Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS RICARDO | ||
Descritores: | SERVIDÃO DE PASSAGEM ACESSO A PRÉDIO CONFINANTE DO MESMO PROPRIETÁRIO | ||
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Data do Acordão: | 03/11/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - NELAS - JUÍZO COMPETÊNCIA GENÉRICA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 1305º, 1543º E 1545º DO CÓDIGO CIVIL | ||
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Sumário: | O proprietário de um imóvel que acede diretamente, a partir deste, a um prédio confinante que também se encontra na sua titularidade, não está impedido de usar uma servidão que foi constituída em benefício do imóvel a partir do qual se processa o referido acesso. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra I – RELATÓRIO. AA e BB, casados entre si, contribuintes n.ºs ...83 e ...04, portadores dos cartões de cidadão n.ºs ...62 0zy1 e ...12 0zz8, respectivamente, residentes na Rua ..., ... ..., ... ..., instauraram no Juízo de Competência Genérica de Nelas acção comum contra CC e DD, casados entre si, contribuintes n.º ...11 e ...50, portadores dos cartões de cidadão n.º ...27 0zy5, v, respectivamente, residentes na Rua ..., ... ..., ... ..., pedindo, com fundamento no acervo factual melhor discriminado na petição inicial, que os réus sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio referido no art. 1.º desse articulado [1] e, assim, absterem-se de invadir o mesmo, designadamente, para aceder ao prédio referido no art. 19.º da mesma peça processual [2], devendo ainda ser condenados a “anular” o acesso ali “fabricado” e, bem assim, repor o muro que sempre ali existiu, na zona sul dos prédios referidos nos arts. 1.º e 2.º [3] da P.I., de modo a garantir o suporte do prédio mencionado no dito art. 1.º. *** Os réus contestaram, arguindo as excepções de caso julgado, ineptidão do articulado inicial e de abuso do direito, mais tendo impugnando parte da factualidade alegada pelos autores. A final, peticionaram que os autores fossem condenados como litigantes de má fé, em indemnização não inferior a 3.000,00 €. *** Por requerimento apresentado a 12/12/2022, os autores pronunciaram-se no sentido da improcedência das invocadas excepções e do pedido de condenação por litigância de má fé. *** Em 19/4/2023 foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a arguida excepção de ineptidão e parcialmente procedente a excepção de caso julgado, sendo os réus absolvidos da instância no que diz respeito ao peticionado reconhecimento do direito de propriedade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...30. ** Realizou-se audiência final, com observância do formalismo legalmente prescrito, após o que foi exarada sentença, em 24/4/2024, cujo dispositivo apresenta o seguinte teor: “Nestes termos, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência: Condenam-se os Réus CC e DD a absterem-se de passar a pé e de carro no leito da servidão de passagem (melhor identificado no ponto 4 dos factos provados) constituída sobre o prédio dos Autores AA e BB e dos Réus (melhor identificados no ponto 1 e 2 dos factos provados) para acederem diretamente ao prédio urbano n.º ...38 da União de Freguesia ... e ... (identificado no ponto 5 dos factos provados). No mais peticionado pelos Autores os Réus são absolvidos. Absolvem-se os Autores do pedido de condenação como litigantes de má fé. Custas a cargo dos Autores na proporção de 2/3 e custas a cargo dos Réus na proporção de 1/3.”. ** Não se conformando com a sentença proferida, os réus interpuseram o presente recurso, no qual formulam as seguintes conclusões: “I) Vem o presente recurso da douta Sentença recorrida proferida nos autos em 24/04/2024, em que julga “a presente ação parcialmente procedente e, em consequência: Condenam-se os Réus CC e DD a absterem- se de passar a pé e de carro no leito da servidão de passagem (melhor identificado no ponto 4 dos factos provados) constituída sobre o prédio dos Autores AA e BB e dos Réus (melhor identificados no ponto 1 e 2 dos factos provados) para acederem “diretamente” ao prédio urbano n.º ...38 da União de Freguesia ... e ... (identificado no ponto 5 dos factos provados). No mais peticionado pelos Autores os Réus são absolvidos. Absolvem-se os Autores do pedido de condenação como litigantes de má fé. Custas a cargo dos Autores na proporção de 2/3 e custas a cargo dos Réus na proporção de 1/3.” II) O recurso tem por objeto i) a reapreciação da matéria de facto dada como provada, com pedido de reapreciação da prova gravada, bem como ii) versa também, e consequentemente, sobre o direito aplicável e a matéria de direito, tudo nos termos dos arts.638º/7, 639º/1 e 2 e 640º/1 e 2 do CPC. III) Relativamente à matéria de facto que descreve a efetiva localização dos prédios reciprocamente dominante e serviente (artigo matricial ...56, o dos Recorridos, e artigo matricial ...92, o dos Recorrentes, ambos da União de Freguesias ... e ..., Concelho ...) e a respetiva servidão de passagem constituída, e como tal reconhecida, por destinação de pai de família, e a localização dos prédios entretanto adquiridos pelos Recorrentes em 2013 (e referenciados no Ponto 5 dos factos Provados, como sendo o dos Recorrentes artigo matricial art.1638 também da União de Freguesias ... e ...), reina na sentença, salvo o devido respeito, uma grande confusão, que acaba por inquinar, quer a resposta à matéria de facto, quer a decisão em termos de direito aplicável. IV) A servidão de passagem que se encontra constituída reciprocamente a favor do prédio de Recorrentes e Recorridos não se estende, ou confina ou confronta com os prédios rústicos adquiridos em 2013 pelos Recorrentes, conforme dá a entender a sentença recorrida, porque para acederem ao seu prédio artigo matricial ...38, os Recorrentes passam primeiro na servidão que onera reciprocamente o seu prédio e dos Recorridos, deixam esta servidão, entram exclusivamente no seu prédio, e daqui é que acedem aos prédios adquiridos em 2013. V) Até porque e por referência ao levantamento topográfico que está anexo e se dá como reproduzido na transação (Vide DOC. 3 junto com a Contestação), que “4ª – Ambas as partes reconhecem também que nesta faixa de terreno existe uma servidão de passagem, a pé e de carro, sendo servientes e dominantes, reciprocamente, os prédios referentes nas cláusulas 1ª e 2ª desta transação;” VI) E como muito bem se vê do Documento sob nº 6 junto pelos Recorridos à sua PI. VII) Sendo que para aceder a estes prédios adquiridos em 2013 (matriz ...38), não utilizam, assim, e nunca, diretamente os Recorrentes a servidão de passagem reciprocamente constituída em beneficio dos prédios dos Recorrentes e dos Recorridos (matrizes, respetivamente 992 e 756), contrariamente ao que seu como provado na sentença recorrida. VIII) Assim, claramente, não pode aceitar-se, por não corresponder à verdade, o que se deu como provado no Ponto 6 dos Factos Provados, no sentido de: “6. Os Réus acedem a pé, de carro e trator ao prédio identificado no ponto 5 (os adquiridos em 2013, matriz ...38) através da faixa de terreno descrita nos termos do Acordo referido no ponto 4.” e que por isso deve dar-se por não provado. IX) Não sendo verdade que os Recorrentes hajam dito ou se possa retirar do que disseram nos arts.46 a 60 da Contestação que o acesso aos prédios adquiridos em 2013 se faça diretamente pela servidão constituída. X) Resultando, aliás, já do Ponto 5 dos Factos Provados que “Os Réus por escritura pública celebrada a 19.07.2013 adquiriram o direito de propriedade sobre dois prédios rústicos que confrontam com o quintal do prédio dos Réus, os quais deram origem ao artigo matricial urbano n.º ...38 da União de Freguesia ... e ....” XI) Assim, ao invés do que foi dado como provado no Ponto 6 dos Factos Provados dever-se-á dar como provado que: “Os Réus não acedem diretamente a pé, de carro e trator ao prédio identificado no ponto 5 através da faixa de terreno descrita nos termos do Acordo referido no ponto 4., percorrendo antes disso exclusivamente terreno no seu prédio inscrito na matriz sob o art....92, referenciado no Ponto 2 dos Factos Provados”. XII) Esta realidade fática resulta também sobejamente dos depoimentos ouvidos em audiência de julgamento, no dia 14/03/2024, e gravados em sistema áudio constante dos autos, referenciado especificamente nas alegações supra, especialmente do referido pelo Recorrente CC, pelos Recorridos AA e BB, e pelas testemunhas, EE, FF, GG e HH. XIII) Assim, o que é referido no Ponto 6 dos Factos Provados na sentença recorrida é impossível, dado que não podem os Recorrentes nunca passar diretamente do leito da servidão e desta para os prédios rústicos adquiridos por eles em 2013. XIV) Em consequência dessa factualidade assim alterada, desde logo não pode deixar de pugnar-se pela invocação da nulidade da sentença, dado que a mesma não respeita o principio do pedido, principio esse que tem expressão no art.609º/1 e 615º/1, c), sendo, respetivamente, “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou objeto diverso do que se pedir” e “É nula a sentença quando: c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”, situação que claramente a sentença recorrida desconsidera. XV) Aliás, isso mesmo é uma das consequências do principio da necessidade do pedido, na perspetiva de que não cabe ao tribunal emitir pareceres – que mais parece o conteúdo da sentença sob recurso na sua fundamentação e dispositivo/conclusão- do que uma sentença, sendo que nesta o que se visa é regular “o conflito de interesses que a ação pressupõe” nos termos do art.3º/1 do CPC, sendo tal concretização dos princípios do dispositivo e do contraditório. XVI) Em reforço do que acaba de afirmar-se e reclamar-se, veja-se que os Recorridos não definem concretamente sequer o seu pedido, peticionando que relativamente ao seu artigo matricial ...56 devem os Recorrentes “absterem-se de invadir o mesmo, designadamente para aceder ao prédio designado em 19º, desta peça (o artigo matricial dos Recorrentes 1638)” dispondo a sentença recorrida que o adjetivo “designadamente”, se substituísse por “diretamente”, constituindo tal alteração, também, salvo o devido respeito, uma alteração do pedido, nos termos em que está efetuado, que a própria lei não permite, nos termos dos já referenciados preceitos legais. XVII) Por outro lado, a sentença recorrida não pondera, e muito menos aborda, um direito essencial dos Recorrentes que não pode deixar de ter-se sempre como presente, que é o seu direito de propriedade, parecendo-nos aliás que a sentença proferida viola claramente esse direito de propriedade dos Recorrentes. XVIII) Comungando os Recorrentes de toda a fundamentação e interpretação em geral do que está consignado nos arts.1543º e ss. do CC, a mesma fundamentação e interpretação é inaplicável ao caso concreto posto à apreciação do tribunal. XIX) Os Recorridos não alegam sequer a factualidade que justifique uma consideração de eventual alteração da servidão constituída, e nos termos em que o está. XX) Sendo que a eles Recorridos caberia o ónus de alegar e provar essa factualidade, nos termos do disposto no art.342º do CC. XXI) Além disso os Recorrentes, como resulta do Ponto 7 dos Factos Provados ““7. Aquando da celebração do acordo referido no ponto 4, os Autores tinham conhecimento do descrito no ponto 6.”, atuando, assim, com claro abuso de direito nos termos do disposto no art.334º do CC, no sentido de que excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico e social desse direito. XXII) Sendo aliás, os próprios Recorridos que afirmam à Sra. Juiz a quo, e a instâncias da mesma, que nenhum prejuízo ou dano lhes advém da utilização da servidão em confronto com a passagem pela mesma pelos Recorridos para acesso ao seu prédio e deste para acederem aos prédios rústicos adquiridos em 2013. XXIII) Nada ficou, pois, alegado ou demonstrado que autorize a Mma. Juiz a quo a emitir parecer/sentença que limite, quer o direito de propriedade dos Recorrentes, quer o exercício da servidão por destinação de pai de família, nos termos em que sempre o exerceram os Recorrentes, e como tal se encontra reconhecido, nomeadamente, nos arts.1302º e 1305º do CC XXIV) O entendimento vertido na Sentença recorrida, bem como eventual entendimento que condene os Recorrentes em idêntico sentido, enferma até de manifesta inconstitucionalidade, por violação do direito de propriedade privada que assiste aos Recorrentes, consagrado no art.62º da CRP, por um lado por decidir o tribunal tutelar o direito dos Recorridos sem que os mesmos sequer alegam factualidade que justifique processualmente essa tutela, violando este preceito constitucional, e por outro lado, por proferir sentença, sem qualquer factualidade que o justifique, limitando o direito de propriedade dos Recorrentes no sentido de não poderem circular livremente entre os seus prédios, de que são donos e legítimos proprietários. XXV) Sendo claro, assim, que improcedendo na totalidade o que peticionaram, devem ser também os Recorridos, consequentemente, condenados integralmente nas custas e demais encargos do processo, nos termos do disposto no art.527º/1 do CPC. XXVI) Pelo que, salvo melhor opinião, a sentença recorrida proferida pela Mm.ª Juiz a quo, viola, nomeadamente, os: arts.3º/1, 609º/1, 615º/1 do CPC, arts.334º, 342º,1305º, 1306º, 1543º, 1544º, 1545º e 1546º do CC, e art.62º da CRP; devendo esta ser al*terado por douto Acórdão no sentido propugnado, assim se fazendo Justiça.”.
*** Os autores contra-alegaram, concluindo nos seguintes termos:
“1. O recurso a que se responde viola o disposto nos artigos 637.º e 639.º e 640.º, todos do Código de Processo Civil. 2. Os Recorrentes não terminam as suas alegações de recurso com conclusões perceptíveis, não indicando os fundamentos por que pedem a alteração da decisão recorrida. 3. As conclusões não são idóneas para delimitar de forma clara, inteligível e concludente o objeto do recurso, não permitindo apreender as questões de facto ou de direito que a recorrente pretende suscitar na impugnação que deduz e que o tribunal superior cumpre solucionar. 4. Ao não definirem o objeto do recurso e não serem balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, e, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, ali não se indicando os concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração, as conclusões não são legais, devendo o recurso deve ser rejeitado, não havendo lugar ao prévio convite ao aperfeiçoamento. Sem prescindir, 5. Como se pode ler na douta sentença recorrida, a convicção do Tribunal assentou na apreciação dos documentos juntos aos autos e da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, analisados e valorados de acordo com as regras do ónus da prova e das regras de direito material aplicáveis. E, atentas as alegações de recurso, diremos: 6. Nada justifica, e, sequer, foi, validamente, alegado, a alteração da matéria de facto, 7. E, muito menos, da matéria de direito. 8. Assim, temos, considerando as conclusões de recurso, que delimitam o objecto do mesmo: 9. Nada justifica a reapreciação /alteração, seja da matéria de facto dada como provada, seja do direito aplicável e a matéria de direito. 10. Não existindo, na sentença, uma qualquer confusão, não estando “inquinada” que a resposta à matéria de facto, quer a decisão em termos de direito aplicável. 11. Como confessado pelos Recorrentes ainda, nomeadmente, em sede de alegações e conclusões, para “acederem ao seu prédio artigo matricial ...38, os Recorrentes passam ... na servidão que onera reciprocamente o seu prédio e dos Recorridos. 12. Esta realidade fática, e não, a inventada em sede de recuso, resulta também sobejamente dos depoimentos ouvidos em audiência de julgamento, no dia 14/03/2024. 13. Não é impossível os Recorrentes nunca passar diretamente do leito da servidão e desta para os prédios rústicos adquiridos por eles em 2013. Para tal, basta que acedam ao prédio como acederam, sempre, os seus antepossuidores no direito de propriedade, do prédio adquirido em 2013. 14. Basta que os recorrentes respeitem o direito dos Outros e, designadamente, dos Recorridos e acedam, como sempre, acederam os seus antepossuidores, ao prédio inscrito na matricial urbana sob o n.º ...38 da União de Freguesia ... e ..., pelo acesso pedonal, bem delimitado, a azu escuro no documento 6, junto com a petição inicial. 15. Sempre foi por ali que os antepossuidores do direito de propriedade do prédio acederam ao mesmo. 16. E, deve, só pode, ser por ali, que os Recorrentes devem continuar a aceder - “Acesso Pedonal”, delimitado a azul escuro no documento 6, junto com a petição inicial. 17. Não se verificando uma qualquer nulidade da sentença, 18. Não se verificando abuso de direito, nos termos do disposto no art.334º do CC. 19. O entendimento vertido na Sentença recorrida, também não “enferma” de uma qualquer “inconstitucionalidade”. 20. Sendo que, a Sentença, dout sentença recorrida não violou a apreciação sã da prova e, como, não violou qualquer preceito legal ou constitucional. 21. Nada justificando a sua alteração. 22. Nenhum reparo merecendo, sequer é alegado, a apreciação, douta apreciação da prova produzida, nomeadamente, testemunhal, por parte do Tribunal “a quo”. 23. Nada justificando a alteração da decisão recorrida. 24. A prova produzida foi, validamente, aprecia pelo Tribunal “a quo”. 25. Não se compreendendo sequer a que Artigo legal se referem os Recorrentes ao falar em violação (que não existe) das normas legais “despejadas” nas alegações e conclusões”.
*** Questões objecto do recurso:
- Nulidade da decisão recorrida; - Alteração da decisão proferida sobre a factualidade considerada provada; - Enquadramento jurídico da causa, de acordo com o acervo factual que vier a ser julgado relevante. *** II – FUNDAMENTOS. 2.1. Factos provados. A 1ª instância considerou provados os seguintes factos: 1. Os Autores são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio, que é a sua casa de morada de família: prédio urbano, prédio em propriedade total, sem andares, nem divisões suscetíveis de utilização independente, uma cada de habitação com dois pavimentos, com quintal, e cozinha anexa, tendo no R/Ch duas divisões e no 1.º andar seis divisões, com área inscrita como total do terreno de 173 m2, área de implantação do edifício de 63 m2, área bruta de construção de 115 m2, área bruta dependente de 63 m2 e área bruta privativa de 52 m2, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e ..., do concelho ..., sob o artigo ...56º, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .... Os Réus são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio, que é a sua casa de morada de família: prédio urbano, prédio em propriedade total, sem andares, nem divisões suscetíveis de utilização independente, uma casa de habitação com dois pavimentos, com quintal, inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e ..., do concelho ..., sob o artigo ...92º. 3. Os prédios acima identificado em 1 e 2 são prédios confinantes entre si, situando-se o prédio dos Autores a oeste do prédio dos Réus e, por sua vez, o prédio dos Réus a este do prédio dos Autores. 4. Os Autores instauraram contra os Réus ação que correu termos sob o n.º 30/2022, no Julgado de Paz ... e entre as partes foi celebrado um Acordo, devidamente homologado por sentença, nos seguintes termos: “1-ª Os Demandados reconhecem que a demandante é proprietária do prédio inscrito na matriz predial urbana da UF ... e ... com o art....56 (antigo ...73º) e descrito na CRP ... sob o nº ...30; 2ª – Por sua vez, os demandantes reconhecem que o demandado é proprietário do prédio inscrito na matriz predial urbana da UF ... e ... com o artigo ...92º (antigo ...82) e descrito na CRP ... sob o nº ...18; 3ª – As partes reconhecem que a linha divisória da estrema entre os dois prédios é … constante dos Levantamentos Topográficos anexos à presente transação, com a correção na estrema sul dos prédios cujo limite é o limite sul do degrau do tanque existente, propriedade da demandante; 4ª – Ambas as partes reconhecem também que nesta faixa de terreno existe uma servidão de passagem, a pé e de carro, sendo servientes e dominantes, reciprocamente, os prédios referentes nas cláusulas 1ª e 2ª desta transação; 5ª – Esta servidão abrange a extensão em largura e comprimento da faixa de terreno a que se referem as cláusulas anteriores, nos exatos termos em que é exercida atualmente, e desde o momento em que foi definida por destinação do pai de família; 6ª – Demandantes e demandados comprometem-se a contribuir para o pleno exercício das respetivas servidões; 7ª – Para não obstar ao exercício destas servidões, os demandantes comprometem-se a aparar, e a manter aparadas, as flores/arbustos no pequeno jardim que aí existe e os demandados a retirarem o entulho atualmente que aí se encontra; 8ª – Para este efeito têm os demandados prazo de 10 dias a contar de hoje e os demandantes 10 dias após o término dos 10 dias atrás referidos; 9ª – Os demandantes abstêm-se de fazer qualquer denúncia relativamente a remoção do entulho dos demandados; 10ª – Demandantes e demandados reconhecem que se mantêm os direitos de que são atualmente titulares enquanto proprietários de cada uma das propriedades; 11ª – Ambas as partes prescindem de prazo de recurso; 12ª – Custas em partes iguais.” 5. Os Réus por escritura pública celebrada a 19.07.2013 adquiriram o direito de propriedade sobre dois prédios rústicos que confronta com o quintal do prédio dos Réus, os quais deram origem ao artigo matricial urbano n.º ...38 da União de Freguesia ... e .... 6. Os Réus acedem a pé, de carro e trator ao prédio identificado no ponto 5 através da faixa de terreno descrita nos termos do Acordo referido no ponto 4. 7. Aquando da celebração do acordo referido no ponto 4, os Autores tinham conhecimento do descrito no ponto 6. 8. Os Réus derrubaram parte de um muro que existe no prédio identificado no ponto 2.
*** 2.2. Factos não provados.
Pelo Tribunal a quo foram dados como não provados os seguintes factos: 1. Os Réus para acederem ao prédio descrito no ponto 5 dos factos provados utilizam a área do prédio dos Autores (para além da área destinada ao leito da passagem) que serve de acesso quer ao prédio dos Autores quer ao prédio dos Réus. 2. O muro, do qual os Réus derrubaram uma parte, encontrava-se implementado no término sul do prédio dos Autores e no termino sul do prédio do Réus, o qual servia de suporte de terras do prédio dos Autores. 3. Em consequência de os Réus terem derrubado parte do dito muro, existe o risco de derrocada do restante muro. 4. Os Réus, na parte que derrubaram do dito muro, colocaram um portão.
*** 2.3. Da arguida nulidade da decisão recorrida. Invocam os recorrentes a nulidade da sentença impugnada com fundamento na alteração factual que alegam em sede de recurso, ou seja, caso seja alterada a decisão no que concerne ao acervo factual que é colocado em causa, virá a ocorrer, na tese dos recorrentes, o vício previsto no art. 615º, nº1, alínea c), do C.P.C. [4], por ter sido desrespeitada a norma inserida no art. 609º, nº1, do mesmo Código [5]. Trata-se de um entendimento que não tem sustentáculo no nosso ordenamento jurídico, dado que qualquer invalidade pressupõe a violação de determinada norma no momento em que é praticado o acto que estiver em causa, sendo irrelevantes, para este efeito, as circunstâncias que venham a ocorrer numa fase posterior. De qualquer forma, a ter sido violado o regime consagrado no art. 609º, nº1, do C.P.C. – o que não sucede, no caso vertente – a consequência seria a invalidade da decisão por força da alínea e) do referido art. 615º [6] e não por virtude da alínea c) do mesmo artigo. ** 2.4. impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. Defendem os apelantes que a factualidade vertida no ponto 6 dos factos assentes foi indevidamente considerada provada por parte da 1ª instância, sendo indicados como elementos probatórios que alegadamente permitem infirmar a decisão impugnada as declarações prestadas pelo recorrente CC, as declarações dos recorridos (AA e BB) e os depoimentos das testemunhas EE, FF, GG e HH. No ponto 6, consta que “Os Réus acedem a pé, de carro e trator ao prédio identificado no ponto 5 através da faixa de terreno descrita nos termos do Acordo referido no ponto 4.”. O Tribunal a quo considerou provado tal matéria factual com base na seguinte motivação: “O facto dado como provado no ponto 6, resulta assim descrito porquanto os Réus, na sua contestação (vide artigos 48 a 60 da contestação), admitem que fazem uso da passagem que serve o prédio identificada no ponto 2 também para aceder aos arrumos agrícolas e quintais anexos que existem no prédio adquirido em 2013.”. Tendo por referência o prédio que vem mencionado no ponto 5 dos factos provados, os réus, nos arts. 48º a 60º da contestação, alegaram o seguinte: “48. Esse terreno foi adquirido pelos RR por escritura de 19/07/2013, no Cartório Notarial ..., exarada a fls.51 a 53, do Livro ...60 A (Vide DOC.4). 49. Composto de dois pequenos prédios rústicos que confrontam com o quintal do prédio dos RR a sul, sendo um prédio rustico com a área de 320m2, inscrito na matriz da extinta freguesia ... sob o art....82; 50. E outro prédio rústico com a área de 960m2, inscrito na matriz também da extinta freguesia ..., prédio este, entretanto, que com a União de Freguesia ... e ... deu origem ao artigo matricial ...38 desta União de Freguesias; 51. E que os RR transformaram em prédio urbano em 2015, dando origem ao atual artigo urbano da União de Freguesia ... e ... sob o nº...70 (Vide DOC.5) 52. Prédio onde desde 2013, data da sua aquisição, os RR cultivam produtos agrícolas e procedem aos arrumos de alfaias agrícolas e produtos para a sua vida quotidiana e vivencia, como lenha e outros produtos. 53. Que cultivam, como sempre cultivaram em outros prédios e que sempre guardaram em arrumos agrícolas e armazéns que detiveram anexos à sua habitação e quintal anexo. 54. Sendo sempre pela dita passagem que acederam quer á habitação, quer ao quintal anexo, quer a todos os arrumos agrícolas neste situados. 55. Na data da celebração do acordo no Julgado de Paz era esta a situação existente, como sempre o assim foi. 56. Uma vez no seu prédio urbano identificado na PI e que confronta de norte com a Rua, os RR acedem por direito próprio aos outros prédios que são seus e com ele confinantes. 57. Como sempre acederam, incluindo aos entretanto adquiridos desde 2013. 58. Fazendo também, quando para o efeito disso necessitam, utilização dos acessos a que os prédios adquiridos tinham direito. 59. Quedando-se a passagem de servidão em causa alegada pelos AA junto ao tanque dos mesmos que se encontra na esquina da casa de habitação dos RR e tendo estes que percorrer, pelo que é exclusivamente seu, o caminho para aceder aos prédios comprados em 2013, e não por qualquer terreno dos AA. 60. Fazendo-o também quando para o efeito disso necessitam, utilização dos acessos a que os prédios adquiridos tinham direito”. Salvo melhor opinião, a 1ª instância fez uma leitura errada da factualidade vertida na contestação e dos documentos que as partes apresentaram com os articulados, em particular o levantamento topográfico junto com a petição inicial e o levantamento topográfico apresentado com a contestação, sendo que este último integrava o acordo que as partes celebraram no Julgado de Paz .... Com efeito, os ora apelantes, entre outra matéria, alegaram na contestação (art. 59º) que o caminho de servidão referenciado nos autos termina junto a um tanque que se localiza na esquina da casa de habitação pertencente aos réus, tendo os mesmos, para aceder aos prédios que adquiriram em 2013, de percorrer terreno que lhes pertence em exclusivo. Não é, pois correcto, afirmar-se que a factualidade descrita no ponto 6 resulta da posição que os demandados assumiram nos arts. 48º a 60º do referido articulado, o que significa que tem de apurar-se, atentos os elementos probatórios carreados para os autos, qual o acervo factual que se encontra demonstrado. A resposta a esta questão resulta, inequivocamente, das declarações prestadas pelo recorrente (CC) e pelos recorridos (AA e BB), a cuja audição procedemos, sendo que se extrai das mesmas, em termos absolutamente claros, que o apelante acede ao prédio aludido no ponto 5 dos factos através do imóvel que vem descrito no ponto 2. Dessas mesmas declarações chega-se à conclusão que a faixa de terreno que constitui uma servidão permite aceder ao prédio referenciado no ponto 2 da matéria assente, servidão que termina junto ao tanque aludido no art. 59º da contestação e que, consequentemente, não dá acesso ao imóvel referido no ponto 5. Em face do exposto, determina-se que o ponto 6 dos factos provados passe a apresentar a seguinte redacção: 6 - Os réus acedem a pé, de carro e trator ao prédio identificado no ponto 2 através da faixa de terreno descrita nos termos do acordo referido no ponto 4, sendo que para acederem ao prédio referido em 5 fazem-no exclusivamente através do prédio aludido em 2. Procedendo o recurso na parte que incide sobre a matéria de facto, cumpre efectuar o necessário enquadramento jurídico. ** 2.4. Enquadramento jurídico. Sustentou a 1ª instância, com base no acervo factual vertido na sentença recorrida, que os réus não podiam utilizar a servidão de passagem mencionada nos autos para aceder ao prédio descrito no ponto 5 dos factos provados, sendo invocado, a este propósito, o quadro normativo que, no Código Civil, se ocupa da matéria em apreço, particularmente os artigos 1543º e 1545º desde diploma legal [7]. O raciocínio expendido estaria correcto se o acesso ao imóvel adquirido no ano de 2013 se processasse, de forma directa, a partir da servidão em causa, pois a mesma foi constituída para beneficiar unicamente o prédio a que se faz referência no ponto 2 da factualidade provada. A alteração factual a que se procedeu neste recurso implica que não possa considerar-se que esteja a ser violado qualquer direito (de natureza real) existente na esfera jurídica dos recorridos, dado que a actuação dos apelantes se confina aos imóveis de que são proprietários e situa-se dentro dos limites previstos pelo art. 1305º do Código Civil [8]. Atentos os motivos apontados, deve o recurso proceder, com as consequências legais. *** III – DECISÃO. Pelo exposto, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que os réus são condenados a abster-se de passar no leito da servidão descrita nos autos para acederem directamente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ...38, da União de Freguesias ... e .... Custas pelos apelados. Coimbra, 11 de Março de 2025 (assinado digitalmente) Luís Manuel de Carvalho Ricardo (relator) Francisco Costeira da Rocha (1º adjunto) Luís Miguel Caldas (2º adjunto)
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