Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
213/15.0T8OHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
CONTRATO DE EMPREITADA
RESOLUÇÃO
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - O.HOSPITAL - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.580, 581, 619 CPC, 801, 808, 1221, 1222, 1223 CC
Sumário: I – A força e a autoridade do caso julgado (consagradas no artigo 619º, nº 1, do CPC) impõem que a definição de uma concreta relação material controvertida que foi objecto de uma determinada decisão judicial (delimitada pelas partes, pelo pedido e pela causa de pedir) não possa voltar a ser discutida entre as mesmas partes e não possa vir a ser contrariada – antes devendo ser respeitada – por qualquer outra decisão.

II – Assim, a autoridade do caso julgado emergente de uma decisão judicial que definiu a situação jurídica das partes relativamente à pretensão ali deduzida de pagamento do preço da empreitada e relativamente aos defeitos que ali se invocaram para fundar a excepção de cumprimento do contrato, condenando a dona da obra a pagar o preço da empreitada quando a empreiteira eliminasse determinados defeitos que a mesma apresentava, impede que, em relação aos mesmos defeitos e perante a mesma situação de facto (sem a alegação e prova de qualquer outro facto), venha a ser proferida nova decisão que reconheça à dona da obra o direito de resolução do contrato.

III – Os direitos previstos nos artigos 1221º e 1222º do CC em caso de defeitos na obra não são alternativos, devendo o seu exercício respeitar a ordem ou sequência que resulta das referidas disposições legais;

IV – Consequentemente, o dono da obra apenas poderá pedir a resolução do contrato se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina e se não for possível eliminar esses defeitos ou executar nova obra em substituição ou se vier a ocorrer incumprimento definitivo do empreiteiro relativamente a essas prestações (seja por recusar em termos definitivos a sua execução, seja por conversão da sua eventual mora em incumprimento definitivo, nos termos do artigo 808º do CC, por perda de interesse – avaliada em termos objectivos – do dono da obra na prestação ou pela não realização da prestação no prazo que razoavelmente por este seja fixado).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

G (…), Lda, com sede na (...) , lote (...) , freguesia e concelho de (...) , instaurou acção com processo comum contra E (…), Lda, com sede na Rua (...) , (...) , alegando, em resumo: que a Ré se obrigou a fornecer e montar nas instalações da Autora uma máquina formadora de caixas de cartão e uma máquina designada por unidade de tratamento de ar pelo preço global de 18.500,00€ acrescido de IVA; que, por conta desse preço, já pagou as quantias de 7.000,00€ e 8.422,90€; que, apesar de ter concluído a montagem da máquina de unidade de tratamento do ar em Setembro de 2014, a Ré não concluiu a montagem da máquina formadora de caixas, sendo que esta estragava muitas caixas; que, não obstante as insistências da Autora, a Ré não conclui a montagem e afinação da máquina e em Maio de 2015 comunicou à Autora que não procedia a mais intervenções na máquina; que, entretanto, a Ré instaurou uma injunção contra a Autora peticionando a totalidade do preço da máquina; que, caso tivesse a máquina em funcionamento, não teria despendido a quantia de 9.090,00€ com os vencimentos de dois trabalhadores; que, nos ensaios realizados com a máquina foram danificadas caixas no valor de 1.500,00€.

Com estes fundamentos e sustentando que os seus direitos só ficarão devidamente acautelados mediante a resolução do contrato no que diz respeito à máquina formadora de caixas (já que a Ré não conseguiu resolver o problema e a substituição da máquina também não o resolverá), pede que seja declarada a resolução do contrato de fornecimento da máquina formadora de caixas de cartão e que a Ré seja condenada a restituir à Autora a quantia de 13.043,62€ correspondente ao preço já entregue à Ré por conta do preço da máquina e a pagar à Autora uma indemnização, por danos patrimoniais, no montante global de 10.590,00€, acrescidas dos respectivos juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

A Ré contestou alegando, em resumo, que a máquina ficou apta a funcionar em boas condições, sendo certo que, na sequência da única reclamação da Autora sobre o irregular funcionamento da máquina, os seus técnicos constataram que tal era causado por defeito de fabrico das caixas utilizadas e nada tinha a ver com o equipamento fornecido.

Assim e invocando a caducidade do direito invocado pelo Autor, conclui pedindo a procedência da excepção invocada e a improcedência da acção.

O Autor respondeu sustentando a improcedência da excepção.

Findos os articulados e após observância do contraditório no que toca a essa questão, foi proferido despacho onde se considerou que a acção que corria termos com o n.º 119680/15.YIPRT na Instância Local de Sintra da Comarca de Lisboa Oeste constituía causa prejudicial relativamente a estes autos e, em conformidade, determinou-se a suspensão da instância até que, nessa acção, fosse proferida decisão transitada em julgado.

Proferida decisão na referida acção, os autos prosseguiram com a realização da audiência prévia.

Foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.

Após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu: declarar resolvido o contrato celebrado entre as partes tendo por objecto o fornecimento da máquina formadora de caixas de cartão; condenar a Ré a restituir à Autora a quantia de €13.043,62 referente à parte do preço que foi paga, acrescida de juros vencidos e vincendos, contados desde a data da citação, até integral pagamento, às sucessivas taxas de juro vigentes e absolver a Ré do restante pedido.

Inconformada com essa decisão, a Ré E (…) Ldª veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

A Autora apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

(…)

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se, ao decretar a resolução do contrato em causa nos autos, a decisão recorrida ofendeu a autoridade de caso julgado que se formou com a decisão proferida na acção n° 119680/1S.0YIPRT;

• Saber se, em face da matéria facto provada, estão reunidos os pressupostos necessários para que possa ser decretada a resolução do contrato.


/////

III.

Na 1ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. Os presentes autos foram instaurados 30 de Outubro de 2015.

2. A Ré em 01.09.2015 apresentou requerimento de injunção contra a aqui Autora o qual foi distribuído como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias derivadas de contratos a que coube o n.º 119680/15.0YIPRT, nos termos da qual peticionou a condenação da aqui Autora no pagamento do remanescente devido por conta do preço acordado pela aquisição de montagem da máquina formadora de caixas de cartão.

3. Nos temos da identificada acção declarativa, a aqui Autora deduziu, ali na qualidade de Ré, os factos que alegou na petição inicial e que deu origem a estes autos, e foi proferida sentença a 04.12.2017 transitada em julgado no dia 23.01.2018, antes da designação da Audiência Final designada nestes autos, na qual se decidiu condenar a Ré, aqui Autora, no pagamento do montante de €7.000,00 a título de capital, contra a simultânea eliminação, por parte da Autora, aqui Ré, dos defeitos descritos nos pontos 24 a 26 dos factos que se consideraram provados, ficando a Ré absolvida do demais peticionado.

4. Na sentença proferida na Acção n.º 119680/15.0YIPRT foram considerados a seguinte factualidade como provada:

1. A Autora exerce a actividade de metalomecânica/serralharia e manutenção industrial.

2.A Ré é uma empresa que se dedica á comercialização de sementes.

3.Em meados de 2013 a Ré contatou a Autora no sentido de saber se esta tinha condições para lhe fornecer e montar uma máquina formatadora de caixas para o embalamento das sementes que comercializa, a fim de poder optimizar a sua produção.

4.Em face deste contacto, em 12 de Julho de 2013, a Autora apresentou à Ré uma proposta para o fornecimento de uma máquina formadora e fecho de tampa (inicio de linha), uma máquina de fecho do fundo das caixas (fim de linha) e uma máquina designada por unidade de tratamento de ar, na qual constavam as especificações técnicas das máquinas, modos de funcionamento, bem como as três dimensões das caixas que a máquina formadora executaria e os respectivos preços propostos.

5.Após negociações, no decurso do mês de Abril de 2014, a Autora obrigou-se a fornecer e a montar nas instalações da Ré, a pedido desta, uma máquina formadora de caixas de cartão, com fecho de tampa através de cola quente Hotmelt (início de linha), bem como a fornecer e montar uma máquina designada por unidade de tratamento de ar com capacidade de cerca de 900lt de ar por minuto, pelo preço global de € 18.500 (dezoito mil e quinhentos euros), acrescido de IVA à taxa de 23%.

6.Mais foi acordado entre as partes que o preço supra aludido em 5. seria pago da seguinte forma:

- 30% (trinta por cento) na data da adjudicação;

- 30% (trinta por cento) na data do início da montagem;

- 40% (quarenta por cento) no prazo de 45 dias a contar do final da montagem.

7.Na sequência da adjudicação, em 9 de Maio de 2014, a Autora emitiu a factura n.º 20, no montante global de € 7.000 (sete mil euros), IVA incluído, a qual foi paga pela Ré em 16 de Maio de 2014, através de transferência bancária.

8.Em 1 de Setembro de 2014, a Autora emitiu a factura n.º 40, no montante global de € 15.422,90 (quinze mil quatrocentos e vinte e dois euros e noventa cêntimos), IVA incluído, correspondente à totalidade do valor remanescente do preço.

9.Em 1 de Setembro de 2014, a Autora já tinha iniciado, mas não tinha concluído, a montagem dos bens solicitados nas instalações da Ré.

10.No dia 2 de Setembro de 2014, por meio de transferência bancária, a Ré entregou à Autora a quantia de € 8.422,90 (oito mil quatrocentos e vinte e dois euros e noventa cêntimos).

11.A Autora concluiu a montagem da máquina de unidade de tratamento do ar e deixou-a apta a funcionar no decurso do mês de Setembro de 2014.

12.Em Setembro de 2014, a Autora não concluiu a montagem da máquina formadora de caixas.

13.Desde o mês de Setembro de 2014 até 29 de Janeiro de 2015, a Autora não voltou às instalações da Ré a fim de concluir a montagem da mesma.

14.Durante este período, a Ré solicitou, por diversas vezes e meios, à Autora que procedesse à conclusão da montagem da referida máquina, uma vez que se esta estivesse em funcionamento permitir-lhe-ia optimizar a sua produção e as suas vendas e reduzir custos.

15.Em 29 de Janeiro de 2015, os técnicos da Autora estiveram nas instalações da Ré a fim de concluir a montagem e afinação final da máquina.

16.Em 29 de Janeiro de 2015, a máquina formadora de caixas não ficou apta a funcionar, pois estragava muitas caixas.

17.Após esta data, a Ré voltou a insistir com a Autora no sentido de concluir a montagem e afinação da máquina.

18.Em 2 de Fevereiro de 2015, a Ré comunicou à Autora um problema de funcionamento da máquina.

19.O problema aludido em 18. resultou de um curto circuito na tomada de energia para a máquina, tendo provocado a desprogramação do autómato da mesma, o que foi solucionado com a reinstalação do software.

20.No final do mês de Abril de 2015, os técnicos da Autora voltaram às instalações da Ré mas, mais uma vez, não concluíram a montagem e afinação da máquina de modo a deixá-la apta a funcionar.

21.A máquina continuava a estragar muitas caixas, impossibilitando a sua utilização.

22.Desde então, a Ré continuou a insistir com a Autora no sentido de proceder à conclusão da montagem e afinação da máquina.

23.Em Outubro e Novembro de 2017, a Autora realizou reajustes na máquina formadora de caixas, seguindo todas as recomendações do Senhor Perito.

24.A máquina formadora de caixas continua a executar caixas deformadas.

25.A máquina formadora de caixas continua a executar caixas que não fecham totalmente e perdem sementes.

26.A máquina formadora de caixas continua a encravar, não assegurando o funcionamento fluido do empacotamento.

B. Factos não provados

i) A factura n.º 40 foi emitida por aquele valor a solicitação da Ré, através do Sr. Peter.

ii) Em 29 de Janeiro de 2015, a montagem da máquina formadora de caixas foi concluída e ensaiada com sucesso.

iii) Desde 29 de Janeiro de 2015, a máquina formadora de caixas ficou em condições de funcionamento e utilização.

iv) As ocorrências no funcionamento e utilização da máquina formadora de caixas resultam do deficiente manuseamento e afinação da máquina, por parte da Ré, que não respeita as suas condições técnicas de funcionamento.

v) Em 10 de Fevereiro de 2015, os técnicos da Autora deslocaram-se às instalações da Ré para formação específica sobre o bom funcionamento e utilização do equipamento, mostrando os funcionários da Ré pouco interesse nessa aprendizagem.

vi) Em 26 de Fevereiro de 2015, no seguimento de uma reclamação da Ré, os técnicos da Autora deslocaram-se às instalações da Ré para solucionar um defeito de fabrico das caixas usadas.

vii) Por defeito de fabrico das caixas usadas, o processo inicial de sucção da caixa não era conseguido, por a mesma não tomar a forma necessária para se iniciar o processo de fecho.

viii) O problema com as caixas foi resolvido, estando o equipamento em condições de normal funcionamento.

5. Caso a referida máquina funcionasse a Autora já não necessitava de ter custos com os dois trabalhadores que procediam à formação manual das caixas desde Fevereiro de 2015 até à instauração destes autos, no montante de €9.090,00.

6. No âmbito dos ensaios realizados com a máquina foram danificadas as seguintes quantidades e tipos de caixas:

-Sport et Jeux 2Kg – 370 unidades; Herstel Gazon 1 Kg – 24 unidades; Somers Sport Kg - 21 unidades; Quick Start 3 Kg – 5 unidades; Somers herstel gazon 500 gr – 150 unidades; Sport et jeus 500 gr – 70 unidades; Schaduwgazon 500 gr – 90 unidades; Tragegroier gazon 500 gr – 214 unidades, tudo no montante não inferior de €1500,00.


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IV.

O presente recurso incide sobre a decisão que declarou resolvido o contrato celebrado entre as partes – contrato que tinha por objecto o fornecimento de uma máquina formadora de caixas de cartão – e condenou a Ré a restituir à Autora a quantia de €13.043,62 referente à parte do preço que foi paga, acrescida de juros vencidos e vincendos, sustentando a Ré/Apelante que tal decisão ofende a autoridade de caso julgado que se formou com a decisão proferida na acção n° 119680/1S.0YIPRT e que, além do mais, não resulta da factualidade provada que tivesse ocorrido incumprimento definitivo do contrato como seria necessário para que se decretasse a resolução do contrato.

Analisemos, então, essas questões.

Parece não haver dúvidas – sendo certo que tal não é questionado no presente recurso – relativamente ao facto de ter sido celebrado entre as partes um contrato de empreitada por via do qual a Ré se obrigou – mediante o pagamento de determinado preço – a fornecer e a montar nas instalações da Autora uma máquina formadora de caixas de cartão, com fecho de tampa através de cola quente Hotmelt (início de linha) e uma máquina designada por unidade de tratamento de ar com capacidade de cerca de 900lt de ar por minuto.

Também não há dúvidas – isso também não vem questionado no presente recurso – que, no que toca à máquina formadora de caixas de cartão, a Ré não executou a sua prestação nos termos convencionados, uma vez que essa máquina não ficou apta a funcionar (estragava muitas caixas) e, não obstante a intervenção da Ré, continua a executar caixas deformadas, que não fecham totalmente e perdem sementes, continuando a encravar e sem assegurar o funcionamento fluido do empacotamento.

Estamos, portanto, perante uma obra que foi executada com defeitos, situação que confere ao dono da obra os direitos previstos nos artigos 1221º a 1223º do CC. Assim, caso a obra apresente defeitos que possam ser supridos, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação e, se não puderem ser eliminados, o dono pode exigir nova construção (art. 1221º nº 1); não sendo eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, o dono pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina (art. 1222º nº 1); em qualquer caso, o dono da obra tem o direito de ser indemnizado nos termos gerais (cfr. art. 1223º).

Mas esses direitos não são atribuídos em alternativa.

Com efeito e conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela[1], “Os direitos de redução do preço e de resolução do contrato não são atribuídos, em alternativa, com os de eliminação dos defeitos ou reconstrução da obra.... O art. 1222º, na verdade, torna o exercício daqueles dois direitos dependentes do facto de não terem sido eliminados os defeitos ou construída de novo a obra. Dá-se, portanto, ao empreiteiro a possibilidade de, querendo, manter o contrato pelo preço estipulado, eliminando os defeitos da obra ou construindo outra de novo; só na hipótese de ele não fazer nem uma coisa nem outra, se abre a possibilidade de redução do preço ou de resolução do contrato”.

 No mesmo sentido, escreve Pedro Romano Martinez[2]: “No sistema jurídico português há uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar, o devedor está adstrito a eliminar os defeitos ou a substituir a prestação; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato”, mais dizendo que[3]Sendo possível a eliminação dos defeitos ou a nova realização da prestação, ao comprador ou ao dono da obra só cabe a escolha entre resolver o contrato e reduzir o preço, caso a contraparte tenha recusado qualquer das prestações de cumprimento ou depois de decorrido um prazo suplementar fixado, nos termos do artigo 808º, para a sua efectivação”.

Significa isso, portanto, que o dono da obra só pode pedir a resolução do contrato se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina e se esses defeitos não forem eliminados ou não for construída de novo a obra; é isso que resulta do disposto no artigo 1222º e compreende-se que assim seja, uma vez que a resolução do contrato é uma faculdade que, em princípio e salvo convenção em contrário, apenas é admissível quando ocorre incumprimento definitivo da obrigação (cfr. art. 801º, nº 2), de tal modo que, enquanto for possível o cumprimento da prestação acordada (mediante a eliminação dos defeitos ou mediante a substituição da prestação), não será admitida a resolução do contrato.

 Assim, o dono da obra poderá pedir a resolução do contrato se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina e se: não for possível eliminar esses defeitos ou executar nova obra em substituição, ou se, apesar de possíveis, vier a ocorrer incumprimento definitivo do empreiteiro relativamente a essas prestações (seja por recusar em termos definitivos a sua execução, seja por conversão da sua eventual mora em incumprimento definitivo, nos termos do artigo 808º do CC, por perda de interesse – avaliada em termos objectivos – do dono da obra na prestação ou pela não realização da prestação no prazo que razoavelmente seja fixado pelo dono da obra).

Sendo esse o enquadramento jurídico da questão em causa nos autos, ao nível das consequências emergentes do cumprimento defeituoso da prestação a cargo do empreiteiro (a aqui Ré), pensamos que assiste razão à Apelante quando afirma que a decisão proferida nos presentes autos ofende a autoridade de caso julgado que se formou com a decisão proferida na acção n° 119680/1S.0YIPRT e quando afirma que não resulta da factualidade provada que tivesse ocorrido incumprimento definitivo do contrato como seria necessário para que se decretasse a resolução do contrato.

Vejamos.

Dispõe o artigo 619º, nº 1, do CPC que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.

A citada disposição legal reporta-se e delimita os contornos do caso julgado material, ou seja, o caso julgado que se forma relativamente à decisão (sentença ou saneador) que, decidindo do mérito da causa, define a relação ou situação jurídica deduzida em juízo (a relação material controvertida), determinando que tal decisão tem força obrigatória dentro e fora do processo (dentro dos limites estabelecidos nos arts. 580º e 581º) e impedindo, dessa forma, que a mesma relação material venha a ser definida em moldes diferentes pelo tribunal ou qualquer outra autoridade. Segundo Manuel de Andrade[4], o caso julgado material “consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”.

Conforme resulta do disposto na norma citada, o caso julgado material vigora dentro dos limites estabelecidos nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sendo, portanto, delimitado através dos elementos que identificam a relação jurídica definida na sentença (as partes, o pedido e a causa de pedir) e é a definição dessa concreta relação jurídica (delimitada pelos referidos elementos) que se impõe por força da autoridade do caso julgado; significa isso, portanto, que a concreta relação material controvertida que foi objecto da decisão não pode voltar a ser discutida entre as mesmas partes e não pode vir a ser contrariada – antes deverá ser respeitada – por qualquer outra decisão (importando notar que, em conformidade com o disposto no artigo 625º, nº 1, do CPC, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, há-se cumprir-se a que passou em julgado em primeiro lugar).

Ora, a decisão proferida no âmbito do processo nº 119680/15.0YIPRT, que correu termos entre as mesmas partes, decidiu – com referência ao contrato de empreitada que está em causa nos presentes autos – condenar a aqui Autora (ali Ré) a pagar o valor de €7.000,00 a título de capital, contra a simultânea eliminação, por parte da Ré (ali Autora) dos defeitos descritos nos pontos 24 a 26 dos factos que se consideraram provados (ou seja, os mesmos defeitos que foram invocados nos presentes autos).

Tal decisão definiu, portanto, a situação jurídica das partes relativamente à pretensão ali deduzida de pagamento do preço da empreitada e relativamente aos defeitos que ali se invocaram para fundar a excepção de cumprimento do contrato, determinando que tais defeitos deveriam ser eliminados pela empreiteira (a aqui Ré), condenando-se a aqui Autora a pagar o preço da empreitada quando esses defeitos fossem eliminados.

Ora, a autoridade de caso de julgado dessa decisão – que, conforme referimos, tem que ser acatada e respeitada – impede – pensamos nós – que, em relação aos mesmos defeitos e perante a mesma situação de facto (sendo certo que não foi aqui alegado qualquer outro facto), venha a ser reconhecida à Autora (dona da obra) o direito de resolução do contrato.

Na verdade, os aludidos defeitos não poderão determinar a obrigação (a cargo do empreiteiro) de eliminar os defeitos e, simultaneamente, a resolução do contrato, até porque a resolução do contrato (determinando a sua extinção) é incompatível com a obrigação de eliminação de defeitos a cargo do empreiteiro e com a obrigação de pagamento do preço a cargo do dono da obra (que pressupõem a validade do mesmo contrato).

Veja-se que a resolução do contrato – decretada na sentença recorrida – inutilizaria completamente a decisão anteriormente proferida, uma vez que, com essa resolução, não poderia subsistir a obrigação de pagamento do preço (a cargo da aqui Autora) e a obrigação de eliminação dos defeitos (a cargo da aqui Ré) que foram determinadas pela sentença proferida naquela acção, ficando, assim, evidente que a decisão aqui proferida contraria a decisão anterior e não acata a autoridade do caso julgado que com esta se formou.

Note-se que ambas as decisões se reportam aos mesmos defeitos (importando notar que a decisão proferida nos presentes autos não considerou qualquer outro defeito além daqueles que haviam sido considerados na anterior acção); a situação poderia ser diferente se estivessem em causa outros defeitos ou se estivesse aqui em causa o incumprimento da obrigação de eliminar os defeitos que resultava da decisão anterior; não é isso, todavia, que está aqui em causa; os defeitos aqui em causa são exactamente os mesmos e a resolução do contrato que foi pedida pela Autora – e veio a ser decretada pela sentença recorrida – fundamenta-se directamente nesses defeitos e não no incumprimento da obrigação de os eliminar que havia sido determinada pela anterior decisão (até porque a presente acção foi instaurada em momento muito anterior a tal decisão e não foi apresentado qualquer articulado superveniente onde tivessem sido alegados novos factos que tivessem ocorrido após a aludida decisão).

Ora, relativamente aos concretos defeitos que estão aqui em causa e perante a situação de facto que lhe esteve subjacente, já foi decidido – no âmbito da acção supra mencionada – que eles devem ser eliminados pela empreiteira, mais se condenando a Autora a pagar a quantia ali definida (parte do preço da empreitada) logo que os defeitos sejam eliminados e a definição assim efectuada dessa concreta relação jurídica impõe-se pela força do caso julgado e impede que essa mesma relação jurídica seja agora definida em moldes diferentes.

Isso não significa que a Autora não possa vir a pedir a resolução do contrato, caso a Ré venha a incumprir a sua obrigação de eliminar os defeitos; mas tal resolução terá que assentar em factos novos e subsequentes àquela decisão, uma vez que, relativamente à concreta situação/relação jurídica que esteve subjacente à decisão proferida na acção supra identificada, a posição e os direitos das partes ficaram aí definidos (determinando-se o cumprimento do contrato) e não poderão ser alterados por outra decisão que, definindo esses direitos em moldes diferentes, venha a decretar a resolução do contrato.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que a sentença recorrida – ao decretar a resolução do contrato – não respeitou o caso julgado que se havia formado com a decisão recorrida, sendo certo que o respeito pela autoridade desse caso julgado impunha a improcedência do pedido de resolução do contrato.

Mas, além do mais e independentemente dessa questão, pensamos que não estariam reunidos os pressupostos necessários para decretar a resolução do contrato.

Conforme referimos supra, os direitos conferidos ao dono da obra relativamente aos defeitos que a mesma apresenta não são atribuídos em alternativa. De acordo com o disposto na lei, a existência de defeitos na obra deve ser solucionada por via da eliminação desses defeitos (se tal for possível) ou por via de realização de nova obra (se não for possível eliminar os defeitos) e, conforme resulta do disposto no artigo 1222º do CC, só poderá haver lugar à resolução do contrato se os defeitos não forem eliminados nem for realizada nova obra e desde que os defeitos tornem a obra inadequada ao fim a que se destina (se os defeitos não tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina, apenas haverá lugar à redução do preço); foi essa a solução imposta pelo legislador que entendeu privilegiar o efectivo cumprimento do contrato sempre que tal se revele possível e viável.

Assim e conforme referimos supra, o dono da obra poderá pedir a resolução do contrato se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina e se: não for possível eliminar esses defeitos ou executar nova obra em substituição, ou se, apesar de possíveis, vier a ocorrer incumprimento definitivo do empreiteiro relativamente a essas prestações (seja por recusar em termos definitivos a sua execução, seja por conversão da sua eventual mora em incumprimento definitivo, nos termos do artigo 808º do CC, por perda de interesse – avaliada em termos objectivos – do dono da obra na prestação ou pela não realização da prestação no prazo que razoavelmente seja fixado pelo dono da obra).

Ora, nada disso se provou no caso dos autos.

Com efeito, não obstante resultar da matéria de facto que a Ré já efectuou algumas tentativas de reparação daqueles defeitos sem que tenha logrado atingir esse objectivo (a máquina continua a não desempenhar, de modo adequado, o fim a que se destinava), a verdade é que não resultou provado que esses defeitos não possam ser eliminados ou que a Ré não possa substituir a máquina por uma outra que cumpra os requisitos contratados.

Nessas circunstâncias, para que a Autora pudesse ter direito à resolução do contrato, era necessário que tivesse ocorrido incumprimento definitivo, por parte da Ré, da obrigação de eliminar aqueles defeitos ou construir nova obra.

Mas a verdade é que nada resultou provado que aponte para a existência de incumprimento definitivo daquela obrigação. Não se provando ter existido qualquer declaração (expressa ou tácita) da Ré no sentido de recusar essa prestação, apenas se configuraria uma situação de mora e também não se provou que tivesse ocorrido qualquer uma das situações que, nos termos do artigo 808º do CC, poderiam converter a mora em incumprimento definitivo.

O art. 808º do CC dispõe, a esse propósito, que:

1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.

2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente.”

Tal como resulta desta disposição, a mora do devedor pode converter-se em não cumprimento definitivo em duas situações distintas: perda de interesse na prestação em consequência da mora e não realização da prestação no prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.

A segunda situação reporta-se aos casos em que, apesar de não se verificar uma perda objectiva do interesse na prestação, o credor pretende libertar-se do vínculo que sobre si recai, fixando ao devedor que incorreu em mora um último prazo para cumprir a prestação e para além do qual declara que considera a obrigação não cumprida. Esta notificação – apelidada por alguns autores de notificação admonitória ou interpelação cominatória – destina-se a satisfazer o interesse legítimo do credor que, apesar de continuar a ter interesse objectivo na prestação, não pretende continuar vinculado à sua prestação e sujeito à mora da outra parte por tempo ilimitado. 

É evidente, porém, que tal situação não está aqui verificada, uma vez que não se provou – tão pouco se alegou – que a Autora tivesse efectuado tal interpelação.

A primeira situação (prevista na norma supra citada) respeita aos casos em que a mora do devedor elimina, só por si, o interesse do credor na prestação – ou seja, o cumprimento da prestação fora do prazo que havia sido fixado não tem qualquer interesse para o credor – e foi com base nesta situação – que se considerou estar demonstrada – que a sentença recorrida concluiu pela existência de incumprimento definitivo da Ré, dizendo:

Ora, no caso concreto, estão demonstrados factos suficientes para se ter por provada a invocada perda do interesse da Autora, na prestação da Ré, objetivamente apreciada.

E justificam, à luz dos princípios da boa fé, a conversão da mora da Ré em incumprimento definitivo e a resolução do contrato, pela perda objetiva do interesse da autora na prestação da mesma ré, face ao comportamento omissivo desta ré, apesar das anteriores interpelações da Autora para aquela concluir o trabalho contratado – artigo 432, nº1 e 808, nºs 1 e 2 do Código Civil”.

Mas, salvo o devido respeito, pensamos não ser assim.

Com efeito, a perda de interesse a que alude a norma citada não se basta com a afirmação do credor de que deixou de ter interesse na prestação; não basta, portanto, uma uma perda de interesse subjectiva na prestação; a perda de interesse tem que ser apreciada objectivamente, ou seja, a perda de interesse da prestação tem que resultar da apreciação objectiva da situação de tal forma que seja possível concluir que, naquelas circunstâncias, qualquer pessoa, colocada na posição do credor, deixaria de ter interesse na prestação e a verdade é que nenhuns factos se provaram – e tão pouco foram alegados – que permitissem concluir pela perda (objectiva) de interesse da Autora na prestação em causa.

Pensamos, portanto, em face do exposto, que, ainda que a força e autoridade do caso julgado formado por anterior decisão não impedisse que aqui viesse a ser decretada a resolução do contrato, não estariam reunidos os pressupostos necessários para que pudesse ser decretada tal resolução.

Impõe-se, por isso, revogar a sentença recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A força e a autoridade do caso julgado (consagradas no artigo 619º, nº 1, do CPC) impõem que a definição de uma concreta relação material controvertida que foi objecto de uma determinada decisão judicial (delimitada pelas partes, pelo pedido e pela causa de pedir) não possa voltar a ser discutida entre as mesmas partes e não possa vir a ser contrariada – antes devendo ser respeitada – por qualquer outra decisão.

II – Assim, a autoridade do caso julgado emergente de uma decisão judicial que definiu a situação jurídica das partes relativamente à pretensão ali deduzida de pagamento do preço da empreitada e relativamente aos defeitos que ali se invocaram para fundar a excepção de cumprimento do contrato, condenando a dona da obra a pagar o preço da empreitada quando a empreiteira eliminasse determinados defeitos que a mesma apresentava, impede que, em relação aos mesmos defeitos e perante a mesma situação de facto (sem a alegação e prova de qualquer outro facto), venha a ser proferida nova decisão que reconheça à dona da obra o direito de resolução do contrato.

III – Os direitos previstos nos artigos 1221º e 1222º do CC em caso de defeitos na obra não são alternativos, devendo o seu exercício respeitar a ordem ou sequência que resulta das referidas disposições legais;

IV – Consequentemente, o dono da obra apenas poderá pedir a resolução do contrato se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina e se não for possível eliminar esses defeitos ou executar nova obra em substituição ou se vier a ocorrer incumprimento definitivo do empreiteiro relativamente a essas prestações (seja por recusar em termos definitivos a sua execução, seja por conversão da sua eventual mora em incumprimento definitivo, nos termos do artigo 808º do CC, por perda de interesse – avaliada em termos objectivos – do dono da obra na prestação ou pela não realização da prestação no prazo que razoavelmente por este seja fixado).


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V.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão que declarou resolvido o contrato celebrado entre as partes e condenou a Ré a restituir à Autora a quantia de €13.043,62 referente à parte do preço que foi paga, acrescida de juros vencidos e vincendos, absolvendo-se a Ré desses pedidos.
Custas a cargo da Autora/Apelada.
Notifique.

Coimbra, 2019/03/12

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

Ferreira Lopes

Freitas Neto 


[1] Cod. Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., pag. 821.
[2] Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, 1994, pág. 440.
[3] Ob. cit., pág. 439.
[4] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 305.