Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4054/20.5T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: VALOR DA CAUSA
FIXAÇÃO PELO JUIZ
CRITÉRIOS DE VALORAÇÃO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 296.º, N.ºS 1 E 2, 297.º, N.ºS 1 E 2, 305.º, N.º 4, 306.º, N.º 1, 308.º E 511.º, N.ºS 1 E 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O valor da causa é fixado pelo juiz, em função da utilidade económica do pedido quando este é susceptível de tradução pecuniária, sendo irrelevante a vontade das partes na fixação desse valor.
II – A aferição daquela utilidade económica segue critérios legais e deve basear-se em elementos objectivos constantes do processo ou, na sua falta ou insuficiência, em diligências pré-ordenadas a tal aferição, e não em critérios de aparência ou (irra)zoabilidade.

III – Sendo claramente artificial a indicação de 150,01 euros como valor pecuniário da utilidade económica de um dos pedidos formulados, valor que visa, aliás, fixar um valor global da causa em 5.000,01 euros, não deve ser aceite aquele valor mas também não pode fixar-se o valor do pedido em 150 euros apenas com base na eliminação de 1 cêntimo, pois também este é infundado, devendo antes apelar-se aos referidos factores de indagação do valor.


Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral: Relator: António Fernando Silva
Adjuntos: Henrique Antunes
Falcão de Magalhães

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            A presente acção foi instaurada por AA e marido BB contra CC e Herança Aberta por óbito de DD (Herança esta que foi depois absolvida do pedido em função da apresentação de desistência do pedido quanto a ela, pelo que deixará de ser referida).

            Alegaram, em termos muito sintéticos (ajustados ao objecto do recurso), que:

- a AA. e a R. são donos de fracções autónomas no mesmo prédio;

            - a R. fechou parte da sua varanda, efectuou nela obras e instalou plantas em floreira que  provocaram infiltrações em garagem dos AA.

            Requereram ainda a intervenção principal (passiva) do Condomínio do prédio em causa.

Pediram, no final, que as RR. fossem condenadas:

            A) A remover definitivamente e a demolir o avanço da construção na varanda do Rés do Chão, construída sem licença e autorização, designadamente os painéis de vidro, a porta, as ferragens, dobradiças, puxador, fechadura, e todos os elementos e acessórios que estão fixados no parapeito interior da floreira e teto da varanda, designadamente na zona situada em cima da garagem poente dos Autores, com exceção do painel de vidro situado a nascente, onde não existe floreira;

B) A remover toda a vegetação e raízes existentes na floreira;

C) A remover toda a terra e a limpar a floreira;

D) A proceder, através de empresa especializada, à impermeabilização da floreira, ao desentupimento do seu esgoto e substituição do seu ralo caso seja necessário, seguindo as boas práticas de reparação;

E) A repor a garagem e arrumos no estado anterior às infiltrações, eliminando as suas causas e manifestações;

F) A facultar aos AA a memória descritiva e o caderno de encargos dos trabalhos executados e a exibir a garantia legal da impermeabilização que vier a ser realizada;

G) A pagar aos AA, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de €80,00

por cada dia de atraso na reparação peticionada em D) e E) - Artigo 828.º-A do Código

Civil.

Fixaram o valor da acção nos seguintes termos: VALOR: € 5.001,00 (cinco mil euros e um cêntimo)

            A R. CC contestou sem fazer qualquer alusão ao valor da causa.

Foi admitida a intervenção principal (activa) do administrador do condomínio, tendo este declarado associar-se à R..

            Na sequência de convite, os AA. vieram indicar o valor de cada pedido nos seguintes termos:

A) A remover definitivamente e a demolir o avanço da construção na varanda do Rés do Chão, construída sem licença e autorização, designadamente os painéis de vidro, a porta, as ferragens, dobradiças, puxador, fechadura, e todos os elementos e acessórios que estão fixados no parapeito interior da floreira e teto da varanda, designadamente na zona situada em cima da garagem poente dos Autores, com exceção do painel de vidro situado a nascente, onde não existe floreira; valor de € 700,00 (setecnetos euros);

B) A remover toda a vegetação e raízes existentes na floreira; valor de € 300,00 (trezentos euros);

C) A remover toda a terra e a limpar a floreira; valor de € 350 (trezentos e cinquenta euros);

D) A proceder, através de empresa especializada, à impermeabilização da floreira, ao desentupimento do seu esgoto e substituição do seu ralo caso seja necessário, seguindo as boas práticas de reparação; valor de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros);

E) A repor a garagem e arrumos no estado anterior às infiltrações, eliminando as suas causas e manifestações; valor não passível de concretização imediata e precisa à data de instauração da acção, dado tratar-se de dano em desenvolvimento, mas que se admite, sem prescindir do seu natural incremento, no valor de 150,01 (cento e cinquenta euros e um cêntimo)

F) A facultar aos AA a memória descritiva e o caderno de encargos dos trabalhos executados e a exibir a garantia legal da impermeabilização que vier a ser realizada;

G) A pagar aos AA, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de €80,00 por cada dia de atraso na reparação peticionada em D) e E) - Artigo 828.º-A do Código Civil.

Mais alegou que: No que concerne ao constante em F) e G) supra, não será possível dar cumprimento ao ordenado; no primeiro caso, por se tratar de objecto de acção meramente imaterial, insuscetível, portanto, de assumir expressão pecuniária; e no segundo, por se encontrar já determinado/determinável no próprio pedido e portanto se verificar a observância antecipada ao objeto de notificação.

            Nessa sequência, foram proferidos os seguintes despachos:

            1)

AA e BB instauraram a presente Acção Declarativa com Processo Comum contra CC e Herança Indivisa aberta por óbito de DD.

Deram à acção o valor de € 5.000,01.

Convidados a individualizarem o valor dos pedidos, os AA. vieram responder nos seguintes termos:

A) A remover definitivamente e a demolir o avanço da construção na varanda do Rés do Chão, construída sem licença e autorização, designadamente os painéis de vidro, a porta, as ferragens, dobradiças, puxador, fechadura, e todos os elementos e acessórios que estão fixados no parapeito interior da floreira e teto da varanda, designadamente na zona situada em cima da garagem poente dos -Autores, com exceção do painel de vidro situado a nascente, onde não existe floreira; valor de € 700,00 (setecentos euros);

B) A remover toda a vegetação e raízes existentes na floreira; valor de € 300,00 (trezentos euros);

C) A remover toda a terra e a limpar a floreira; valor de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros);

D) A proceder, através de empresa especializada, à impermeabilização da floreira, ao desentupimento do seu esgoto e substituição do seu ralo caso seja necessário, seguindo as boas práticas de reparação; valor de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros);

E) A repor a garagem e arrumos no estado anterior às infiltrações, eliminando as suas causas e manifestações; valor não passível de concretização imediata e precisa à data de instauração da acção, dado tratar-se de dano em desenvolvimento, mas que se admite, sem prescindir do seu natural incremento, no valor de€ 150,01 (cento e cinquenta euros e um cêntimo)

F) A facultar aos AA a memória descritiva e o caderno de encargos dos trabalhos executados e a exibir a garantia legal da impermeabilização que vier a ser realizada;

G) A pagar aos AA, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de €80,00 por cada dia de atraso na reparação peticionada em D) e E) - Artigo 828.0-A do Código Civil.

No que concerne ao constante em F) e G) supra, não será possível dar cumprimento ao ordenado; no primeiro caso, por se tratar de objecto de acção meramente imaterial, insuscetível, portanto, de assumir expressão pecuniária; e no segundo, por se encontrar já determinado/determinável no próprio pedido e portanto se verificar a observância antecipada ao objeto de notificação.

Vejamos.

Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes - 306.º, n.º 1, do C.P.C.

Quando as partes não tenham chegado a acordo ou o juiz o não aceite, a determinação do valor da causa faz-se em face dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis, que as partes requererem ou o juiz ordenar – 308.º, do C.P.C.

Por seu turno, dispõe o artigo 297.º, nº 2, do Código de Processo Civil, que «cumulando-se na mesma acção vários pedidos, o valor [da causa] é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles".

No caso dos autos, considera-se plausível o valor dos pedidos indicados pelos AA nas alíneas A) a D), o qual, de resto, não mereceu oposição da R.

Quanto ao valor atribuído ao pedido deduzido sob a alínea E), o mesmo traduz-se na condenação das RR. "A repor a garagem e arrumos no estado anterior às infiltrações, eliminando as suas causas e manifestações", ao qual "sem prescindir do seu natural incremento", os AA. atribuíram o valor de € 150,01 (cento e cinquenta euros e um cêntimo). Contudo, por se tratar de um valor estimado, não se compreende a referência a um cêntimo, termos em que se fixa tal pedido em € 150,00.

Quanto aos pedidos constantes das alíneas F) e G), conforme referem os AA., por serem acessórios em relação aos pedidos anteriores, são insusceptíveis de valoração autónoma.

Pelo exposto, fixo o valor da causa em € 5.000,00 (cinco mil euros) - arts. 298º, n.ºs 1, do C.P.C.

            2)

            Dado que foram apresentados em tempo e obedecem aos requisitos legais, admitem-se os róis de testemunhas apresentados, sendo que em relação aos Autores, apenas se admitem as primeiras 5 testemunhas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 511°, n.º 3 do C.P.C. - 10 testemunhas no total.

É deles que vem interposto o presente recurso pelos AA., tendo estes formulado as seguintes conclusões:

            1.Nos presentes autos foi indicado na p.i. o valor da causa de €.5000, 01, valor esse não impugnado e aceite pela Ré na contestação;

2.Por despacho proferido a 25/03/2021 a Mª Juiz" a quo" (fls. 65, Referência 85033377) ordenou aos AA para individualizarem o valor de cada uma das 7 alíneas do pedido; os AA. satisfizeram o ordenado conforme consta de fls. 66 a 67 v., estabelecendo quanto à alínea E) o valor de €150,01, que somado aos valores restantes perfaz € 5000,01 e um cêntimo como valor da ação;

3. A mencionada alínea E) diz: A Ré deve ser condenada ….".a repor a garagem e arrumos no estado anterior às infiltrações, eliminando as suas causas e manifestações"

4. O pedido formulado pelos AA. desdobra-se em várias etapas e concretizações, incluindo a referida alínea E), existindo uma interligação intrínseca entre todos as alíneas

do pedido, que mais não são que uma espécie de caderno de encargos com vista a proceder à peticionada reparação, com eliminação das suas causas, que não se situam sequer na garagem e arrumas dos AA.

5. Na decisão recorrida a Mª Juiz" a quo" reduziu o valor da ação para €5.000.00, com o argumento que “o pedido deduzido na alínea E) no valor de €150,01 por se tratar de um valor estimado não se compreende a referência a um cêntimo, termos em que se fixa tal pedido em €150,00, fixando o valor da causa em €5.000,00”;

6. A redução do valor da causa operado pela Mª Juiz " a quo" carece de absoluta fundamentação, sendo por isso uma decisão nula por omissão de fundamentação, violando o disposto no ar. 154º do C.P.C.;

7.Caso assim se não entenda, os fundamentos da decisão, a existirem, contrariam o princípio aristotélico da não contradição, segundo o qual uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo; com efeito, a Mº Juiz diz não se compreender a referência a um cêntimo no valor da causa indicado pelos AA.; no entanto o cêntimo retirado ao valor da ação, que é feito igualmente por estimativa da Mº Juiz já é de aceitar

e até de impor;

8. Não se vê, pois, qualquer fundamento lógico e racional na fixação do valor da ação pela Mª Juiz, retirando-lhe um cêntimo; Trata-se de uma decisão drástica e desproporcional que retira às partes alçada para recorrer;

9. Competindo ao Juiz fixar o valor da causa, esse poder porém não é discricionário, sendo recorrível; não pode por isso, salvo ponderosas razões, restringir-se, como no caso presente, desproporcionadamente o direito ao duplo de grau de jurisdição; nem postergar os princípios e as normas de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, do processo justo e equitativo, pois a parte vencida na presente ação, não poderá (salvo procedência deste recurso) recorrer de decisão desfavorável, por mais injusta e imotivada que eventualmente venha a ser;

10. O art. 306º, nº 1 do C.P.C. que diz competir ao Juiz fixar o valor da causa, deve assim ser exercido fazendo a concordância prática entre este preceito e as demais normas substantivas e de natureza constitucional, mormente o art. 2º do C.P.C. e art. 20º, nº 4 da C.R.P.

11. A decisão recorrida, sendo uma decisão surpresa, é expressamente proibida por violar o disposto no art. 3º do C.P.C. Violação que se entende dupla, pois a questão do valor da ação não foi suscitada por nenhuma das partes e intervenientes no processo. É também irrazoável pois o valor da ação constante da p.i. é plausível à data da sua propositura.

Acresce, ainda que

O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupões sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. -Art. 3º, nº 1 do C.P.C.

12.Por outro lado, como os AA. esclareceram o valor de €150,01 respeitante à alínea E) do pedido, "não é passível de concretização imediata e precisa à data da instauração da ação, dado tratar-se de dano em desenvolvimento, mas que se admite, sem prescindir do seu natural incremento."

13. Noutro plano, e como acima se referiu, o valor da ação atribuída na p.i. enferma de provável erro de cálculo, pois o então mandatário dos AA. esqueceu-se de somar às diferentes alíneas do pedido, €80,00 correspondentes à alínea G). (v. fls. 66 e 67 e v.).

2)

1.Nos presentes autos os AA. propuseram uma ação com alçada para recorrer para o Tribunal da Relação, tendo a Mª Juiz "a quo" reduzido o valor da ação em um cêntimo, decisão que se impugnou nos termos e fundamentos supra alegados;

2.Como consequência a ação passou a ter, indevidamente, como limite máximo 5 testemunhas (Art. 511º, nº 1 C.P.C.), tendo os AA. apresentado 7 testemunhas;

3. Na audiência prévia a Mª Juiz convidou o (s) AA. a indicarem as testemunhas de que abdicavam, dado que o rol apresentado excedia em 2 as testemunhas permitidas; (ATA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA- Despacho com a referência 91249759)

4. O A. disse não alterar o rol e não abdicar das testemunhas e não aceitar o valor da ação; (v. Ata e requerimento entrado no processo a 16/05/2023, em que se pede a correção da transcrição)

5. No final a Mª Juiz admitiu os róis de testemunhas da Ré e interveniente principal do lado passivo, tendo apresentado testemunhas comuns no total de cinco; no entanto a interveniente logo na audiência prévia requereu a alteração do seu rol;

6.A redução em duas das testemunhas dos AA. e a posição da Interveniente Principal convergente com a Ré, implica uma grave assimetria na ação e a violação dos princípios da igualdade e do processo justo e equitativo consagrados nos arts. 13º, 20º, nº 4 da C.R.P. e 4º do C.P.C.;

7.Com efeito, em virtude das disposições conjugadas dos arts. 508º e 598º do C.P. Civil no julgamento a Ré e a interveniente principal irão com alto grau de probabilidade apresentar um número de testemunhas superior aos AA;

8. Independentemente deste facto, os AA. têm direito a fazer prova e a apresentar provas no processo, sento estre um dos corolários do princípio do processo equitativo. (v. supra Gomes Canotilho e Vital Moreira, in C.R.P. anotada, pg. 415)

9. Por maioria de razão, tendo a interveniente feito seus os articulados apresentados pela Ré e tendo-se associado a esta, não há razão (v. declaração do Condomínio do Prédio sito na Rua ... a associar-se à Ré CC) para o limite de testemunhas ser considerado em relação a cada contestante. (v. supra Abrantes Geraldes, obra citada pg.610/611);

10. Os AA. têm a suspeita, senão a certeza absoluta, que está aberta a porta para no julgamento, a Ré e o interveniente associado beneficiarem de um número acrescido de testemunhas, comparativamente aos AA., até porque o interveniente Condomínio já requereu a alteração do rol, mas a Ré declarou manter as testemunhas arroladas. (cfr. pg. 6 do articulado)

11. Tal como se referiu acima em relação ao recurso sobre o valor da causa, a decisão de reduzir em duas as testemunhas dos AA. constitui uma decisão surpresa, expressamente proibida, pese embora o A. logo na audiência prévia ter manifestado expressamente que não aceitava reduzir o seu rol, tendo a Mª Juiz "a quo" mantido a sua decisão; (v. supra, José Lebre de Freitas, obra citada, pg. 31, em comentário ao art. 3º do C.P.C.)

12. Quanto à simplificação ou agilização processual referidos no art. 6º, nº 1 do C.P.C., entendem os AA. que esse objetivo não pode ser alcançado, suprimindo designadamente testemunhas dos AA, condicionando o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, e o princípio da igualdade das partes;

13.Finalmente a Adequação formal prevista no art. 547º C.P.C. é bem clara na sua formulação, pois na parte final do preceito refere-se que deve assegurar um processo equitativo. Considera-se assim que a Mª Juiz "a quo" violou também este preceito legal.

            Não foram apresentadas respostas.

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

A esta luz, cabe começar por delimitar o objecto do recurso, à luz da posição dos AA., recorrentes.

No primeiro recurso interposto, os AA. indicam, nas conclusões que formulam, que «o valor da ação atribuída na p.i. enferma de provável erro de cálculo, pois o então mandatário dos AA. esqueceu-se de somar às diferentes alíneas do pedido, €80,00 correspondentes à alínea G)», decorrendo da sua prévia alegação que i. o erro não seria afinal provável mas «notório e visível» e ii. que tal erro seria suprível nos termos do art. 146º do CPC. No entanto, nada é pedido em relação a tal questão, pretendendo os AA. no recurso, de forma expressa, apenas que seja mantido o valor da acção fixado na PI. Donde tal questão não fazer parte do objecto do recurso. De todo modo, e ainda que assim não fosse, estaria em causa questão nova, não colocada nem avaliada na decisão recorrida, a qual, não sendo de conhecimento oficioso, não poderia ser colocada autonomamente no recurso. Pois este visa obter uma «decisão sobre decisão», constituindo meio de impugnação de decisão judicial seguindo um sistema de reexame, o qual assenta na reapreciação da decisão e não num novo julgamento da questão. Nesta medida, o objecto da decisão recorrida delimita o objecto do recurso, ficando este limitado ao reexame das questões submetidas à apreciação do tribunal recorrido (e que sejam validamente retomadas no recurso). Ora, como no elenco das questões submetidas à avaliação da decisão recorrida não se incluía a avaliação de eventual erro, nunca suscitado nem apreciado antes do recurso, também não poderia ser agora suscitado ex novo [embora também se adiante que eventual erro será irrelevante se se considerar, como se entende ajustado, que o pedido de condenação no pagamento de sanção pecuniária compulsória no futuro (i. é, pagamento de sanção ainda não aplicada) tem natureza que se ajusta ao regime do art. 297º n.º2, 2ª parte, do CPC, quanto aos acessórios do pedido principal que se vencem na pendência da causa (e que não contam para efeitos de fixação do valor da causa), dado o seu carácter igualmente acessório e futuro e por isso indeterminado e eventual, não devendo assim ser atendido na fixação do valor da causa (assim, J. Castro Mendes e M. T. Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL 2022, pág. 22, ou M. T. de Sousa, anotação ao art. 297º no CPC online disponível no Blog do IPCC)].

No segundo recurso interposto os AA. incluem nas suas conclusões a afirmação de que a decisão impugnada «constitui uma decisão surpresa, expressamente proibida». Porém, nada é dito sobre a questão nas prévias alegações, nas quais ela não é discutida, o que inviabiliza o seu conhecimento. Com efeito, servindo a alegação para expor as razões da pretensão recursória e as conclusões para as sintetizar, qualquer questão colocada tem que constar quer das alegações, quer das conclusões. Não constando das alegações, fica inviabilizado o seu conhecimento quer porque falta a sua arguição e discussão perante o tribunal quer porque as conclusões constituem mera síntese dos fundamentos do recurso, que assim pressupõem, não podendo servir para os alargar ou para colocar questões novas (art. 639º n.º1 do CPC). Por essa razão que as conclusões sirvam legalmente para restringir tacitamente o objecto do recurso, mas não para o alargar (art. 635º n.º4 do CPC), sem ser cabível qualquer aperfeiçoamento por legalmente circunscrito a outras situações[1]

Deste modo, as questões a apreciar são as seguintes:

            - avaliação da nulidade do despacho atinente à fixação do valor da causa por falta de fundamentação;

            - avaliação da qualificação de tal despacho enquanto decisão-surpresa, assim proibido.

            - avaliação do mérito desse despacho;

            - avaliação do mérito do despacho que limitou o número de testemunhas indicadas pelos AA..

            III. Os elementos factuais relevantes para a apreciação do recurso, dado o carácter estritamente processual das questões suscitadas, constam do relatório efectuado.

IV. 1. Os AA invocam a nulidade do primeiro despacho, considerando, nas conclusões, que esse despacho «carece de absoluta fundamentação, sendo por isso uma decisão nula por omissão de fundamentação», o que corresponde à nulidade prevista no art. 615º n.º1 al. b), aplicável ao despacho recorrido por força do art. 613º n.º3, ambos do CPC. Tem sido entendido de forma claramente dominante que apenas a falta absoluta de fundamentação constitui a nulidade em causa, não bastando a mera deficiência ou incompletude da fundamentação. Já eventuais defeitos da fundamentação constituiriam questões apenas relevantes na avaliação do mérito da decisão. Fala-se ainda, embora de forma menos corrente, na falta funcional de fundamentação, para os casos limite em que a fundamentação é apenas aparente por não ter conteúdo, esgotando-se em fórmula sem significado próprio: nestes casos continuaria a faltar completamente a fundamentação. Mas nenhuma das situações ocorre, de forma notória, no caso, pois o despacho recorrido contém as razões da decisão, ainda que sucintas, e ainda o seu suporte jurídico. Aliás, demonstração cabal dessa suficiência da decisão, do ponto de vista da existência de uma fundamentação, radica no facto de o recorrente discutir directamente o mérito das razões invocadas, dando conta de que as entendeu e pôde avaliar. Pois não se consegue discutir o que não existe. Acresce que nas alegações o recorrente invoca a falta de «fundamentação lógica e congruente», o que tende a revelar que não é propriamente a falta (absoluta) de fundamentação que considera fundamento da nulidade mas o mérito racional da fundamentação. Mas, como se disse, eventual demérito da fundamentação não a torna nula. Inexiste pois a nulidade invocada.

            Invocam depois o facto de tal despacho constituir uma decisão-surpresa, proibida. A qualificação é, face aos fundamentos que invocam, infundada. Com efeito, começam por sustentar essa qualidade do despacho na afirmação de que «a questão do valor da ação não foi suscitada por nenhuma das partes e intervenientes no processo». A alegação não é procedente pois é a própria lei processual, como a seguir melhor se explicita, que impõe a fixação do valor da causa ao juiz, em regra no despacho saneador, sem subordinação a qualquer iniciativa das partes ou à vontade destas (art. 306º n.º1 do CPC). Ou seja, é a própria lei processual que exclui qualquer possibilidade de surpresa: a decisão não apenas é antecipável e previsível como é até segura: surpreendente seria a sua omissão (omissão que, essa sim, constituiria uma surpresa, e um vício processual). Acrescendo ainda que o convite a que os AA. responderam já era preparação para a decisão que a lei impunha e por isso também a anunciava. Fundam depois tal qualidade do despacho no facto de a decisão ser «irrazoável pois o valor da ação constante da p.i. é plausível à data da sua propositura». Como é evidente, esta circunstância não atribui à decisão o carácter de decisão-surpresa, contendendo apenas com o seu mérito. Aliás, o que esta afirmação, à luz também do que os AA. dizem nas suas alegações (afirmando que «não esperavam que a sua colaboração tivesse sido desvirtuada, dando origem a uma decisão surpresa quanto ao valor da causa») revela é que, de um lado, os AA. confundem a sua surpresa face aos termos do decidido com a existência de uma decisão-surpresa (a surpresa subjectiva das partes é para o efeito irrelevante), e, de outro lado, que a questão tem a ver com os termos do decidido, não com a violação de quadro legal prévio (v.g. contraditório) que impedisse a prolação da decisão antes da intervenção dos AA. e permitisse assim qualificar o despacho como decisão surpresa objectiva.

Inexiste pois a objecção assim suscitada.

2. Quanto à questão de fundo neste primeiro recurso, só vem discutido o valor a atribuir ao pedido formulado sob a al. E), tendo ficado os demais, discutidos na decisão recorrida, excluídos do objecto do recurso. Assim, e como consequência da vinculação do tribunal ad quem à impugnação do recorrente, são aquelas, pois, questões resolvidas. Cabe, pois, analisar o valor a atribuir àquele pedido E) para, em função dos demais, se poder determinar o valor da causa, à luz do art. 297º n.º2, no início, do CPC, atinente à cumulação de pedidos (cujo alcance também não vem discutido no recurso).

3. Os comandos normativos básicos quanto à fixação do valor da causa são os seguintes:

- toda a causa deve ter um valor certo, expresso em moeda legal (art. 296º n.º1 do CPC), o que vale também para incidentes e procedimentos cautelares (art. 304º do CPC).

- a lei processual fixa critérios de definição do valor relevante, desconsiderando neles a vontade das partes (a qual não tem por isso relevo no preenchimento dos critérios legais - daí que a falta de impugnação do valor pelo réu, importando que esse valor se tenha por ele aceite nos termos do art. 305º n.º4 do CPC, apenas preclude a possibilidade de aquele réu vir depois discutir o valor da causa, não vinculando o tribunal).

- fixa, primeiramente, um princípio geral, expresso na ideia de que o valor da acção «representa a utilidade económica imediata do pedido» (art. 296º n.º1 do CPC).

- tal princípio concretiza-se numa regra: a utilidade económica do pedido é convertida numa expressão pecuniária (que exprime o valor da acção), a qual se manifesta de duas formas: directamente, no valor peticionado quando se pretenda obter uma quantia certa em dinheiro (de forma absoluta, não admitindo impugnação); indirectamente, no valor resultante da tradução daquela utilidade económica numa quantia em dinheiro que a ela seja equivalente (art. 297º n.º1 do CPC). Como a compreensão da utilidade económica encerrada no pedido pelo autor depende da causa de pedir, só da articulação das duas se poderá, as mais das vezes, fixar o benefício que corresponde à pretensão do A..

- a lei fixa ainda sub-critérios, reguladores de casos particulares de fixação do valor económico da acção (que constituem concretizações ou adaptações da regra geral).

- e fixa por fim um critério geral para os interesses imateriais, por serem insusceptíveis de redução economicista.

- em caso de pluralidade de pedidos, a regra consiste na soma do valor de todos eles para assim alcançar o valor da causa (referido art. 297º n.º2, no início, do CPC); ressalvam-se, contudo, os casos de cumulação de pedidos meramente aparente.

- a parte que impulsiona a acção[2] tem o ónus de indicar o valor da causa (art. 552º n.º1 al. f) e 305º n.º3 do CPC).

- o réu pode impugnar o valor, sendo a falta de impugnação do valor equivalente à sua aceitação; as partes podem ainda acordar no valor da acção (art. 305º n.º1, 2 e 4 do CPC).

- o acordo, em sentido amplo, sobre o valor da acção é provisório, pois não vincula o tribunal, cabendo ao juiz fixar o valor da acção, de acordo com as regras legais, e assim a partir dos contornos da utilidade económica em causa à luz dos critérios relevantes, sem subordinação à vontade das partes (art. 306º n.º1 e 308º do CPC).

- este papel do juiz constitui corolário da legalidade inerente à fixação do valor do processo, produto da existência de regras processuais imperativas sobre o tema e da associação do valor do processo a efeitos não entregues à disponibilidade das partes nem susceptíveis de arbitrariedade (efeitos processuais, elencados no art. 296º n.º2 do CPC mas também dispersos pelo código de processo civil[3], e ainda efeitos tributários, ressalvados pelo n.º3 do art. 296º do CC mas depois integrados dado o disposto no art. 11º do RCP).

4. Como se deixou dito, por força do citado art. 306º n.º1 do CPC compete ao juiz fixar o valor da causa, competência esta que não é condicionada pela actuação das partes e que apenas obedece aos critérios que a lei enuncia. A invocação da aceitação do valor pela R. é, pois, irrelevante.

Ao avaliar o valor atribuído ao pedido E), a decisão recorrida excluiu 0,01 € / 1 cêntimo por não ser compreensível a referência àquele valor. Pese embora a exiguidade da fundamentação, esta deixa ainda claro que a decisão assenta na falta de racionalidade intrínseca da indicação.

E tem, nesse sentido, razão, sendo manifesta a falta de lógica económica na fixação do valor, saltando à vista a artificialidade da indicação. Por três vias. De um lado, é evidente, perante a normalidade das coisas, que uma reparação/eliminação de defeitos não corresponde com regularidade a um valor tão esdrúxulo e anormal, com um cêntimo a destacar-se ominosamente de um outro valor tão certo (150,01 euros). De outro lado, esta artificialidade é confirmada pelos próprios AA. quando afirmam que se trata de mera estimativa, sem indicarem qualquer base concreta para a estimativa, e por isso de valor por si engendrado, arranjado de harmonia com a sua vontade, o que torna ainda mais irrealista a terminação do valor em 1 cêntimo. A invocação, pelos AA. do «dano em desenvolvimento» para justificar o carácter indeterminado do valor também não explica o oportuno aparecimento daquele cêntimo (a indicação em causa não se explica por aquela suposta indeterminação; e tanto valem, nesse sentido, 150,01 euros como 149,99 euros; a razão determinante da indicação será outra). Por fim, e de forma decisiva (mas em conjugação com as demais razões), é patente, a partir da indicação original do valor da causa, que este foi fixado de forma instrumentalizada, para minimizar o valor da causa (com ganhos tributários) sem impedir o acesso a uma instância de recurso (com ganhos processuais), sem qualquer preocupação de aderência ao valor económico (à utilidade económica) de cada pedido. A distribuição dos valores pelos diferentes pedidos que os AA. efectuam vem evidenciar aquela artificialidade, dando conta da manifesta inverosimilhança da fixação do valor em discussão.

Assim, quando o despacho recorrido altera o valor em causa, está a excluir a adesão do tribunal ao valor indicado pelos AA. naquela parte, que fica excluído, em cumprimento do comando contido no art. 306º n.º1 do CPC, quanto ao dever de fixação do valor da causa pelo juiz em detrimento da mera indicação pelas partes. Comando que, tendo subjacente regime que exclui qualquer subordinação à vontade das partes e elege antes critérios precisos de avaliação do valor da causa, visou justamente excluir qualquer instrumentalização da fixação do valor da causa pelas partes.

Deste modo, o despacho, no sentido em que exclui o valor adiantado pelos AA., mostra-se justificado.

O argumento assente no direito ao duplo grau de jurisdição[4] (e para além do enviesado entendimento atribuído a este direito, que aqui não cabe dilucidar[5]) envolve uma inversão dos princípios e regras subjacentes: partindo do princípio incontestado (em especial no domínio civil) de que o legislador pode condicionar o direito ao recurso[6], o acesso ao recurso é, no regime processual civil, efeito legal do valor fixado à causa, já não sendo este valor função de um suposto direito ao recurso; ou seja, é o valor da acção, determinado de acordo com regras autónomas, que condiciona o acesso ao recurso, não este acesso ao recurso que vai determinar o valor da causa (o que seria, aliás, incompreensível e irracional).

5. Não obstante, também assiste em parte razão aos AA., pois a irracionalidade do valor não se esgota apenas naquele cêntimo, não se resolvendo a questão com a eliminação do cêntimo adicional. Este cêntimo denuncia a instrumentalidade do valor indicado mas, perante esta constatação, a superação do seu carácter artificial e pré-ordenado a certo fim processual não se obtém pela mera eliminação do cêntimo. Tanto é artificial a fixação do valor com 1 cêntimo como sem 1 cêntimo, porque o restante valor (os 150 euros) também foi fixado justamente em ordem a, com aquele 1 cêntimo, permitir alcançar certos efeitos (e assim também ele artificialmente). A eliminação daquele valor não torna um valor desconforme em valor conforme à realidade. 

Acresce, de forma decisiva, que o valor da causa (e assim, no caso, o valor de cada pedido) não se alcança a partir de considerações assentes na razoabilidade, ou não do valor indicado, devendo ser fixado a partir dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, através das diligências indispensáveis, como impõe o art. 308º do CPC. Seriam estes os dados a usar na fixação do valor em causa, não se podendo a decisão bastar com a mera eliminação do cêntimo nos moldes realizados.

6. A utilidade económica do pedido enquanto princípio geral de fixação do valor do processo está associada à ideia de que, na generalidade dos casos, o processo visa atribuir uma vantagem patrimonial ao autor, medindo-se assim aquela utilidade económica por esta vantagem ou benefício, tal como definida pelo autor enquanto objecto da acção (EE).

Vantagem que, não sendo pedida em forma pecuniária (quantia em dinheiro), corresponde, em termos directos, à quantia em dinheiro equivalente a esta vantagem ou benefício e assim ao valor pecuniário objectivo do que é pedido, no momento em que é pedido (art. 297º n.º1 e 299º n.º1 do CPC)[7].

O pedido em causa, no segmento relevante («repor a garagem e arrumos no estado anterior às infiltrações, eliminando as suas causas e manifestações»)[8], tem claro sentido económico, fácil de identificar: aquela eliminação equivale à intervenção restauradora da garagem e a utilidade económica mede-se pelo valor dessa intervenção restauradora, correspondendo ao menos ao valor da reparação (em sentido amplo) da garagem, com a eliminação dos danos existentes na garagem (ao menos as marcas de infiltrações que foram alegadas). Quanto à eliminação das causas, valeria o mesmo raciocínio, embora, dada a forma exígua da alegação, permaneça a dúvida sobre se estarão em discussão as causas (das infiltrações) a cuja eliminação se reportam alguns dos pedidos anteriores (especialmente em D), caso em que a cumulação de pedidos seria, mas apenas nesta parte, meramente aparente, não devendo relevar para a fixação do valor (sob pena de duplicação), ou se estariam em jogo outras causas, próximas, caso em que este aspecto do pedido teria autonomia.

De qualquer modo, persiste a autonomia ao menos parcial do pedido (não havendo cumulação aparente no sentido exposto, como os AA. ainda sugerem nas alegações), e não se vislumbram dificuldades em realizar a tradução pecuniária do pedido. Sem que o argumento do dano em desenvolvimento tenha, também neste aspecto, qualquer relevo: o desenvolvimento futuro do dano não impede a obtenção imediata da «representação económica do pedido» face aos danos já existentes, nem serve de justificação para não o fazer.

Assim, não há obstáculo à utilização do critério exposto quanto ao pedido em avaliação.

7. Sucede que, atendendo aos elementos do processo disponíveis, não se vislumbra neles suporte directo para tal aferição, para a fixação daquele valor. Caberá assim, nos termos do citado art. 308º do CPC, realizar as diligências indispensáveis, que podem passar pela realização de arbitramento nos termos do art. 309º do CPC, para fixar o valor económico do pedido - tendo em conta, também, a exposta ambiguidade quanto à pedida reparação das causas das infiltrações, que as diligências a realizar podem esclarecer.

Para depois se poder então fixar o valor da causa, em função do valor económico dos demais pedidos (que, como referido, não é objecto de apreciação nesta sede).

8. No segundo recurso discute-se o despacho que reduziu a cinco o número de testemunhas indicadas pelos AA.. O despacho fundou-se, de um lado, no valor que tinha sido atribuído à causa e, de outro lado e consequentemente, na norma que, de forma clara, limitaria a cinco o número de testemunhas dos AA., considerando não escritos os nomes das testemunhas que excedessem aquele número (art. 511º n.º1 e 3 do CPC). Nestes termos, o despacho constitui apenas expressão directa da imposição legal, sendo para os termos das normas pertinentes irrelevantes as considerações sobre os eventuais meios probatórios das demais partes (os quais aqui não se discutem nem condicionam a regra legal), assim como são irrelevantes as considerações sobre a agilização processual ou a adequação formal, que não foram invocadas para sustentar a solução impugnada.

O que sucede é que o primeiro pressuposto da aplicação da norma (valor da causa não superior à alçada do tribunal de 1ª instância) não está, como exposto, ainda alcançado, pelo que o despacho tem que ser revogado, mas apenas para ficar latente a avaliação em causa, até à fixação do valor da causa, momento no qual será então avaliada a adequação, ou não, do número de testemunhas oferecidas pelos AA..

9. Os AA. ainda decaem na medida em que as suas pretensões não são, tal e qual admitidas. Além disso, a discussão empreendida no recurso não envolve os RR., não funcionando aqui assim, quanto a eles, o princípio da causalidade, impondo-se subsidiariamente o princípio do proveito (art. 527 nº1 CPC). Assim, as custas dos recursos correm por conta dos AA. (art. 527º do CPC).

V. Pelo exposto, julga-se:

- parcialmente procedente o primeiro recurso, revogando-se o despacho recorrido quando fixou o valor da causa em 5.000 euros, com base nesta parte no valor de 150,00 euros que atribuiu ao pedido formulado na al. E) da PI, determinando-se que o valor de tal pedido seja apurado através da realização das diligências necessárias e adequadas para a sua determinação, correspondendo o valor da causa à soma do valor desse pedido com o valor dos demais pedidos (cujo valor não foi impugnado);

- parcialmente procedente o segundo recurso, revogando-se o despacho que fixou em cinco o número de testemunhas admissíveis para os AA., devendo a fixação desse número ser avaliada apenas quando for fixado o valor da causa.

Custas pelos AA..

Notifique-se.

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…).     

Datado e assinado electronicamente

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.


[1] Assim, A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, e R. Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL 2020, pág. 295 (se as conclusões versam matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes, diz-se aí, aderindo a Ac. do TRC, proc. 1840/16 e citando-se ainda Ac. do TRE proc. 612/08). Sobre a constitucionalidade da solução, v. Ac. 462/2016, do TC (disponível online).
[2] Por facilidade de exposição, e porque se adequa aos termos deste recurso, passa no texto a referir-se apenas a situação do autor na acção (as demais situações – v.g. reconvinte, que é autor na contra-acção, ou exequente ou requerente - são, de qualquer modo, análogas).
[3] Com relevo especial, no caso, o art. 511º do CPC.
[4] Os AA. também invocam o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva mas, notoriamente, entendendo este direito como suporte ou manifestação do direito de acesso a tribunal superior (e por isso já compreendido no argumento atinente ao duplo grau de jurisdição) pois a própria instauração da acção já é demonstração bastante da concessão de tal direito, que em si em nada é afectado pela discussão pendente.
[5] Embora se note que não existe, por si, um prévio, abstracto e absoluto direito a um duplo grau de jurisdição, especialmente em matéria cível.

[6] O direito ao recurso em matéria civil tem consagração constitucional apenas implícita; entende-se que «Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões» (Ac. 159/2019 do TC, citando o Ac. 638/98 do mesmo Tribunal, no que constitui uma linha de entendimento uniforme daquele tribunal – acórdãos disponíveis online no site do TC).
[7] Sem prejuízo de poderem ocorrer modificações posteriores.
[8] As demais considerações contidas no pedido constituem uma excrescência não relevante.