dos bens ao poder público, por qualquer forma.   

Ora, integrando o teor do ponto 6 da matéria de facto no citado artigo 355º, facilmente se conclui, que a expressão “sabia que subtraía os objectos ao poder público a que estava sujeito” corresponde quase, in totum, ipsis verbis àquela expressão normativa.

Acresce que em nenhum dos outros pontos de facto é feita referência a que concreto acto material possa ter o recorrente praticado e que seja susceptível de integrar o conceito de subtracção; ou seja, neste particular, inexiste factualidade de onde se possa retirar/apreender qual foi a conduta que consubstancia a subtracção que o arguido realizou.

O mesmo é dizer que não demonstram, objectivamente, os autos a premissa fáctica, donde se extrai a ilação da primeira parte do ponto de facto nº 6: sem se conhecer em que consistiu o acto de subtracção praticado pelo arguido, não se pode concluir que aquele sabia que o praticou ou que quis esse resultado.

A expressão “subtracção dos objectos ao poder público” é, assim, utilizada, apenas e só, na integração num dos elementos subjectivos do tipo.

Daí que, deva ser considerada como não escrita.

E, nem se diga que “a não entrega dos bens” (ponto de facto nº 4), constitui em si uma conduta objectiva de subtracção, correspondendo, o saber que subtraía, ao saber que, não entregando os bens, de alguma forma estava a sonegá-los ou a ocultá-los ao poder público.

Com efeito, este raciocínio, admissível na decisão de direito, já o não é, na decisão sobre a matéria de facto.

A este nível, ou seja ao nível da decisão de facto, esta deve conter a enumeração de factos materiais e concretos (na expressão de alguns “nus e crus, evidenciadores de uma certa realidade”), cada um deles, com uma única significação, e não já conceitos de direito, conclusões, expressões conclusivas ou generalidades susceptíveis de várias interpretações.

A dada como provada factualidade da “não entrega dos bens” não equivale, necessariamente, à sua “subtracção ao poder público”, podendo aquele e este conceitos terem conteúdos diferentes, havendo, por isso, que descrever com rigor, qual o concreto facto material consubstanciador de uma qualquer das formas de subtracção dos bens ao poder público.

O conceito de subtracção, como aliás, o de destruição, danificação ou inutilização, incluídos na definição do referido tipo legal do crime em análise, são matéria de direito, porque envolve um sentido conclusivo e especificamente jurídico.

Por isso, mais uma vez repetimos, deva ser considerado como não escrito.

b) Em segundo lugar, porque, quanto a nós, sempre ressalvando outra melhor opinião, a simples não entrega dos bens por parte do fiel depositário – mesmo depois de ter sido notificado para esse efeito, com a cominação de incorrer em responsabilidade criminal – não integra, por si só, sem mais, a acção típica de subtracção dos bens ao poder público definida no já citado art. 355º (nem o crime de desobediência a que alude o artigo 348º do Código Penal, porquanto também não houve qualquer cominação da prática deste último crime no caso da inobservância da ordem dessa entrega)

Com efeito, a este propósito foram dados como provados os seguintes factos:

«3. O arguido foi notificado em 10/05/2011 para, em cinco dias, fazer a entrega do bem neste Tribunal, ou informar acerca do paradeiro desse bem, sob pena de, não o fazendo, ser determinado o arresto em bens seus e determinada extração de certidão para instauração de procedimento criminal contra si.

4. Até à presente data, o arguido não entregou os objetos».
Deste excerto fáctico apenas decorre que não entregou os bens, ficando sem se saber o que fez (ou possa ter permitido que fosse feito) aos mesmos. Em lado algum dos factos provados resulta demonstrado o porquê ou a finalidade (em termos de factos objectivos) dessa não entrega.

Em suma, entendemos que da materialidade objectiva exarada na sentença (bem como na própria acusação) não constam factos nem se encontra matéria susceptível de preencher o conceito de “subtracção ao poder público”.
Por outras palavras da factualidade apurada não constam actos integradores da dimensão objectiva do crime de descaminho p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal pelo qual o recorrente tinha sido acusado.
Poderia haver um crime de desobediência se o arguido tivesse sido notificado com tal cominação, mas também haveria nesse caso uma alteração substancial dos factos caso, entretanto, de enveredasse pelo aditamento dessa cominação.
Nessa decorrência, face à ausência de materialidade objectiva indispensável ao preenchimento do crime de descaminho, torna-se inócuo que na caracterização do tipo subjectivo do ilícito tenha sido considerada provada uma intenção “quis esse resultado” da subtracção.

Concluindo-se assim, que os apurados factos não são susceptíveis de integrar os elementos típicos (desde logo a nível objectivo) do imputado crime de descaminho (ou de qualquer outro tipo legal de crime), inevitavelmente se impõe a absolvição do arguido/recorrente, ficando, por conseguinte, prejudicada a apreciação da questão – medida da pena – que havia sido suscitada pelo recorrente.

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III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em, absolvendo o arguido/recorrente do crime de descaminho por que havia sido condenado pela primeira instância, revogar a sentença recorrida.

Sem custas.

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Coimbra, 4 de Fevereiro de 2015



(Luís Coimbra - relator)


(Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)