Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/13.3TBCVL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA – SEU VALOR PROBATÓRIO.
DECLARAÇÃO DE RECEBIMENTO DE PREÇO.
DECLARAÇÃO DE SE SER DEVEDOR.
MÚTUO
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JL CÍVEL DA COVILHÃ – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTºS 352º, 358º E 371º C. CIVIL
Sumário: I – Uma escritura pública constitui um documento autêntico cujo valor probatório é fixado pelo art. 371º do CC, sendo a sua força probatória plena restrita aos factos que se dizem ter sido percepcionados pela entidade documentadora.
II – A declaração de recebimento de um preço ou de uma quantia só tem a plenitude desse valor probatório se o pagamento ou a entrega que se mencione tiver sido directamente percepcionado pelo notário que presidiu ao acto e atestado no documento.
III – A declaração de que numa determinada data se é devedor de uma concreta quantia, prestada perante o que se diz credor e o notário, ficando a constar em escritura, tem força probatória plena decorrente de se traduzir em declaração confessória, nos termos e para efeitos dos arts. 352º e 358º, nº 2, do CC.
IV – Sendo a confissão for feita à parte contrária (no documento) ou a quem a represente, a força probatória plena só é afastada mediante prova da sua falsidade ou mediante a prova de algum vício da vontade juridicamente relevante.
VI – O mútuo é um contrato real quoad constitutionem, cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato.
VII – Não existindo prova plena demonstração da entrega da quantia por parte dos credores e incumbindo a estes, como mutuantes, o ónus de prova da entrega da quantia, se para além do documento autêntico (escritura pública) não apresentarem outro meio probatório que demonstre a entrega, será de concluir não demonstraram o preenchimento dos requisitos do direito de crédito resultante do mútuo por si invocado e que foi validamente impugnado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Juízo Local Cível da Covilhã – Juiz 1, por apenso aos autos de execução comum n.º ..., em que é exequente “Banco C..., S.A.” e executados J.. e M... vêm apresentar reclamação de créditos:
- Banco I..., S.A, no montante global de €20.372,79, sendo €17.184,57 de capital e €3.188,22 de juros de mora vencidos desde 01.04.2013 até 04.01.2016, proveniente de um empréstimo concedido aos executados, garantido por hipoteca voluntária;
- Associação C..., no montante global de €306.647,00 proveniente da cessão de crédito hipotecário que lhe fora efectuada por M... por escritura pública datada de 09 de Fevereiro de 2007. Tal crédito é proveniente de um contrato de mútuo que M... havia celebrado com os executados em 11 de Julho de 2006, garantido por hipoteca voluntária.
Os executados J... e M... vieram impugnar a existência do crédito reclamado pela Associação C... alegando ser falso que M... tenha emprestado alguma vez aos aqui executados a quantia titulada pelo contrato de mútuo com hipoteca celebrado por escritura pública; os impugnantes não receberam de M... a quantia que a credora reclamante reclama no processo, pelo que nada lhes tendo sido mutuado nada têm a restituir; tal escritura contém declarações falsas por não corresponderem à verdade na parte onde se refere que pela presente escritura os ora executados constituem-se devedores “à segunda outorgante da importância de €195.000,00, que esta lhe emprestou nesta data”.
Do mesmo modo é nulo e de nenhum efeito o conteúdo do instrumento de cessão de créditos hipotecários alegados pela credora reclamante porquanto a quantia cujo reconhecimento a credora reclamante peticiona nos autos foi entregue pela dita M... à C... e não aos aqui impugnantes. E isto porque o falecido marido de M..., L..., era amigo próximo de J... e, sendo vogal na Direcção da C..., promoveu um financiamento àquele assumindo juntamente com M... a posição de fiadores de J...
Sucede que este incumpriu a obrigação de restituir à Caixa o que esta lhe havia entregue e os referidos fiadores pagaram por ele à Caixa a quantia que esta lhe havia mutuado (€ 195.000,00).
Como o J... é filho dos aqui impugnantes, a tal M... convenceu-os a outorgar a escritura pública de mútuo com hipoteca.
Por fim, sustentam que os juros peticionados para além de prescritos são leoninos e usurários pelo que não são devidos.
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A credora reclamante Associação C... respondeu à impugnação sustentando a veracidade das declarações exaradas na escritura pública a qual foi outorgada pelos executados depois de lida e explicado o seu contudo.
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Por despacho proferido no processo foi a credora reclamante Associação C... convidada pelo Tribunal para, em dez dias, suprir as imprecisões detectadas na petição inicial quanto à titularidade co crédito reclamado concretizando em factos a alegação contida no artigo 1º da petição inicial, segunda a qual recebeu de M... o crédito reclamado, cfr. fls. 55.
Anuindo ao convite do Tribunal a credora reclamante esclareceu que por escritura pública de cessão de crédito hipotecário, celebrada em 9 de Fevereiro de 2007, no Cartório Notarial do ..., M... cedeu gratuitamente à reclamante um crédito de cento e noventa e cinco mil euros que proveio de um empréstimo concedido pela cedente aos aqui executados, crédito esse que se encontra garantido por hipoteca que incide sobre os prédios, que identifica, tendo a reclamante aceite tal doação de créditos nos termos e condições exaradas na escritura.
Foi proferido despacho saneador onde foram julgados reconhecidos, nos termos do artigo 791º do C.P.C., os créditos reclamados pelo Banco I... e não impugnados relegando-se para sentença a sua graduação e prosseguiu o processo com audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que:
- Julgou verificados os créditos reclamados pela Associação C... no montante de cento e noventa e cinco mil euros, a título de capital, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano a que acresce uma sobretaxa contratualmente acordada de 2% sobre o capital em dívida, contados a partir de 01/02/2011; e
- Procedeu à graduação dos créditos reconhecidos para serem pagos pelo produto da venda do prédio misto situado em ...:
1- Em primeiro lugar, o crédito exequendo;
2- Em segundo lugar, os créditos reclamados pelo Banco I..., S.A., e
3- Em terceiro lugar, o crédito reclamado pela Associação C... no montante de cento e noventa e cinco mil euros, a título de capital, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano a que acresce uma sobretaxa contratualmente acordada de 2% sobre o capital em dívida, contados a partir de 01/02/2011 até ao limite de três anos e nunca superior ao limite máximo inscrito no registo.

Inconformados com esta decisão dela interpuseram recurso os impugnantes J... e M... concluindo que:
...
Pelo que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que improcedente o pedido de reclamação de créditos deduzido pela credora reclamante.

A apelada contra alegou defendendo a confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Fundamentação
O tribunal em primeira instância julgou como provada a seguinte matéria de facto:
“ 1. Na escritura pública de mútuo com hipoteca outorgada a 11 de Julho de 2006, no Cartório Notarial do ..., em que foram intervenientes os aqui executados, como primeiros outorgantes, e M..., como segunda outorgante, ficou declarado que:
- Os primeiros Outorgantes disseram “que pela presente escritura se constituem devedores à segunda da importância de cento e noventa e cinco mil euros, que esta lhes emprestou nesta data, nos seguintes termos:
- a) O pagamento da referida quantia será efetuado em cento e oitenta prestações mensais de mil e oitenta e três euros e trinta e três cêntimos, cada.
b) O vencimento da primeira prestação tem lugar até ao dia dez do próximo mês de janeiro de dois mil e sete e o pagamento das restantes prestações verificar-se-á em igual dia de cada um dos meses seguintes.
c) O capital emprestado fica a vencer juros à taxa de juro bancária normal e corrente para empréstimos pessoais que se fixa em quatro por cento, sendo os juros vencidos pagos no prazo de cinco meses após o pagamento da última prestação referente ao capital.
(…)
d) O não pagamento pontual da quatro prestações seguidas ou de oito interpoladas, durante o pagamento, importa o vencimento de todas as restantes prestações ainda não pagas que, assim, s tornarão exigíveis e, nesse caso, vencer-se-ão juros de mora à taxa de dois por cento que acrescerá à taxa de juros referida na alínea c) e então poderá a segunda outorgante executar a hipoteca sem necessidade de qualquer aviso prévio. Que em garantia do pagamento (…) os primeiros outorgantes constituem a favor da segunda outorgante, hipoteca sobre os seguintes prédios:
Um) Prédio misto, situado …
Que sobre o prédio incidem duas inscrições hipotecárias, ...
Dois) Urbano …
Que sobre o prédio encontra-se registada uma penhora a favor da...”
2. Por escritura pública de cessão de crédito hipotecário, outorgada a 9 de Fevereiro de 2007, no Cartório Notarial do ..., M... declarou deter sobre “J... e mulher, M… um crédito no montante de noventa e cinco mil euros.
Que este crédito provém de um empréstimo concedido pela primeira outorgante aos referidos J... e mulher, na mesma quantia de cento e noventa e cinco mil euros, ao juro anual de quatro por cento, acrescidos da sobretaxa de dois por cento em caso de mora, e das despesas judiciais e extra judiciais que para efeitos de registo se fixaram em mil euros, conforme escritura lavrada em onze de Julho de dois mil e seis, a folhas noventa e sete do livro numero vinte e sete” do mesmo Cartório “e que se encontra garantida por hipoteca (…)”.
“Que pela presente escritura cede gratuitamente” à aqui credora reclamante “o crédito acima mencionado.
Que a presente doação de créditos abrange a garantia hipotecária supra referida continuando a assegurar o cumprimento desse crédito em benefício da ora donatária.
3. Na escritura referida em 2 a credora reclamante declarou aceitar a “doação de créditos, nos termos e condições exaradas.”
4. A C... celebrou com J..., filho dos executados, pelo menos dois contratos de mútuo com fiança a que foram atribuídos os números ... e onde foram intervenientes os ora executados, J... e M...; L... e mulher, M...
5. Consta do documento denominado Livrança nº ..., de fls. 87 o seguinte: “no seu vencimento, pagarei (emos) por está única via de livrança à C..., ou à sua Ordem, a quantia de onze milhões quinhentos e seis mil escudos”, com data de emissão de 23.06.1995 e de vencimento de 09.03.2000, valor: “transação bancária” e como subscritor J...
6. “No verso do documento aludido em 5. Consta o seguinte: “Dou por aval ao subscritor desta livrança”, seguindo-se a assinatura manuscrita de J...; “Dou por aval ao subscritor desta livrança”, seguindo-se a assinatura manuscrita de M...; Dou por aval ao subscritor desta livrança”, seguindo-se a assinatura manuscrita de L...; Dou por aval ao subscritor desta livrança”, seguindo-se a assinatura manuscrita de M...”
7. Consta do documento denominado Livrança nº ..., de fls. 107 o seguinte: “no seu vencimento, pagarei (emos) por está única via de livrança à C..., ou à sua Ordem, a quantia de nove milhões trezentos e quarenta e nove mi escudos”, com data de emissão de 14.10.1996 e de vencimento de 09.03.2000, valor: “transação bancária” e como subscritor J...
8. “No verso do documento aludido em 7. Consta o seguinte: a assinatura manuscrita de J... seguindo-se “Bom por aval ao subscritor desta livrança”; a assinatura manuscrita de M... seguindo-se “Bom por aval ao subscritor desta livrança”; a assinatura manuscrita de L... seguindo-se “Bom por aval ao subscritor desta livrança”, e a assinatura manuscrita de M... seguindo-se “Bom por aval ao subscritor desta livrança”.
9. A C... recebeu a quantia de cento e oitenta mil euros, creditada a 11/07/2006 através de quatro cheques depositados por M... enquanto fiadora de J...
10. M... pagou a quantia de cento e vinte e nove mil quinhentos e quarenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos para liquidação dos dois empréstimos garantidos pelas livranças mencionadas nos artigos 5º e 7º.

O tribunal em primeira instância julgou como não provado que:
“ a. A escritura de mútuo com hipoteca mencionada no artigo 1º da factualidade provada contém declarações falsas.”
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).
Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do presente recurso versa sobre a natureza do contrato de mútuo em causa nos autos; a violação do princípio do ónus da prova; a valoração das declarações dos impugnantes, vertidas na escritura de mútuo em causa nos autos, e sua natureza de declaração confessória extrajudicial; a violação do princípio da descoberta da verdade material, a apreciação do depoimento do impugnante J... e valoração do documento junto aos autos pela C... em 20.06.2017; impugnação da matéria de facto de forma que o facto não provado na sentença seja julgado como provado.
Ainda que o objecto do recurso possa parecer extenso e diversificado, a verdade é que ele, nos aspectos apontados nas conclusões, se resume a uma questão já discutida na doutrina e sobretudo na jurisprudência, que é a de saber se, e/ou que, valor tem uma confissão de dívida produzida perante o notário e o aí declarado credor numa escritura pública que se diz titular um mútuo, quando para lá dessa declaração de dívida e seu montante (que se diz já recebido) não é atestado pelo notário que a entrega dessa quantia foi realizada nesse acto perante si.
Resumida nesta expressão simples e da qual se desprendem todas as questões suscitadas no recurso, adiantamos igualmente que o objecto deste, no que respeita ao que parece traduzir uma impugnação da matéria de facto, não é de conhecimento admissível.
O nº1 do art. 640 do CPC estabelece que quando haja sido feita essa impugnação o recorrente deve obrigatoriamente e sob pena de rejeição especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham a decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E acrescenta o nº2 do preceito que no caso de terem sido invocados meios probatórios gravados como fundamento do erro na apreciação do recurso, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens gravadas em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
São estes os requisitos de forma que a lei estabelece como imprescindíveis ao conhecimento da impugnação, não deixando dúvidas que a sua inobservância gera a rejeição da solicitação da impugnação.
No caso em decisão, os recorrentes sustentam que o ponto da matéria de facto que foi julgado como não provado na sentença, ou seja, “A escritura de mútuo com hipoteca mencionada no artigo 1º da factualidade provada contém declarações falsas”, deveria ter sido julgado com o provado. Porém, não indicam em concreto de que elementos probatórios extraem a convicção segundo a qual se deva julgar como provado aquele facto.
Não considerando como decisivo nesta problemática o que se apresentava como desde logo mais que evidente, e que é não ser esse facto não provado verdadeiramente um facto mas antes uma conclusão, e por isso, não sujeita a escrutínio de prova, não deixa de se afigurar igualmente carecida de fundamento essa impugnação por não se aludir em que meios probatórios ela se fazia assentar.
Vendo bem as conclusões (e até as alegações de recurso) a impugnação dessa matéria de facto aparece de forma residual quando os recorrentes, a pretexto de o julgador em primeira instância ter realizado “errada valoração e apreciação do depoimento do impugnante J... e da declaração junta aos autos pela caixa de crédito agrícola mútuo em 20.06.2017”, sustentam que este declarou em julgamento que não recebeu qualquer dinheiro mutuado por M... e que o documento junto aos autos pela C... confirma esse não recebimento, razões pelas quais o julgador fez errada valoração desses elementos devendo, em consequência disso, “a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que valore positivamente o depoimento do impugnante e conjugue com o teor da declaração junta aos autos pela C... e que deu origem aos pontos 9 e 10 da matéria de facto dada como provada e dê como provado que os impugnantes não receberam a quantia de 195.000,00€ constante da escritura e que lhes foi alegadamente mutuada.”. E é precisamente na sequência destas afirmações que os apelantes concluem que “em consequência de tudo quanto vêm de se dizer, deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que dê como provada a matéria de facto dada como não provada: “a. A escritura de mútuo com hipoteca mencionada no artigo 1.º da factualidade provada contém declarações falsas.”
Observamos deste modo que, de forma inequívoca, os apelantes não querem que qualquer ponto da matéria de facto julgada como provada na sentença, passe a ser considerada não provada; não reclamam que seja aditado aos pontos julgados como provados ou não provados na sentença qualquer outra matéria de facto; sustentam apenas que, “em consequência” de se conjugar o depoimento de parte do impugnante com o teor de um documento junto aos autos, conjugação da qual resulta imediatamente (em seu entender) a revogação da sentença, venha a ser julgado como provado que a escritura de mútuo contém declarações falsas.
Com esta apresentação argumentativa que é absolutamente fiel ao teor das conclusões/alegações de recurso, concluímos que não existe uma verdadeira impugnação da matéria de facto uma vez que o defendido é que o tribunal, em primeira instância, fez uma errada apreciação da matéria de facto fixada como provada, a qual, mesmo sem ser alterada, no entender dos recorrentes, conduz a que não possa ser reconhecido o crédito que se diz ter contra si a Associação C..., proveniente da cessão de crédito hipotecário que lhe fora efectuada por M...
Aliás, o resumo desta ideia é repetido pelos apelantes ao longo do seu recurso quando afirmam que, perante os factos provados fixados na sentença recorrida, o tribunal apenas poderia ter entendido que a escritura pública não faz prova plena da entrega de qualquer quantia da mutuante aos mutuários e como não se fez prova nos autos dessa entrega, nem cabia como ónus aos apelantes fazerem-na, não se provou qualquer mútuo ou dívida para com M..., e por consequência para com a reclamante, não se podendo reconhecer e graduar esse crédito.
Neste domínio da impugnação da matéria de facto, resumimos pois que, a entender-se que essa pretensão impugnativa existiu ela deve ser liminarmente rejeitada, não só porque o facto que se queria ver fixado como provado é uma mera conclusão que só de outros factos concretos poderá ser retirado O que está implícito nas alegações dos apelantes que apontam para que a falsidade que assinalam se traduz em ser afirmado na escritura pública de mútuo que "Os primeiros Outorgantes disseram “que pela presente escritura se constituem devedores à segunda da importância de cento e noventa e cinco mil euros, que esta lhes emprestou nesta data, (…)” bem como, quer das declarações de parte quer do documento apontado, em si mesmos entendidos na sua própria natureza e valor probatório resulta qualquer elemento que possa fazer incorporar um facto em que se ateste que a escritura de mútuo com hipoteca mencionada no artigo 1.º da factualidade provada contém declarações falsas. É que de um lado, as declarações de parte não formam qualquer confissão sobre factos que lhe são favoráveis (art. 352 do Ccivil) e, por outro, a existência de um documento autêntico (v.g. uma escritura) como os próprios recorrentes não se cansam de repetir, apenas faz prova plena dos factos atestados pelo notário e ocorridos na sua presença, pelo que, as conclusões que se possam ou até devam retirar no cotejo entre duas escrituras, podendo ou não relevar para a extracção de conclusões, não servem seguramente para que essas declarações possam passar a ser consideradas como factos que devam ter assento nos provados e não provados.
Em síntese, porque o sentido da impugnação dos apelantes aponta para que sejam agora em segunda instância extraídas conclusões que, no seu entender, os factos provados autorizam e exigem e porque o que se encontra contido na alínea a) dos factos não provados na sentença, constitui uma conclusão, por isso mesmo irrelevante no contexto probatório, e não um facto (que sendo não provado não se poderia levar em consideração porque de um facto não provado se não pode extrair a conclusão do seu contrário), decide-se rejeitar a impugnação da matéria de facto no sentido de passar a constar como facto provado que “A escritura de mútuo com hipoteca mencionada no artigo 1.º da factualidade provada contém declarações falsas.”.
Passando agora à análise do objecto do recurso, fixando-o como a apreciação do valor da escritura de mútuo junta aos autos para o reconhecimento do crédito da reclamante contra os aqui recorrentes, sublinhamos que é abundante a jurisprudência que se tem pronunciado sobre a questão, sendo que a sinalizada pelos recorrentes reflecte o mesmo entendimento base da que é apontada pelos recorridos O ac. da RP de 27-9-2017 no proc. 1654/09.8TBAMT-E.P1 não aborda em primeira linha a questão de saber se não valendo como documenta que titula e prova a totalmente do mútuo pode valer como confissão extrajudicial relativamente ao mutuário que se diz devedor da quantia mutuada mas antes trata e decide que “A confissão extrajudicial escrita feita perante terceiro – que não interveio na escritura pública de mútuo com hipoteca – não produz, também, face ao preceituado nos arts. 371º, n.º 1 e 358º, n.ºs 2 e 4 do Código Civil, prova plena da entrega da quantia alegadamente mutuada, antes valendo como meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal.”, defendendo-se ao invés no mesmo texto que tal declaração poderá valer já como confissão extrajudicial contra o mutuário em determinados termos, sendo nesses termos que os apelantes buscam refugiam e conforto de razão no acórdão. .
Partindo da ideia, essa sim unânime, segundo a qual uma escritura pública de constitui um documento autêntico cujo valor probatório é fixado pelo art. 371º do CC, preceito do qual resulta a atribuição de força probatória plena a factos relatados pela autoridade ou agente público com funções de atestação, mas apenas na medida em que sejam percepcionados pela entidade documentadora, faz-se extrair desta primeira conclusão normativa a consequência de a declaração de recebimento de um preço ou de uma quantia só tem a plenitude dessa valor probatório se o pagamento ou a entrega que se mencione tiver sido directamente percepcionado pelo notário que presidia ao acto e como tal atestado no documento.
Na aplicação do que deixamos dito à matéria apurada nos autos, verificamos que toda a construção da procedência do recurso se baseia no apontar para que na escritura de mútuo discutida o notário não atestou que a quantia que se dizia emprestada tivesse sido entregue na sua presença deixando apenas em letra que, isso sim e perante si, “os primeiros Outorgantes disseram “que pela presente escritura se constituem devedores à segunda da importância de cento e noventa e cinco mil euros, que esta lhes emprestou nesta data, nos seguintes termos (…). E partindo deste elemento que tomam como indeclinável extraem os recorrentes o entendimento de não ser possível a prova do mútuo uma vez que, se a escritura não pode fazer prova plena da entrega do montante que se diz ter sido emprestado nessa data de celebração e se deste modo o ónus da prova da entrega desse quantitativo cabe aos que se dizem mutuantes, a circunstância de nenhum facto na sentença dar como provado que essa entrega foi feita em concreto fulmina de improcedência o pedido de reconhecimento do crédito.
Esta linearidade de raciocínio dos recorrentes não acompanha a totalidade do raciocínio firmado na sentença recorrida e, dizemos nós, não acompanha igualmente com total exactidão a totalidade da extensão do raciocínio que a jurisprudência mais actual, nomeadamente a do STJ realiza sobre casos em que se suscita esta questão Vd. o ac. STJ de 17-12-2015 no proc. 940/10.9TVPRT.P1.S1, in dgsi.pt.
Em verdade, tem-se entendido de forma pacífica que, a declaração de que numa determinada data se é devedor de uma concreta quantia, prestada perante o que se diz credor e o notário, ficando a constar em escritura, não pode ser desconsiderada ao ponto de o mutuário ser pura e simplesmente dispensado da demonstração da sua inveracidade. A força probatória plena emergente de um documento exarado pelo notário não corresponde apenas aos factos que o mesmo presenciou e que fez constar do acto, podendo envolver, noutro campo, a valoração de declarações a que seja atribuído valor confessório. E isto porque uma declaração feita por alguma das partes à contraparte que envolva o reconhecimento de um facto que lhe seja desfavorável e favoreça a parte contrária é qualificada como declaração confessória, nos termos e para efeitos dos arts. 352º e 358º, nº 2, do CC Vd. acs. STJ de 15-4-15; de 13-4-13; de 9-7-14; de 6-12-11; de 17.12.2015 no proc. 940/10.9TVPRT.P1.S1 e de 31.5.2011 no proc. 4716/10.5TBMTS - A.S1, (todos in dgsi.pt), sendo que neste último caso se tratava de um empréstimo, em que os mutuários se declararam devedores sem que se atestasse a entrega do dinheiro na escritura..
Lembramos de novo que a força probatória dos documentos autênticos pode ser ilidida por nulidade ou por falsidade: por nulidade, quando não forem observados, na feitura do documento, os requisitos exigidos por lei sob pena de nulidade (formalidades, legitimidade do oficial público, competência deste); por falsidade, quando no documento o oficial público tenha declarado como tendo-se produzido, no ato da sua celebração alguma coisa que na realidade se não passou ou quando o próprio documento for suposto ou o for alguma das pessoas nele mencionadas como partes ou testemunhas ou for viciado o seu contexto, data ou assinatura, concluímos facilmente que enquanto não for ilidida a sua força probatória, por falsidade, o documento autêntico é eficaz Adriano Vaz Serra, “Provas (Direito Probatório Material) ”, BMJ nº111, Dezembro 1961, pág. 108 e 116.. . Porém, quando os ora recorrentes e nos autos reclamados/executados alegam que, ao contrário do declarado pela reclamante e feito constar da escritura, não é verdade que lhes tenha sido emprestada qualquer quantia por M..., concretamente os 195.000,00 € mencionados no documento, tal impugnação não reporta a qualquer eventual falsidade do documento, não contendendo com a sua força probatória. E isto porque, como antes dito, a veracidade das declarações efectuadas pelas partes e exaradas na escritura nem sequer se encontra coberta ou abrangida pela força probatória plena do documento – quanto às declarações atribuídas às partes, o documento autêntico apenas prova plenamente que as mesmas foram feitas –, podendo ser impugnadas, nos termos gerais, as declarações documentadas, sem que o impugnante careça de arguir a falsidade do documento Vd, Adriano Vaz Serra, op. cit. págs. 131 e 136. já que a discrepância entre a vontade real e a declarada integrará antes ou um vício na formação da vontade ou uma simulação Para Lebre de Freitas, quando, perante um negócio jurídico, se põe o problema de saber se certa declaração negocial constante do documento que o formaliza – e abrangida pela força probatória – foi realmente feita, a questão é de falsidade; mas quando se formula a questão de saber se essa declaração, que foi de facto emitida, corresponde a uma vontade negocial real do declarante e se, não correspondendo, entre este e o declaratário foi feito um acordo no sentido de a declaração ser feita em prejuízo de terceiro, o problema é de simulação “A Falsidade no Direito Probatório”, Almedina 1984, págs. 40 e 41, nota .
Limitando-se o Ccivil a definir a força probatória dos documentos autênticos, na parte em que têm força de prova plena, sendo omisso quanto ao seu valor na parte restante, a doutrina vem entendendo que, na parte não abrangida pela força probatória plena, a força probatória dos documentos autênticos não poderá ficar aquém da atribuída pelos ns. 1 e 2, do artigo 376º, do CC, aos documentos particulares cuja autoria se mostre reconhecida, ou seja, de prova plena quanto às declarações (de ciência ou de vontade) atribuídas ao seu autor e de prova plena dos factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, sendo a declaração indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão Vd. Lebre de Freitas, op.cit. pág. 38..
Em concluo, na parte em que configurem uma declaração confessória reconhecendo um facto que lhe seja desfavorável e que favorece a parte contrária (artigo 352º CC), esta considerar-se-ia provada nos termos aplicáveis aos documentos autênticos e, se feita à parte contrária ou a quem a represente, teria força probatória plena (nº2 do artigo 358º).
No caso que nos ocupa, julgamos poder registar na escritura pública aludida duas declarações distintas. A primeira na qual os ora recorrentes, ali como primeiros outorgantes, afirmaram para ser feito constar como foi, que “se constituem devedores à segunda outorgante da importância de 195.000,00 €”; a segunda, “que esta lhes emprestou nesta data, nos seguintes termos (…).
À semelhança da situação descrita em muitos acórdãos da jurisprudência dos tribunais da Relação e do Supremo, acontece que a denominação atribuída ao contrato que se diz estar a ser titulado pela escritura pública não traduz qualquer declaração de vontade tendente à celebração do negócio nomeado (v. g. um mútuo) deixando as declarações apostas na escritura, por vontade livre das partes, transparecer que elas estão antes a falar de um contrato anterior, servindo a referência a tal contrato como uma mera indicação da causa do reconhecimento da dívida a que se reportam as cláusulas, “ou seja, na parte em que declaram ter celebrado um contrato de mútuo e na parte em que a aqui executada se confessa devedora da quantia mutuada, encontramo-nos perante meras declarações de ciência” Vd. em caso semelhante ao do presente recurso ac. RC de 20-4-2016 no proc. 343/14.6TBCBR-A.C1 e de 9-1-2018 desta mesma secção no proc. 470/15.6T8CBR.C1, ambos in dgsi.pt , uma das quais os ora recorrentes se declaram devedores de 195.9000,00 € nas condições aí estabelecidas.
Configurada como declaração confessória, na verificação de qual a sua força probatória sindicada nos termos do art. 358 nº2 do Ccivil, uma das respostas mais evidentes é a de lhe atribuir eficácia plena contra o confitente por ter sido feita perante a parte contrária, com a consequência acrescida de, em princípio quem confessou não poder invalidar a confissão, o benificiário dela não carece de fazer outra prova do facto confessado e o juiz fica vinculado à confissão devendo considerar esse facto (a confissão) como verdadeiro É este mesmo o sentido, no seguimento da lição de Vaz Serra Neste sentido, Adriano Vaz Serra, BMJ nº 111, pág. 17, dos dois acórdãos citados na nota anterior.. E na decorrência lógica deste entendimento conjugado com o art. 359 nº1 do Ccivil, tal implicaria que a declaração confessória inserta num documento autêntico só poderia ser impugnada pelo confitente por via da falsidade (questionando-se o facto de a mesma ter sido proferida) ou pela prova da falta ou vícios de vontade (questionando-se a sua veracidade), não se permitindo ao confitente impugnar a confissão mediante a simples alegação de não ser verdadeiro o facto confessado, tendo, pelo contrário, que alegar a falta ou vícios de vontade, nomeadamente qualquer erro essencial.
Não bastaria, para realizar uma impugnação válida alegar a simples desconformidade entre o que é afirmado e a realidade, qual seja, caso o mutuário tenha confessado ser devedor do mutuante (por haver recebido o montante mutuado) não seria suficiente provar que tal entrega de dinheiro não teve lugar, sendo também necessária a prova de que o confitente estava em erro quanto à verificação desse facto ou que emitiu tal declaração sob coacção. Vd. Lebre de Freitas, “A Falsidade no direito probatório”, pág. 40, nota 70.
A contrastar com este entendimento, embora aceitando que as declarações de confissão de dívida constantes de escritura publica se revestem do valor de confissão extrajudicial, tem-se também defendido que “podendo o documento autêntico conter declarações de vontade relativas a factos desfavoráveis ao declarante e que beneficiam ou favorecem a parte contrária e constituindo uma declaração desse tipo uma verdadeira confissão (art. 352.º do Cód. Civil) (…) a força probatória da confissão será plena na parte em que o documento autêntico forma ou constitui prova plena e na parte remanescente (isto é, não abrangida pela força probatória plena emergente do documento) a confissão estará sujeita à livre apreciação do tribunal. Com uma particularidade ou especialidade: se a confissão for feita à parte contrária (no documento) ou a quem a represente, a força probatória que lhe corresponde é plena, ou seja, só é afastada mediante prova da sua falsidade ou mediante a prova de algum vício da vontade juridicamente relevante.” Vd. ac. da RP de 27-9-2017 no proc. 1654/09.8TBAMT-E.P1 citado pelos recorrentes e que se baseia num outro da RP de 26.06.2014, Processo n.º 1040/12.2TBLSD-C.P1, ambos in dgsi.pt
Parecendo que o que é referido agora é a simples repetição do que antes se deixara dito, a particularidade consiste em se concluir aqui que, à luz do exposto, somos conduzidos à afirmação de que “não existindo prova plena para ter por demonstrada a entrega da quantia por parte dos credores (…) e incumbindo, a nosso ver, indiscutivelmente, à luz da regra geral do art. 342º, n.º 1 do Cód. Civil, aos mesmos credores (mutuantes) o ónus de prova de entrega de tal quantia à insolvente, enquanto elemento constitutivo do contrato de mútuo (negócio real quoad constitutionem) e não tendo estes, para efeitos do cumprimento de tal ónus, logrado aportar aos autos, para além do citado documento autêntico (escritura pública de «mútuo com hipoteca», um qualquer outro meio probatório (pessoal ou, sobretudo, documental – v.g. cheque; transferência bancária ou outro de igual natureza ou tipo, pois que não é razoável ou verosímil que uma quantia tão avultada como €175 mil euros possa ter sido paga em numerário), será de concluir que os credores impugnantes, ao contrário do sentenciado, não lograram demonstrar o preenchimento dos requisitos do direito de crédito por si invocado e que foi validamente impugnado.” ac. da RP de 27-9-2017 no proc. 1654/09.8TBAMT-E.P1, citado.
E continua-se dizendo, neste domínio, que não existindo limites ou obstáculo aos possíveis fundamentos de impugnação dos créditos tudo o que é necessário é que o fundamento alegado tenha valor jurídico para viabilizar o efeito pretendido, ou seja, que o crédito reconhecido não existe.
Em rebate à situação dos autos tal imporia que a ausência de prova plena da entrega da quantia em apreço pela credora aos recorrentes permitisse ao que figura como devedor na escritura opor a contraprova a respeito de tal facto, tornando-o duvidoso, decidindo-se a questão contra a parte onerada com a prova.
Em confronto directo e inconciliável está portanto o entendimento segundo o qual é cindível a força probatória plena da escritura para efeitos de certificar a existência do contrato de mútuo na sua totalidade, devendo tomar-se em consideração a declaração de se ser devedor de determinado montante inscrita na escritura como confissão extrajudicial autónoma, contra aquele outro entendimento que negando a força probatória plena ao documentos (escritura) que titula um contrato de mútuo, por não se atestar nele a entrega da quantia mutuada nesse acto e perante o notário, recusa por consequência o valor de confissão extrajudicial (e prova plena) à declaração de dívida realizada pelos apontados credores.
No essencial que separa estas soluções está o decidir-se quais os reflexos da confissão pelo credor reclamante de uma realidade factual diversa da que era aparentemente documentada pela escritura pública de mútuo ou numa expressão juridicamente mais evoluída, que possibilidade e valor tem a eventual convolação de uma escritura constitutiva de mútuo para uma mera declaração negocial recognitiva de pretensos débitos.
Aqui chegados julgamos ser avisado recordar um par de ideias imperativas básicas tais como a de que na petição inicial deve o demandante expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir [art. 552 nº1 al.d) do CPC] conjugada com aquela outra que determina que àquele que invocar um direito cabe a prova dos factos constitutivos do direito alegado art. 342 nº1 do Ccivil).
Uma acção, qualquer que ela seja, está pois enformada por uma causa de pedir que, traduzida em factos concretos fornece o fundamento à pretensão deduzida, de forma tal que não basta invocar uma qualidade de devedor sem dizer de onde surge a obrigação para que se possa condenar este no cumprimento da obrigação, da mesma forma que se não se provar a obrigação concreta indicada como fonte da obrigação ainda que uma outra possa ser aludida em julgamento não poderá obter-se a condenação uma vez que tem de existir identidade entre a obrigação alegada e a provada (não no nome que se atribua à obrigação mas sim nos factos de onde se alega que ele emerge).
A importância do que afirmamos reflecte-se exactamente no que deixamos dito sobre a controvérsia de entendimentos pois eles radicam no tipo de obrigação que é alegada.
Vejamos então.
No ac. do STJ de 17-12-2015 já referido, a situação decorre no âmbito de um contrato de cessão de quotas em que não foi posta em causa a existência do negócio mas somente o pagamento do preço da cessão.
Por seu turno, no ac. do STJ de 12-1-2012 No proc. 6933/04.8YYLSB-C.L1.S1, in dgsi.pt., também indicado anteriormente, a situação descrita envolve um mútuo com hipoteca que tendo sido contestado pelo aí devedor vem obter por parte do credor enquanto demandante a aceitação de que o negócio celebrado não foi o mútuo que se diz celebrado na escritura mas sim um conjunto de mútuos parcelares anteriores e diferentes que no seu montante total globalizavam a quantia do pedido;
Também o ac. do STJ de 13- 9 -2012 No proc. 2816/08.OTVLSB.L1. S1 e em situação semelhante à descrita no ac. STJ de 9-7-2014 no proc. 28252/10.0T2SNT.L1.S1 aludia a um contrato de compra e venda em que não estando posta em causa a existência e celebração do negócio se discutia apenas o pagamento do preço quando na escritura se dizia já ter sido recebido sem que a entrega desse valor tivesse sido feita perante o notário.
Em todos estes casos observamos que o meio probatório que constitui o documento/escritura pública certifica a alegação do demandante da existência do concreto negócio jurídico configurado na petição sendo apenas a parte referente ao cumprimento da obrigação de prestar por parte do devedor /demandado que se encontra em discussão.
Porém, no caso agora em estudo, o que se encontra desde logo colocado em questão pela contestação dos aqui recorrentes, é que tenha sido celebrado o negócio jurídico apresentado como fundador do crédito. Ou seja, não aceitam que entre os reclamantes e a reclamada M... tenha sido celebrado qualquer contrato do qual decorresse a obrigação daqueles pagarem a esta o que quer que fosse.
Contra isto poderá obtemperar-se que a celebração de uma escritura pública epigrafada como “mutuo com hipoteca” constitui prova plena da existência do negócio mas, como antes deixamos referido, a denominação atribuída ao contrato que se diz estar a ser titulado pela escritura pública não traduz qualquer declaração de vontade tendente à celebração do negócio nomeado e por essa razão, é nas declarações de vontade que o documento reproduz e que os outorgantes confirmam presencialmente que se pode ter por esclarecida a existência desse negócio e a prova que da sua celebração a escritura faz.
Ora, no caso em apreciação, o que se pode ter por seguro é que no notário compareceram os ora recorrentes como primeiros outorgantes e M... como segunda outorgante e fizeram consignar que os primeiros se consideravam como constituídos devedores da segunda pela quantia de 195.000,00 quantia que esta lhes teria emprestado nessa data.
A figura contratual do mútuo encontra-se prevista e regulamentada no art. 1142 e ss. do C. Civil apresentando-se como um contrato típico e nominado, dispondo-se nesse normativo que “mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
Não se suscitando qualquer dúvida sobre que os factos invocados pela recorrida, a título de causa petendi, (na reclamação do crédito) são subsumíveis ao tipo contratual do mútuo (artº 1142 do Código Civil) por afirmar que foi entregue aos recorrentes uma certa quantidade dinheiro, ficando estes últimos adstritos ao dever de as restituir.
Este negócio jurídico (o mútuo) tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem, portanto, como um contrato cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato Vd. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 762. Porém, Trata-se de uma concepção em clara regressão o que tem sido estudado por António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 527 e Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Conteúdo. Contratos de Troca, Almeida Coimbra, pág. 156, Vaz Serra, RLJ, Ano 93, pág. 65 e José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 497 e 498. A figura dos contratos reais é um efeito da inércia, um resquício da tradição romanista que parece não desempenhar hoje, designadamente quanto ao mútuo, qualquer função útil, i.e., não corresponde a qualquer interesse relevante, específico daquele tipo negocial. Neste sentido, Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, 1970, pág. 11 a 13. Note-se, por último, que nada impede que o mútuo seja efectuado em moeda escritural, e não de moeda legal – notas, moedas. É o que, em regra, ocorre, por exemplo, com o mútuo (mercantil) bancário em que, como é da experiência comum, o banco só raramente entrega dinheiro ao cliente – entrega material – limitando-se a creditar-lhe a soma mutuada na respectiva conta bancária – entrega electrónica ou simbólica.
. E assente pois neste caso na natureza real quoad constitutionem do contrato de mútuo, deve por isso exigir-se, para a sua verificação, a traditio – e a acceptio – da coisa mutuada.
Relativamente à sua formação, o contrato de mútuo está sujeito às regras gerais (artº 224 e ss do Código Civil) mas como o contrato é real quoad constitutionem, é necessária a tradição da quantia mutuada para o mutuário para que se considere efectivamente constituído: ainda que as partes tenham acordado sobre todas as condições do contrato, antes da traditio não há mútuo.
Mas também não há mútuo – apesar da tradição de uma coisa fungível – na ausência da prova da emissão das declarações de vontade integrantes deste tipo contratual: a tradição é um acto jurídico bilateral, dado que exige a intervenção de ambas as partes na relação contratual – o autor e o receptor das coisas mutuadas – e, por isso, participa da estrutura negocial da facti species que integra, devendo ser cumprida não apenas com a consciência e a vontade de praticar o acto, mas ainda com a intenção específica de dar e receber a título de mútuo as coisas que constituem o seu objecto.
O Código Civil ao fixar o princípio geral da matéria do ónus da prova apelou, nitidamente, à natureza funcional dos factos perante o direito do autor.
Assim, ao autor cabe a prova, não de todos os factos que interessem à existência actual do direito alegado – mas somente dos factos constitutivos dele; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, incumbe à parte contrária, aquele contra quem a invocação do direito é feita (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).
“Numa questão de facto de que dependa o julgamento, a lei dá sempre a uma das afirmações alternativas que a compõem o carácter privilegiado de ser tomada como base da decisão em dois casos: se for provada em si ou então em caso de dúvida insanável ou irredutível; a afirmação contrária só será tomada em conta se for provada. Assim, numa acção de condenação – como é justamente o caso do recurso – na questão de facto emprestei – não emprestou, a primeira afirmação só é tomada em conta se for provada; a segunda é tomada em conta se for provada e ainda no caso de dúvida irredutível.
De maneira que se o autor se propõe fazer declarar e valer um direito à restituição de uma quantia pecuniária resultante de um contrato de mútuo, (…) impõe-se-lhe o ónus de provar os elementos estruturais – constitutivos – do seu direito à prestação – a celebração do contrato entre as partes e a inclusão da prestação exigida entre os efeitos do contrato a cargo do devedor; o segundo está apenas adstrito a um simples ónus da contraprova, de tornar incerto o facto alegado pelo autor.
Em tal caso, o demandado não tem de criar no espírito do juiz uma convicção positiva, de persuadir o juiz de que o facto em causa – o contrato de mútuo – não é verdadeiro: é suficiente deixar no ânimo do juiz um estado de dúvida ou incerteza, uma convicção negativa sobre a realidade daquele facto (artº 346 do Código Civil). E isto é assim, dado que a dúvida sobre a existência do mútuo – facto constitutivo favorável ao autor – resolve-se contra ele visto que é a parte onerada com a prova.” Vd. ac. RC de 24-9-2013 no proc. 1463/07.9TBCNT.C1 e também o ac. RC de 19-6-2013 no proc. 1778/11.1TBVNO.C1, ambos em dgsi.pt , onde se decide não só que é ao autor a quem compete a prova não só da entrega do dinheiro ou da coisa, como também da respectiva obrigação de restituição (art.º 342.º, n.º 1, do CC), como também que a prova da entrega do dinheiro é insuficiente para fazer proceder a acção se o demandante não demonstrar a causa da entrega.

Ora, no caso agora em decisão, resultando claro não ter ficado demonstrado que M... entregou aos recorrentes a quantia de 195.000,00 €, não pode, realmente, assentar-se em que entre o autor e a recorrente foi concluído um contrato de mútuo e, portanto, a eventual vinculação da apelante à obrigação de restituir as quantias que recebeu do autor não pode fundamentar-se na celebração daquele contrato de troca. E não pode afirmar-se a existência desse contrato pela razão evidente de aquele a quem competia, não ter feito prova da existência desse negócio jurídico não valendo a escritura pública junta aos autos como prova desse negócio, designadamente por não se fazer a demonstração da entrega do dinheiro que se diz mutuado Neste mesmo sentido o ac. RP de 27-9-2017 no proc. 1654/09.8TBAMT-E.P1, in dgsi.pt, onde também ocorre a circunstância de previa à questão de se saber que valor tem a confissão da divida na escritura se tem por relevante a ausência de prova do contrato de mutuo que se dizia titulado por aquela escritura..
Repristinando aqui o que antes enunciámos, perante a conclusão de que a escritura em questão pública não faz prova do contrato de mútuo, julgamos não poder ser substituída essa falta com o argumento segundo o qual, o valor confessório de os ora recorrentes serem devedores da M... declarado na escritura importaria o reconhecimento de serem mutuários e por esta via o reconhecimento do próprio contrato de mútuo. É que, em primeiro lugar, “no caso do contrato de mútuo a formalidade ad substantiam fixada no art. 1143 do Ccivil não pode ser substituída pelo mero reconhecimento confessório, nos termos do art. 364” do do mesmo diploma Ac. STJ 12-1-2012 no proc. 6933/04.8YYLSB-C.L1.S1, já citado. e, em segundo lugar, decorrendo da ausência de prova da entrega que o facto constitutivo do crédito invocado não pode ser entendido como o empréstimo aparentemente documentado pela escritura pública, a confissão da dívida fica suspensa de um vazio que num pode completar-se com a ficção de qualquer outra causa debendi e, menos ainda, daquela outra que tendo sido alegada o demandante não logrou provar.
Num complemento breve de análise, sabemos que por detrás de um negócio de mútuo que se diga titulado numa escritura pública pode existir outro diferente e que tenha constituído e dado fundamento ao reconhecimento por parte dos recorrentes de uma dívida para com M... Como a seu tempo indicámos, é essa a situação que se descreve no ac. do STJ de 12-1-2012, em que a declaração de dívida dos declarados mutuários na escritura não diz respeito a qualquer contrato de mútuo que esteja a ser titulado por esse documento, e que não existiu, mas sim a montantes recebidos muito antes e por diversas vezes pelos aí declarados devedores.,podendo até ocorrer a possibilidade prognóstica de, apesar de poderem ter chamado ao negócio um mútuo ter existido, ou não, um contrato bilateral de reconhecimento de determinada quantia que seria devida – acordando-se o valor em dívida e a forma de pagamento por parte do devedor.
Não obstante, esta eventual possibilidade de com uma escritura se pretender obter um reconhecimento de dívida e uma garantia para o seu pagamento constituiria uma outra causa de pedir que não foi alegada nem sequer suscitada nos autos onde apenas se discute a existência de um contrato de empréstimo celebrado na própria data da escritura.
Parece-nos pois que a ausência de prova da entrega da quantia objecto imediato do empréstimo, prova essa que cabia à reclamante nos termos sobreditos, determina que não se possa ter por provada a existência do contrato em que se baseava o pedido de reconhecimento do crédito e, por legal consequência, que não se possa ter também por provada a existência desse mesmo crédito.
A declaração de que se é devedor aposta numa escritura pública, valendo como confissão extrajudicial deve reportar-se sempre ao sinalagma passivo (como obrigação de dívida) de um determinado negócio jurídico que quem demanda deve alegar nos seus factos constitutivos e provar. E entender-se o contrário, o que seja, que não se provando o empréstimo a declaração de dívida bastaria (à mesma) para reconhecer o crédito do demandante contra o demandado, significaria aceitar que numa acção esse mesmo demandante poderia apenas alegar a existência de uma dívida do demandado sem alegar os factos de onde ela resultava, sem indicar e provar os factos constitutivos do seu direito [art. 552 nº1 al.d) do CPCivil].
Acresce que, mesmo que em recurso se tivesse suscitado (e não se suscitou) a questão da “convolação” do negócio alegado na petição inicial para outro que não tivesse sido configurado na causa de pedir, sabemos que sendo no nosso sistema processual os recursos meios para obter o reexame das questões já debatidas nos tribunais em instância anterior e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, a menos que se esteja perante questões de conhecimento oficioso (e a conversão do negócio não é uma questão “oficiosa”) Vd. ac.STJ de 13-02-2007 no proc. 07A079, in dgsi.pt., basta esta ideia para que se conclua que nunca poderia nesta sede abordar-se a conversão do negócio não provado. Aliás, sempre faltariam os factos para permitir a abordagem a essa conversão (de mútuo para reconhecimento de dívida), lembrando-se que, mesmo na perspectiva da eventual intercedência de factos complementares ou concretizadores, seria sempre necessário que os factos essenciais de que eles sejam complemento ou concretização tivessem ficado provados Vd. ac. RC de 7-11-2017 de que fomos relator, no proc. 1335/13.8TBCBR.C1, in dgsi.pt. , pelo que a não prova da existência do contrato de mútuo é decisiva para que se tenha por improcedente o reconhecimento do crédito.
Em acréscimo e apenas por questões de rigor, conclui-se ainda que, face ao que se deixa dito e decidido, é irrelevante o argumento dos recorrentes no sentido de ter sido violado o princípio da descoberta da verdade material que tinha na base o ter sido indeferido o requerimento em que na audiência de julgamento haviam solicitado “a notificação da C... para juntar aos autos cópia dos cheques que a D. M... lhes terá entregado na sobredita data (11-06-2006) e ainda a notificação das indicadas pessoas ao que percebemos funcionário ou colaboradores da referida caixa, para virem a tribunal dizer a que se destinou e a quem o referido pagamento.”.
Em primeiro lugar, o despacho que indeferiu esse requerimento foi proferido em 7-11-2017, na audiência de julgamento, pelo que, devendo o recurso dessa decisão ser interposto no prazo de 15 dias [(art. 638 nº1 e 644 nº2 al,d) do CPCivil], ou seja, até 22 de Novembro de 2017 (art. 138 nº1 e 2 co CPCivil) em 18 de Janeiro de 2018quando os ora recorrentes vieram interpor recurso da sentença final, já tinha expirado o prazo para se insurgirem contra o despacho que lhes indeferiu meio de prova.
Em segundo lugar, a questão da eventual violação do princípio da descoberta da verdade material irreleva porque ela tinha por pressuposto que se se considerasse provada a existência do contrato de mútuo com hipoteca alegado pelos reclamantes e isso não ficou demonstrado.
De igual, estão prejudicados os argumentos recursivos “DA ERRADA INTERPRETAÇÃO QUANTO À NATUREZA CONFESSÓRIA DA DECLARAÇÃO DOS MUTUANTES VERTIDA NA ESCRITURA DE MÚTUO” e os “DA ERRADA VALORAÇÃO E APRECIAÇÃO DO DEPOIMENTO DO IMPUGNANTE J... E DA DECLARAÇÃO JUNTA AOS AUTOS PELA C... EM 20.06.2017” porque os mesmos tinham também como pressuposto o entendimento que tivesse por provado o contrato de mútuo com hipoteca, com sustento no reconhecimento da declaração de reconhecimento dos reclamantes como devedores, que como se conclui não se firmou no presente acórdão.
Síntese conclusiva
- uma escritura pública constitui um documento autêntico cujo valor probatório é fixado pelo art. 371º do CC, sendo a sua força probatória plena restrita aos factos que se dizem ter sido percepcionados pela entidade documentadora;
- a declaração de recebimento de um preço ou de uma quantia só tem a plenitude desse valor probatório se o pagamento ou a entrega que se mencione tiver sido directamente percepcionado pelo notário que presidiu ao acto e atestado no documento.
- a declaração de que numa determinada data se é devedor de uma concreta quantia, prestada perante o que se diz credor e o notário, ficando a constar em escritura, tem força probatória plena decorrente de se traduzir em declaração confessória, nos termos e para efeitos dos arts. 352º e 358º, nº 2, do CC.
- sendo a confissão for feita à parte contrária (no documento) ou a quem a represente, a força probatória plena só é afastada mediante prova da sua falsidade ou mediante a prova de algum vício da vontade juridicamente relevante;
- o mútuo é um contrato real quoad constitutionem, cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato.
- não existindo prova plena demonstração da entrega da quantia por parte dos credores e incumbindo a estes, como mutuantes, o ónus de prova da entrega da quantia, se para além do documento autêntico (escritura pública) não apresentarem outro meio probatório que demonstre a entrega, será de concluir não demonstraram o preenchimento dos requisitos do direito de crédito resultante do mútuo por si invocado e que foi validamente impugnado.

Nesta conformidade e em resumo, procedem nos termos sobreditos as conclusões de recurso dos apelantes, devendo ser revogada a sentença recorrida na parte em que se reconheceu e graduou o crédito da reclamante Associação C..., razão pela qual se exclui esse crédito da graduação realizada.
Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a Apelação e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que reconheceu o crédito reclamada referente à Associação C... e, em consequência, não graduando este crédito decide manter-se no mais a sentença recorrida e para serem pagos pelo produto da venda do prédio misto situado ..., gradua-se:
9. Em primeiro lugar, o crédito exequendo;
2- Em segundo lugar, os créditos reclamados pelo Banco I..., S.A..
Custas pela Apelada.
Coimbra, 24 de Abril de 2018
Manuel Capelo
Falcão de Magalhães
Pires Robalo