Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
238/10.2TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
ÓNUS DA PROVA
BALDIOS
Data do Acordão: 07/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1268º, Nº 1, 1287º, 303º E 1292º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Na actio confessoria, - i.e., na acção em que o autor pretende apenas ver reconhecida judicialmente a titularidade de um direito real que o demandado não aceita – recai sobre o autor a prova do facto invocado como aquisitivo do direito real alegado.

II - Como o direito que se adquire constitutivamente pela usucapião é o direito correspondente ao modo de exercício da situação possessória que está a sua base, estando em causa a usucapião do direito real de propriedade – ou a presunção de titularidade decorrente da posse – é necessária a prova de que o exercício dos poderes de facto sobre a coisa foi actuado nas vestes de proprietário.

III - Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, os baldios deixaram de poder ser objecto de apropriação privada, por qualquer título, incluindo a usucapião.

IV - A integração do terreno em baldio não obsta á sua aquisição por usucapião, desde que se demonstre que, ao tempo da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, já se mostrava constituído, a favor do exercente da posse, o direito potestativo à aquisição daquele direito real, não sendo indispensável que a sua invocação tenha sito feita até esse mesmo momento.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

M… e cônjuge, S…, L… e P… interpuseram recurso ordinário de apelação da sentença da Sra. Juíza de Direito do Tribunal Judicial da Comarca de Tondela que, julgando parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, sumário pelo valor, que propuseram contra C… e cônjuge, O…, e a Assembleia de Compartes dos Baldios de P…, condenou os últimos a reconhecerem que o prédio identificado no ponto 1) da factualidade provada é propriedade da herança ilíquida e indivisa de E…, que o prédio identificado no ponto 4) da factualidade provada é propriedade da autora M… e os prédios identificados nos pontos 2) e 3) são propriedade do autor P…, e absolveu-os dos demais pedidos formulados.

Os recorrentes - que pedem no recurso, a revogação desta sentença e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente procedente - remataram a sua alegação com estas conclusões:

Na resposta ao recurso, os apelados – depois de observarem que a maior parte das alegações se resumem à transcrição dos depoimentos das testemunhas e que a discussão é praticamente inexistente – concluíram, naturalmente, pela improcedência dele.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

                3. Fundamentos.

                3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

                Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

                Os autores pediram, contra os réus, a declaração de que da herança indivisa aberta por óbito de E… – de que as autoras … são únicas herdeiras - faz parte um prédio rústico, de que a autora … é proprietária de uma casa de habitação e de que o autor … é proprietário de um prédio rústico e de um prédio urbano, que de todos estes prédios faz parte integrante, como propriedade comum, destinado a acesso a eles, uma faixa de terreno, e a condenação dos demandados a tapar um portal e não mais transitarem por aquela faixa de terreno.

                Os autores alegaram, como causa petendi, destes pedidos, este facto aquisitivo: uma posse e uma posse – ainda que não titulada e de má fé - boa para usucapião. De harmonia com a sua alegação, exercem sobre aqueles prédios e esta faixa de terreno, há mais de 20 anos, uma posse em tudo boa para usucapião.

                Os réus defenderam-se alegando a falsidade dos factos relativos à posse da faixa de terreno, invocados pelos autores, e que tal faixa faz parte do baldio de P...

                A sentença final da causa condenou os demandados no reconhecimento de que herança aberta por óbito de E… e a autora M… e P… são proprietários dos prédios indicados – ponto que os réus não controverteram - mas desamparou as demais pretensões dos recorrentes, maxime, a de reconhecimento de que desses prédios faz parte integrante a aludida faixa de terreno.

                A sentença impugnada adiantou, como fundamento da improcedência deste pedido, esta duas razões: não se ter demonstrado que a posse dos autores sobre a faixa de terreno fosse exclusiva e sem oposição de quem quer que fosse; não ter resultado provado qualquer factualidade que permitisse concluir que os autores ou seus antepossuidores desde à décadas já ali praticassem actos de posse sobre a aludida faixa de terreno que lhes permitisse invocar aquando da entrada em vigor do DL 39/76, a usucapião.

                Os recorrentes alegam, porém, que uma tal decisão de improcedência se deve ao error in iudicando, por erro na apreciação da prova, em que incorreu o decisor de facto da 1ª instância.

O recurso tem, portanto, por objecto, a decisão da matéria de facto. A este objecto fundamental acresce um outro: a incompreensibilidade, nalgumas passagens, dos depoimentos das testemunhas …, que, segundo os recorrentes, os impede de exercer cabalmente o direito de transcrever as passagens que, no seu entender, infirmam o que nos referidos pontos de facto foi dado como assente.

Mas este problema deve, desde já, ser afastado do universo das nossas preocupações.

É verdade – como a reprodução do registo sonoro torna patente - que nalguns passos, os depoimentos daquelas testemunhas são ininteligíveis.

Todavia - e o contrário do que, a dado momento, os recorrentes pretendem inculcar na sua alegação – não se trata de um defeito ou de um vício da gravação, mas de ininteligibilidade das declarações, elas mesmas, das testemunhas: o que sucede é que não se percebem as palavras ditas pelas testemunhas, não se entende que vocábulos é que as testemunhas pronunciaram, o que é que disseram. Isto é, sobretudo, evidente no tocante ao depoimento da testemunha …, o que levou mesmo o Sr. Advogado a interpelar a Sra. Juíza de Direito para pedir à testemunha para falar como mais calma e a pedir à testemunha para falar um bocadinho mais devagar para a Sra. Dra. Juiz e o meu colega perceberem porque também aquilo que o senhor está a falar está a ser gravado e se fala muito depressa não entendemos nada e mesmo que a testemunha falasse alto como o ministro das finanças, parece que está sempre a dormir.

O defeito ou vício da ininteligibilidade não é do registo sonoro – que é inteiramente escorreito – mas do depoimento. Não se coloca, portanto, a questão da nulidade por gravação defeituosa – que, de harmonia com a solução que se tem preferível, e que parece ser aquela que tende a prevalecer no Supremo, pode ser invocada na própria alegação do recurso e constituir objecto dele[1]: a gravação é perceptível e fiel, reproduzindo com exactidão os depoimentos e mesmo os passos deles que são ininteligíveis.

O que estava indicado, em face da ininteligibilidade das declarações das testemunhas, era instá-las a que as repetissem de forma compreensível, de modo a tornar claro que palavras é que as testemunhas disseram, que frases é que os depoente pronunciaram.

Evidentemente – no rigor dos princípios – pressupondo a lei, pela natureza das coisas, que as testemunhas prestem declarações inteligíveis ou perceptíveis, caso o não façam, omite-se formalidade essencial que a lei prescreve, falta que é manifestamente relevante, visto que pode influir no exame ou na decisão da matéria de facto. Trata-se, porém, de uma simples nulidade inominada ou secundária que, portanto, só pode ser apreciada mediante reclamação da parte e que, caso a parte esteja presente no momento em que foi cometida, deve ser arguida no acto (artºs 202, 2ª parte, 203 e 205 nº 1, 1ª parte, do CPC).

Ora, no caso a referida nulidade ter-se-ia por cometida na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 15 de Outubro de 2012, na qual foram prestados os depoimentos daquelas testemunhas, em que os recorrentes estiveram presentes. Como só a arguiram na sua alegação de recurso – oferecida por via electrónica no dia 30 de Janeiro de 2013 – é claro que o fizeram depois da extinção, por caducidade, do direito de reclamar contra ela, que, por isso, se considera sanada (artº 145 nºs 1 a 3 do CPC).

De resto, os apontados depoimentos, na parte em que são inteligíveis, permitem, com suficiência, apreender – para além da razão de ciência – o seu sentido e o seu nítido seu desfavor para o ponto de vista que, acerca da realidade dos factos controvertidos, é sustentado pelos recorrentes.

Quando o recorrente impugna a decisão da matéria de facto deve especificar, sob pena de rejeição do recurso, quais os pontos concretos que considera incorrectamente julgados e quais os meios de prova, constantes do processo ou do registo da gravação nele realizada, que impõem uma decisão diversa sobre esses pontos (artº 685-B nº 1 a) e b) do CPC).

                Neste último caso, quando os meios de prova invocados como fundamento no erro na apreciação da prova tenham sido gravados, e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, incumbe ainda ao recorrente, sem prejuízo de, por sua iniciativa, proceder à sua transcrição, proceder, sob pena de rejeição do recurso, à indicação das passagens da gravação em que se fundamenta (artº 685-B nº 2); quando a gravação não permita a identificação precisa e separada dos depoimentos, incumbe às partes proceder à respectiva transcrição (artº 685-B nº 4 do CPC).

                Tem-se, por certo, que os recorrentes satisfizeram qualquer destes ónus.

                Constitui uma ocorrência vulgar a impugnação da decisão da matéria de facto através da simples indicação da prova que, no ver do recorrente, conduz a convicção distinta da formada pelo decisor do tribunal a quo.

                Não parece, todavia, que, materialmente, o pontual cumprimento do ónus de impugnação da decisão da questão-de-facto se deva considerar satisfeito com a simples indicação da prova que, no ver do recorrente, justifica decisão diversa da encontrada, pelo tribunal da 1ª instância, para o ponto de facto que o apelante reputa mal julgado.

                O recorrente que impugne a decisão da matéria de facto deve procurar demonstrar o erro de julgamento dessa matéria, demonstração que implica a produção de razões ou fundamentos que, no seu modo de ver, tornam patente um tal erro. Na realidade, não parece excessivo exigir ao apelante que, no curso da alegação, exponha, explique e desenvolva os fundamentos que mostram que o decisor da 1ª instância errou quanto ao julgamento da matéria de facto, exposição e explicação que deve consistir na apreciação do meio de prova que justifica decisão diversa da impugnada, o que pressupõe, naturalmente, a indicação do conteúdo desse meio de prova, a determinação da sua relevância e a sua valoração.

                Este especial encargo de argumentação, a cargo do recorrente deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor; caso contrário, a impugnação da matéria de facto banaliza-se numa mera manifestação inconsequente de inconformismo[2].

                Mas não foi esta a atitude dos recorrentes, que se limitaram a transcrever alguns depoimentos – alguns só em parte - e a enunciar os factos que, no seu ver, foram erroneamente julgados, não tendo gasto uma só palavra para explicar as razões pelas quais, no seu ver, o decisor de facto da 1ª instância incorreu, no julgamento dessa matéria, no erro que lhe assacam. Isso não impede o conhecimento deste objecto do recurso – mas há-de convir-se que compromete largamente a probabilidade do seu provimento.

                Como quer que seja, o recurso tem, pois, por objecto, fundamentalmente, a questão de facto. No ver dos recorrentes, os enunciados contidos, na motivação de facto da sentença impugnada com nºs 17, 25, 26, 28, 31 e 32 – que correspondem aos pontos de facto nºs 8 a 12, 30 a 31-A, 33, 35, 41, e 42 e 43 da base instrutória, respectivamente – foram, por um erro na valoração das provas, mal julgados.

                A discussão gravita em torno destes dois problemas: de um lado, as características da posse actuada pelos apelantes sobre o trato de terreno litigado; de outro, a susceptibilidade de aquisição, designadamente por usucapião, do direito real de propriedade do bem imóvel sobre que aquela posse é actuada.

                Maneira que a questão concreta controversa que importa resolver consiste em saber se, realmente, o decisor de facto da 1ª instância incorreu, na decisão daquela matéria, por violação das regras da ciência, da lógica ou da experiência, no apontado error in iudicando, o que vincula, naturalmente, à ponderação dos parâmetros dos poderes de controlo desta Relação relativamente à matéria de facto, e ao exame dos pressupostos da aquisição, por virtude da posse, do direito real de propriedade.

                Dada a patente interdependência entre a matéria de direito e a matéria de facto – dado que os factos são recortados e escolhidos nos acontecimentos naturais ou sociais, segundo a sua relevância jurídica - justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra, precisamente, com o exame dos pressupostos da aquisição, por virtude da posse, do direito real de propriedade.                      

                3.2. Pressupostos da aquisição, por virtude da posse, do direito real de propriedade.

                Tendo em conta o objecto do processo, tal como se mostra definido pelo pedido e pela causa de pedir alegada pelos recorrentes, estamos, no caso, face a uma acção confessória.

A acção confessória - que à semelhança da acção negatória, não constitui, no nosso direito, uma acção real típica[3] - pode ser definida como aquela em que o autor ou o réu reconvinte pretende afirmar contra o réu ou contra o autor reconvindo, respectivamente, a existência de um direito real menor que o demandado não aceita.

                A acção confessória é uma acção de simples apreciação em que a causa de pedir é, para quem entenda tratar-se de uma acção real, o facto jurídico constitutivo do direito, ou, para quem sustenta entendimento diverso, a relação jurídica real (artº 498 nº 4 do CPC).

                A prova do facto de que emerge o direito real menor cabe aquele que se arroga a titularidade dele. A prova exigível é semelhante à prova diabólica exigida pela acção de reivindicação: desde que se invoca a titularidade de um direito real sobre a coisa, tem que se provar o acto aquisitivo correspondente, se necessário reconstituindo a cadeia de titulares anteriores até uma aquisição originária.

Na sua configuração usual, na actio confessoria, o autor pretende apenas afirmar contra o demandado a existência de um direito real menor que o último não aceita. Nada obsta, porém, que se faça compreender no seu perímetro, a declaração de existência do direito real de propriedade, quando o autor não pretenda obter a entrega da coisa pelo réu, mas simplesmente ver reconhecida judicialmente contra ele a titularidade daquele direito real maior[4]. Do ponto de vista estritamente adjectivo, trata-se nitidamente de uma acção de simples apreciação positiva (artº 4 nº 1 a) do CPC).

O autor tem, pois, que fazer a prova do seu direito, que o adquiriu em consequência de facto válido e eficaz. É, dada a dureza dessa prova, a chamada probatio diabolica.

Esta prova é feita nos termos gerais. Se o autor beneficia de uma presunção legal, o ónus dessa prova inverte-se, ficando o demandado onerado com o encargo da demonstração de que o autor não é titular do direito invocado (artº 350 nºs 1 e 2 do Código Civil). As presunções mais relevantes neste domínio são duas: a derivada da posse; a assente no registo predial (artºs 1268 nº 1 do Código Civil e 7 do Código de Registo Predial).

Se não beneficiar de uma presunção legal, e caso o demandado tenha contestado a titularidade pelo demandante do direito real invocado, este tem de se libertar do ónus da prova dessa titularidade. Sendo o facto aquisitivo meramente derivado, a prova dessa titularidade faz-se através da reconstituição da cadeia dos adquirentes anteriores até a uma aquisição originária: o autor tem de provar a validade dos factos translativos do direito até ao seu, quer dizer, a titularidade do direito na esfera jurídica dos transmitentes anteriores, até àquele que lhe transmitiu o seu direito.

Como é bem de ver, a actividade probatória que o autor da actio confessoria tem de desenvolver é extraordinariamente pesada, mas tem como limite uma aquisição originária. Demonstrando-se um facto aquisitivo originário – v.g., a usucapião – não há que recuar mais atrás, dado que esse é o momento da constituição do direito adquirido pelo autor. Isto só não é assim se o autor puder, ele mesmo, invocar um facto aquisitivo originário: neste caso, tudo se resume à demonstração do facto invocado como aquisitivo do direito alegado real de gozo alegado.

A posse faculta ao possuidor a aquisição, designadamente por usucapião, do direito real nos termos do qual aquela posse foi exercida (artºs 1268 nº 1 e 1287 do Código Civil).

Porém, a constituição por usucapião não é automática, tem de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente (artº 303, ex-vi artº 1292 do Código Civil). Verificada a posse com certas características e decorrido o prazo assinado na lei, o direito real correspondente à posse constitui-se por usucapião. Mas nada vincula ou força o beneficiário, logo que tenha uma situação possessória boa para usucapião, a invocá-la. Pode fazê-lo na altura que mais lhe convier. Enquanto não ocorrer essa invocação, o possuidor tem, não o direito real correspondente à posse exercida – mas o direito potestativo à aquisição desse direito por usucapião.

E, uma vez adquirido o direito à aquisição por usucapião, esse direito não se perde nunca e é independente de registo (artº 5 nº 2 a) do Código de Registo Predial). Pode, por isso, o direito potestativo ser exercido muitos anos depois e só cede pela superveniência de causa originária de aquisição do mesmo direito por terceiro.

                Os recorrentes fundam a aquisição do direito real de propriedade sobre a parcela de terreno que constitui o nódulo do litígio, no seguinte facto jurídico complexo: a posse durante o tempo necessário à usucapião.

A usucapião é a constituição facultada ao possuidor do direito real correspondente à sua posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei (artº 1287 do Código Civil).

                A usucapião tem sempre, na sua base, uma situação possessória. Só a posse e não a mera detenção pode conduzir à usucapião. Essa posse pode ter sido constituída ex-novo pelo sujeito a quem a usucapião aproveita ou pode derivar da transmissão, a favor do beneficiário, de posse anterior.

                A posse pode constituir-se pelo apossamento, i.e., pela apropriação material de uma coisa, e pela inversão do título da posse, e transmite-se pela tradição, material ou meramente simbólica da coisa, efectuada pelo antigo possuidor, e pelo constituto possessório (artº 1263 a) a d) do Código Civil).

O constituto possessório é uma forma de aquisição derivada da posse. A transmissão da posse por constituto possessório ocorre quando um titular de um direito real que esteja na posse da coisa, transmita esse direito a outrem, ficando com a detenção dela (artº 1264 do Código Civil). Trata-se, nitidamente, de uma forma de tradição simbólica, portanto, de entrega da coisa, sem alteração no seu controlo material.

                Para que haja transferência da posse é, evidentemente, necessário que o transferente seja possuidor e deixe de o ser; se não era possuidor, não pode naturalmente, transferir o que não tinha; se depois continua a sê-lo é porque a transferência não operou, seja qual for a razão.

Quando a sucessão na posse opere por título diverso da sucessão por morte, o transmitente pode valer-se da acessão da posse e, portanto, juntar à sua a posse do antecessor (artº 1256 nº 1 do Código Civil).

Mas a acessão não representa uma modalidade de transmissão da posse, como logo decorre do seu carácter facultativo. A transmissão resulta dos princípios gerais: o que lei estabelece é, pelo contrário, a possibilidade de o transmissário invocar apenas a sua própria posse, essencialmente para efeitos de usucapião. A acessão na posse tem efectivamente que ver com a matéria da usucapião, e não com a da transmissão da posse[5].

                A posse pode definir-se como a afectação material de uma coisa corpórea aos fins de pessoas individualmente consideradas (artº 1251 do Código Civil)[6].

                A posse arranca sempre do controlo material duma coisa corpórea. No entanto, nem a doutrina nem a jurisprudência são inteiramente acordes sobre os elementos que a integram. Para a doutrina subjectivista, a posse é constituída pelo corpus - controlo de facto da coisa - e pelo animus - ou intenção de ser proprietário - animus domini - de ser possuidor - animus possidendi - ou de ter a coisa para si - animus sibi habendi; para a teoria objectivista a posse derivaria do corpus com o animus, incindíveis, e a detenção do corpus e do animus, a que se juntaria uma disposição legal que retiraria a qualidade de posse[7].

Como quer que seja, mesmo para uma concepção puramente subjectivista do instituto e que, portanto, exige para que haja posse, corpus e animus, deve notar-se que a lei facilita a prova do animus possidendi, visto que estabelece que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto (artº 1252 nº 2 do Código Civil)[8]. Traduzindo-se, na lógica daquela concepção, o animus possidendi num elemento de natureza psicológica, é evidente a grave dificuldade da sua prova. Aquela presunção, ainda que meramente iuris tantum, tem por isso a maior importância.

A posse que faculta a aquisição originária do direito real deve ser pacífica e pública, i.e., uma posse que tenha sido adquirida sem violência e que seja exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artºs 1261 nºs 1 e 2 e 1262 do Código Civil).

Só uma tal posse é boa para usucapião, visto que a primeira condição para que esta opere é a de que haja posse com as características da pacificidade e da publicidade; faltando estas qualidades, os prazos para a usucapião não se contam (artºs 1297 e 1300 nº 1 do Código Civil).

Como já se observou, a posse faculta ao possuidor a aquisição do direito nos termos do qual aquela posse foi exercida (artº 1287 do Código Civil). O direito que se adquire constitutivamente pela usucapião é o direito correspondente ao modo de exercício da situação possessória que está a sua base. Estando em causa a usucapião do direito real de propriedade, é claro que não é suficiente que alguém se apresente como exercente dos actos de posse para que beneficie da aquisição daquele direito. É ainda necessário que essa posse seja actuada a título de dono: o possuidor que pretenda usucapir a propriedade deve actuar nas vestes de proprietário.

O titular do direito real de propriedade dispõe de uma permissão normativa plena ou total de aproveitamento das utilidades da coisa corpórea atingida por ele (artº 1305 do Código Civil). Além da plenitude, o direito real de propriedade é ainda dotado de uma outra qualidade: é exclusivista em relação a coisa. O direito real de propriedade não admite, no tocante à mesma coisa, a concorrência de outro direito de conteúdo igual.

Em vista desta característica, demonstrado que uma pessoa é titular do direito real de propriedade sobre uma coisa, segue-se, como corolário lógico, que não pode ser recusado, que nenhuma outra pessoa pode ser titular desse mesmo direito.

                Correspondentemente, uma posse exercida nos termos do direito real de propriedade é também, necessariamente, uma posse exclusiva, uma posse que exclui qualquer outra posse por parte de outrem.

A posse que dá lugar à aquisição, por usucapião, do direito real de propriedade deve, por isso, ser exercida de modo exclusivo: o possuidor, declara a lei, deve actuar de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (artº 1251 do Código Civil).

Se o exercício dos poderes de facto sobre a coisa não for exclusivo, para uma concepção subjectivista da posse faltaria a esta o animus, que consistiria, no caso, na actuação dos recorrentes e dos seus antecessores como únicos proprietários da parcela de terreno[9]. Parece mais exacto, todavia, assentar em que, não havendo uso exclusivo, a não haver composse, falta simplesmente o corpus: não há uma actuação de facto correspondente ao exercício do direito de propriedade[10]. Em qualquer dos casos, seja por falta de animus seja por falta de corpus, a falta de exclusividade da posse torna esta inábil, para a aquisição do direito, tanto por usucapião, como pela simples actuação da presunção da titularidade do direito real nos termos do qual são exercidos sobre a coisa os poderes de facto.

Para haver posse titulada são necessários dois requisitos: um positivo, representado pela legitimação de um titulus adquirendi do direito em termos do qual se possui; outro negativo, que se revolve na inexistência de vícios formais nesse mesmo negócio (artº 1259 nº 1 do Código Civil).

Os vícios não formais do negócio ou titulus adquirendi não afectam, em regra, o título da posse; os vícios de forma, resultantes da inobservância de formalidades ad substantiam é que, sem dúvida, determinam a falta de título da posse (artº 1259 nº 1 do Código Civil). Portanto, o título não é prejudicado por vícios substanciais do negócio jurídico. Mas a lei não abstrai da validade formal daquele negócio: se este for formalmente inválido, haverá posse – mas essa posse é não titulada. Para que seja titulada a posse tem, assim, que ter origem num facto jurídico abstractamente idóneo para provocar a aquisição do direito real, que não seja formalmente inválido.

Contudo, a posse que faculta ao possuidor a usucapião não tem que ser titulada: a ausência de título apenas importa o alargamento do prazo necessário para que aquela possa ser invocada (artºs 1294 e 1296 do Código Civil).

A posse diz-se de boa fé quando, no momento da sua aquisição, o possuidor ignorava que lesava o direito de outrem (artº 1260 nº 1 do Código Civil)[11]. Desta noção de boa fé, resulta, naturalmente, como seu reverso, a noção de má fé.

Discute-se se a boa fé possessória é ética ou puramente psicológica[12]. Quer se trate de um conceito puramente psicológico e, portanto, puramente fáctico quer se deva entrar em linha de conta, com um padrão ético-jurídico, a verdade é que a prova da boa ou da má fé – sobretudo quando entendida numa acepção psicológico-empírica – é extremamente difícil. Pressentindo a dificuldade, a lei recorre a presunções, determinando que a posse titulada se presume de boa-fé, e a não titulada de má fé (artº 1260 nº 2 do Código Civil).

A atitude da lei compreende-se: se a existência de título não é suficiente, de per se, para fundamentar a boa fé, constitui, no entanto, um sério indício de que se julgou adquirir o direito e, por conseguinte, de que a posse se julgou adquirir sem prejuízo para outrem; a falta de título indicia fortemente o contrário.

Dado, contudo, o carácter falível dessa base, é evidente que qualquer das presunções é meramente iuris tantum, ou seja, elidível mediante prova em contrário (artº 350 nº 2 do Código Civil).

Como todos os caracteres em exame, a boa ou má fé avalia-se no momento da aquisição e, como o título ou não título, é uma característica permanente da situação possessória. A distinção entre a posse de boa ou de má fé releva naturalmente para efeitos de usucapião. Não – insiste-se - com o significado de que só uma posse de boa fé é susceptível de facultar a usucapião, mas no sentido de exigência, no tocante à posse de má fé, de um prazo mais largo para possibilitar ao possuidor a invocação dessa usucapião (artº 1296 do Código Civil).

Como é sabido, a posse pode diferenciar-se em posse causal e posse formal, conforme o possuidor é, ou não, em simultâneo, titular do direito real em cujos termos se processa o exercício possessório. Note-se que a posse causal não uma decorrência necessária da titularidade do respectivo direito; exige-se sempre algo que acresça a essa titularidade – o controlo material da coisa ou, pelo menos, uma forma juridicamente equivalente. A posse causal nem sequer se presume e, por isso, deverá ser objecto de invocação e comprovação autónomas. Mal vale a pena perder uma palavra para explicar que uma posse meramente formal – ou seja a posse desligada do direito real nos termos do qual é actuada – é uma posse boa para usucapião, desde que no caso concorram os demais requisitos apontados.

Pode, todavia, suceder que, concorrendo, no caso, todos os requisitos da usucapião, a lei exclua a faculdade da aquisição, pelo possuidor, do direito nos termos do qual a coisa é possuída (artº 1287 do Código Civil).

É o que, patentemente, ocorre no tocante aos baldios.

Os baldios são, segundo a definição legal, os terrenos, mesmo quando constituídos por áreas descontínuas, geridos e possuídos pelas comunidades locais (artºs 1 nº 1 e 2 nº 1 da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, alterada pela Lei nº 89/97, de 30 de Julho).

Uma das características mais salientes dos baldios é, seguramente, a proibição da sua apropriação individual, garantida pela nulidade cominada para os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, não expressamente ressalvados na lei (artº 4 nº 1 da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro). Nessa ressalva compreende-se, porém, além das servidões, a aquisição, por acessão industrial imobiliária, das parcelas de terreno, em que tenham sido efectuadas, ainda que irregularmente, construções de carácter duradouro, destinadas a habitação ou a fins de exploração económica ou utilização social, desde que o autor da incorporação tome a iniciativa da aquisição no prazo de 1 ano, contado da entrada em vigor daquela lei, sob pena de, as comunidades locais poderem adquirir, a todo o tempo, as benfeitorias necessárias e úteis incorporadas no terreno, avaliadas, na falta de acordo, por decisão judicial (artºs 30 e 39 nº 2 da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro).

Esta insusceptibilidade de apropriação individual era já imposta pelo direito imediatamente anterior, dado que o Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, colocava os baldios fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de apropriação privada, por qualquer forma ou título, incluindo a usucapião (artº 2) e, por sua vez, o Decreto-Lei nº 40/76, de 19 de Janeiro, consagrava uma anulabilidade (?), a todo o tempo, dos actos e negócios que tivessem por objecto a apropriação de terrenos baldios, anulabilidade que abrangia a própria apropriação por usucapião (artº 1 nºs 1 e 3).

Se até à superveniência do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, os baldios se deveriam ter por prescritíveis[13], a partir da entrada em vigor daquele diploma, a solução exacta passou a ser a inversa: os baldios deixaram de poder ser objecto de apropriação privada, por qualquer título, incluindo a usucapião[14].

Todavia, a subtracção dos baldios à usucapião, contida no Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, sendo inovatória, de harmonia com os princípios gerais de aplicação da lei no tempo, só pode valer para o futuro[15], conclusão de que decorre esta consequência: a validade da aquisição por usucapião do direito real, v.g., de propriedade, sobre o terreno baldio, se no momento da entrada em vigor daquele diploma legal, já se mostrar constituído, a favor do exercente da posse, o direito potestativo à aquisição daquele direito real – não sendo indispensável que a sua invocação tenha sito feita até esse mesmo momento: é suficiente a aquisição, nesse momento, do direito à aquisição usucapião, bem podendo a sua invocação ser feita ulteriormente (artº 12 nºs 1 e 2 do Código Civil).

                Pois bem: a sentença impugnada, com fundamento em que não ficou demonstrado que a posse dos autores sobre a faixa de terreno fosse exclusiva e sem oposição de quem quer que fosse e que resultou provado qualquer factualidade que permitisse concluir que os autores ou seus antepossuidores desde a década, já ali praticassem actos de posse sobre a aludida faixa de terreno que lhes permitisse invocar aquando da entrada em vigor do DL 39/76, a usucapião – julgou improcedente o pedido de declaração de que aquele tracto de terreno integra os diversos prédios dos vários autores

                Mas esta decisão de improcedência – clamam os recorrentes – só é compreensível em face do error in iudicando em que incorreu, na decisão da matéria de facto, o decisor da 1ª instância.

3.3. Poderes de controlo da Relação sobre a decisão da 1ª instância relativa à matéria de facto.

A Relação é normalmente um tribunal de 2ª instância. Pela sua própria índole, a Relação tem competência para apreciar e conhecer tanto de questões de direito como de questões de facto. O recurso de apelação é precisamente aquele que, segundo a sua natureza de recurso amplo, deveria ter eficácia e alcance para submeter à consideração da Relação toda a matéria da causa.

A atribuição ao recurso de apelação da natureza de recurso verdadeiramente global e, correspondentemente, a possibilidade de a Relação conhecer da matéria de facto, pressupõe que a esse Tribunal são garantidas, pelo menos, as mesmas condições que são asseguradas ao tribunal recorrido.

O sistema actual de recursos procurou conciliar as garantias da oralidade e da imediação – que contribuem decisivamente para o bom julgamento da causa, em especial, no que se refere à apreciação da matéria de facto – com algumas exigências práticas.

Estas exigências conduzem, por exemplo, a que o controlo sobre um decisão relativa ao julgamento de um facto supostamente provado pelo depoimento de uma testemunha, não requeira a presença dessa testemunha perante o tribunal ad quem. É suficiente, na lógica da lei, que seja disponibilizado a este tribunal o registo ou a gravação desse depoimento ou a sua transcrição (artº 685-B nºs 1 b), 2 e 4 e 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC).

O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância, pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.

A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC).

Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando[16]. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.

Mas para que a Relação altere e, portanto, substitua, a decisão da matéria de facto da 1ª instância não é suficiente um qualquer erro. Este erro há-de ser manifesto, ostensivamente contrário às regras da ciência, da lógica e da experiência, que aponte, decisiva e inequivocamente, para, o julgamento do facto, um sentido diverso daquele que lhe imprimiu o decisor da 1ª instância - e não, simplesmente, que se limite a sugerir ou a tornar provável ou possível esse outro sentido[17].

Nem, aliás, é difícil explicar a exactidão de um tal entendimento dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto que a lei adjectiva actual reconhece à Relação.

De um aspecto, porque esse controlo e a reponderação correspondente da matéria de facto é efectuado, em regra, a partir da reprodução de registos sonoros, rectior, gravações áudio, de depoimentos, ou da leitura fria e inexpressiva da sua transcrição. Ora, é irrecusável que depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode alguma vez ser medido pelo tom em que foram proferidos; a palavra é simultaneamente um meio de exprimir conteúdos de pensamento e de os ocultar; todas as formas de comunicação não verbal do depoente influem, quase tanto como a sua expressão oral, na força persuasiva do seu depoimento[18]. Existem aspectos e reacções dos depoentes que apenas podem ser apreendidos e apreciados por quem os constata presencialmente e que a gravação sonora, e muito menos a transcrição, não tem a virtualidade de registar e que, por isso, são irremissivelmente subtraídos à apreciação do último tribunal relativamente ao qual ainda seja lícito conhecer da questão correspondente[19]. Tratando-se de prova pessoal, rectius, testemunhal, o registo – sonoro ou escrito - comporta o risco de tornar formalmente equivalentes declarações substancialmente diferentes, de desvalorizar depoimentos só aparentemente imprecisos e de atribuir força persuasiva a outros que só na superfície dela dispõem.

A decisão da matéria de facto, respeita, por definição, à averiguação de factos – i.e., a ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, a qualquer mudança do mundo exterior, ao estado, qualidade ou situação real das pessoas e coisas[20] – e o resultado dessa actividade pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Todavia, essa actividade não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção, não é uma operação pura e simplesmente lógico-dedutiva – mas uma formação lógico-intuitiva. As dificuldades que daqui decorrem para o controlo dessa actividade são meramente consequenciais.

Por último, convém ter presente que o controlo da matéria de facto tem por objecto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada num audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa percepção própria do material que lhe serve de base (artºs 652 nº 3 e 655 nº 1 do CPC)[21].

Decerto que liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objectivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjectiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros. Mas não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente.

O procedimento desenvolvido para estabelecer os factos sobre os quais o tribunal deve construir a sua decisão não é puramente cognitivo, o que explica a inevitável relatividade da certeza histórica de um facto que a prova disponibiliza.

Contudo, esse procedimento, na medida em que assenta num esquema lógico, permite estabelecer uma regra de valoração da prova que se analisa nas proposições seguintes: a valoração da prova é uma operação mental que resolve num silogismo em que a premissa maior é a fonte ou o meio de prova – o depoimento, o documento, etc. - a premissa menor é uma máxima de experiência e a conclusão é a afirmação da existência ou a inexistência do facto que se pretendia provar; as regras de experiência são juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos. Deste ponto de vista, a única diferença entre um sistema de prova livre e um sistema de prova legal, consiste no facto de na última, a máxima de experiência, que constitui a premissa menor do silogismo, ser estabelecida ou objectivada pelo legislador, ao passo que, no primeiro, se deixa ao juiz a determinação da máxima de experiência que deve aplicar no caso. Em ambos os casos, o método de valoração da prova não deve ser contrário à lógica, devendo antes ser actuado de harmonia com um critério de normalidade jurídica, derivado do id quod plerumque accidit - daquilo que normalmente sucede[22].

Nestas condições, a apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference. Os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[23].

O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis – a realidade ou a inveracidade de um facto – tem menor probabilidade de não ser a correcta.

3.3.1. Reponderação da decisão relativa à matéria de facto da 1ª instância.

Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação do tribunal, no sentido já apontado. É o caso, por exemplo, da prova testemunhal (artº 396 do Código Civil). Essa apreciação baseia-se – já se notou – na prudente convicção do tribunal sobre a prova produzida, quer dizer, em regras de ciência e de raciocínio e em máximas de experiência (artº 655 nº 1 do CPC). Neste contexto, nada impede, por exemplo, que a convicção do juiz se funde no depoimento de uma única testemunha[24].
Constitui património comum dos operadores judiciários a extraordinária cautela com que deve ser manejada a prova testemunhal, dado o perigo da sua infidelidade, seja ela involuntária – v.g., por erro de percepção ou de retenção do facto – ou voluntária – por vício de parcialidade.
Dadas todas as possíveis causas de erro que actuam sobre a prova testemunhal, é natural uma atitude de desconfiança e desânimo por parte de quem se vê forçado a decidir sobre a base de semelhante prova e uma atitude de desconforto por banda de quem tem de controlar uma decisão assente numa prova a que se associa uma tão larga falibilidade. O desencanto é tanto mais lamentável quanto é certo que na prática dos tribunais a prova por testemunhas vem à cabeça de todas as outras, é a prova de uso mais frequente porque é, na maioria dos casos, a única que se pode produzir.
Considerada a enorme variedade de causas que podem dar lugar a que a testemunha não possa ou não queria dizer a verdade, deve usar-se de grande cautela em relação a esta prova e só a sua valoração sob o signo estrito da oralidade e da imediação permite estabelecer, adequadamente, o efeito persuasivo que, em cada caso, lhe deve ser assinalado. De resto, aquele princípio e este seu corolário são comprovadamente adequados a extirpar um dos maiores males da prova testemunhal: a mentira.

Como já se reparou, o resultado da actividade de julgamento da matéria de facto pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática.
No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Está nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse facto. A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto[25].
As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida. Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela.

                Os factos que, no ver dos apelantes, foram erroneamente julgados pelo tribunal da 1ª instância, são os que surgem identificados na sentença apelada com os nºs 17, 25, 26, 28, 31 e 32, resultantes da resposta aos enunciados de facto insertos na base da prova com os nºs 8 a 12, 30 a 31-A, 33, 35, 40 e 41, e 42 e 43, respectivamente.

                Mas é claro que não há que reponderar o julgamento de todos estes pontos de facto.

                De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa[26].

Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância. Isso sucederá sempre que, mesmo com a substituição a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação.

Portanto, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção. E relativamente aos factos que correspondam aos possíveis enquadramentos jurídicos da causa, a reponderação apenas deve incidir sobre os factos principais ou essenciais e não sobre os instrumentais. È que se o facto principal for julgado provado ou não provado, os respectivos factos instrumentais tornam-se irrelevantes.

Como já se fez notar, o litígio das partes gravita, no plano de facto, em torno destas duas questões: a utilização, há mais de 20 anos, pelos recorrentes e seus antecessores, de uma parcela de terreno como coisa exclusivamente sua – objecto dos pontos de facto inclusos na base instrutória sob os nºs 8 a 12, 33, 35 e 43; a integração ou pertença dessa faixa de terreno no baldio de P… – objecto do ponto de facto incluso naquela base sob o nº 31-A. Faixa de terreno em que um dos antecessores dos recorrentes, …, procedeu, na década de 80, á abertura de um caminho, e ao seu empedramento e á construção de um muro de suporte – facto cuja veracidade se não controverte no recurso.

E, realmente, estes são os – únicos - factos essenciais, tanto para reconhecer aos recorrentes o direito real que pela acção pretendem fazer declarar e valer, como, evidentemente, para lhes recusar essa declaração.

A esta luz, o facto – objecto do ponto inserto na base instrutória sob o 41, no qual se perguntava se a recorrente M… está a possuir espaço “baldio” fora da plataforma do caminho, nomeadamente onde assentam os pilares de entrada do pátio de sua casa, em desacordo com planta de licenciamento é de todo irrelevante, segundo o único enquadramento possível do objecto da causa, para a decisão desta. A reponderação da exactidão do seu julgamento é, por isso, inútil.

E que prova é que, segundo, os apelantes, foi erroneamente avaliada ou aferida? Toda a prova testemunhal, com excepção do depoimento da testemunha …, único que não transcreveram, nem sequer, de forma truncada, na sua alegação, e a que, de resto, nunca se referem.

A testemunha … – agricultor reformado, de 88 anos de idade, tio da recorrida C…, que declarou nunca ter saído de Paranhos, excepto para o cumprimento do serviço militar em África, e viver a 200 metros, talvez do local do litígio – asseverou que o espaço, antes de lá estar o caminho, era inculto, era um baldio inculto, aquilo era tudo baldio e que os peirões estão os dois no sítio que considera baldio. Garantiu ainda que as escadas – feitas na casa da C…dão para espaço baldio, que a E… não tinha lá nada, ali era baldio, os peirões não existiam lá, era baldio, não havia lá nada, que quem mandou cortar a pedra foi o …, e que a E… não a vendeu, e que se a venderam não era deles.

E, nas instâncias com que foi apertado pelo Exmo. Advogado dos recorrentes, a mesma testemunha reiterou que aquilo era um baldio.

Os recorrentes acham que a força probatória deste depoimento – que, como decorre da fundamentação adiantada pelo decisor de facto da 1ª instância, exerceu no seu espírito uma influência determinante – deve ser desvalorizada, dado que a testemunha foi arrolada pela sobrinha – a recorrida C….

É exacto que a relação de parentesco da testemunha com a parte deve por o juiz de sobreaviso na apreciação da força probatória do depoimento, dado que esse vínculo é susceptível de perturbar a imparcialidade da testemunha, de a privar das condições que lhe permitam fazer um depoimento consciencioso e verdadeiro. Mas a existência da apontada relação não constitui, por si, motivo para negar à testemunha qualquer crédito e para considerar, só por isso, absolutamente diminuída, ou mesmo inteiramente excluída a força probatória do seu depoimento. A ser isto verdade, então haveria igualmente motivo para declarar que, por exemplo, as testemunhas … também não merecem qualquer fé também elas se mostram ligada à apelante … por um vínculo familiar – são primos.

Abstraindo da sólida razão de ciência indicada por este depoente e da forma coerente e convicta como depôs, a verdade é que o seu depoimento é corroborado pelo de duas outras testemunhas – …, que não têm com qualquer das partes vínculo de uma qualquer espécie.

Esta última testemunha – reformada, de 61 anos de idade, que declarou viver ali desde miúda e a cujo depoimento o decisor de facto da 1ª instância atribuiu uma especial força persuasiva, já que, como escreveu ma motivação com que procurou justificar o seu julgamento, logrou convencê-lo de forma determinante - afiançou, realmente, que até ao limite de um pinheiro que foi cortado quando a D. E… deu o terreno à filha para construção da casa, aquilo sempre foi baldio, aquilo está tudo baldio, que o local das escadas da C… dava para o caminho, que o caminho era baldio, aquilo, sempre o ouvi dizer. A mesma testemunha garantiu ainda que também ela lavava naquele buraco os trapos, desde os seus 14 anos.

Por seu lado, a testemunha … – reformado, de 60 anos, Presidente da Junta de Freguesia que declarou conhecer os baldios de P…, por ter sido a Junta a administrá-los até à constituição do conselho directivo, no início dos anos 90 – explicou que os baldios de P… têm varias parcelas e que a povoação de P… confinava directamente com o balido, havendo focositos de baldios, aqui e além. Adiantou ainda que na altura que quando entrou para a Junta, em 1 de Janeiro de 1986, aquilo era considerado baldio, depois foi aberto um caminho nesse dito baldio e depois foi calcetado, mas não a expensas da Junta, e que o seu colega da Junta alegou que um indivíduo que tinha a casa no alto, ou ia fazer, precisava de caminho mais digno, se a Junta fazia a calçada, mas penso que o meu colega a resposta que deu é que a Junta não tinha dinheiros para fazer a calçada e mais não se justificava só para um inquilino, e o indivíduo calcetou e acrescentou: era íngreme, era rochoso, era baldio.

Nas instâncias com que foi apertado pelo Exmo. Advogado dos recorrentes, reafirmou que aquilo era considerado baldio e que em 86 aquilo estava calcetado, que o homem – o seu colega na Junta – deu liberdade para fazer a calçada, mas considerando sempre público: a servidão era pública, e reiterou que, com o alargamento da povoação, foram ficando parcelas (de baldio).

Por sua vez, a testemunha … – construtor civil, residente em Besteiros – assegurou, na parte útil do seu depoimento, que … abriu e empedrou o caminho, com calçada antiga, obras que foram feitas há mais de 25 anos. Todavia, para o problema que nos ocupa, este depoimento deve ter-se por inconclusivo.

                Os depoimentos que seriam susceptíveis, de algum modo, de conduzir a um distinta decisão de – alguns – dos pontos de facto controvertidos, maxime o da pertença do solo da parcela ao baldio de P… e o da natureza da posse actuada pelos recorrentes e seus antecessores sobre aquela faixa de terreno, são decerto, os depoimentos das testemunhas … – reformado, de 69 anos de idade, criado naquele lugar, até aos 12 anos de idade – e … – doméstica, de 68 anos de idade, residente em Paranho de Besteiros. Realmente, a primeira destas testemunhas, asseverou que o caminho foi mandado fazer pelo seu tio – … – e que aquilo era só pedras, e que só o … se utilizava dele, que o baldio não tinha lá nada, que ninguém pode lá andar, só de for a passar e não podiam passar, tinham que voltar atrás; já a segunda daquelas testemunhas, garantiu, por sua vez, que aquilo sempre pertenceu aos seus avós e que o seu tio – … fez um caminho para casa, foi feito só para o seu tio, que o caminho não era baldio, e servia unicamente a casa do meu tio, e que o seus avós faziam nele madeira e punham a secar, que o alto era todo deles.

                Todavia, qualquer destas testemunhas sempre acabou por reconhecer que parte do caminho está no baldio, que um peirão está no baldio, tendo a segunda das apontadas testemunhas declarado, espontaneamente, que o tio pediu autorização à Junta para poder entrar no baldio – que ele mesmo dizia que lhe deram autorização para entrar no balido - e só quando instada pelo Exmo. Advogado dos recorrentes é que esclareceu que a autorização era para entrar no espaço à entrada do caminho que era baldio, e daí para cima era da minha avó, afirmação que reiterou nas instâncias a que foi sujeita.

                Na parte em que estes depoimentos estão em colisão, por exemplo, com os das testemunhas …, deve fazer-se prevalecer, em seu detrimento, o destas duas últimas testemunhas. Por duas razões: pela ausência de qualquer vínculo ou ligação familiar entre elas e qualquer das partes, o que dá maiores garantias de que não estão privadas da liberdade e da espontaneidade necessárias para dizer toda a verdade e só a verdade; por só o depoimento destas testemunhas se mostrar mais conforme com o facto – documentado nas fotografias oferecidas pelos próprios recorrentes e asseverado pela testemunha … – de o acesso ao caminho não se mostrar vedado por qualquer portão, cancela ou qualquer outro dispositivo que garantisse a sua utilização apenas pelos recorrentes ou pelos seus antecessores, o que contraria a regra de experiência, de harmonia com a qual, os proprietários de caminhos exclusivamente particulares, com o escopo evidente de excluir o seu uso por terceiros, colocam, no seu acesso, portões ou cancelas. De outro aspecto, se o terreno pertencia aos antecessores dos recorrentes – e portanto, se o caminho é puramente particular ou privado – que razão explica que o antecessor dos recorrentes que o abriu e calcetou – … – tenha pedido à Junta – como afiançou a testemunha … – para o calcetar?

O tribunal a quo julgou provado em resposta ao ponto de facto incluso na base instrutória sob o nº 35 – no qual se perguntava - se por volta de 1985, …, solicitou à Junta de Freguesia de Carrapatosa autorização para construção dum caminho sobre o prédio aludido em N) - que em data não concretamente apurada, mas situada na década de 80, … solicitou à Junta de Freguesia da Caparrosa autorização para construção dum caminho sobre o prédio aludido em N, resposta que bem se pode confortar no depoimento da testemunha ...

                Os recorrentes acham, porém, que numa avaliação prudente da prova, a resposta correcta é esta: em data não concretamente apurada, mas situada na década de 80, quando … procedeu á construção do caminho, havia já sido iniciada a construção da casa aludida em 4).

Seja qual for, em definitivo, a solução exacta para o problema das respostas restritivas – i.e., que declaram provado menos de que o alegado – e explicativas – i.e., que julgam provada a causa do facto declarado assente – no tocante às respostas excessivas ou exorbitantes, i.e., aquelas que dão como provado mais do que era objecto da prova ou coisa diversa do que se perguntava, a única doutrina admissível é a de as ter por não escritas, e, logo, por inexistentes[27]. O tribunal da audiência só pode conhecer da matéria de facto abrangida pelos pontos insertos na base instrutória e não pode responder ao que lhe não foi perguntado. Em boa lógica, impõe-se que não se tomem em consideração, pelo menos, as respostas exorbitantes, isto é, as respostas que excedam ou ultrapassem os factos compreendidos nos quesitos.

                Assim perguntando-se se numa dada data, … pediu autorização para construção do caminho, não é admissível responder – por a resposta exceder largamente o âmbito da pergunta - que … procedeu á construção do caminho e que nesse momento havia já sido iniciada a construção da casa.

                Seja como for, todas as contas feitas, bem pode assentar-se nisto: apesar da distância entre esta Relação e as provas e do modo como delas conheceu – através da audição do registo sonoro conjugado com a leitura da transcrição dos depoimentos, na parte em que não foram truncados, feita pelos recorrentes – não há razão para concluir que o decisor de facto da 1ª instância tenha incorrido, na decisão dessa matéria num error in iudicando – por violação, designadamente das regras da lógica ou da experiência – e, portanto, para modificar esse julgamento.

                A matéria de facto sobre a qual deve ser construída a decisão de direito é, por isso, aquela que foi apurada na instância de que provém o recurso.

                E face a essa matéria de facto, a improcedência do recurso é irremissível.

                3.4. Concretização.

                De harmonia com a matéria de facto disponível a parcela ou faixa de terreno discutida faz parte dos terrenos baldios de P…, mais exactamente, de uma área descontínua desses terrenos. Pelas razões já indicadas, a integração dessa parcela nesses terrenos, tornou-a, a partir de Janeiro de 1976 – mas só a partir desta data - insusceptível de apropriação ou apossamento privados, e, portanto de ser adquirida, designadamente, por usucapião.

                Nestas condições, para que aos recorrentes se devesse reconhecer a aquisição, por usucapião, do direito real de propriedade sobre aquela faixa de terreno, era necessária a demonstração – que lhes competia – de que em Janeiro de 1976, já se mostrava constituído a seu favor, por virtude da posse, o direito potestativo à aquisição, por aquela causa, daquele direito real.

                Os recorrentes, porém, não se livraram do encargo da prova daquele facto, dado que mesmo que se situe o início da posse alegada – por referência há propositura da acção – em 1960, por se tratar de uma posse de má fé – dado que não foi sequer alegado que, no momento da sua aquisição, se ignorava que se lesava o direito de outrem – o prazo de usucapião aplicável – 20 anos – sempre se teria completado em momento muito posterior (artºs 279, 1257 nº 2 e 1296 do Código Civil).

                Realmente, de harmonia com o Código Civil de 1967 - em cuja vigência se iniciou a posse alegada pelos recorrentes – o prazo de prescrição aplicável, no caso de falta de registo, de má fé e falta de título, era de 30 anos (artº 529). Esse prazo, de harmonia com o Código Civil de 1966 – que entrou em vigor no dia 1 de Junho de 1967 - é de apenas 20 anos (artºs 2 nº 1, 1ª parte, do Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de Novembro de 1966 e 1296 do Código Civil). Por ser mais curto é este último prazo o aplicável, mas ele só se conta da entrada em vigor do novo Código Civil, dado que, segundo a lei antiga, faltava mais tempo para o prazo se completar (artº 297 nº 1 do Código Civil de 1966).

                Mas ainda que não estivesse assente que a parcela de terreno se integra nos terrenos do baldio ou baldios de P…, mesmo assim sempre seria de recusar aos recorrentes a declaração de que são titulares do direito real de propriedade sobre ela, por terem adquirido tal direito por usucapião ou simplesmente pela actuação da presunção que decorre da posse.

                Como já se fez notar, estando em causa a aquisição do direito real de propriedade, não basta que alguém se apresente como exercente dos actos de posse para que beneficie dessa aquisição, seja por usucapião, seja pelo funcionamento do fundamental efeito presuntivo da posse: se pretender usucapir um simplesmente beneficiar da presunção de que é titular do direito real de propriedade, decorrente da posse, deve actuar nas vestes de proprietário. E para isso é imprescindível que o exercício dos poderes de facto sobre a coisa corpórea seja exclusivo, seja actuado a título de proprietário.

                A matéria de facto assente mostra que realmente quer os recorrentes que os seus antecessores exercem sobre a parcela de terreno poderes de facto, satisfazendo um interesse seu – mas não esclarece a exclusividade daquele exercício, por uns e por outros, nem o título é que esses interesses são satisfeitos.

                A posse alegada pelos recorrentes não é, pois, boa nem para a usucapião nem sequer para presumir que são titulares do direito real de propriedade sobre a faixa de terreno.

                Perguntam, porém, os recorrentes, por que razão hão-de permitir que a recorrida C… passe pelo empedrado que é obra sua, se não foi pedida, em reconvenção, pela Assembleia de Compartes, a sua remoção. Por esta razão simples, mas sólida: por não terem, relativamente ao solo da parcela, qualquer outro direito – maxime do direito real de propriedade - que não seja o de usar e fruir o baldio, como qualquer outra pessoa integrante do universo dos compartes (artº 1 nºs 2 e 3 e 5 nº 1 da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro). De resto, vistas as coisas mais de perto – e sem prejuízo de uma análise mais detida – os recorrentes não são sequer titulares do direito real sobre a obra, nem sequer do direito à aquisição – potestativa - por acessão industrial imobiliária, mas, quando muito, de um simples direito de crédito pela benfeitoria (artº 39 nº 2, in fine, da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro). De outro aspecto, nada vinculava a recorrida Assembleia de Compartes a deduzir o pedido reconvencional, dado que a reconvenção era no caso, puramente facultativa, relevando exclusivamente do seu critério, a decisão quanto à necessidade ou a mera conveniência, para os interesses da comunidade relativos ao baldio, da sua dedução.

                Alegam, enfim, os recorrentes que a parcela não pode ser aproveitada para o apascentamento de gado, extracção de lenhas, estrume ou pedras. Este facto é exacto. Mas o argumento que os recorrentes dele fazem decorrer não procede.

                Como linearmente decorre da utilização, pela lei, na definição das finalidades dos baldios, do advérbio designadamente, os fins dos baldios não se esgotam na apascentação de gado, recolha de lenhas ou de matos ou na extracção de pedras, sendo admissível qualquer outra fruição compatível com a sua natureza de logradouro comum (artº 3 da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro). Essa fruição ou aproveitamento bem pode consistir muito simplesmente no uso de qualquer parte do terreno do baldio, de harmonia com a sua destinação objectiva possível, v.g., como passagem. Decerto que os baldios de P… são compostos por espaços em que não é possível, pela natureza das coisas, apascentar gados, recolher lenhas ou estrume ou extrair pedras – como, sucederá, comprovadamente, v.g., com as estradas e outras vias de comunicação – e nem por isso tais espaços se devem considerar excluídos do logradouro comum e a sua utilização proibida – de harmonia com as utilidades que, objectivamente, são susceptíveis de proporcionar – aos compartes.

                Em absoluto remate: como o sentido da decisão depende dos factos fornecidos pelo processo, com consideração do princípio da aquisição processual, e da análise do cumprimento do ónus da prova, e os recorrentes não satisfizeram um tal ónus, a improcedência – da acção e do recurso – é inexorável (artºs 515 e 516 do CPC e 342 nº 1 e 346, 2ª parte, do Código Civil).

                Expostos todos os argumentos afirma-se em síntese que:

a) Na actio confessoria, - i.e., na acção em que o autor pretende apenas ver reconhecida judicialmente a titularidade de um direito real que o demandado não aceita – recai sobre o autor a prova do facto invocado como aquisitivo do direito real alegado

b) Como o direito que se adquire constitutivamente pela usucapião é o direito correspondente ao modo de exercício da situação possessória que está a sua base, estando em causa a usucapião do direito real de propriedade – ou a presunção de titularidade decorrente da posse – é necessária a prova de que o exercício dos poderes de facto sobre a coisa foi actuado nas vestes de proprietário.

                c) Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, os baldios deixaram de poder ser objecto de apropriação privada, por qualquer título, incluindo a usucapião.

                d) A integração do terreno em baldio não obsta á sua aquisição por usucapião, desde que se demonstre que, ao tempo da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, já se mostrava constituído, a favor do exercente da posse, o direito potestativo à aquisição daquele direito real, não sendo indispensável que a sua invocação tenha sito feita até esse mesmo momento.

                Os recorrentes sucumbem no recurso. Deverão, por isso, satisfazer as respectivas custas (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC). Dada a complexidade do tratamento do objecto processual do recurso, justifica-se que a respectiva taxa de justiça seja fixada nos termos da Tabela I-C, integrante do RCP (artºs (artºs 8 nº 1 da Lei 7/2012, de 13 de Fevereiro, e 6 nº 5 do RCP).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes, com a taxa de justiça fixada nos termos da Tabela I-C, integrante do RCP.

                                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes - Relator

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa


[1] Acs. do STJ de 23.01.01, 09.07.02, 24.10.02, 05.06.03, 20.06.03, 20.11.03, 29.05.07, 15.01.08, 17.01.08, 15.01.09 e 14.01.10 www.dgsi.pt. No mesmo sentido, v.g., os Acs. da RP de 09.06.10 e 25.03.10 e da RL de 14.01.10, www.dgsi.pt.
[2] António Abrantes Santos Geraldes, Recurso em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 142 e 143 e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Praticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 80.
[3] É, porém, discutível se se trata de uma acção real: em sentido afirmativo, José Alberto C. Vieira, cit. pág. 503; contra Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, pág. 280.
[4] Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra, 2007, pág. 280, e José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra, 2008, pág. 502.
[5] Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 1983, pág. 119.
[6] António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint, Lex, Lisboa, 1993, pág.
[7] António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, cit., págs. 386 a 392. Para um entendimento subjectivista da posse, cfr. Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1977, pág. 68, P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1987, págs. 5 e 9, Mota Pinto, Direitos Reais, Coimbra, 1986, pág. 189; Defendendo uma concepção objectivista da posse, Oliveira Ascensão, num segundo momento, cit., pág. 92, Carvalho Fernandes, Direitos Reais, Quid Iuris, Lisboa, 1997 pág. 266 e Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, CDF, CEF, Lisboa, 1996, pág. 692, nota (6). Menezes Cordeiro, na obra citada, começou por defender uma orientação objectivista, concluindo, posteriormente, pela natureza mista do sistema português: A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., Almedina Coimbra, 1999, págs. 63 a 65. A jurisprudência pronuncia-se, esmagadoramente, pela consagração, no Código Civil, da doutrina subjectivista. O Ac. da RL de 18.7.97, CJ XXII, IV, 270, acolheu, contudo, a orientação objectivista. Na prática, a diferença entre e outra orientação, não é tão marcada com se suporia á primeira vista, dado que as concepções subjectivistas apresentam, não raro, o animus como uma mera decorrência do corpus: cfr., v.g., Acs. do STJ de 12.02.87, 18.02.93, 26.04.84 e da RE de 23.05.96, BMJ  nºs 364, pág. 855, e 424, pág. 678, e CJ, STJ, II, II, pág. 62, e CJ, XXI, III, pág. 268, respectivamente.
[8] Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ de 14.05.96, DR, II Série, nº 144/96, de 24.06.96.
[9]  Acs. do STJ 06.05.93, CJ, STJ, I, II, pág. 96, e de 12.03.87, BMJ 364/855.
[10] Menezes Cordeiro, A Posse, cit., pág. 67, nota 122, e pág. 68, nota 124.
[11] A ignorância do possuidor de lesar direitos de outrem não é, na verdade, um facto concreto – mas uma conclusão que se extrai de outros factos. Cfr. Ac. do STJ de 04.11.93, CJ, STJ, II, pág. 89.
[12] António Menezes Cordeiro, A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., cit., págs. 95 e 96.
[13] Acs. do STJ de 20.01.99, CJ, STJ, VII, I, Pág. 53, e da da RP de 16.04.13, www.dgsi.pt.
[14] Ac. da RG de 09.04.13, www.dgsi.pt., e Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião, Constituição Originária de Direitos através da Posse, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 38.
[15] Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 174.
[16] Ac. STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[17] Ac. da RL de 10.11.05 e de 19.02.04, www.dgsi.pt. e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 150.
[18] Eurico Lopes Cardoso, BMJ nº 80, págs. 220 e 221.
[19] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição, Almedina, 2000, págs. 273 e 274.
[20] Ac. do STJ 08.11.95, CJ, STJ, 95, III, pág. 293 e da RP de 20.02.01, www.dgsi.pt.
[21] Ac. do STJ de 29.09.95, www.dgsi.pt.
[22] Juan Montero Aroca, Valoración de la prueba, regras legales, Quaderni de “Il giusto processo civile”, 2, Stato di diritto e garanzie processualli, a cura di Franco Cipriani, Atti delle II Giornate internazionali de Diritto processualle civile, Edizione Scientifiche Italiene, 2008, págs. 44 e 45.
[23] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[24] Ac. da RC de 18.05.94, BMJ nº 437, pág. 598.
[25] Antunes Varela, RLJ, Ano 116, pág. 330.
[26] Ac. da RE de 09.06.94., BMJ nº 438, pág. 571.
[27] Acs. da RC de 03.04.86, BMJ nº 356, pág. 453, do STJ de 27.10.94 e 05.07.94, BMJ nºs 440, pág. 478 e 439, pág. 479, respectivamente, de 11.12.08, 27.03.08 e 19.12.06, da RP de 19.05.05 e 27.11.11, e da RL de 06.07.06, www.dgsi.pt; José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 631 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 2ª edição, 2003, pág. 239.