Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
806/18.4T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DOAÇÃO
ANULABILIDADE
CONVALIDAÇÃO
PARTILHA
DIREITO DE ENCABEÇAMENTO
CÔNJUGE SOBREVIVO
Data do Acordão: 10/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.940, 1476, 1484, 1488, 1682-A, 1687, 1797, 2103-A CC
Sumário: 1.O art.º 1687º do CC fixa os regimes aplicáveis aos actos praticados por qualquer dos cônjuges, sem a legitimidade necessária, por falta de consentimento do outro (regra do consentimento necessário de ambos os cônjuges); os seus n.ºs 1 e 2 definem os traços fundamentais da sanção - anulabilidade - prescrita para a falta de legitimidade nos actos praticados por qualquer dos cônjuges, que força o outro cônjuge a vir a juízo requerer a anulação do acto, sob pena de este se vir a tornar definitivamente válido, sendo que o prazo para arguição do vício é de seis meses a contar da data em que o requerente teve conhecimento do acto, contanto se não exceda o prazo de três anos subsequentes à realização do acto.

2. O n.º 1 do art.º 2103º-A do CC prevê o direito de encabeçamento na habitação da casa de morada de família e no uso do recheio da casa - as duas atribuições patrimoniais que o cônjuge sobrevivo, ao efectuar-se a partilha (pressupondo, por isso, que há uma partilha a fazer), tem o direito de avocar a si incidem sobre o direito de habitação relativamente à casa de morada da família (direito cujo perfil se encontra traçado no n.º 2 do art.º 1484º do CC) e o direito de uso sobre o recheio dessa casa.

3. Se o apartamento onde a Ré e o falecido marido instalaram a sua casa de morada de família foi doado à A., na pendência do vínculo matrimonial, e aquela não dera o seu consentimento à realização do negócio, volvidos mais de 12 anos, sem que o acto tenha sido impugnado, o vício (anulabilidade) derivado da falta de consentimento do cônjuge ficou sanado e o contrato plenamente convalidado (cf. art.ºs 1682º-A, n.º 2 e 1687º, n.ºs 1 e 2 do CC).

4. Como o referido imóvel não era susceptível de partilha, nunca poderia a Ré usufruir do benefício previsto no art.º 2103º-A do CC, que lhe atribuiria preferencialmente um direito de habitação da casa de morada da família.

5. A intransmissibilidade do direito, prevista no art.º 1488º do CC, não respeita à hipótese em análise, porquanto o usuário (ou o morador) não cedeu o seu direito.

Decisão Texto Integral:








            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

I. Em 01.3.2018, J (…)  e mulher F (…) intentaram a presente acção declarativa comum contra R (…), pedindo que esta seja condenada a reconhecer que o apartamento por ela habitado é propriedade dos AA. [a)], a restituir o mesmo aos AA. livre e devoluto [b)] e a pagar-lhes a título de indemnização a quantia mensal de € 300 desde 06.6.2016 até à sua entrega efectiva (estando já liquidada a importância de € 6 000) [c)].

Alegaram, em síntese, que o dito apartamento (melhor identificado no art.º 1º da petição inicial/p. i.) adveio à sua propriedade por via de doação efectuada pelo falecido pai da A., M (…), então casado com a Ré, e que esta recusa entregar o imóvel, com o valor locativo de € 300 mensais, inacção que lhes está a causar o prejuízo correspondente.

A Ré contestou, invocando que a escritura em causa é nula, por falta de consentimento do então cônjuge do doador, a Ré, já que se tratava da casa de morada de família, além de que, enquanto cônjuge sobrevivo, tem o direito de habitação do imóvel e de uso do recheio, por via do disposto no art.º 2103-A do Código Civil (CC). Concluiu pela sua absolvição do pedido e, reconvindo, pediu que se declare que o apartamento em causa, pelo menos desde 2003, sempre foi a casa de morada de família do doador e da Ré, sua viúva; que o direito de propriedade de tal fracção pertence à herança ilíquida e indivisa deixada por óbito do marido da Ré, M (…) e, por último, que seja ordenado o cancelamento do correspondente registo a favor da A..[1]

Os AA. replicaram, concluindo pela improcedência da reconvenção e como na p. i..[2]

Fixada a competência, foi proferido despacho saneador que firmou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

 Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 26.02.2019, julgou a acção provada e procedente, pelo que, reconhecendo o direito de propriedade dos autores sobre o prédio integrado pela fracção autónoma designada pela letra “A”, destinada a habitação, inscrito na matriz predial da Freguesia de (...) sob o art.º 10182 e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 2027, condenou a Ré a restituir-lhes o mesmo imóvel, livre e devoluto e no pagamento, aos autores, do valor de € 300 mensais, desde Junho de 2016 e até à devolução do apartamento, e julgou a reconvenção parcialmente provada e, nessa medida, procedente, declarando que o dito prédio foi a casa de morada de família composta pela Ré e pelo seu falecido marido e pai da autora, e absolveu os autores de tudo o mais.
Inconformada, a Ré apelou formulando as seguintes conclusões:

1ª - A Recorrente aceita a parte da decisão do tribunal a quo que dá como provado que o imóvel reivindicado pelos Recorridos foi a casa de morada de família do casal desde o ano de 2003 e que a viúva nele continuou a residir após o falecimento do marido, até aos dias de hoje.

2ª - Tendo-se considerado provado que a fracção reivindicada é a casa de morada de família do casal desde o ano de 2003 e que a viúva nela continuou a residir após o falecimento do marido, até aos dias de hoje, e sendo certo que o decisor está vinculado ao cumprimento da Lei e do Direito, tinha que ter extraído outras consequências do facto de se tratar de casa de morada de família.

3ª - E não podia, por isso, negar à viúva, Recorrente, o direito de habitação sobre tal imóvel, pelo menos até à partilha, pois diz a lei que “O cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respectivo recheio” (art.º 2103º-A do CC).

4ª - O art.º 1484º do CC dá-nos a noção de direito de habitação e a Jurisprudência diz que “O direito de habitação da casa de morada de família previsto no art.º 2103º-A do CC, adquirido por um herdeiro a quem não tocou a propriedade da casa, constitui-se ex novo sobre coisa alheia, como emerge da redacção do n.º 3 do mesmo art.º 2103º-A.

5ª - O qual se não extingue com a morte do autor da herança, apenas se extinguindo o seu direito de usufruto e não o direito de outrem, nomeadamente o de uso e habitação do cônjuge sobrevivo, que é intransmissível (cf. art.º 1488º CC) e não pode ser onerado com qualquer garantia real (penhor, hipoteca, etc.).

6ª - “Trata-se, no fundo, de um puro corolário do carácter estritamente pessoal do direito, muito próximo, na sua finalidade, da prestação alimentar (cf. art.º 2008º, 1 e 2). Envolvendo o uso e habitação a ideia de utilização directa da coisa, ou do consumo directo dos frutos, a sua transmissão pode dizer-se que colidia com a natureza do direito.”

7ª - Ou seja, extinguiu-se o direito de usufruto de que era titular o autor da herança, mas permanece o direito do cônjuge sobrevivo, sendo que a propriedade do imóvel é inoponível ao direito de uso e de habitação, porque este persegue aquele e a ele fica agarrado, a onerá-lo, até ser extinto.

8ª - O direito de uso e de habitação “consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família” - art.º 1484º do CC - e extingue-se pelas mesmas causas que põem termo ao usufruto (cf. art.º 1485º CC), as previstas no art.º 1476º do CC, contudo, no caso, a titular do direito, o cônjuge sobrevivo e Recorrente, encontra-se ainda viva, felizmente.

9ª - É viúva, quase com 70 anos de idade e não tem qualquer outro sítio para onde ir viver, além da redita casa de morada de família, sendo certo que a política legislativa actual vai no sentido de prolongar, até vitaliciamente, o direito de uso de habitação a favor do cônjuge sobrevivo com mais de 65, como é o caso.

10ª - Quanto à fixação de custas, discorda por os 90 % serem desproporcionalmente onerosos para a Recorrente, a quem foi dada razão no pedido reconvencional, contestado pelos AA., de que o apartamento, desde 2003, é efectivamente a casa de morada de família da Recorrente, sendo que a Recorrente também não pedia a propriedade do imóvel para si, mas sim que fosse integrada na Herança, pelo que a Recorrida teria sempre nela o direito ao seu quinhão.

11ª - A responsabilidade pelas custas deve ser substancialmente alterada, no máximo de 60 % para a Recorrente e 40 % para os Recorridos.

12ª - Normas violadas: nomeadamente, art.ºs 1484º, 1488º, 1707º-A/10, 2103º-A e 2074º/1, do CC.

            Remata dizendo que deve ser reconhecido o direito (vitalício) de habitação do cônjuge sobrevivo, a Recorrente, sobre o imóvel, casa de morada de família como tal declarada na decisão do tribunal a quo, com as consequências daí decorrentes, e fixada a responsabilidade e proporção do montante de custas, para a decisão recorrida, no máximo de 60 % para a Recorrente e 40 % para os Recorridos.

Não houve resposta.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa conhecer e/ou reapreciar: a) se existe o referido direito de habitação da casa de morada da família; b) responsabilidade tributária na decisão recorrida.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:[3]

a) Os AA. são donos de um prédio urbano, composto por fracção autónoma designada pela letra “A”, destinada a habitação, de tipologia T2, sito na (...) , inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º 10182, descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de (...) sob o n.º 2027.

b) A 24.02.2006, no Cartório Notarial de (...) , a cargo da Notária Dr.ª (…), foi outorgada escritura cujo teor é o que consta das folhas 19 a 23 da versão impressa do processo, sendo o prédio anteriormente referido o aí identificado sob o n.º 2.

c) O doador, M (…), pai da A., era, à data, casado com a Ré.

d) Aquando da escritura, declarou o falecido doador que este imóvel não constituía casa morada de família.

e) M (…) habitava no referido imóvel, do qual era usufrutuário, com a sua mulher, a Ré.

f) M (…) faleceu a 01.11.2014, no Hospital de (...) .

g) A Ré, na qualidade de herdeira, a 17.11.2016, instaurou inventário, no Cartório Notarial de (...) , da Dr.ª (…), a que foi atribuído o n.º (...) .

h) A Ré, na qualidade de cabeça-de-casal, apresentou a respectiva relação de bens, na qual o imóvel descrito em II. 1. a) figurou como verba n.º 2.

i) Desde a morte do M (…) a Ré vem habitando este imóvel contra a vontade dos AA..

j) Os AA., a 02.5.2016, endereçaram à Ré missiva no sentido de proceder à devolução do referido imóvel, livre e desocupado, até ao dia 06.6.2016.

k) A Ré, até ao momento, não procedeu à devolução do referido imóvel, mantendo-se no mesmo, fazendo dele a sua habitação, porque nele dorme, toma refeições e recebe os seus amigos.

l) O imóvel habitado pela Ré tem um valor de arrendamento habitacional de cerca de € 300 mensais.

m) Após algum tempo de relacionamento, a Ré e o pai da A. tomaram a decisão de passarem a viver juntos.

n) Para o efeito, no ano de 2003 foram residir para o apartamento aludido em II. 1. a).

o) Casaram um com o outro, em 26.02.2005, no regime imperativo de separação de bens.

p) Desde 2003 foi ali que sempre viveram ambos, no apartamento que adoptaram como habitação permanente, confeccionando e tomando as suas refeições, lavando as suas roupas e fazendo a sua higiene pessoal, recebendo as visitas, dormindo; ali fazendo toda a sua vida de casal, tal como, já antes, faziam como unidos de facto; ininterruptamente até hoje por parte da Ré, e até ao seu decesso por parte do falecido M (…).

q) O doador, sabendo que carecia do consentimento da Ré para celebrar escritura de doação da casa de morada de família, perante a Notária, declarou uma outra residência que não a sua e declarou que a fracção a doar não era a casa de morada de família.

r) O doador ocultou a doação à Ré.

2. E foi dado como não provado:

a) M (...) habitava no referido imóvel unicamente quando bem entendia.

b) Era com frequência absoluta e rigorosamente diária que o casal formado pela Ré e seu falecido marido confeccionava e tomava as suas refeições, lavava as suas roupas, recebia visitas e dormia no referido apartamento.

c) A Ré não tem qualquer outro local para onde ir viver.

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

O usufruto extingue-se por morte do usufrutuário (art.º 1476º, n.º 1, alínea a) do CC).

O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família (art.º 1484º, n.º 1 do CC). Quando este direito se refere a casas de morada, chama-se direito de habitação (n.º 2).

Carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens: a) A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns; b) A alienação, oneração ou locação de estabelecimento comercial, próprio ou comum (art.º 1682º-A, n.º 1 do CC, aditado pelo DL n.º 496/77, de 25.11). A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família carece sempre do consentimento de ambos os cônjuges (n.º 2).

Os actos praticados contra o disposto nos n.ºs 1 e 3 do art.º 1682º, nos art.ºs 1682º-A e 1682º-B e no n.º 2 do art.º 1683º são anuláveis a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros, ressalvado o disposto nos n.ºs 3 e 4 deste artigo (art.º 1687º, n.º 1 do CC, na redacção conferida pelo DL n.º 496/77, de 25.11). O direito de anulação pode ser exercido nos seis meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos três anos sobre a sua celebração (n.º 2).

Sendo a casa de morada de família propriedade do falecido, o cônjuge sobrevivo pode nela permanecer, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio (art.º 1707º-A, n.º 3, do CC, aditado pela Lei n.º 48/2018, de 14.8). Caso o cônjuge sobrevivo tenha completado 65 anos de idade à data da abertura da sucessão, o direito de habitação previsto no n.º 3 é vitalício (n.º 10).

O herdeiro conserva, em relação à herança, até à sua integral liquidação e partilha, todos os direitos e obrigações que tinha para com o falecido, à excepção dos que se extinguem por efeito da morte deste (art.º 2074º, n.º 1 do CC).

O cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada da família e no direito de uso do respectivo recheio, devendo tornas aos co-herdeiros se o valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver (art.º 2103º-A, n.º 1 do CC, aditado pelo DL n.º 496/77, de 25.11).

4. O direito de habitação previsto no n.º 2 do art.º 1484º do CC é um direito típico de carácter real, que se extingue nas situações previstas no n.º 1 do art.º 1476º do CC.

Relativamente aos modos por que podem constituir-se os direitos de uso e habitação, importa considerar o art.º 2103º-A, n.º 1 do CC, no qual a lei atribui o exercício do direito ao cônjuge sobrevivo - deve ser qualificado como direito real de aquisição, pois se dirige à constituição de relações jurídicas de natureza real.[4]

No citado art.º 1682º-A do CC criou-se uma tutela especial para a casa de morada da família, que vigora mesmo no caso de ser de separação o regime de bens aplicável ao casamento.

O art.º 1687º do CC fixa os regimes aplicáveis aos actos praticados por qualquer dos cônjuges, sem a legitimidade necessária, por falta de consentimento do outro (regra do consentimento necessário de ambos os cônjuges); os seus n.ºs 1 e 2 definem os traços fundamentais da sanção - anulabilidade - prescrita para a falta de legitimidade nos actos praticados por qualquer dos cônjuges; a anulabilidade força o outro cônjuge a vir a juízo requerer a anulação do acto, sob pena de este se vir a tornar definitivamente válido, sendo que o prazo para arguição do vício é de seis meses a contar da data em que o requerente (da anulação) teve conhecimento do acto, contanto se não exceda o prazo de três anos subsequentes à realização do acto.[5]

            O n.º 1 do art.º 2103º-A do CC prevê o direito de encabeçamento na habitação da casa de morada de família e no uso do recheio da casa - as duas atribuições patrimoniais que o cônjuge sobrevivo (que for chamado à sucessão do de cujus), ao efectuar-se a partilha (pressupondo, por isso, que há uma partilha a fazer, ou seja, que não houve expressa atribuição desses direitos a terceiro, mormente por parte do testador)[6], tem o direito de avocar a si incidem sobre o direito de habitação relativamente à casa de morada da família (direito cujo perfil se encontra traçado no n.º 2 do art.º 1484º do CC) e o direito de uso sobre o recheio dessa casa.

Não se trata, porém, de mais um reforço quantitativo da posição sucessória do cônjuge sobrevivo, uma vez que a lei (art.º 2103º-A, n.º 1, in fine, do CC) lhe manda pagar tornas pelo benefício recebido, se o seu valor exceder o da sua parte sucessória (na herança), acrescida da meação, se a houver; tais direitos, na veste de direitos de gozo sobre coisa alheia que são, só virão a constituir-se como tais, na hipótese de, quer a casa, quer o recheio dela, virem a caber em propriedade, a outro herdeiro, que não o cônjuge sobrevivo, pois se a casa, ou o respectivo recheio, integrarem a meação, ou o quinhão hereditário do cônjuge sobrevivo, nenhuma necessidade haverá de constituição dos direitos reais sobre coisa alheia a que a disposição legal se refere.[7]

            5. Decorre dos autos que o apartamento onde a Ré e o falecido marido instalaram a sua casa de morada de família foi objecto de doação à A. (art.º 940º do CC) na pendência do vínculo matrimonial; aquela não dera o seu consentimento à realização do negócio; porém, volvidos mais de 12 anos, sem que o acto tenha sido impugnado, o vício/invalidade (anulabilidade) derivado da falta de consentimento do cônjuge ficou sanado (pelo decurso do tempo) e o contrato plenamente convalidado (cf., sobretudo, II. 1. alíneas b), c), d), n), p) e q), supra, e os art.ºs 1682º-A, n.º 2 e 1687º, n.ºs 1 e 2 do CC). Com o decesso do usufrutuário/doador, tal imóvel passou a integrar o património dos AA., sem quaisquer restrições ou encargos.[8]

            6. Tratando-se dum bem imóvel que não integrava o acervo hereditário, por não constituir direito real (de propriedade, usufruto ou outro) ou direito de crédito (arrendamento) nele incluído, e, assim, não poder ser objecto de partilha e/ou do mencionado “encabeçamento”, é irrecusável que nenhum direito assiste à recorrente/Ré, ainda que afirmado e reconhecido que o dito prédio «foi a casa de morada de família composta pela Ré e pelo seu falecido marido e pai da autora».

            Na verdade, essa pretérita realidade não beneficia a Ré/recorrente, pela simples razão de que, nas apontadas circunstâncias, com o decesso do doador/usufrutuário M (…), nada daí restou (em matéria de direito de habitação) que pudesse reverter a seu favor, mormente por via sucessória (cf. II. 1. alíneas a), b) e e), supra, e os art.ºs 1476º, n.º 1, alínea a), 1707º-A e 2103º-A, n.º 1, do CC, sendo que a previsão destes dois últimos art.ºs não compreende a situação em análise).

O referido imóvel não era susceptível de partilha, pelo que nunca poderia a Ré usufruir do benefício previsto no art.º 2103º-A do CC que atribui preferencialmente um direito de habitação da casa de morada da família (no momento da partilha).[9]

            7. Ademais, ao contrário do sustentado pela Ré/recorrente, a intransmissibilidade do direito, prevista no art.º 1488º do CC[10], não respeita à hipótese em análise, porquanto o usuário (ou o morador) não cedeu o seu direito.

Assim, não se poderá extrair a ilação (formulada pela Ré) de que, “extinto o direito de usufruto de que era titular o autor da herança [art.º 1476º, n.º 1, alínea a) do CC], (…) permanece o direito do cônjuge sobrevivo, precisamente por estar viva e ser um direito intransmissível”...[11]

            8. Não vindo suscitadas outras questões, resta, pois, concluir pela improcedência das “conclusões” da alegação de recurso, inclusive, no tocante à condenação da demandada em custas, dada a dimensão do respectivo decaimento e o preceituado nos art.ºs 527º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.º 6 do Código de Processo Civil.


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III. Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Ré/recorrente.


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22.10.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Alberto Ruço

Vítor Amaral



[1] O pedido depois formulado - relativo ao “direito de habitação e uso do recheio sobre o identificado apartamento” (sic) - ficou prejudicado face ao processo de inventário mencionado em II. 1. g), supra, e ao aí decidido em 20.9.2018 (cf. o documento de fls. 92 e seguintes).
[2] Em sede de audiência prévia “por ambos os mandatários foi dito que reciprocamente declinavam os pedidos de condenação por litigância de má fé” (fls. 118)

[3]Por prova documental autêntica e por acordo das partes.”
[4] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1987, págs. 547 e 548.
[5] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. IV, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, págs. 305 e 316 e seguintes; Antunes Varela, Direito da Família, Livraria Petrony, Lisboa, 1987, págs. 374, 377 e 381 e seguinte e F. Pereira Coelho, anotação ao acórdão do STJ de 10.5.1988, in RLJ, 123º, pág. 370.
[6] Assim, neste contexto, como também vem citado na decisão recorrida, Nuno de Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, Almedina, pág. 370, que refere: “(…) a protecção apenas existe se a casa for objecto de partilha, i. e., se o de cuius, podendo fazê-lo, não tiver legado, válida e eficazmente (…), a casa (o direito que tinha sobre ela) a terceiro, ao abrigo da faculdade de disposição para depois da morte que lhe conferia o art.º 1685º, n.º 1”.
[7] Vide, designadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, págs. 168 e seguintes; F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Imprensa da Universidade de Coimbra, Vol. I., 5ª edição, 2016, pág. 523; F. Pereira Coelho, anotação ao acórdão do STJ de 02.4.1987, in RLJ, 122º, págs. 136 a 138, dando-nos conta, nomeadamente, da protecção de carácter global e integrado que o legislador de 1977 atribuiu à casa de morada da família (princípio da protecção da casa de morada da família no nosso direito, qualquer que seja o regime de bens do casamento e qualquer que seja o direito através do qual a casa de morada de família é assegurada: direito real - de propriedade, usufruto ou outro - ou direito de crédito/arrendamento) e Nuno Espinosa Gomes da Silva, Posição sucessória do cônjuge sobrevivo, in Reforma do Código Civil, Lisboa, 1981, págs. 72 e seguintes, 81 e 82.
[8] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica (4ª reimpressão), Livraria Almedina, 1974, págs. 419 a 422 e C. A. da Mota Pito, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1980, págs. 471 e seguinte.
[9] Vide Nuno Espinosa Gomes da Silva, estudo citado, pág. 82.
[10] Que assim reza: «O usuário e o morador usuário não podem trespassar ou locar o seu direito, nem onerá-lo por qualquer modo
[11] Vide, quanto à razão de ser e ao conteúdo da estatuição, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, cit., pág. 551.