Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOSÉ GUERRA | ||
Descritores: | NULIDADE DA SENTENÇA OMISSÃO DE PRONÚNCIA PROVA PROIBIDA CONFISSÃO | ||
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Data do Acordão: | 02/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 344.º E 379.º, N.º 1, ALÍNEA C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
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Sumário: | I – A omissão de pronúncia, cominada com nulidade no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do C.P.P. significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias que a lei impõe que o juiz tome posição expressa, incide sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos e refere-se ao concreto objecto submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegados.
II – Mesmo alegando, ao longo do processo, a nulidade de alguns meios de prova obtidos no decurso da investigação levada a cabo nos autos, se o arguido, em julgamento, confessa, de forma integral e sem reservas, os factos imputados aquela nulidade perdeu relevância face à confissão posterior, já que esta determinou a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e a sua consideração como provados. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra I- Relatório 1. No Processo Nº 692/21.... … foi proferido acórdão … do qual consta: «… B) Condena-se o arguido AA da prática de 1 (um) crime de Pornografia de Menores agravado “prolongado ou de trato sucessivo”, previsto e punível pelos artigos 176º, n.º 1, alínea d) e 177º, n.º 7, do Código Penal … * 2. Inconformado com o decidido veio o arguido AA interpor recurso do acórdão, extraindo da respectiva motivação as conclusões que se transcrevem: «… B - Alegou o recorrente, em sede de contestação, a inconstitucionalidade da prova carreada para os autos e que diz respeito aos metadados … utilizada nos presentes autos, por mor do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, proferido no âmbito do processo n.º 828/2019, com força obrigatória geral. C - O Acórdão recorrido enferma de nulidade, por omissão de pronúncia sobre a suscitada questão da inconstitucionalidade … D - Viola, assim, o Acórdão recorrido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 e o art. 379.º do CPP. …». * 3. A Exma. Procuradora da República na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo … que o recurso do arguido não merece provimento … 4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer … Concluindo que o Acórdão impugnado, deverá ser mantido na íntegra. * … * II - Fundamentação A) Delimitação do objecto do recurso … - A nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre a aplicação ao caso do acórdão do Tribunal Constitucional N.º 268/2022 e suas consequências * B) Da decisão recorrida «… Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos constantes da acusação ou alegados em audiência: … 4. O arguido AA é um consumidor de conteúdos de pornografia infantil, desde data não concretamente determinada. 5. O arguido, pelo menos desde o dia .../.../2021, utilizando o endereço de IP ..., instalado na Rua ..., ..., com serviço de internet fornecido pela A.../... acedeu a sítios na internet de pornografia de menores, recorrendo à rede P2P, funcionado como cliente/utilizador (fazendo downloads) e disponibilizando de imediato ficheiros do mesmo tipo a terceiros (fazendo uploads). … 7. O arguido, pelo menos desde aquela data – 26 de junho de 2021, tem vindo a fazer inúmeros downloads de imagens de cariz sexual de menores de 14 anos, desnudados e em poses de natureza sexual e muitas vezes a serem vítimas de práticas sexuais onde se inclui a penetração levada a cabo por adultos. 8. O arguido, para além de armazenar e guardar no computador por si utilizado e também em vários suportes externos tais tipos de imagens, vídeos e outros documentos todos de teor pornográfico, também partilhou tais tipos de ficheiros informáticos por via da internet, fazendo uploads, através de específicos canais de troca de ficheiros. … 10. Realizada perícia forense, aos equipamentos informáticos detidos pelo arguido, apurou-se que o mesmo detinha armazenados 61 imagens, 1146 vídeos e 109 documentos, todos de teor pornográfico, onde são visualizadas crianças pré-púberes desnudadas, todas menores de 14 anos de idade … 11. Para além daqueles ficheiros, verificou-se que na aplicação Emule, instalada no computador do arguido, foram identificados 797 (setecentos e noventa e sete) ficheiros de conteúdo semelhante àqueles, com nomenclatura de pornografia de menores, em lista de partilha/transferência. 12. O arguido tinha perfeito conhecimento do teor das fotografias, vídeos e outros documentos que obteve em meio informático e que partilhou com terceiras pessoas nesse meio … 13. Mais sabia, o arguido, que toda a atividade relacionada com tais ficheiros de pornografia de menores, designadamente a respetiva utilização, detenção, divulgação, exportação, distribuição ou cedência, se lhe encontrava vedada. 14. Não obstante, e agindo deliberada, voluntária e conscientemente, o arguido, para sua satisfação libidinosa, e bem assim das pessoas com quem partilhava as fotografias, vídeos e demais documentos de teor pornográfico, decidiu, deter, armazenar, divulgar, partilhar e ceder a terceiros os referidos vídeos, fotografias e demais documentos, ignorando e desprezando a liberdade e a autodeterminação sexual das crianças nestes retratadas. 15. Bem sabia, o arguido, que as condutas que assumiu eram proibidas e punidas pela lei penal. … III – Fundamentação de facto Os factos descritos, que coincidem com os da acusação, foram considerados provados com base nas declarações do arguido, que confessou integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação, conjugadas com demais elementos de prova … IV – Fundamentação de direito … Antes de nos analisarmos se se encontram preenchidos os elementos do tipo de crime imputados ao arguido, há que referir que o mesmo, na contestação, defende verificar-se uma nulidade - que toda a investigação teve origem na obtenção e utilização do endereço de IP do arguido que constitui um metadado e que, nos termos em que foi utilizado, não pode constituir método de prova e implica a nulidade de todo o processado daí em diante. … Considerando que o arguido espontaneamente, em audiência de julgamento, confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, encontra-se prejudicado o conhecimento da alegada nulidade …». * C) Apreciação do recurso - Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre a aplicação ao caso do acórdão do Tribunal Constitucional N.º 268/2022 e suas consequências. Pretende o arguido e ora recorrente que tendo o mesmo alegado, em sede de contestação, a inconstitucionalidade da prova carreada para os autos e que diz respeito aos metadados … por força do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 … com força obrigatória geral, o acórdão recorrido não se pronunciou sobre a suscitada questão da inconstitucionalidade, pelo que enferma de nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, já que o conhecimento da inconstitucionalidade suscitada não pode sair prejudicado em face da confissão integral e sem reservas do recorrente em sede de audiência de discussão e julgamento. Terminando, pedindo, que seja declarada a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia … e que o mesmo seja mandado substituir por outro que considere a aplicação ao caso vertente do regime consagrado no citado acórdão do TC 268/2022 e declare a inconstitucionalidade da prova carreada para os autos respeitante à utilização dos metadados, com a consequente absolvição do arguido aqui recorrente. * … na contestação por si apresentada … o arguido … alega – no ponto 2. da mesma - que «Toda a investigação teve origem na obtenção e utilização do endereço de IP do arguido que constitui um metadado e que, nos termos em que foi utilizado, não pode constituir método de prova e implica a nulidade de todo o processado daí em diante» … Sobre a nulidade da prova assim invocada pelo arguido, pronunciou-se nos autos a Digna Magistrada do MºPº … Terminando por promover que fosse indeferido o requerido pelo arguido no que concerne à validade da prova obtida. Deste entendimento do MºPº foi dado conhecimento ao arguido … para além disso, o Mmo. juiz titular do processo, exarou, ainda, que «Oportunamente o tribunal se pronunciará sobre a nulidade suscitada pelo arguido». E, no acórdão que veio a ser proferido nos autos, logo no respectivo Relatório, o Tribunal a quo fez constar, quer a posição do arguido … a respeito de tal questão, quer a posição que sobre a mesma assumiu MºPº, e, já em sede de enquadramento jurídico-penal dos factos que considerou provados, e antes ainda da ponderação deste, exarou no mesmo o seguinte: «… Considerando que o arguido espontaneamente, em audiência de julgamento, confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, encontra-se prejudicado o conhecimento da alegada nulidade». * Preceitua o art. 379º nº1, alínea c) do CPP que é nula a sentença «quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». A densificação normativa que tal preceito legal comporta abrange duas diferentes situações: a omissão de pronúncia e o excesso de pronúncia. In casu, a que vem invocada é a da omissão de pronúncia. Segundo defende Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal, 3ª Edição Revista, pag. 1157, «A nulidade resultante da omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar - artigo 608º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º, do CPP. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado nº2 do artigo 608º do Código de Processo Civil». E, conforme esclarece o mesmo autor, in ob. e pág. citada, «A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrina expendidos pela parte em defesa da sua pretensão». Como vem sendo entendido jurisprudencialmente a omissão de pronúncia cominada com a nulidade elencada no art. 379º, nº1 c) do CPP, significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa e deve incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos e é referida ao concreto objecto que é submetido a cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegados. … o tribunal recorrido tomou posição no acórdão recorrido sobre a nulidade da prova invocada pelo arguido na sua contestação, aduzindo que tendo o mesmo espontaneamente, em audiência de julgamento, confessado integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, se encontrava prejudicado o conhecimento da alegada nulidade. Entende, porém, o recorrente que o conhecimento da questão por si suscitada não poderia resultar prejudicado pela confissão integral e sem reservas por si assumida na audiência de julgamento. Todavia, não só o recorrente não adianta qualquer razão para que não pudesse ter sido considerado prejudicado o conhecimento da questão por si invocada, como também nós não logramos alcançar o interesse que nesse conhecimento possa ter o mesmo, visto que se conformou com a decisão da matéria de facto decidida pelo tribunal recorrido – a qual não veio impugnar – que sustenta a condenação que lhe foi imposta nos autos. E, tal condenação sustenta-se, entre o mais, na confissão integral e sem reservas feita pelo arguido na audiência de julgamento, cuja validade, para esse efeito, também igualmente o recorrente não questiona. Sendo, pois, de difícil alcance a pretensão do recorrente em ser absolvido – como adianta no pedido do recurso por si interposto - ancorado unicamente na aplicação do regime consagrado no Ac. 268/2022, porquanto, a decisão de inconstitucionalidade que deste emana apenas poderia colocar em causa a validade de alguns meios de prova carreados para os autos, mas não já, seguramente, a confissão integral e em reservas produzida na audiência de julgamento pelo mesmo. O que é certo é que o tribunal recorrido, considerando que o conhecimento da questão por si suscitada – relacionada com a validade de alguns meios de prova obtidos no decurso da investigação levada a cabo nos autos durante a fase de inquérito – perdeu relevância em face da confissão integral e sem reservas feita pelo arguido na audiência de julgamento, entendeu, por isso, mostrar-se prejudicado o conhecimento da nulidade por si invocada em sede de contestação com base em tal argumentação. … Daqui se vendo, pois, que não deixou o tribunal recorrido de se pronunciar sobre a questão da nulidade da prova suscitada pelo arguido na sua contestação, considerando prejudicado o conhecimento da mesma em virtude da confissão integral e sem reservas feita pelo próprio na audiência de julgamento, nos termos da qual assumiu a autoria dos factos que lhe vinham imputados. … não vemos porque deveria o tribunal recorrido debruçar-se sobre a validade dos meios de prova trazidos para os autos na fase preliminar do processo (inquérito), quando, na fase de julgamento, tendo-se esta iniciado com as declarações do arguido … este produziu uma confissão integral e sem reservas que implicou a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e à consequente consideração destes como provados, nos termos do art. 344º do CPP. Explicando. Como é consabido, a contestação e o rol de testemunhas constituem os meios processuais através dos quais o arguido exerce, em primeira linha, o seu direito de defesa perante a acusação contra si deduzida ou o despacho de pronúncia, tendo em vista a audiência, sendo, pois, estes os instrumentos adequados, nessa fase do processo, que a lei coloca à disposição do mesmo, para que intervenha e participe na criação da decisão. Depois de conhecer a acusação que contra si foi deduzida nos autos e de ter sido notificado da data para a realização da audiência de julgamento, o arguido … veio indicar provas e alegar que «Toda a investigação teve origem na obtenção e utilização do endereço de IP do arguido que constitui um metadado e que, nos termos em que foi utilizado, não pode constituir método de prova e implica a nulidade de todo o processado daí em diante» … E, se é certo que anteriormente à realização dessa audiência de julgamento o arguido veio na aludida contestação por si apresentada pôr em causa toda a investigação que culminou com a dedução da acusação … com o argumento de que essa investigação teve origem na obtenção e utilização do endereço de IP que constitui um metadado e que, nos termos em que foi utilizado, não pode constituir meio de prova, a verdade é que na audiência de julgamento … o mesmo arguido, tendo prestado declarações, declarou pretender confessar integralmente e sem reservas os factos que lhe vinham imputados na acusação, o que fez, conforme se mostra exarado na respectiva acta, confissão essa que o tribunal colectivo considerou ter sido feita de livre vontade e fora de qualquer coação, implicando a mesma os efeitos previstos no art. 344º, nºs 1, 2 e 4 do CPP, pelo que prescindiu da produção da demais prova indicada. E, foi por causa dessa confissão integral e sem reservas feita pelo arguido na audiência de julgamento que o tribunal a quo ponderou no acórdão recorrido que o conhecimento da nulidade da prova invocada pelo arguido na contestação, pelos fundamentos nela adiantados, se mostrava prejudicado, por entender que a mesma afastava quaisquer questões que se pudessem suscitar a respeito da validade da prova questionada pelo arguido na sua contestação – ainda que, em nosso entender, essa ponderação se impusesse ser feita no acórdão recorrido aquando da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, já que era esse o momento próprio em que a questão da validade da prova suscitada pelo arguido na contestação assumia cabal pertinência. Daqui resultando, pois, que o tribunal recorrido ao considerar prejudicado o conhecimento da nulidade invocada pelo arguido em sede de contestação relacionada com a validade da prova recolhida em sede de inquérito, não deixou de se pronunciar no acórdão recorrido sobre tal questão, pelo que, não padece o mesmo da nulidade que lhe vem assacada em sede recursiva. … III- DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto … 2. Custas relativas ao recurso a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa). * Coimbra, 22 de fevereiro de 2023 … Maria José Guerra – relatora Helena Bolieiro – 1ª adjunta Rosa Pinto – 2ª adjunta
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