Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
913/09.4TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
ALCOOLEMIA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
CONCAUSALIDADE
Data do Acordão: 11/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VILA NOVA DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 349, 351 CC, 19 C) DL Nº 522/85 DE 31/12, DL Nº 291/07 DE 21/08
Sumário: I - A prova do nexo naturalístico entre a condução sob o efeito do álcool e a ocorrência do acidente pode fazer-se por via de presunção judicial, quando os factos simples provados sustentem a ilação retirada pelo julgador.

II - Ao direito de regresso fundado em acidente de viação em que o segurado conduzia sob a influência do álcool, ocorrido antes da entrada em vigor do DL n.º 291/07 de 21-08, aplica-se o regime constante do DL n.º 522/85 de 31-12, por ser este o vigente à data do acidente, isto apesar de entretanto ter sido revogado pelo artigo 94.º, n.º 1, alínea a), do diploma ora em vigor.

III - Assim, o exercício do direito de regresso pela seguradora previsto na alínea c) do artigo 19.º, do DL n.º 522/85, de 31-12, deve ser interpretado de acordo com o Acórdão Unificador de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28-05-2002.

IV - Provado que o condutor do veículo exercia a respectiva condução com uma TAS de 0,91 gr/l, e que não viu o peão, só se apercebendo da presença deste - que efectuava a travessia da via da esquerda para a direito atento o sentido de marcha do veículo -, quando lhe embateu, deve concluir-se que tal ausência de reacção resultou de agir sob o efeito do álcool.

V – Apesar de se ter provado a existência de culpa do peão na ocorrência do atropelamento que o vitimou, não tendo a condução sob o efeito de uma TAS de 0,91 gr/litro, sido indiferente para a ocorrência do acidente, funciona como uma concausa do mesmo, existindo o direito de regresso da seguradora na medida da repartição das culpas de cada um dos responsáveis.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

1. Z (…) COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., instaurou contra A (…), a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, pedindo que a mesma seja julgada procedente por provada e, em consequência, seja o R. condenado no pagamento à autora da importância de 61.676,34€, acrescida de juros de mora à taxa legal, calculados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Em fundamento, alegou, em síntese, ter suportado, enquanto seguradora da do réu o pagamento da referida quantia em consequência da morte de (…), ocorrida em virtude de acidente de viação ocorrido por culpa exclusiva do réu que circulava de forma desatenta e sob influência de uma taxa de alcoolemia no sangue no valor de 0,91g/l.

Mais invocou que o álcool ingerido lhe reduziu as capacidades de reacção no espaço físico e da avaliação das distâncias; lhe provocou lentidão na capacidade de reacção e perturbou-lhe os reflexos e a coordenação motora, o que determinou o atropelamento do peão.

2. Contestou o R., por impugnação, invocando factos tendentes a imputar ao peão a culpa exclusiva pela ocorrência do atropelamento, concluindo que a TAS em nada contribuiu para a ocorrência do acidente.

3. Tendo sido designada audiência preliminar, nesta foi proferido despacho saneador, seguido da selecção dos factos assentes e da elaboração da base instrutória.

4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi designada data para a decisão sobre a matéria de facto, a qual não foi objecto de qualquer reclamação, tendo sido proferida sentença, na qual se decidiu: «julgo a presente acção parcialmente provada e procedente e, em consequência, condeno o réu a pagar à autora a quantia de € 18.455,71, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da citação, até integral pagamento».

5. Inconformado, o R. apresentou recurso de apelação da sentença proferida, formulando as seguintes conclusões:

«1. No caso concreto, é admissível o recurso sabre a matéria de facto, por constarem todos os elementos necessários para tal;

2. Deve ser alterada a resposta ao ponto 4. da "matéria de facto" passando a constar uma taxa de álcool no sangue de 0,90 g/l;

3. Os pontos  5. a 7. da "matéria de facto"  são meramente conclusivos ou caso assim não se considere, devem ser alteradas para negativas as respostas dadas por tal resultar  dos depoimentos  das testemunhas  (…) cuja reapreciação se requer;

4.  Não foi produzida, em concreto, qualquer prova que o acidente se tivesse ficado a dever à taxa de alcoolemia do R.;

5. O peão fazia a travessia da estrada, de noite, fora da passadeira existente a cerca de 20 metros, numa curva, em local de má visibilidade e usando roupas escuras;

6. O peão, sem cuidar previamente que o podia fazer em segurança e sem causar qualquer acidente, fazia o atravessamento da faixa de rodagem destinada à circulação de veículos, em local proibido;

7. Nada consta da matéria factual dada como assente que o R. tivesse previsto que tinha que parar o seu veículo ou desviar-se de algum obstáculo, nem tal lhe era exigível;

8. O acidente dos autos não se ficou a dever a concorrência de nenhuma acção ou omissão do R., mas exclusivamente a imprevidência, falta de cuidado e distracção da infeliz vitima;

9. O R., enquanto condutor da viatura, não estava obrigado a contar com comportamentos inopinados e imprevidentes dos demais utentes da via in casu da infeliz vitima;

10. Ainda que se admita que o acidente possa ter sido causado pela velocidade excessiva do veículo do R., a acção terá que improceder por não se verificarem os requisitos do direito  de regresso;

11. Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a Douta Sentença proferida em 1.ª lnstância, substituindo esta por uma de absolvição do R. e ora apelante do pedido;

12. A Douta Sentença ora recorrida, violou, entre outras, as seguintes disposições legais:

a)   artºs. 24.º e 25.º, ambos do Código da Estrada;

b)   artºs 342.º; 563.º,do Cód. Civil;

c)  artºs 19.º, alínea c), do DL522/85 de 31/12.»

Termina concluindo que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença proferida em 1.ª instância, a qual deve ser substituída por decisão que absolva o R. e ora Apelante do pedido.

6. Não foram apresentadas contra-alegações.


*****

Mantém-se a validade e regularidade da instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


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II. O objecto do recurso[2].

As questões a apreciar no presente recurso de apelação consistem em saber se:

- deve ser alterada a resposta à matéria de facto referente aos pontos 4.º a 7.º da base instrutória;

- em consequência de tal alteração, e em face da matéria de facto assente, deve ser julgada improcedente a pretensão formulada pela Autora.


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III – Fundamentos

III.1. – De facto

Foram os seguintes os factos considerados como provados na sentença recorrida:

1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica à actividade seguradora (alínea A) da matéria assente);

2. Entre a autora e A (…) foi celebrado contrato de seguro titulado pela apólice nº 002.856.410 relativo à viatura marca Toyota Yaris, matrícula (..) TL(alínea B) da matéria assente);

3. Em 11.11.2006 encontrava-se válido o contrato de seguro aludido em B) (alínea C) da matéria assente);

4. No dia 11.11.2006, cerca das 21h00 A (…) circulava como o veículo (..) TL(doravante abreviadamente referido por TL) na Av. D. José Alves Correia da Silva, no sentido Norte-Sul, em Fátima (alínea D) da matéria assente);

5. Quando o réu descrevia a curva existente junto ao final das obras da Basílica da Santíssima Trindade foi embater em (…) (alínea E) da matéria assente);

6. (…) encontrava-se a atravessar a dita Av. da esquerda para a direita atento o sentido de marcha do TL (alínea F) da matéria assente);

7. O peão (…) efectuou a travessia da estrada a uma distância de cerca de 20 metros da passadeira para peões existente, para Sul, junto ao entroncamento entre a Avª. D. José Alves Correia e o arruamento Sul (resposta ao nº 14 da base instrutória);

8. A cerca de 80 metros para Norte do local onde se verificou o embate, existe uma passadeira para peões, imediatamente antes do entroncamento entre a Avª. D. José Alves Correia e o arruamento Norte (resposta ao nº 11 da base instrutória);

9. À data do embate não chovia e o piso encontrava-se seco em boas condições de circulação sem buracos ou irregularidades que dificultassem a circulação rodoviária (alínea L) da matéria assente);

10. No local do embate, a estrada configura-se em recta, antecedida por curvas (resposta ao nº 1 da base instrutória);

11. O local onde ocorreu o embate é uma zona frequentada por peões que se dirigem ao Santuário e ao Centro Pastoral (resposta ao nº 2 da base instrutória);

12. É um local bem conhecido pelo réu (resposta ao nº 3 da base instrutória);

13. O local do embate caracteriza-se por ter má visibilidade por a luz dos candeeiros públicos ser ofuscada pela folhagem das árvores (resposta ao nº 12 da base instrutória);

14. Na ocasião do embate a vítima usava roupas escuras (resposta ao nº 13 da base instrutória);

15. O réu não viu o peão e só se apercebeu da presença deste, aquando do embate com o TL (resposta ao nº 15 da base instrutória);

16. O réu foi embater com a frente direita do TL em (…) nomeadamente na parte direita do seu corpo (alínea G) da matéria assente);

17. Com a força do impacto do TL o peão saltou para cima do capot daquele tendo ali seguido durante algum tempo (alínea H) da matéria assente);

18. Quando o réu imobilizou o TL o peão caiu ao solo (alínea I) da matéria assente);

19. O corpo de (…) caiu a 17,90m do local do embate que dista 4,90m do sinal “todas as direcções” e 22 m no sentido do sinal de sentido proibido, existentes respectivamente do lado direito e esquerdo em face do sentido de marcha tomado pelo réu (alínea J) da matéria assente);

20. Na sequência do embate M (…) sofreu lesões corporais diversas que determinaram a sua morte (alínea K) da matéria assente);

21. No momento do embate o réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 0,91 g/l (resposta ao nº 4 da base instrutória);

22. O álcool ingerido pelo réu diminuiu-lhe as capacidades de reacção no espaço físico e da avaliação das distâncias (resposta ao nº 5 da base instrutória);

23. Causou-lhe lentidão na capacidade de reacção (resposta ao nº 6 da base instrutória);

24. O álcool ingerido pelo réu perturbou-lhe os reflexos e a coordenação motora o que contribuiu para a verificação do embate entre o TL e (…) e subsequente morte do peão (resposta ao nº 7 da base instrutória);

25. No dia 16.01.2009 a autora pagou aos herdeiros de (…) a quantia de € 55.000,00, a título de indemnização por dano morte (resposta ao nº 8 da base instrutória);

26. No dia 30.01.2009 a autora pagou ao Instituto da Solidariedade Social a quantia de € 6.519,04, a título de Subsídio por Morte e Pensões de Sobrevivência (resposta ao nº 9 da base instrutória);

27. No dia 28.06.2007 a autora pagou à Luso-Roux a quantia de € 157,30, a título de despesas de averiguações (resposta ao nº 10 da base instrutória).


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III.2. – O mérito do recurso

III.2.1. – Alteração da matéria de facto

O Apelante, por esta via de recurso, pretende a reapreciação por este Tribunal das respostas dadas pela Mm.ª Juiz a quo aos artigos 4.º a 7.º da base instrutória.

Perguntava-se nos referidos artigos se:

“4. No momento do embate o Réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 0,91 g/l?

5. O álcool ingerido pelo Réu diminuiu-lhe as capacidades de reacção no espaço físico e da avaliação das distâncias?

6. Causou-lhe lentidão na capacidade de reacção?

7. Perturbou-lhe os reflexos e a coordenação motora o que causou a morte do peão?”

A impugnação da matéria de facto pelo Réu, ora recorrente, deve considerar-se efectuada com observância do disposto no artigo 685.º-B, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil[3], porquanto, constando apenas da acta da audiência de julgamento relativamente às testemunhas ouvidas que “as suas declarações foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal”, sem qualquer outra especificação, não podia o Apelante “indicar com precisão as passagens da gravação em que se funda”, razão pela qual tal omissão não inquina a solicitada reapreciação da matéria de facto, em virtude de estarem cabalmente identificados pelo Recorrente quer “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”; quer “os concretos meios probatórios” que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida[4].

Assim, cumpre verificar se existem razões para modificar a matéria de facto supra referida, uma vez que, nos termos do artigo 712.º do CPC, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, quando, como é o caso, do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os concretos pontos da matéria de facto postos em causa pelo Recorrente.

Nesta apreciação, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da livre apreciação das provas fixado no artigo 655.º, n.º 1, do CPC, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo[5].

Comecemos, então, por apreciar a questão relativa à alteração da matéria de facto, considerando que o Tribunal respondeu aos artigos 4.º a 6.º “provado”, e ao 7.º “provado que o álcool ingerido pelo réu lhe perturbou os reflexos e a coordenação motora o que contribuiu para a verificação do embate entre o TL e Manuel Nunes e subsequente morte do peão”.

Invoca o Apelante, em fundamento da solicitada alteração, quanto ao artigo 4.º que:

“na certidao  de fls. 132. a 139 existe uma cópia do "talão"  do teste de alcoolémia efectuado  ao R. donde não resulta  a taxa de álcool no sangue que foi considerada  provada  na douta sentença recorrida, mas antes uma taxa de 0,90 g/l. Deve, assim, ser alterada a resposta dada àquele ponto da matéria de facto ficando a constar que a taxa de álcool no sangue era de 0,90 g/l.

A Mm.ª Juiz a quo fundou a resposta a tal artigo nos seguintes termos:

“Em relação ao nº 4, o teor da participação de fls. 17 e a certidão da sentença proferida no processo comum singular nº 3248/06.0TALRA do 2º Juízo deste Tribunal, a fls. 132 a 149, com o valor probatório fixado no art. 674º-A do CPC”.

A prova de tal facto é, portanto, apenas documental, encontrando-se juntos aos autos os documentos em que assentou a convicção do Tribunal.

Esses documentos são a certidão da sentença proferida no processo comum singular com o n.º 3248/06.0TALRA do 2.º Juízo do Tribunal de Ourém, que faz fls. 132 a 149 dos autos, da qual resulta que a sentença proferida no processo crime em 10-12-2007 foi devidamente notificada e transitou em julgado no dia 14-01-2008.

A mesma reporta-se também ao acidente de viação a que respeitam os presentes autos, sendo que naqueles autos o ora réu, então arguido, foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de 18 meses.

Esta sentença transitada tem o valor probatório previsto no artigo 674.º-A do CPC que com a epígrafe “oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória”, estatui:

“A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção”.

“Estabelece-se neste preceito a relevância “reflexa” do caso julgado penal condenatório em subsequentes acções de natureza civil, materialmente conexas com os factos já apurados no processo penal – e tendo, nomeadamente, em conta que a condenação penal pressupõe uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, bem como a certeza “prática” de que o arguido cometeu a infracção que lhe era imputada.

Entendeu-se, porém, em homenagem à regra do contraditório (…) que a condenação definitiva no processo penal não deveria impor-se, necessária e “cegamente”, a sujeitos processuais que nele não tiveram oportunidade de expor as suas razões – constituindo tão-somente presunção ilidível, relativamente aos elementos referenciados no preceito. (…)

A eficácia “erga omnes da decisão penal condenatória é, deste modo, temperada com a possibilidade de os titulares de relações civis conexas – terceiros relativamente ao processo penal – ilidirem a presunção de que o arguido cometeu efectivamente os factos integradores da infracção que ditou a sua condenação”[6].

Ora, não sendo o arguido e ora réu terceiro, não existe qualquer razão para lhe ser dada a possibilidade de ilidir a presunção de que o mesmo cometeu os factos integradores da infracção criminal que ali foram considerados provados.

Na verdade, sendo este o próprio sujeito da decisão penal condenatória, quanto a ele tal decisão penal constitui caso julgado quanto à existência e qualificação dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal.

Como assim, tendo sido fixado na sentença penal que “submetido ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado o arguido apresentou uma taxa de álcool no sangue de 0,91 g/l”, a prova deste facto no âmbito do processo penal é bastante para sustentar a fixação do mesmo facto em processo civil em que se discutem as circunstâncias em que ocorreu o acidente de viação objecto de ambos os autos.

Mas, mesmo que assim não fosse, a fixação da referida TAS encontra-se estribada nos demais elementos probatórios juntos aos autos e, evidentemente no documento a que alude o Recorrente.

Na verdade, o talão n.º 56789, referente ao teste de alcoolemia n.º 825, efectuado no aparelho Drager, pelo condutor A (…), interveniente no acidente de viação com o registo n.º 144/06 e NUIPC 232/06.8PBVNO, consta por cópia certificada a fls. 133 destes autos, constando do mesmo como resultado 0,98 g/l TAS e não a referida pelo recorrente de 0,90, sendo certo que o mesmo constituiria fls. 57 do processo penal, tendo sido atendido na fundamentação da matéria de facto (cfr. fls. 139).

Só que, atento o teor do auto de participação de acidente de viação junto por cópia de fls. 16 a 19 dos autos, e que é o referido no talão do teste de alcoolemia, mormente a fls. 17, em “outras informações”, consta que “o condutor foi submetido à análise quantitativa, pelo aparelho “Drager Alcotest 71110MKIII”, aprovado pelo I.P.Q. (D.R.III série, n.º 223, de 25SET96 e DR III série, n.º 54, de 05MAR98 e cuja utilização foi autorizada através do Despacho n.º 001/DGV/ALC/98, teste realizado à temperatura de 20.ºC tendo acusado uma TAS de pelo menos 0,91 gr/l de álcool no sangue correspondente à TAS de 0,98 gr/l de álcool no sangue registada, deduzindo o valor do erro máximo admissível, conforme se observou no talão do teste n.º 825, que se junta”.

Portanto, o que aconteceu foi que, atentos os princípios de processo penal, dos quais se destaca o princípio in dubio pro reo, constando do auto que o condutor acusara uma TAS, de pelo menos 0,91 gr/l de álcool no sangue, foi esta que se considerou assente, porque beneficiava o arguido, e não a mais gravosa registada no referido talão.

Acresce que, no artigo 18.º da petição inicial, a autora alegou que “no momento do acidente, A (…), conduzia sob a influência do álcool, apresentando uma taxa de alcoolemia no sangue (TAS) no valor de 0,91 gr/l, sendo que o réu, na respectiva contestação, impugnando genericamente esse facto, aduziu que “a circunstância de o R. ser, eventualmente, portador duma taxa de álcool no sangue de 0,91 gr/l, em nada contribui para a ocorrência do sinistro ou agravamento das suas consequências”, nada referindo quanto ao facto que agora invoca de que do talão constava apenas 0,90 gr/l (e já vimos que não consta).

Por isso, a questão ora suscitada configuraria em sede do processo uma questão nova, que extravasaria a função do recurso no quadro institucional que nos rege, o qual se destina à correcção de erros em que tenha incorrido a instância recorrida, por via da reapreciação pelo tribunal superior de questões já decididas pela primeira instância e não criar decisões sobre matéria nova, não podendo, consequentemente, tratar-se no recurso de questões que não hajam sido suscitadas no decurso do processo perante o tribunal recorrido, a menos que se reconduzam a hipóteses de conhecimento oficioso, o que não é o caso[7].

Pelo exposto, improcede a alteração da matéria de facto que constitui a resposta ao artigo 4.º da Base Instrutória.

Vejamos agora as questões suscitadas pelo recorrente quanto à resposta aos artigos 5.º a 7.º, respeitantes à influência da TAS na ocorrência do acidente de viação.

Considera o recorrente que mal terá andado a Mm.ª Juiz a quo ao considerar tal matéria assente, em face do que estabelecem os artigos 349.º e 351.º do Código Civil[8], relativamente à admissibilidade das presunções judiciais, desde logo porque se trata de matéria conclusiva e por conseguinte insusceptível de sobre ela ser produzida prova e, ainda que assim não se considere, porque resultou do depoimento das testemunhas (…)ambos bombeiros voluntários que socorreram a vítima no local (depoimentos gravados no programa H@bilus Media Studio) que o R. não apresentava quaisquer sinais de estar sob a influência do álcool, pelo que não foi feita prova que, em concreto, o R. tivesse agido sob o efeito da ingestão de álcool ou este elemento aí tivesse tido alguma influência.

                   Como se disse supra, o Recorrente cumpriu ónus de indicar os factos cuja reapreciação pretende e, bem assim, indicar os meios de prova que, em seu entender, impunham decisão diversa, fazendo-o por referência aos depoimentos prestados pelas testemunhas (…) Bombeiros Voluntários que socorreram a vítima no local e verificaram que o R. não apresentava quaisquer sinais aparentes de estar sob a influência do álcool.

                        Conforme da acta de audiência de julgamento resulta, estas testemunhas foram indicadas a depor apenas aos artigos 11.º a 15.º da Base Instrutória, e não aos ora indicados.

                        Porém, atento o princípio da aquisição processual, consagrado no artigo 515.º do CPC, quanto às provas atendíveis, considerando que o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, procedemos à audição integral dos depoimentos prestados pelas referidas testemunhas.

                        Estranhamente, porém, ao contrário do referido pelo Recorrente, as mesmas não fazem qualquer referência ao facto de o condutor do veículo e ora réu, aparentar ou não estar sob a influência de álcool. Na verdade, ambas as testemunhas prestaram depoimento circunstanciado quanto ao local do acidente; sua falta de visibilidade; proximidade da passadeira; vestuário do peão; etc., mas nada quanto à invocação efectuada pelo Réu.

                        Na verdade, a testemunha (…) não faz qualquer referência ao condutor da viatura, mas apenas à mesma; e a testemunha (…), refere-se à existência do “moço” que ia no carro e que estava alterado, nervoso, a chorar; afirmando que o tentaram tirar do local onde estavam a trabalhar e puxaram-no para o lado, mas que ele tinha tendência para vir para junto deles, com a ansiedade para saber como estava a vítima. No entanto, nem uma palavra sobre se o mesmo aparentava ou não estar sob a influência do álcool.

                        Ora, como é bom de ver, os concretos meios de prova indicados pelo Recorrente, não efectuaram as afirmações que o mesmo refere, razão pela qual, nunca o seu depoimento poderia infirmar a convicção do Tribunal quanto às respostas aos artigos 5.º a 7.º.

                        Acresce que, se tais afirmações eventualmente foram proferidas nos autos por outras testemunhas, não compete a este Tribunal, a realização de novo julgamento ou sequer a reapreciação de todos os meios de prova que foram produzidos.

           De facto, “a competência da Relação é residual, circunscrevendo-se os seus poderes à reapreciação de concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados”[9].

                          Portanto, não tendo o Recorrente indicado quaisquer outros meios de prova produzidos, nomeadamente testemunhal, nem tendo outros meios de prova testemunhal ou documental sido referidos pela Mm.ª Juiz a quo para fundamentar estes pontos da matéria de facto - os quais naturalmente seriam ouvidos em sede de reapreciação -, devemos concluir que do depoimento das testemunhas indicadas pelo Recorrente, não resulta infirmada a prova dos aludidos pontos 5.º a 7.º da base instrutória.

                        Na verdade, a Mm.ª Juiz a quo, fundou a sua convicção quanto a tal matéria, não se estribando em qualquer prova testemunhal, fazendo-o nos seguintes termos:

                      “No que se refere aos nºs 5 a 7, por presunção judicial, resultante da aplicação das regras de experiência comum aos factos conhecidos que são os que resultam da resposta ao nº 4 da base instrutória e aos efeitos do álcool no organismo humano, segundo a ciência médica e de que é dada notícia no extracto veiculado pela Prevenção Rodoviária Portuguesa e que se encontra a fls. 46 e 47”.

                        Daqui decorre que a convicção do Tribunal se fundou em presunção judicial, decorrente do facto de o réu conduzir com uma TAS de 0,91gr/l, e dos respectivos efeitos no organismo humano, apurados de acordo com o documento referenciado.

                        Pretende o Recorrente que a Mm.ª Juiz não podia dar tais factos como assentes com base em presunções judiciais porquanto os mesmos são conclusivos e, como tal, insusceptíveis de sobre eles ser produzida prova.

                        Efectivamente, “a prova (...) só pode ter por objecto factos positivos, materiais e concretos; tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória"[10].

                        Na verdade, como resulta do disposto no artigo 511.º do CPC, o juiz, ao fixar a matéria de facto relevante para a decisão da causa, deve fazê-lo segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito que deva considerar-se controvertida.

                        Este normativo traz à colação a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, que constitui um dos alicerces do nosso processo civil, e tem consagração noutras disposições legais, nomeadamente nos artigos 653.º e 659.º, n.º 2, do CPC, matéria sobre a qual muito se tem escrito, quer na doutrina quer na jurisprudência.

                        De facto, apesar da aparente simplicidade da divisão, acontece que, na prática, nem sempre a distinção nos aparece tão evidente como as normas em questão parecem fazer crer.

                        Assim, "o questionário deve conter só matéria de facto. Deve estar rigorosamente expurgado de tudo quanto seja questão de direito; de tudo quanto envolva noções jurídicas (v.g. a de ofensa grave, nas acções de divórcio; a de posse de estado ou a de convivência notória como marido e mulher, nas acções de investigação de paternidade). Os factos materiais que possam interessar a estas noções é que devem ser quesitados. O órgão competente para conhecer de direito ajuizará depois se eles (os que estiverem provados segundo a decisão proferida sobre a matéria de facto) correspondem ou não aos elementos integradores dessas noções. Por vezes o mesmo termo é usado na linguagem jurídica e na linguagem comum. Na formulação do questionário deve arredar-se o emprego desses termos. Quando todavia lá figure algum deles, deve entender-se que foi tomado no seu sentido vulgar, pelo menos quando este seja (como tal) bem claro e preciso[11].

            Na verdade, "são ainda de equiparar aos factos, os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido; por outras palavras, os que, contendo a enunciação do facto pelos próprios caracteres gerais da lei, sejam de uso corrente na linguagem comum, como "pagar", "emprestar", "vender", "arrendar", "dar em penhor", etc.

          Poderão então figurar, nesses próprios termos, devendo tomar-se no sentido corrente ou comum, ou no próprio sentido em que a lei os tome, quando coincidente, desde que as partes não disputem sobre eles, podendo ainda figurar sempre na especificação e ainda no questionário quando não constituam o próprio objecto do quesito”[12].   

            Por aqui já podemos antever as dificuldades que muitas vezes se apresentam às partes para alegar os factos concretos dos quais emerge o direito que pretendem fazer valer, as quais necessariamente se irão reflectir também no labor judicial nos momentos em que tal distinção se apresenta mais necessária, tanto mais quando “os factos, no domínio processual, abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas, neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior directamente captáveis pelas percepções (pelos sentidos) do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (por exemplo, o dolo, a determinação da vontade real do declarante, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção”[13].

            Uma dessas dificuldades, prende-se, como vimos, com a coincidência entre os termos empregues pelo legislador, a "linguagem jurídica", e os usados na linguagem vulgar, como acontece com os já referidos, podendo gerar-se, consequentemente, alguma confusão terminológica com a redacção dos factos.

            Mas, pode ainda surgir outra dificuldade, que consiste em saber até que ponto se devem decompor os conceitos factuais, de modo a não se discutirem conclusões, questão que se prende com a evidência de que qualquer conceito jurídico, por mais acessível que seja, como os já referidos supra, tem sempre que ter uma referência factual subjacente.

           Assim, “perante um conflito que vai desaguar em litígio judicial, há que levar a cabo uma operação de circunscrição tão nítida quanto possível, em ordem a que a discussão se situe apenas na zona circunscrita. (…) Levada a cabo a circunscrição, logo vemos que tem de se ser muito menos exigente, quanto à "pureza" da redacção factual na parte que está de fora e que serve apenas para situar o conflito do que relativamente aos factos próprios deste.

          Se assim não se pensar, à delicadeza que sempre encerra a resolução dum conflito acrescentamos complicação particularmente acrescida e afastamo-nos, negligentemente, dos objectivos de justa composição do litígio que as partes pretendem. Violando o princípio da celeridade que o artigo 266.º, n.º1 do Código de Processo Civil contempla. Mas mesmo entre muros da factualidade que caracteriza o conflito, onde a pormenorização e o afastar dos conceitos jurídicos deve ser mais premente, há que atender a que o arredar das conclusões (…) deve ser entendido em termos de razoabilidade. De outro modo, (…) atribuía-se aos articulados uma premência de gongorismo, com perdas imensas de eficiência e celeridade processuais sempre a determinarem o afastamento da prossecução dos fins do processo e do almejado pelas partes”[14].

            Ora, “factos singulares são aqueles que, existindo e sendo reconhecidos por si próprios, encerram em si uma determinada ocorrência ou constatação histórica; factos conclusivos são os que constituem uma consequência lógica dos primeiros e que, por isso, não perdem a natureza fáctica e devem merecer o mesmo tratamento[15].

            Questão diversa é ainda a de saber se os factos quesitados ou dados como provados encerram questões de direito, ou seja, se contêm em si a resposta ao “thema decidendum”, caso em que devem ter-se por não escritas as respostas dadas[16].

            Tem-se entendido que os factos conclusivos devem ter-se por não escritos, em face do preceituado no artigo 646.º, do Código de Processo Civil, «[n]ão porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum»[17].

            Porém, concordamos com uma visão diferente que tem sido também sustentada, e que considera, “no mínimo duvidoso que a regra nele contida possa ser aplicada por analogia a esta situação, por não ser inteiramente líquido que procedam no caso omisso (factos conclusivos) as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (questão de direito).

          Por outro lado, torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infracção desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos. Conforme já pusemos em relevo noutra ocasião (Ac. de 7.4.05, proferido na Revª 186/05, subscrito pelos mesmos juízes deste), não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas”[18].

            Enquadrados pelo balizamento da questão que foi efectuado, consideramos que os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum.

            Apreciando os factos em apreço à luz destas considerações, devemos concluir que os factos constantes das respostas aos artigos 5.º a 7.º, contém factos simples que não são manifestamente factos conclusivos. São factos que decorrem de dados científicos, que estão resumidos no documento de fls. 46 e 47, e que se verificam em todos os indivíduos, ao contrário daquilo que muitas vezes é a percepção do condutor que ingeriu bebidas alcoólicas. São eles: que o álcool ingerido diminui as capacidades de reacção e da avaliação das distâncias, causando lentidão na capacidade de reacção, perturbação dos reflexos e da coordenação motora.

            As únicas “conclusões” que os artigos em apreço encerram são que tais reflexos da ingestão de álcool se verificaram no R., e na resposta ao artigo 7. ainda o segmento “o que contribuiu para a verificação do embate”.

            Porém, estes segmentos das respostas dadas não podem ser “lidos” separadamente dos demais sub-factos.

           Assim, estando cientificamente demonstrado que a TAS constante da resposta ao artigo 4.º - do qual resulta que o ora Recorrente conduzia com uma TAS de 0,91gr/l -, provoca nos condutores os reflexos referidos nos artigos 5.º a 7.º, não existe qualquer razão válida para que o réu constitua qualquer excepção a tais dados, sendo consequentemente lícito o uso das presunções para imputar tais reflexos da ingestão de álcool no condutor e, em face dos mesmos, que este estado físico e psíquico contribuiu para a verificação do embate[19].

      Portanto, em face dos factos simples e apreensíveis assentes em estudos científicos efectuados sobre a matéria, factos estes que constituem dados fiáveis, nada impede que o julgador, por presunção judicial, retire dos mesmos um ou mais juízos conclusivos sobre tais elementos de facto, não restando quaisquer dúvidas, quanto a nós, que as respostas em questão não encerram nenhum juízo sobre uma questão jurídica, nem a sua interpretação implica o recurso a qualquer regra de direito, não havendo, portanto, qualquer impedimento a que as mesmas façam parte do elenco da matéria de facto a considerar na decisão do litígio, inexistindo razões para considerá-la não escrita, nos termos do disposto no artigo 646.º, n.º 4, do CPC[20].

                        Por último, diga-se ainda que a Mm.ª Juiz a quo, ao contrário do pretende o Recorrente, podia efectivamente recorrer às presunções judiciais para os determinar, em face do que dispõem os artigos 349.º e 351.º do CC, porquanto os factos em referência podem ser provados por testemunha[21] – veja-se os inúmeros casos em que as seguradoras levam a juízo para os demonstrar um médico com experiência na matéria – sendo as presunções as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

                        Acresce que, de entre os poderes da Relação na apreciação da matéria de facto, nem sequer se exclui o uso de presunções judiciais, razão pela qual o uso deste meio de prova pode ser por efectivamente sindicado e utilizado em sede de reapreciação da matéria de facto[22].

        Na verdade, “[a]s presunções judiciais ou de facto constituem meios de prova mediata retirados dos factos provados, através dos quais o julgador, guiado por regras práticas e da experiencia, retira ilações lógicas de certos factos conhecidos para chegar ao conhecimento de outros desconhecidos, mediante um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, mas sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido, cuja força probatória é apreciada, livremente, pelas instâncias”[23].

Ora, no caso dos autos, os factos conhecidos são os que resultam das afirmações científicas sobre a matéria, e o facto desconhecido que as mesmas se verificaram no réu e tiveram influência na ocorrência do acidente.

Assim sendo, em face das regras da experiência comum, não se vê como podia o julgador efectuar raciocínio diferente perante a TAS demonstrada, raciocínio que subscrevemos integralmente porquanto é o único que a lógica da demonstração dos factos base permite retirar.

Se, em concreto, existissem circunstâncias obstativas da ilação retirada, - por exemplo, porque o Réu havia ingerido bebidas alcoólicas posteriormente ao acidente[24], ou porque o exame de detecção da taxa de alcoolemia foi efectuado depois do tempo legalmente previsto para o efeito[25] -, em virtude de as mesmas configurarem facto extintivo do direito da autora, incumbia ao R. ter alegado factos que o demonstrassem, ou seja, efectuar a contraprova dos factos alegados pela autora (artigo 342.º, n.º 2, do CC), o que não fez[26].

Nestes termos, sendo legalmente admissível o recurso a presunções para prova do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de álcool e o acidente, improcede também a pretensão do Recorrente de alteração da resposta dada aos artigos 5.º a 7.º da base instrutória.


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III.2.2. – Decisão de direito

Conforme o Apelante logo afirmava nas alegações de recurso, uma vez decidida a alteração da decisão de facto, como havia peticionado, tal importaria, necessariamente, a revogação da sentença recorrida.

Porém, para o caso de não ser procedente a sua pretensão, ainda assim entende o Recorrente que a taxa de álcool de que era portador nenhuma influência, directa, indirecta, ou reflexa teve na ocorrência do sinistro.

Aduz em abono da sua posição que foi a conduta do peão a única causa da ocorrência do acidente, que teria acontecido de igual modo ainda que tal taxa não existisse.

Mas, ainda que assim não se entenda, e se considere que o acidente se ficou a dever a excesso de velocidade, então também nesse caso não se mostram verificados os requisitos para o exercício do direito de regresso por banda da autora.

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

Na presente acção a autora, seguradora junto da qual fora contratado pelo ora réu, o seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da utilização do veículo 87-64-TL, na sequência de acidente de viação em que tal veículo foi interveniente, pagou aos herdeiros de (…) a quantia de € 55.000,00, a título de indemnização por dano morte; ao Instituto da Solidariedade Social a quantia de € 6.519,04, a título de Subsídio por Morte e Pensões de Sobrevivência; e à Luso-Roux a quantia de € 157,30, a título de despesas de averiguações, quantias que pretende reaver nos termos do disposto no artigo 19.º, alínea c) do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, invocando que satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra o condutor se este tiver agido sob a influência do álcool.

Tendo em conta a data do acidente - 11 de Novembro de 2006 -, é aplicável ao direito de regresso que a seguradora veio exercer nesta acção a redacção então vigente da al. c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

Na verdade, apesar deste diploma ter sido entretanto revogado pelo artigo 94.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 291/07 de 21 de Agosto, em cuja alínea c) do n.º 1 do respectivo artigo 27.º o legislador veio instituir um regime mais favorável ao direito de regresso[27], é aquele, contudo, o direito aplicável ao caso em apreço[28].

 Ora, a norma em apreço foi objecto de interpretação pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28 de Maio de 2002, de acordo com o qual “a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”, interpretação que aqui se segue porquanto esta uniformização de jurisprudência mantém a sua força vinculativa no âmbito temporal em que o preceito interpretado é aplicado.

Como é consabido, este acórdão uniformizador foi tirado na sequência das várias correntes jurisprudenciais que se foram formando sobre a questão, das quais se delinearam as seguintes três principais ali referidas:

a) O reembolso pela seguradora é sempre devido porque representa o desvalor da acção, uma vez que o risco contratualmente assumido não se compadece com condutores que agem sob o efeito do álcool e que preconiza o efeito automático da existência do direito de regresso[29];

b) A seguradora só tem direito de regresso se provar que o sinistro foi causado pela taxa de alcoolemia de que o condutor era portador[30];

c) O direito de regresso só existe se a situação de alcoolemia for causa do acidente, embora tal relação seja de presumir nos termos do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 3/82, do artigo 350.º do Código Civil e do artigo 81.º do Código da Estrada[31].

Estas, no essencial, as posições defendidas, em busca da melhor interpretação a dar ao preceito acima referido, tendo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência optado pela segunda via, pelos fundamentos que então aduziu e dos quais se destaca a afirmação de que “[c]onstituindo o direito de regresso um direito ex novo surgido com a extinção da obrigação para com o lesado e ficando a seguradora na posição de credora em relação ao segurado pela mesma ou diversa quantia, pelo mesmo motivo e pelo mesmo facto, o segurado terá o dever de pagar à seguradora o que esta despendeu se se verificar o fundamento do regresso. E este tem a sua razão de ser no facto e na medida em que o condutor tiver causado o acidente por influência do álcool, tendo em conta o presente caso que cumpre decidir.

(…) Não é qualquer fundamento de culpa do condutor que leva à existência do direito de regresso, mas só um dos incluídos no artigo 19.º do decreto-lei citado. O alcance social do seguro obrigatório, como regime indicado para a protecção dos lesados, estendendo a protecção de uma forma alargada em aproximação de seguro social e fazendo recair sobre as seguradoras boa parte do ónus desse benefício, tem aqui desvios quanto à assunção da responsabilidade com a criação do direito de regresso a favor das seguradoras.

E porque de um direito especial se trata, o direito de regresso tem de ser demonstrado nos termos gerais de direito, uma vez que nenhuma disposição do Decreto-Lei n.º 522/85 veio afastar o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova ou outro circunstancialismo que se desvie do regime geral.

(…) A justificação para a necessidade da prova do nexo de causalidade pelo autor entre a condução sob a influência do álcool e o acidente resulta dos próprios termos da alínea c) do artigo 19.º o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro. É necessário que o demandado aja sob a influência do álcool e não apenas que ele conduzisse etilizado nos termos previstos nas normas penais ou contra-ordenacionais. O grau de alcoolemia podia estar acima dos limites legais, o que seria fundamento para a condenação em sede própria no regime penal como actividade perigosa. Mas uma tal condução pode não contribuir para o acidente. A expressão usada na lei, agido sob a influência do álcool, é uma exigência relativa à actuação do condutor que não tem de ligar-se ao regime considerado legalmente susceptível de condenação penal. Diz a lei agir sob a influência do álcool e não estar sob a influência do álcool”.

Presente este sentido orientador relativamente aos fundamentos do direito de regresso que a autora se arroga nos presentes autos, nos termos genéricos do art. 342.º do Código Civil, para que o invocado direito de regresso da seguradora que satisfez a indemnização seja reconhecido, tem a mesma - para além de alegar e provar a culpa do condutor na produção do evento danoso (o acidente), apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (n.º 2 do artigo 487.º do CC) -, também que alegar e provar factos dos quais resulte o nexo de causalidade entre a condução sob a influência de álcool e o evento dela resultante, porquanto, “só neste caso se pode dizer que o risco da seguradora é superior ao da condução normal, facultando-se-lhe então, e só então, o direito de regresso contra o condutor alcoolizado”[32].

Vejamos, pois, se a autora logrou provar que o exercício da condução sob o efeito do álcool determinou que o seu segurado fosse de algum modo responsável, ou pelo menos co-responsável na produção do acidente do qual resultou a morte do peão.

Assente que aquando da ocorrência do embate consistente no atropelamento do falecido (…), pelo veículo segurado na autora, o ora réu tripulava tal veículo apresentando uma taxa de álcool no sangue não inferior a 0,91 gramas por litro, dúvidas não existem de que o mesmo conduzia em contravenção ao disposto no artigo 81.º do Código da Estrada, cujo n.º 2 estabelece que “é proibido conduzir sob a influência de álcool, considerando-se como tal a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 gramas/litro”.

Alegou ainda a autora e provou que esta taxa de álcool provocou no réu perturbações ao nível mental, neuro-muscular e visual, traduzidas em redução das capacidades de reacção no espaço físico e de avaliação das distâncias; lentidão na capacidade de reacção; perturbou-lhe os reflexos e a coordenação motora, o que contribuiu para a verificação do embate entre o veículo que conduzia e o peão, e subsequente morte deste.

Cabe, portanto apurar, em face do ónus da prova que sobre a autora impende, se esta condução contra-ordenacional foi ou não a causa ou concausa adequada da ocorrência do embate, assente que a mesma influenciou o condutor ora réu, já que a taxa de alcoolemia de 0,91 g/l apresentada pelo condutor do veículo interveniente no acidente de viação não leva a concluir necessariamente que, só por si, o álcool foi a causa, e muito menos a causa única, do acidente, tanto mais que não estamos a falar de uma taxa que constitua sequer crime, sendo meramente contra-ordenacional[33].

Ora, quanto à dinâmica do acidente, resultaram provados factos alegados quer pela autora quer pelo réu, estes tendentes a demonstrar ser a responsabilidade do acidente única e exclusivamente do falecido, que cumpre apreciar.

Assim, provou-se que no dia 11-11-2006, cerca das 21h00, o ora Recorrente (…) circulava como o veículo (..) TL na Av. D. José Alves Correia da Silva, no sentido Norte-Sul, em Fátima e quando descrevia a curva existente junto ao final das obras da Basílica da Santíssima Trindade foi embater em (…)que se encontrava a atravessar a dita Av. da esquerda para a direita atento o sentido de marcha do TL, efectuando a travessia da estrada a uma distância de cerca de 20 metros da passadeira para peões existente, para Sul, junto ao entroncamento entre a Avª. D. José Alves Correia e o arruamento Sul.

Em face desta materialidade, como é bom de ver, o réu provou que a falecida vítima agiu com falta de cuidado e violando o disposto no artigo 101.º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada[34] que lhe impunham a obrigação de não atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificar de que o podia fazer sem perigo de acidente e, ainda, que existindo uma passadeira a cerca de 20 metros, só o podia fazer no local especialmente sinalizado para esse efeito.

Portanto, temos que quer o ora réu quer o peão violaram normas estradais que se lhes impunham, presumindo-se, portanto, como é entendimento pacífico, que ambos actuaram de forma negligente.

Por isso, para aquilatarmos qual destas violações deu causa ao acidente e em que medida, cumpre ainda considerar que à data e hora do embate era de noite; o local do embate caracteriza-se por ter má visibilidade por a luz dos candeeiros públicos ser ofuscada pela folhagem das árvores; e na ocasião do embate a vítima usava roupas escuras.

Estes factos permitem-nos concluir pela culpa efectiva do peão na ocorrência do acidente que o veio a vitimar.

Na verdade, existindo uma passadeira para o atravessamento da via a cerca de 20 metros dum local que se apresentava tão perigoso para o efeito, o mesmo procedeu à travessia naquele local de má visibilidade, usando roupas escuras, o que dificultava ainda mais a possibilidade de ser visto pelos condutores dos veículos que ali circulassem.

Por seu turno e do lado da actuação do condutor ora Recorrente, importa atentar que na ocasião não chovia e o piso encontrava-se seco em boas condições de circulação sem buracos ou irregularidades que dificultassem a circulação rodoviária, configurando-se a estrada em recta, antecedida por curvas; sendo o local onde ocorreu o embate uma zona frequentada por peões que se dirigem ao Santuário e ao Centro Pastoral; e sendo o local bem conhecido pelo réu.

Apesar disso, e de o peão efectuar a travessia da via da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do réu, este não viu o peão e só se apercebeu da presença deste, aquando do embate com o TL.

Ora, o facto de nessa ocasião o réu descrever a curva existente junto ao final das obras da Basílica da Santíssima Trindade, não chega para explicar porque razão não se apercebeu do peão em momento anterior ao embate no mesmo.

De facto, apesar da má visibilidade do local, e do facto de o peão atravessar numa zona de curva com roupas escuras, o certo é que o mesmo não se atravessou inopinadamente no momento em que o réu circulava com o veículo e nem sequer o fez para a sua hemi-faixa de rodagem.

O peão já circulava na estrada em momento anterior à aproximação do veículo tripulado pelo réu, que teria, presume-se, as respectivas luzes ligadas, considerando que era de noite, razão pela qual, as mesmas sempre permitiriam ver o peão antes do embate[35]. E se assim não foi, então a responsabilidade de não ter as luzes do veículo acesas, sempre seria do réu.

Mas, mesmo nessa situação, e ainda que conduzisse o veículo imprimindo-lhe velocidade excessiva, um condutor atento e no pleno uso das suas faculdades psíquico-motoras sempre veria o peão algum tempo, ainda que pouco, antes do embate, e reagiria, travando ou desviando o veículo para a outra hemi-faixa de rodagem ou para a berma, caso tal lhe fosse possível, para evitar o embate. Esta é a reacção natural e instintiva de um condutor que circule atento, a qualquer obstáculo que se lhe apresente, ainda que de modo inesperado.

Ora, no caso dos autos o que se verifica é a total ausência de reacção do condutor ora réu antes do embate, a qual não se mostra justificada, como se disse, pelo atravessamento inopinado, leia-se, na sua frente, naquele momento, do peão.

Por isso, a ausência de reacção do condutor ora Recorrente só pode justificar-se precisamente porque agia sob a influência de álcool.

Na verdade, o álcool prejudica as capacidades de avaliação da resposta ao perigo, aumentando o tempo de reacção do ora réu à visualização do peão a circular, ou seja, o tempo que medeia entre a percepção de um estímulo, o avistamento do obstáculo, e o início da resposta a este, isto por afectar ao nível do cérebro e do cerebelo as capacidades perceptivas e cognitivas, as capacidades de antecipação, de previsão e de decisão e as capacidades motoras de resposta, diminuindo as capacidades para o condutor efectuar uma correcta avaliação das diferentes situações de trânsito, o que explica a ausência de reacção, em concreto.

Depois, o facto de o ora Recorrente só ter imobilizado o veículo 17,90m após o embate e de só então o peão ter caído do capot do mesmo, é que se podem justificar eventualmente porque o mesmo conduzira o veículo em velocidade excessiva; mas podem ter também a explicação na lentidão da sua capacidade de reacção motivada pela taxa de álcool que ao momento tinha em circulação no sangue.

Mas, não vale a pena especular quanto às possibilidades que aqui se apresentam quanto às consequências do acidente, porquanto o que importa mesmo é determinar se a TAS de 0,91 gr/l contribui para a ocorrência do embate no peão e, como vimos, em face das circunstâncias do caso, essa apresenta-se como a justificação mais plausível para que o embate tenha ocorrido sem qualquer prévia reacção do condutor.

Na verdade, apesar de sabermos que o tempo de travagem depende de vários factores como sejam o próprio tipo de veículo, das suas condições, nomeadamente de peso e órgãos de travagem, o certo é que se tem como adquirido que o tempo de reacção de um condutor em estado “normal”, isto é, não influenciado por ingestão de álcool, consumo de estupefacientes ou mesmo fadiga, varia entre 0,7 e 1,5 segundos, consoante a reacção é provocada por uma situação esperada ou completamente inesperada, o que permitiria ao réu, caso não conduzisse sob o efeito do álcool, pelo menos, travar.

Em face do exposto, tem-se por inquestionável poder concluir-se que a taxa de alcoolemia de 0,91 gramas/litro com que o segurado da autora e ora Recorrente conduzia o veículo, foi concausa adequada da ocorrência do embate, porquanto sendo abstractamente adequada a produzir o acidente, em concreto, provou-se quer existência do nexo naturalístico, em sede de matéria de facto, quer o nexo de adequação, uma vez que a ausência de reacção do condutor à presença do peão a atravessar a via motivada por aquela TAS foi uma das condições sem a qual o evento danoso não teria ocorrido ou, pelo menos, não teria ocorrido em toda a sua extensão, não sendo consequentemente indiferente à ocorrência do efeito[36].

Na verdade, nos termos do artigo 563.º do CC, que define o nexo causal de acordo com a variante negativa da causalidade adequada que acaba de afirmar-se, no apuramento das culpas pela ocorrência do evento danoso, estamos em presença de uma situação de concausalidade, em face da verificação de culpas concorrentes do condutor do veículo e do peão na ocorrência do acidente objecto mediato dos presentes autos, mostrando-se determinado o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de álcool invocada como fundamento do direito de regresso das quantias cujo pagamento a ora autora suportou, e o evento danoso, ainda que não totalmente da responsabilidade do segurado e, consequentemente apenas na medida da respectiva responsabilidade.

Quanto à medida da culpa de cada um dos intervenientes fixada na sentença – que, diga-se, nos parece a adequada - correspondente à proporção da culpa na ocorrência do evento danoso atribuída à vítima em 70% e ao Réu em 30%, este não recorreu, sendo, portanto, de manter.

Improcede, pois, nos termos expostos, o presente recurso.


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III.2.3. - Síntese conclusiva

I - A prova do nexo naturalístico entre a condução sob o efeito do álcool e a ocorrência do acidente pode fazer-se por via de presunção judicial, quando os factos simples provados sustentem a ilação retirada pelo julgador.

II - Ao direito de regresso fundado em acidente de viação em que o segurado conduzia sob a influência do álcool, ocorrido antes da entrada em vigor do DL n.º 291/07 de 21-08, aplica-se o regime constante do DL n.º 522/85 de 31-12, por ser este o vigente à data do acidente, isto apesar de entretanto ter sido revogado pelo artigo 94.º, n.º 1, alínea a), do diploma ora em vigor.

III - Assim, o exercício do direito de regresso pela seguradora previsto na alínea c) do artigo 19.º, do DL n.º 522/85, de 31-12, deve ser interpretado de acordo com o Acórdão Unificador de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28-05-2002.

IV - Provado que o condutor do veículo exercia a respectiva condução com uma TAS de 0,91 gr/l, e que não viu o peão, só se apercebendo da presença deste - que efectuava a travessia da via da esquerda para a direito atento o sentido de marcha do veículo -, quando lhe embateu, deve concluir-se que tal ausência de reacção resultou de agir sob o efeito do álcool.

V – Apesar de se ter provado a existência de culpa do peão na ocorrência do atropelamento que o vitimou, não tendo a condução sob o efeito de uma TAS de 0,91 gr/litro, sido indiferente para a ocorrência do acidente, funciona como uma concausa do mesmo, existindo o direito de regresso da seguradora na medida da repartição das culpas de cada um dos responsáveis.


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IV - Decisão

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas do recurso a cargo do Apelante.

Notifique.


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Albertina Pedroso ( Relatora )

Virgílio Mateus

Carvalho Martins

Relatora: Albertina Pedroso;

1.º Adjunto: Virgílio Mateus;

 2.º Adjunto: Carvalho Martins.

[2] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do CPC, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Cfr. neste sentido, Acórdão do STJ de 05-06-2012, proferido no processo n.º 5534/04.5 TVLSB.L1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; e na jurisprudência de forma meramente exemplificativa, Ac. STJ de 24-05-2012, processo n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt. 
[6] Cfr. Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 563.
[7] Cfr., neste sentido, exemplificativamente, Ac. STJ de 15-12-2011, processo 5622/06.3TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Doravante abreviadamente designado CC.
[9] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, 2010, pág. 309.
[10] Cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 212.
[11] Cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 187.
[12] Cfr. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil, Almedina, 1982, vol. III, pág. 269.
[13] Cfr. Ac. STJ de 22-04-2009, processo 08S1901, disponível em www.dgsi.pt.

[14] Cfr. Ac. STJ de 02-11-2006, processo n.º 06B3267, disponível em www.dgsi.pt.

[15] Cfr. Ac. STJ de 24-09-1998, processo n.º 98P041, com sumário disponível em www.dgsi.pt.

[16] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 21-06-2012, processo n.º 265/03.6TBRMR.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

[17]  Cfr. Acórdão do STJ de 23-09-2009, Processo n.º 238/06.7TTBGR.S1, da 4.ª Secção, seguido, entre outros pelo recente Ac. STJ de 23-05-2012, processo 240/10.4TTLMG.P1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[18] Cfr. Ac. STJ de 13-11-2007, processo n.º 07A3060, disponível em www.dgsi.pt.
[19] Cfr. neste sentido, o recente Ac. deste TRC, de 08-05-2012, proferido no processo n.º 2739/08.3TBVIS.C2, apreciando quesito em tudo semelhante ao nosso artigo 7.º  onde se perguntava “e foi por causa dos factos quesitados em 70.º a 74.º que ocorreu o acidente aludido nos autos?” e que obteve a resposta positiva de “provado”,  concluindo-se que nada impede o recurso a presunções judiciais para se estabelecer o nexo de causalidade entre a condução com álcool e o acidente.

[20] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 07-07-2010, proferido no processo n.º 2273/03.8TBFLG.G1.S1, onde se afirmou: «… nada impede o recurso a presunções judiciais para estabelecer o nexo de causalidade entre a “condução sob o efeito do álcool” e um acidente de viação, que se tenha por causado por culpa de quem conduzia um veículo, apresentando uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida. Como todos sabemos, está cientificamente estabelecida - e revelada pela experiência comum - uma relação entre o álcool e a diminuição das capacidades de vigilância e rapidez de reacção, que naturalmente varia em função da quantidade de álcool no sangue e das pessoas em concreto, mas que constitui base suficiente para as referidas presunções», disponível em www.dgsi.pt.

[21] Cfr. neste sentido, Ac. TRC de 07-09-2010, processo n.º 329/06.4TBAGN.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[22] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes, Ob. cit., pág. 314.
[23] Cfr. Ac. STJ de 05-05-2011, Revista n.º 396/04.5TBBCL.G1.S1 - 1.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt, a título meramente exemplificativo da jurisprudência firmada sobre esta matéria.
[24] De facto, “provado, em exame feito uma hora depois do acidente, que o condutor presumido culpado acusava excesso de álcool no sangue, cabe-lhe a ele a prova de que tal excesso se deveu à ingestão de álcool em momento posterior ao acidente”, conforme se decidiu no Ac. STJ de 05-03-2002, Revista n.º 4069/01 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt/ Sumários de Acórdãos.
[25] Situação que não aconteceu no caso porquanto o acidente ocorreu pelas 21.00h (conforme consta da participação respectiva e foi aceite pelo R.) e o teste foi realizado pelas 21.46h (conforme talão de fls. 133). Efectivamente, atento o disposto no artigo 6.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 24/98, de 30-10, que define o Regime jurídico da fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, a colheita do sangue deve ser efectuada no prazo máximo de duas horas a contar da ocorrência do acidente ou, nos restantes casos, após o acto de fiscalização. E analisado todo o diploma, é evidente que se pretende que tal recolha seja efectuada num período curto precisamente para que seja mais preciso o resultado, o que se verificou no caso em apreço.   
[26] Cfr., neste sentido, Ac. TRC, de 08-05-2012, proferido no processo n.º 2739/08.3TBVIS.C2, disponível em www.dgsi.pt.

[27] Na verdade, apesar de já existir jurisprudência em sentido diferente, entendemos que “no âmbito do artigo 27.º, nº 1, c) do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21/8, para que seja reconhecido à seguradora que satisfez a indemnização o direito de regresso basta que a mesma alegue e prove que foi o segurado que deu causa ao acidente e que na altura conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, não carecendo de alegar e provar a existência de nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente”, conforme se decidiu, entre outros, no recente Acórdão desta Relação de 29-05-2012, proferido no 273/10.0T2AVR.C1, disponível em www.dgsi.pt, dando-se aí conta desta nova divergência jurisprudencial.
[28] Cfr. neste sentido, Ac. TRC de 16-12-2009, processo n.º 1547/05.8TBVNO.C1.
[29] Pode ver-se neste sentido e mais recente do que os acórdãos citados no aresto uniformizador, o Ac. STJ de 18-04-2002, Revista n.º 311/02 - 7.ª Secção, disponível em www.stj.pt/Sumários de Acórdãos, no qual se decidiu que: “I - No exercício da acção de regresso a seguradora apenas tem de provar que foi condenada a indemnizar por culpa ou pelo risco e que o condutor era portador de taxa de alcoolemia superior à legal, agindo assim sob a influência do álcool. II - Impor à seguradora o ónus da prova do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente seria esvaziar, na totalidade, o conteúdo do direito de regresso, quando a ingestão do álcool não é, segundo o sentido da lei, irrelevante para o desencadear do acidente, seja por culpa do condutor ou pelo risco”.
[30] Também no mesmo sentido e mais recente do que os citados no AUJ, veja-se o Ac. STJ de 14-05-2002, Revista n.º 1142/02 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt/Sumários de Acórdãos, onde se considerou que “A seguradora que pretenda exercer o direito de regresso consagrado na al. c) do art.º 19 do DL n.º 522/85, de 31-12, terá de provar a existência de nexo de causalidade entre a condução sob influência do álcool e a ocorrência do acidente”.
[31] Citando Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de Julho de 1995, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 449, p. 429.
[32] Cfr. Acórdão do STJ de  24-02-1999, Revista n.º 34/99 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt/Sumários de Acórdãos.
[33] Cfr. neste sentido, AC. STJ de 27-11-2001, Revista n.º 2586/01 - 6.ª Secção, no qual se decidiu que “a taxa de alcoolemia de 1,23 g/l apresentada pelo condutor de um dos veículos intervenientes em acidente de viação não leva a concluir necessariamente que, só por si, o álcool foi a causa, e muito menos a causa única, do acidente”.
[34] Aprovado pelo DL n.º 114/94, de 03-05, com as sucessivas alterações introduzidas até ao DL n.º 44/2005, de 23-02, que entrou em vigor em 24-03-2005.
[35] Conforme decorre do artigo 80.º, n.º 1, alínea b), do Código da Estrada, sempre que, nos termos do art. 59.º, seja obrigatória a utilização de dispositivos de sinalização luminosa e de iluminação, como acontece durante a noite, os condutores de veículos automóveis e seus reboques devem utilizar as luzes médios. Ora, de acordo com o n.º 2 do referido artigo 80.º “as características das espécies de luz referidas no n.º anterior são definidas em regulamento”, o que se fez por intermédio da Portaria n.º 851/94 de 22 de Setembro, forma que o n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, obrigou para esta regulamentação. Assim, nos termos do artigo 1.º, n.º 5, “para além das luzes referidas no número anterior, os veículos automóveis devem possuir luzes de cruzamento (médios), as quais devem emitir um feixe luminoso que, projectando-se no solo, o ilumine eficazmente numa distância de 30 m, por forma a não causar encadeamento aos demais utentes das vias públicas, qualquer que seja a direcção em que transitem. Consequentemente, a distância de iluminação das luzes médias atinge um máximo de 30 metros, visibilidade que é considera pelo artigo 23.º do Código da Estrada como “visibilidade reduzida ou insuficiente”, entendendo-se como tal a visibilidade em qualquer ponto de uma via sempre que não se aviste a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 metros
[36] Cfr., neste sentido Ac. STJ de 06-07-2004, processo n.º 03B2978, disponível em www.dgsi.pt.