Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
336/22.0T8CDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: CARTA POR PONTOS
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
PERDA DE PONTOS
CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 148.º, N.º 2, DO CÓDIGO DA ESTRADA
ARTIGO 101.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – A cassação do título de condução, prevista no artigo 101.º do Código Penal, é uma medida de segurança para cuja aplicação é necessário formular um juízo sobre a potencial perigosidade ou inaptidão do agente para a condução.

II – A cassação do título de condução em resultado da aplicação do artigo 148.º do Código da Estrada não é uma medida de segurança e a sua aplicação decorre necessária e automaticamente da perda total de pontos em resultado das anteriores condenações em penas acessórias de proibição de conduzir.

III – Este efeito automático não viola qualquer preceito constitucional.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

A A.N.S.R. proferiu a seguinte decisão:

“(…) verificados que estão os pressupostos da cassação nos termos da alínea c. do n.º 4 e do n.º 10 do artigo 148º do Código da Estrada, determino a cassação do título de condução n.º ...80, pertencente a AA.”

Inconformado, o arguido impugnou judicialmente o decidido, tendo concluído (transcrição):

“i. “Considera a decisão que este tipo de conduta revela um grau de censurabilidade acrescida, porquanto atinge valores fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade, como o é da segurança da circulação rodoviária e a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos;

ii. “O sentido pedagógico que segundo a ANSR preside ao sistema de pontos torna-se desproporcional na prática, aplicado a um cidadão que necessita da carta de condução para exercer a sua actividade profissional quando comparado com outro que tem uma profissão que pode exercer mesmo que o título lhe seja cassado e mesmo que esta cassação lhe cause transtornos ou mais incómodos, como por exemplo ter de andar de transportes públicos;

iii. “Uma decisão administrativa não pode ter o condão de impedir o exercício de profissão de motorista, quando como se referiu os factos que levaram à perda de pontos ocorreram fora do horário de trabalho, em dias de lazer. A ser assim, aquela decisão meramente administrativa colidirá com o princípio constitucional do acesso à profissão e será violadora da norma do n.º 2 do artigo 18.º da CRP;

iv. “A aplicação da norma da alínea c) do n.º 4 com o n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada padece de inconstitucionalidade por violação no caso concreto dos artigos 18.º, n.º 2 e 47.º (acesso à profissão) da CRP”;

v. “E também por violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º, e do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 266.º, n.º 2, ambos da CRP.

Realizado o julgamento, o tribunal proferiu a sentença que passamos a transcrever nas partes que aqui relevam:

“…

Factos provados:

1. O arguido/impugnante AA é titular da carta de condução n.º ...80;

2. No âmbito do Processo Sumário n.º 97/18.... … o arguido/impugnante AA foi condenado, por sentença proferida no dia 11.06.2018, transitada em julgado em 11.07.2018, pela prática, em 07.05.2018, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez … além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor … declarada extinta, pelo cumprimento;

3. No âmbito do Processo Sumário n.º 142/20.... … o arguido/impugnante AA foi condenado, por sentença proferida no dia 03.09.2020, transitada em julgado na mesma data, pela prática, em 16.08.2020, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, … além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir … declarada extinta, pelo cumprimento;

4. Por referência a cada uma das decisões referidas em 2. e 3., consta averbada ao registo individual de condutor do arguido a subtracção de 6 (seis) pontos, ficando com 0 (zero) pontos.

9. O arguido/impugnante exerce a sua actividade profissional como motorista de pesados de passageiros, por conta dos ... (...), desde Setembro de 1992, auferindo mensalmente, em média, a quantia de €970,00;

No caso dos autos, o arguido foi condenado, por duas ocasiões, pela prática de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, com a aplicação de pena acessória, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, tendo sido subtraídos ao condutor seis pontos por cada uma dessas condenações, o que determinou a perda dos doze pontos que lhe estavam atribuídos – cfr. artigo 148.º, n.os 2 e 4, alínea c), do Código de Estrada.

A perda total de pontos determina a organização do competente processo autónomo para apuramento dos pressupostos de que depende a cassação do respectivo título de condução [cfr. artigo 148.º, n.º 10, do Código da Estrada], procedimento que foi integralmente observado.

A punição mediante a aplicação de penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor acarreta, ope legis, a perda de seis pontos na carta de condução, passando a constar do registo de infracções existente na ANSR, talqualmente se mostra previsto no artigo 149.º do Código da Estrada.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 09.05.2018, Relator: Francisco Mota Ribeiro, Processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, o sistema de pontos traduz uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar, em termos de perigosidade, os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir, ou não, a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular. Tal sistema visa apenas evidenciar, através de um registo central, com um sentido claramente pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização, os efeitos penais ou contraordenacionais das infracções cometidas, segundo a respectiva gravidade, tendo fundamentalmente em conta, não as sanções aplicadas, mas as próprias infracções, sendo que o efeito que possam ter para a determinação da cassação do título de condução, em virtude de uma eventual perda total de pontos, é apenas o de facilitação do cálculo do número de infracções cometidas e da sua gravidade. Porém, um tal resultado nunca será à partida certo, porquanto o próprio decurso do tempo e a posterior conduta do condutor tornarão contingentes os efeitos que daquelas infracções possam materialmente resultar, designadamente para a eventual cassação da carta, pois é a própria lei a prever que aos doze pontos de que dispõe cada condutor, poderão ainda acrescer mais três, até ao limite máximo de quinze pontos, sempre que no final de cada período de três anos não exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções, ou ainda um ponto mais em cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de acção de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.

Nessa medida, e como se esclarece naquele aresto, o sistema de pontos reveste uma índole pedagógica, seja pela subtracção de pontos efectuada proporcionalmente em função da gravidade de uma infracção cometida, seja estimulando o condutor para comportamentos estradais de índole positiva, sendo que aquela subtracção ocorre como efeito automático da infracção cometida, sem que assuma, no entanto, qualquer natureza sancionatória, consubstanciando apenas um reflexo da gravidade da infracção cometida e do relevo que a mesma possa ter no somatório de outras, tendo em vista aferir a dada altura a perigosidade do titular da licença de condução, em termos de saber se esta última se deve ou não manter, nos termos em que foi concedida pela administração.

Do mesmo modo, o sistema de pontos constitui um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne as condições legais para poder continuar a beneficiar dela. Inserir-se-á, tal desiderato, no âmbito dos poderes de administração do Estado. Veja-se que tanto a atribuição de uma licença de condução, em função da qual a lei faz conceder ao titular doze pontos, como a sua cassação, traduzem decisões de carácter administrativo.

A sucessiva prática de factos jurídico-criminalmente relevantes com penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor na via pública determina, materialmente, um juízo de inaptidão para o exercício da condução, condicionando, seguidamente, a validade do título de condução, e levando à sua cassação.

Importa acrescentar que não está em causa a perda de direitos, direitos civis, profissionais ou políticos [cfr. artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa].

Aduz-se no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 30.04.2019, Relator: Pedro Vaz Pato, Processo n.º 316/18.0T8CPV.P1, acessível em www.dgsi.pt, que o mencionado regime não se apresenta desconforme com a Constituição. Aludindo à jurisprudência do Tribunal Constitucional respeitante à caducidade da carta de condução provisória em caso de condenação pela prática de crimes e contraordenações rodoviárias - cfr. Acórdãos n.os 461/2000, 574/2000, 45/2001 e 472/2007, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt - dos mesmos resulta que a “atribuição de licença de condução não é um direito absoluto e incondicional e que é legítimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a sua atribuição, entre eles o da ausência de condenações rodoviárias durante um período experimental. Não sendo o direito em causa incondicional, não pode dizer-se que estamos perante a perda de um direito adquirido (perda a que se reporta o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição) quando se retiram as consequências da verificação de uma sua condição negativa. Ao estabelecer, um regime de carta «por pontos», com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias, o legislador estabelece mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução. Também neste aspeto não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito. No fundo, com o sistema de «carta por pontos» nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao «bom comportamento rodoviário». É como se o período experimental correspondente ao título de condução provisório se prolongasse continuamente (embora em termos diferentes dos desse período).

Não estaremos, pois, perante a perda de um direito, mas perante a verificação de uma condição negativa a que o mesmo está, à partida e continuamente, sujeito”.

Em bom rigor, esse direito a conduzir depende de um conjunto de condições, de perícia e de comportamento psicológico, não existindo, portanto, um direito absoluto a conduzir, mas si um direito (generalizado) a obter e dispor de licença dentro de pressupostos legalmente previstos, positivos e negativos, entre eles, naturalmente, o da ausência de condenações pela prática de crimes rodoviários. Não sendo esse direito incondicional, não pode afirmar-se estarmos perante a perda de um direito “adquirido”, quando apenas se retiraram as consequências da verificação de uma sua condição negativa, aplicável a todo e qualquer cidadão.

Assim, a cassação do título foi desencadeada por uma sucessão de sanções jurídico-criminais a que o arguido foi sujeito, estando em causa a verificação de uma condição negativa de atribuição do título de condução.

Reitera-se que essa cassação não torna definitiva a interdição, não havendo uma perda definitiva da faculdade de conduzir veículos com motor. Na verdade, a cassação apenas determina que o arguido/impugnante perde a habilitação que outrora detinha para conduzir veículos com motor na via pública e que, durante o período de dois anos, fica impedido de obter novo título.

Em particular sobre a alegada perda do direito ao trabalho/acesso ao trabalho, diremos que não encontraríamos uma qualquer razoabilidade, justeza e, até, proporcionalidade numa norma que porventura previsse que um trabalhador que necessitasse de conduzir para exercer a sua profissão não poderia ver cassada a sua licença, designadamente se se tratar, como no presente caso, de motorista de veículos pesados de passageiros. É que as pessoas que exercem a condução por motivos profissionais detêm deveres acrescidos no cumprimento escrupuloso, consciencioso e zeloso das normas estradais, sendo majorados os deveres de cuidado que sobre os mesmos impendem, por constituírem pessoas que dependem dessa actividade para proverem ao seu sustento, transportando outras pessoas no veículo e circulando, com elevadíssima frequência, na via pública, não se afigurando tolerável que, depois do cometimento de ilícitos estradais, venham então defender-se com a alusão a essa necessidade de conduzir, que lhes deveria ter determinado um comportamento diametralmente contrário àquele que, conscientemente, adoptaram.

Como tem sido decidido pelo Tribunal Constitucional (vd., entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 276/ 2002, publicado no Diário da República, Série II, de 29.11.2002, a propósito da compatibilização do direito ao trabalho com a sanção de proibição de conduzir veículos motorizados), “O direito ao trabalho, com o conteúdo positivo de verdadeiro direito social e que consiste no direito de exercer uma actividade profissional, se confere ao trabalhador, por um lado, determinadas dimensões de garantia, e, por outro, se impõe ao Estado no cumprimento de determinadas obrigações, não é um direito que à partida, se possa configurar como não podendo sofrer, pontualmente, quer numa, quer noutra perspectiva, determinadas limitações no seu âmbito, quando for restringido ou sacrificado por outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.tal justificação resulta das circunstâncias de a sanção de inibição temporária da faculdade de conduzir se apresentar como meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente, quer por um lado, na perspectiva do arguido recorrente a quem é imposta e destinada a pena aplicada, quer, por outro lado, na perspectiva da sociedade – a quem, reflexamente, se dirige também aquela medida -, na medida em que se visa proteger essa sociedade e, simultaneamente, compensá-la do risco a que os seus membros ficam sujeitos com a prática de uma condução sob o efeito do álcool

Acresce ainda que, nos dias que correm, uma elevada percentagem dos trabalhadores necessita do seu título de condução para exercer profissão (mais não seja para se deslocarem para o seu local de trabalho), o que vale por dizer que, caso se entendesse como o aqui impugnante, em última análise, muito dificilmente poderia ser determinada a cassação do título de condução a quem quer que fosse …

A este propósito, citamos ainda o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no dia 15.01.2020, Relatora: Alcina da Costa Ribeiro, Processo n.º 576/19.9T9GRD.C1, disponível em www.dgsi.pt, que acompanhamos … “A licença de condução não assume cariz definitivo e imutável, situado no âmbito dos direitos absolutos. O seu carácter transitório revela-se, não só na periodicidade da respectiva validade e na sujeição a diversas restrições, renovações e actualizações tendentes a verificar se as condições físicas e psíquicas do agente se mostram adequadas ao exercício da condução de veículos (cf. artigos 121.º, 122.º a 130.º, do Código da Estrada), mas também, no sistema de aquisição e perda de pontos, acima referenciado (artigo 121.º-A e 148.º, do Código da Estrada). A vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende, assim, do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradaisimporta ter presente que a cassação do título de condução constitui, uma das medidas de segurança rodoviárias, visando evitar e reduzir os perigos decorrentes da circulação dos veículos automóveis …”.

Face ao que antecede, concluímos, em síntese, que o referido artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada não viola os citados princípios da igualdade, da proporcionalidade e o direito ao trabalho/acesso à profissão, previstos nas normas identificadas.

São termos em que, sem necessidade de ulteriores considerações, se julga totalmente improcedente a presente impugnação judicial ….

*

Inconformado com o decidido, o arguido recorreu, tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição):

A) O n.º 2 do art.º 184.º do Código da Estrada determina que “A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n. º3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.”

B) (……..) a “perda de pontos” acrescentada ao CE é uma sanção ou pena que tem origem uma condenação por um acto ilícito contra-ordenacional ou criminal (artigo 69.º, n.º 1 do Código Penal) e que é aplicada de forma indirecta, automática e indefensável de cada vez que o cidadão é condenado, seja em processo contraordenacional, seja num processo criminal, cfr Página 17 de 22 voto de vencido do Desembargador João Gomes de Sousa, no Acórdão proferido no processo n.º 38/20.1T8ODM, de 23-03-2021 do Tribunal da Relação de Évora,

C) E sem que o arguido possa defender-se da perda de pontos dada a “automaticidade” do sistema. cfr voto de vencido atrás identificado.

D) O sentido pedagógico que segundo a ANSR preside ao sistema de pontos torna-se desproporcional e restritivo por assumir a natureza de uma medida de segurança quando comparado com o artigo 101.º do Código Penal;

E) Aqui na apreciação deste normativo, a conduta do arguido tem de ser analisada pelo juiz, tendo em conta os factos praticados e a sua personalidade …

F) Quando na cassação feita por decisão da ANSR com vista à aplicação de uma medida de segurança, basta a verificação dos pressupostos para a soma dos 12 pontos, ficando a apreciação judicial restringida na sua apreciação, havendo violação do “direito ao juiz” e dos artigos 20.º, n.º 1 e 202.º da CRP;

G) Concorda-se com a sentença do tribunal a quo quando diz que o direito a conduzir não é um direito absoluto;

H) Já não se concorda com a afirmação de que os custos profissionais advindos do impedimento de conduzir mostram-se proporcionais e adequados à irresponsabilidade estradal manifestada pelo arguido e às exigências de segurança rodoviária.

J) Ficou provado que o arguido é motorista de profissão e necessita da carta de condução para exercer a sua atividade profissional, a substração de pontos num outro cidadão que não seja motorista de profissão não tem as mesmas consequências;

K) Pois, mesmo com o título cassado pode continuar a exercer a sua actividade …

L) … caso o arguido estivesse acusado de crime tipificado legalmente ao abrigo do artigo 101.º do C.P., a sua personalidade seria avaliada, para efeitos de apuramento da sua perigosidade;

M) Antes de lhe poder ser aplicada a medida de segurança, e a eventual cassação do título de condução.

N) No sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Abril de 2015, II. A cassação da licença de condução, enquanto medida de segurança, exigirá, em primeira linha, a apreciação da personalidade do arguido, que se deverá revelar propensa á prática de factos da espécie dos previstos no n.º 1 do artigo 101.º do CP (e daí a perigosidade manifestada); numa segunda fase, através da análise do facto concreto, tipificado como crime, é mister concluir que o mesmo foi uma consequência daquela inclinação criminosa do agente, sendo, por isso, um índice dessa personalidade perigosa, dada a natureza do facto, sua gravidade ou reiteração.

P) Num crime praticado em que a cassação do título de condução pode ser aplicada como medida de segurança, o juiz pondera, ou melhor tem de apreciar a personalidade do arguido e concluindo pela sua perigosidade, aplicará a medida de segurança.

Q) Nestas situações (criminais) é analisada a personalidade do arguido, enquanto, na substração de pontos, o juiz analisa a verificação dos pressupostos para a substração dos 12 pontos que previamente foi feita pela Autoridade Administrativa.

R) Pelo que está violado o princípio da proporcionalidade na decisão da ANSR, por comparação ao ilícito criminal tipificado no artigo 101.º do C.P., …

S) Apesar de ao processo de contraordenação se aplicarem subsidiariamente se aplicarem as regras do Código Penal, o juiz está coartado de exercer a sua verdadeira função jurisdicional;

T) Mormente a apreciação da personalidade do arguido, o seu esforço de reabilitação, quando se sabe de antemão que a perda do título por cassação administrativa lhe retira o direito ao trabalho, que exerce como motorista desde 1992, provado em 9.

U) Uma decisão administrativa não pode ter o condão de impedir o exercício de profissão de motorista, quando como se referiu os factos que levaram à perda de pontos ocorreram fora do horário de trabalho, em dias de lazer. A ser assim, aquela decisão meramente administrativa colidirá com o princípio constitucional do acesso à profissão e será violadora da norma do n.º 2 do art.º 18.º da CRP.

V) A sentença do tribunal a quo padece de erro de julgamento de direito.

W) A aplicação da norma da alínea c) do n.º 4 com o n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada, padece de inconstitucionalidade por violação no caso concreto dos artºs 18.º, nº 2 e 47.º (acesso à profissão) da CRP.

X) Por violação do princípio da igualdade art.º 13, do princípio da proporcionalidade n.º 2 do art.266.º ambos da CRP, em comparação à diminuição das garantias de defesa que o arguido tem neste processo administrativo quando comparado com o artigo 101.º do CP, por automaticidade daquela decisão.

Y) Ao impedir uma apreciação pelo Tribunal do caso concreto e da personalidade do arguido, bem como de todas as circunstâncias que subjazem à aplicação de uma medida de segurança (sem descurar o seu aspecto pedagógico), verifica-se, também a violação dos artigos 20.º e 202.º da CRP.

….”

Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo pela improcedência do recurso.

Na vista a que se refere o artigo 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu o douto parecer …

“… 

A questão é controversa e controvertida e citam-se na decisão acórdãos que sustentam o decidido.

Este tribunal da relação de Coimbra, em acórdão publicado em www.dgsi.pt – de 2/02/2022/processo 209/21.3T9MGR.C1 –, e entre outros, considerou que a cassação da carta de condução por efeito da perda total de pontos não constitui uma nova condenação pela prática dos factos determinantes da aplicação da proibição de conduzir veículos motorizados, mas, sim, e ao invés, consubstancia, em relação às condenações determinantes da perda de pontos, um novo sancionamento, axiologicamente motivado pela inidoneidade, entretanto revelada pelo condutor e, em última ratio, por imperativos de segurança rodoviária, não traduzindo qualquer violação do princípio ne bis in idem.

Por sua vez, o tribunal da relação de Guimarães, no acórdão de 27/01/2020 – processo 2302/19.3T8VCT.G1, publicado no mesmo sítio da internet – entendeu, sobre a suscitada inconstitucionalidade, o seguinte:

“… não existe incompatibilidade entre o regime que prevê a cassação do título de condução com o princípio inserto no artigo 30.º, n.º 4, da CRP. Com efeito, o direito a conduzir depende de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico. Não existe um direito absoluto a conduzir, mas si um direito generalizado a obter e dispor de uma licença dentro das condições legalmente previstas.Por outro lado, não encontraríamos qualquer razoabilidade ou proporcionalidade numa norma que previsse que o trabalhador que necessite de conduzir para o exercício da sua profissão, não poderá ver cassada a sua licença … O direito a conduzir não é um direito absoluto e incondicional, dependendo de pressupostos positivos e negativos, entre eles o da ausência de condenações rodoviárias que importam a subtração total de pontos. Não sendo o direito em causa incondicional, não pode dizer-se que estamos perante a perda de um direito adquirido (perda a que se reporta o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição) quando se retiram as consequências da verificação de uma sua condição negativa …”

Também o tribunal constitucional se pronunciou sobre as questões em apreço, máxime nos acórdãos citados na sentença, sendo entendimento desse Tribunal que “(…) Em primeiro lugar, importa salientar que, ainda que no caso vertente os factos que conduziram à perda dos pontos do aqui recorrente e, por isso, à cassação da sua carta de condução, tenham sido condenações pela prática de crimes, essa é uma circunstância puramente acidental e que não se projecta na norma em apreciação. Em segundo lugar, os factos relevantes para a decisão de cassação, segundo o critério previsto no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, e que são objeto de apreciação no procedimento previsto no seu n.º 10, são apenas os factos geradores da perda dos pontos, isto é, a definitividade de condenações por determinadas categorias de ilícitos contraordenacionais ou criminais, com abstração dos factos que estiveram na base dessas condenações. Tais factos – os factos que se traduzem no ilícito criminal ou contraordenacional gerador da perda dos pontos – não são reapreciados nem julgados no processo de cassação, que se limita a extrair consequências de âmbito não penal dos diversos atos de condenação. Em terceiro lugar, a cassação do título de condução não se traduz numa dupla sanção pelos mesmos factos penalmente relevantes. Com efeito, ao contrário do que sucede, por exemplo, com a medida de segurança de cassação do título e de interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, prevista no artigo 101.º do Código Penal e aplicável a delinquentes imputáveis, cujo decretamento constitui uma consequência jurídica de um crime, determinada no âmbito do processo penal, a cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do ius puniendi, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão.

É certo que a condenação pela prática de crimes punidos com a pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal constitui um facto gerador de perda de pontos. Contudo, essa conexão é meramente reflexa, não só porque nenhuma condenação criminal, por si só, desencadeia a cassação prevista no artigo 148.º do Código da Estrada – nem o recorrente integrou tal questão no objeto do recurso –, como porque os critérios relevantes para essa cassação não se extraem dos factos que tipificam ilícitos criminais, mas sim da reiteração das condenações criminais ou contraordenacionais e da forma como elas revelam a incapacidade do condutor para observar as normas legais que garantem a segurança rodoviária. Em suma, a norma sindicada não implica, nem que o condutor seja julgado novamente pelos mesmo factos, nem que por eles seja duplamente punido, pelo que não ocorre violação alguma do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição

Em conclusão, e porque não houve violação de lei, somos de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.”

Cumpre conhecer do recurso

Questão a decidir:” inconstitucionalidades” respeitantes ao artigo 148º do Código da Estrada.

*+*+*+*

No caso dos autos, tendo o recorrente sido condenado no âmbito do Processo Sumário n.º 97/18.... por sentença transitada em 11.07.2018 como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses e 15 (quinze) dias e no âmbito do Processo Sumário n.º 142/20...., por sentença transitada e por crime idêntico, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias e estando tais condenações averbadas ao seu registo individual de condutor do arguido a subtracção de 6 (seis) pontos por cada uma das penas acessórias, nos termos do artigo 148º, n.º 2 do Código da Estrada, foram-lhe substraídos todos os pontos.

E tendo a subtracção total dos pontos como consequência necessária a cassação do seu título de condução, foi organizado o competente processo autónomo (n.º 10 da referida norma legal), no âmbito do qual, confirmada a verificação dos pressupostos previstos no artigo 148º, n.ºs 2 e 4 alínea c., a autoridade administrativa proferiu a referida decisão de cassação, decisão confirmada pela sentença de que agora recorre.

Diz o recorrente que “está violado o princípio da proporcionalidade na decisão da ANSR, por comparação ao ilícito criminal tipificado no artigo 101.º do C.P., (para ser objeto de tipificação legal também tem subjacentes a protecção de direitos fundamentais com assento constitucional), já que para a cassação do título de condução, o Tribunal tem o dever de apreciar a personalidade do arguido e a inerente perigosidade e num processo contraordenacional para a cassação do título de carta e condução basta a soma dos pontos, para aplicação de uma medida de segurança”.

Detecta-se nesta afirmação alguma confusão entre a cassação do título de condução ao abrigo do disposto no artigo 101º do Código Penal e a cassação do título de condição ao abrigo do disposto no artigo 148º do Código da Estrada (confusão claramente revelada na conclusão F. quando o recorrente afirma que “na cassação feita por decisão da ANSR com vista à aplicação de uma medida de segurança, basta a verificação dos pressupostos para a soma dos 12 pontos”).

Ora, como é desde sempre jurisprudência unânime, somente quando está em causa a cassação do título de condução aplicada no âmbito do artigo 101.º do Código Penal é necessário formular um juízo sobre a potencial perigosidade ou inaptidão do agente para a condução para que se decida sobre a aplicação ou não desta medida de segurança.

O que não acontece com a cassação do título de condução em resultado da aplicação do artigo 148º do Código da Estrada, visto a mesma, ao contrário do entendimento que o recorrente verte no recurso como fundamento da sua pretensão, não ser uma medida de segurança, como também é jurisprudência desde sempre unânime (neste sentido, v.g., Acórdão da Relação do Porto de 10/02/21, da Relação de Évora de 20/10/2020, da Relação de Guimarães de 12/04/2021, da Relação de Lisboa de 19/10/2021 e da Relação de Coimbra de 10/11/2021).

Assim, uma vez que a cassação do título de condução foi aplicada ao recorrente por força do disposto no artigo 148.º do Código da Estrada e não por força do disposto no artigo 101º, do Código Penal, a mesma não constitui uma medida de segurança e por isso a sua aplicação decorre necessária e automaticamente da perda total de pontos atribuídos ao título de condução do recorrente em resultado das anteriores condenações em penas acessórias de proibição de conduzir.

Tal efeito automático, tal como é reconhecido por jurisprudência também desde sempre unânime, não viola qualquer preceito constitucional, nomeadamente os referenciados pelo recorrente (neste sentido, v.g., acórdãos da Relação de Évora de 03/12/2019 e de 27/04/2021, da Relação de Guimarães de 17/12/2020, de 23/03/2021, de 27/01/2020 e de 27/01/2020, da Relação de Coimbra de 05/05/2021 e da Relação do Porto de 12/05/2021).

A este respeito diz o recorrente:

Uma decisão administrativa não pode ter o condão de impedir o exercício de profissão de motorista, quando como se referiu os factos que levaram à perda de pontos ocorreram fora do horário de trabalho, em dias de lazer. A ser assim, aquela decisão meramente administrativa colidirá com o princípio constitucional do acesso à profissão e será violadora da norma do n.º 2 do artigo 18.º da CRP;

A aplicação da norma da alínea c) do n.º 4 com o n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada padece de inconstitucionalidade por violação no caso concreto dos artigos 18.º, n.º 2 e 47.º (acesso à profissão) da CRP;

E também por violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º, e do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 266.º, n.º 2, ambos da CRP.

Ora, como se diz no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 164/91, de 24 de Abril de 1991, “só as normas, que não os actos (designadamente as decisões judiciais), podem ser objecto de fiscalização da constitucionalidade [nesse sentido: Professor Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II, 2ª edição, revista, 1983, nº. 86; J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição revista e ampliada, 2° volume, 1985, parte IV, nota prévia, nºs. 2.4.1. e 2.4.3.1. b); e a jurisprudência constante deste Tribunal, v.g., os acórdãos n.ºs 260/88, de 9 de Novembro (no Diário da República, II série, de 11 de Fevereiro de 1989), 268/89, de 23 de Fevereiro (no citado Diário, II série, de 7 de Junho de 1989) e 349/89, de 12 de Abril (no mesmo Diário, II série, de 22 de Junho de 1989).]”.

Neste mesmo sentido escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Fundamentos da Constituição, 1991, p. 258): “pode-se atacar uma decisão judicial — recorrendo dela para o TC — se ela aplicou uma norma arguida de inconstitucionalidade ou se deixou de aplicar uma norma por motivo de inconstitucionalidade. Mas não se pode impugnar junto do TC uma decisão judicial, por ela mesma ofender por qualquer motivo a Constituição.” (Cfr. também os Acórdãos n.ºs 595/97, 338/98, 520/99 e 232/2002, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Em resumo: apenas as normas podem ser objecto de controlo constitucional e não as decisões judiciais enquanto tais.

Termos assim que para além da jurisprudência ser desde sempre unânime no sentido de que o artigo 148º do Código da Estrada não padece de qualquer inconstitucionalidade, o recorrente, embora invoque a variadas “inconstitucionalidades”, fá-lo sempre em relação à decisão e não à norma, ou seja, em vez de indicar de forma clara e inteligível a exacta dimensão normativa do preceito que considera que não devia ter sido aplicada por se mostrar contrária à Constituição, limita-se a colocar em causa a própria decisão, apontando-lhe variadas “inconstitucionalidades”, o que, como se viu, não pode ser objecto de fiscalização da constitucionalidade.

Assim sendo, ainda que por razões algo diversas das constantes da sentença recorrida, mais não há do que julgar improcedente o recurso.

Nesta conformidade, acorda-se em julgar improcedente o recurso.

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Fixa-se em 5 UC a taxa de justiça a pagar pelo recorrente.

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Coimbra, 08/03/2023