Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1994/22.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA POR AMBIGUIDADE OU OBSCURIDADE
LEGADOS FEITOS PELOS CÔNJUGES
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 615.º, 1, C), DO CPC
ARTIGOS 236.º, 1; 238.º, 1; 1416.º; 1685.º E 2252.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A nulidade da sentença por ambiguidade ou obscuridade - al. c) do n.º 1 do art. 615.º - só emerge quando o vício torne a parte decisória ininteligível e perante um declaratário normal, - arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC - , ou seja, quando este não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.
II - O exercício jurisdicional de um direito e o pedido de atribuição da pretensão atinente, exige que o impetrante reúna, ao instaurar a ação, os fundamentos factuais dos mesmos, não bastando, ao menos por via de regra, estes poderem derivar do processo.
III -Os legados feitos pelos cônjuges, mesmo dentro da sua meação ou quota ideal disponível, são, via de regra, nulos em substância ou espécie, devendo assim os bens serem restituídos à herança para partilha; e apenas os legatários podendo exigir o valor em dinheiro de tais bens – artºs 2252º nº 2 e 1685º nº 2 do CC.
Decisão Texto Integral: Relator:
Carlos Moreira
Adjuntos:
Vítor Amaral
João Moreira do Carmo


ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COPIMBRA

1.

AA,  intentou contra BB E CC a presente ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo comum.

 

Pediu:

Seja declarada a nulidade das disposições testamentárias, constantes do testamento outorgado por DD, em 27-07-2015, que:

a) Determinou a constituição da propriedade horizontal dos dois prédios identificados em 6.º1. e 6.º2. da petição inicial;

 b) Instituíram os Réus como legatários dos bens identificados em 14.º da petição inicial, bem como os legados efetuados a seu favor, por via dessas disposições.

Para tanto, alegou, em síntese:

É mãe dos Réus, ambos menores, e filha de EE e de DD.

EE faleceu em .../.../2003, no estado de casado, sob o regime de comunhão geral de bens com DD.

O falecido EE, deixou como únicos e universais herdeiros a sua mulher, DD, e a sua filha, aqui Autora, sendo que a herança aberta por óbito de EE, permanece ilíquida e indivisa, por os respetivos herdeiros nunca terem procedido à partilha.

Aduz que do acervo da herança deixada por óbito de EE, fazem parte, designadamente os seguintes bens imóveis:

a) Prédio urbano, composto por rés-do-chão e 1º andar com garagem, sito em ..., na Rua ..., Bairro ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., ...01 da referida freguesia, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 2438, da União das freguesias ...;

 b) Prédio urbano, composto de cave, rés-do-chão e 1º andar, sito na Rua ..., letras ..., Bairro ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 2688, da União das freguesias ...; e c) Prédio urbano, sito no Lugar ..., freguesia e concelho ..., não descrito na Conservatória do Registo Predial, mas inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 3229 da freguesia ....

Por sua vez, DD faleceu em .../.../2021, no estado de viúva de EE, tendo deixado como única herdeira a Autora.

Em 27-07-2015, DD outorgou, no Cartório Notarial ..., testamento, nos termos do qual submeteu ao regime da propriedade horizontal, o prédio identificado supra em a), composto pelas frações designadas pelas letras “A” e“B”; submeteu ao regime da propriedade horizontal o prédio identificado supra em b),  composto pelas frações autónomas designadas pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E” e  “F”; e instituiu legatários os Réus, a favor de quem, por conta da quota disponível dos seus bens, fez, de entre outros, os seguintes legados: i. Legou ao Réu BB, a fração autónoma designada pela letra “A” do prédio identificado supra em a), e as frações autónomas designadas pelas letras “A”, “C” e “E” do prédio identificado supra em b); ii. Legou à Ré CC, a fração autónoma designada pela letra “B” do prédio identificado supra em a), e as frações autónomas designadas pelas letras “B”, “D” e “F” do prédio identificado supra em b); d) Constituiu a favor de ambos os Réus, o usufruto simultâneo e sucessivo do prédio sito em ..., melhor identificado supra em c).

No que respeita ao título constitutivo da propriedade horizontal, refere que o testamento em questão não foi instruído com documento, passado pela Câmara Municipal, comprovativo de que as frações autónomas satisfazem os requisitos legais, como o exige o artigo 59.º, n.º 1, do Código do Notariado, o que importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, nos termos do disposto no artigo 1416.º do Código Civil.

Quanto aos legados feitos aos Réus, alega que os bens identificados integravam o património comum da mãe e do pai da Autora, tratando-se de bens que pertenciam, em comum, ao acervo patrimonial do casal, situação que ainda se mantinha quando a disposição testamentária foi feita, donde se está perante uma disposição, feita pela mãe da Autora de um bem comum e indiviso do casal, que a testadora formara com o seu marido, pré falecido.

Mais refere que, por óbito do marido da testadora, a titularidade de tal acervo patrimonial passou a ser titulada, em comum e sem determinação de parte ou direito, pela testadora ora falecida e pela Autora.

Por despacho datado de 13-09-2022, atenta a menoridade dos Réus e a sua consequente incapacidade, foi nomeado para exercer as funções de curador especial dos Réus na presente ação, o seu progenitor, FF.

Válida e regularmente citado o curador dos Réus, o mesmo não deduziu contestação, não constituiu mandatário, nem interveio de qualquer forma no processo.

Nesta sequência, foi citado o Ministério Público, nos termos do artigo 21.º do Código de Processo Civil, não tendo sido deduzida contestação.

2.

Seguidamente foi proferida sentença na qual foi decidido:

«Face ao exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência:

7.1. Declara-se a nulidade das disposições testamentárias, constantes do testamento outorgado por DD, em 27-07-2015, na parte em que instituíram os Réus como legatários dos bens descritos no facto 4.1.10.3., bem como dos legados efetuados a seu favor por via dessas disposições, no correspondente ao excedente da meação da testadora nos bens comuns do casal composto por si e pelo seu falecido cônjuge EE, e da sua quota parte ideal na herança aberta por morte do seu cônjuge;

7.2. Improcede o demais peticionado.»

3.

Inconformada recorreu a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.ª  Analisando o ponto 7.1 do dispositivo da sentença, não é possível saber com certeza, qual o seu alcance e significado.

2.ª  Se é certo que a sentença reconhece a nulidade das disposições testamentárias em questão, não é certo, nem claro que se consiga apreender qual o alcance dessa declaração de nulidade e consequentemente da decisão proferida pelo Tribunal a quo.

3.ª Dissecando o ponto 7.1 do dispositivo da sentença, não se entende o que se pretende dizer quando se afirma que as disposições são nulas “no correspondente ao excedente da meação da testadora nos bens comuns do casal composto por si e pelo seu falecido cônjuge EE, e da sua quota parte ideal na herança aberta por morte do seu cônjuge”.

4.ª A sentença proferida pelo Tribunal a quo, na parte constante do ponto 7.1 do dispositivo, é obscura, o que torna ininteligível a decisão, sendo por isso nula, nos termos do disposto no artigo 615º-1 alínea c), 2ª parte do CPC.

5.ª A Recorrente peticiona nesta ação que se declare a nulidade da disposição testamentária, constante do testamento outorgado por DD, em 27-07-2015, que determinou a constituição da propriedade horizontal dos prédios urbanos descritos nos factos 4.1.6. e 4.1.7.dos factos provados, por não cumprir os requisitos do artigo 59.º, n.º 1 do Código do Notariado.

6.ª O Tribunal a quo julgou improcedente este pedido, por considerar que a Autora Recorrente não dispõe de legitimidade substantiva para arguir a nulidade em causa.

7.ª Entende o Tribunal a quo que a “Autora carece de legitimidade para invocar a nulidade do título constitutivo dos prédios descritos nos factos 4.1.6. e 4.1.7., na medida em que não figura como condómina, nem assumiria tal posição caso o título constitutivo, em abstrato, não fosse inválido, não tendo igualmente o Ministério Público invocado tal nulidade nos termos da parte final do n.º 2 do artigo 1416.º do Código Civil.”.

 8.ª Se é verdade que a Recorrente neste momento não é condómina, é igualmente verdade que, por via da procedência do pedido da nulidade dos legados realizados a favor dos Réus, o passará a ser.

9.ª Se os legados em questão forem – com rigor já o foram, ainda que parcialmente, por via da decisão recorrida – declarados nulos, tal implicará que os bens legados, designadamente os dois prédios que foram objeto da constituição da propriedade horizontal, passem a ser propriedade exclusiva da Recorrente, por ser esta a única herdeira legitimaria da sua mãe, DD (cf. ponto 4.1.9. dos factos provados).

10.ª Ao passar a ser proprietária dos referidos prédios, a Recorrente passaria consequentemente a assumir a posição de condómina, caso o título constitutivo não fosse inválido e como tal a dispor de legitimidade para arguir, como o fez, a nulidade do titulo constitutivo da propriedade horizontal daqueles prédios, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 1416º do Código Civil.

11.ª Impõe-se assim concluir que, ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal a quo, a Recorrente tem legitimidade para invocar, como invocou, a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal dos prédios identificados em 4.1.6. e 4.1.7 dos factos provados, uma vez que por via da procedência da nulidade dos legados que aqui peticiona, passará a ser a única proprietária dos referidos prédios, passando como tal a ter a posição de condómina, caso o título constitutivo da propriedade horizontal fosse válido.

12.ª Ao não ter assim entendido, e ter considerado que a Recorrente carece de legitimidade para invocar a nulidade do título constitutivo dos prédios descritos nos pontos 4.1.6. e 4.1.7 dos factos provados, o Tribunal a quo não interpretou, nem aplicou convenientemente e assim violou a norma constante do nº 2 do artigo 1416º do Código Civil.

13.ª A Recorrente na presente ação peticiona também a declaração da nulidade das disposições testamentárias, constantes do testamento outorgado por sua mãe, DD, em 27-07-2015, que instituíram os Réus como legatários dos bens identificados no ponto 4.1.10.3. dos factos provados, bem como dos legados efetuados a seu favor por via dessas disposições.

14.ª O Tribunal a quo, pese embora acompanhe toda a fundamentação fática e legal que a Recorrente invocou na petição inicial para sustentar o seu pedido, acaba inexplicavelmente, por considerar que as referidas disposições testamentárias são válidas na parte que pertence à testadora, ou seja, na que respeita à sua meação nos bens comuns do casal composto por si e pelo seu falecido cônjuge EE, e na parte correspondente à sua quota-parte ideal (o quinhão hereditário) na herança aberta por morte do seu cônjuge, por o direito respetivo corresponder a bem próprio do qual pode dispor, sem prejuízo das regras relativas à sucessão legitimária que limitam a porção de bens de que o testador não pode dispor por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários.

15.ª Perante a factualidade que resultou provada nos autos, parece-nos indiscutível afirmar - como de resto o próprio Tribunal a quo também o faz na sentença - que os bens legados integram (e integravam à data da morte da testadora), o património comum da mãe e do pai da Recorrente, tratando-se de bens que pertenciam, em comum, ao acervo patrimonial do casal, situação que ainda se mantinha quando a disposição testamentária foi feita, donde resulta que a testadora legou bens imóveis que não lhe pertenciam em exclusivo.

16.ª O artigo 2252º, nº 2 do Código Civil, dispõe que estando em causa um legado de coisa, certa e determinada, que se integre no património comum do casal, ao mesmo é aplicável o regime fixado no artigo 1685º do Código Civil.

17.ª Resulta do disposto no citado artigo 1685º, nº. 2, aplicável ex vi o nº 2 do artigo 2252º do Código Civil, que a disposição testamentária que incida sobre bens certos e determinados pertencentes à comunhão do património comum (efetuada quer na pendência do matrimónio, quer depois da sua dissolução e enquanto esse património comum se mantiver indiviso), embora válida quanto ao valor, é nula quanto à substância (transformação ope legis de uma disposição em substância num legado de valor).

18.ª No caso em apreço estamos perante uma disposição, feita pela testadora de um bem comum e indiviso do casal que a testadora formara com o seu marido, pré falecido.

19.ª Daqui que, contrariamente ao que foi decido pelo Tribunal a quo, não se aplicar ao caso em concreto, o regime geral do nº 1 do artigo 2252º do Código Civil, mas sim o regime específico da norma do artigo 1685º do mesmo diploma legal (aplicável por remissão do disposto no nº 2 do artigo 2252º).

20.ª E face a este regime específico, a disposição testamentária em causa é nula, embora automaticamente convertível em obrigação de valor. Quer isto dizer que não há qualquer fundamento legal para reduzir o alcance do legado ao direito que a testadora podia dispor sobre o imóvel, como se decidiu na decisão recorrida.

21.ª O regime que se aplica ao caso em apreço é o do nº 2 do artigo 1685º do Código Civil, o que significa que a disposição testamentária através da qual a testadora instituiu os Réus como legatários dos bens em causa é nula quanto à substância, sendo somente válida, por conversão ope legis, enquanto fonte de obrigação de valor (transformação ope legis de uma disposição em substância num legado de valor).

22.ª Nestes termos, é forçoso concluir pela nulidade das disposições testamentárias, constantes do testamento outorgado por DD, em 27-07-2015, que Instituíram os Réus como legatários dos bens identificados no ponto 4.1.10.3. dos factos provados, bem como os legados efectuados a seu favor, por via dessas disposições, com a consequente procedência integral da presente ação.

23.ª O Tribunal a quo ao não ter entendido deste modo, não interpretou, nem aplicou convenientemente e assim violou as normas constantes do artigo 2252º, nº 2 e do artigo 1685º, nº 2, ambos do Código Civil.

Nestes termos e de mais direito,

I. Deve ser anulada a sentença do Tribunal a quo pelo vício de nulidade de que enferma identificado em II) destas alegações;

II. Deve a sentença do Tribunal a quo ser revogada e substituída por douta decisão, que julgue totalmente procedente a ação e consequentemente declare a nulidade das disposições testamentárias, constantes do testamento outorgado por DD, em 27-07-2015, que:

a) Determinou a constituição da propriedade horizontal dos dois prédios identificados em 6º.1. e 6º.2. da petição inicial;

b) Instituíram os Réus como legatários dos bens identificados em 14º da petição inicial, bem como os legados efectuados a seu favor, por via dessas disposições.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª – Nulidade da sentença por obscuridade – artº 615º nº1 al. c).

2ª-  Procedência, in totum,  da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

Clama a recorrente que a sentença, na parte constante do ponto 7.1 do dispositivo, é nula, porque é obscura, o que torna ininteligível a decisão.

  Para tanto aduz:

«Analisando o ponto 7.1 do dispositivo da sentença, não é possível saber com certeza, qual o seu alcance e significado.

2.ª  Se é certo que a sentença reconhece a nulidade das disposições testamentárias em questão, não é certo, nem claro que se consiga apreender qual o alcance dessa declaração de nulidade e consequentemente da decisão proferida pelo Tribunal a quo.

3.ª Dissecando o ponto 7.1 do dispositivo da sentença, não se entende o que se pretende dizer quando se afirma que as disposições são nulas “no correspondente ao excedente da meação da testadora nos bens comuns do casal composto por si e pelo seu falecido cônjuge EE, e da sua quota parte ideal na herança aberta por morte do seu cônjuge”.

Obviamente que a sentença, como instrumento  processual mais relevante que, em última análise, define  a composição dos interesses em dilucidação na causa,   tem de constituir uma peça escorreita, linear, lógica e claramente percetível.

Naturalmente que a nulidade de sentença por obscuridade da decisão judicial ocorre quando esta contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e ambíguo, quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes e/ou sentidos porventura opostos

Na verdade:

«Não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que provoca a nulidade da sentença, mas apenas aquela que torna a decisão ininteligível, sendo que a ininteligibilidade relevante para efeito do art. 615.º do CPC é a da decisão da causa e não a mera ininteligibilidade de um argumento utilizado no percurso decisório.

Por outro lado, a ambiguidade ou a obscuridade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615.º só releva quando torne a parte decisória ininteligível e só torna a parte decisória ininteligível quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar»  – Ac. do STJ de 16.03.2023, p. 17505/20.0T8LSB-A.L1.S1 e demais jurisprudência aqui citada.

No caso dos autos, afigura-se meridianamente evidente que o apontado vício inexiste.

Efetivamente, o dispositivo do ponto 7.1. é muito claro na sua redação, significado e alcance.

Pois que, na fundamentação a montante aduzida, concluiu a julgadora que a disposição testamentária   é válida na parte que pertence à testadora, ou seja,  na que se integra na  sua meação  nos bens comuns do casal e na quota parte ideal do seu quinhão hereditário na herança aberta por óbito do seu cônjuge.

E sendo apenas nula na parte que excede tal meação da testadora e excede a sua quota parte na herança aludida.

Ora tal dispositivo do ponto 7.1. da sentença reflete inequivocamente este entendimento.

Por conseguinte, não se enxerga onde está a obscuridade ou a ininteligibilidade da decisão, pois que, reitera-se, esta é a sequência lógica e inequívoca dos fundamentos anteriormente plasmados.

O que parece acontecer é que a recorrente confunde a nulidade invocada com um eventual erro de julgamento.

Pois, no fundo, discorda da  decisão e é tal discordância que, para além do mais, consubstancia o recurso.

Ora, tal vício, a verificar-se, será um erro de julgamento e não a nulidade arguida.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

Foram dados como provados os seguintes factos que importa considerar:

4.1.1. AA é mãe dos Réus, BB, nascido a .../.../2009 e CC, nascida a .../.../2013.

4.1.2. AA é filha de EE e de DD.

4.1.3. EE faleceu em .../.../2003, no estado de casado, sob o regime de comunhão geral de bens, com DD.

4.1.4. EE deixou como únicos e universais herdeiros a sua mulher, DD, e a sua filha, AA.

4.1.5. A herança aberta por óbito de EE permanece ilíquida e indivisa, por as herdeiras não terem procedido à respetiva partilha.

4.1.6. Encontra-se inscrito a favor de EE (enquanto cabeça de casal de herança) na matriz predial urbana do Serviço de Finanças ... - 4, sob o artigo 2438 da União das freguesias ..., o prédio urbano composto por rés-do-chão e 1.º andar com garagem, sito em ..., na Rua ..., Bairro ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., da freguesia ..., ...01, mediante Ap. ...93 de 29-11-2022, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária de EE, enquanto sujeito passivo, a favor de AA e DD.

4.1.7. Encontra-se descrito a favor de EE na ... Conservatória do Registo Predial ..., da freguesia ..., sob o n.º ...64, mediante Ap. ...9 de 06-08-1969, por compra, o prédio urbano composto por cave, rés-do-chão e 1.º andar, lados direito e esquerdo, sito na Rua ..., letras ..., Bairro ..., freguesia ..., concelho ..., tendo tal prédio sido desanexado do prédio urbano descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16 e inscrito na matriz predial urbana do Serviço de Finanças ... - 4, sob o artigo 2688 da União das freguesias ....

4.1.8. Encontra-se inscrito a favor de EE (enquanto cabeça de casal de herança) na matriz predial urbana do Serviço de Finanças ..., sob o artigo 3229 da freguesia ..., o prédio urbano composto por casa de rés do chão e 1.º andar destinado a habitação, sito em ..., freguesia e concelho ..., omisso na Conservatória do Registo Predial.

4.1.9. DD faleceu em .../.../2021, no estado de viúva de EE, sendo AA a sua única herdeira legitimária.

4.1.10. Em 27-07-2015, DD outorgou, no Cartório Notarial ..., testamento, nos termos do qual declarou:

4.1.10.1. Enquanto proprietária, submeter ao regime da propriedade horizontal, o prédio descrito em 4.1.6., composto pelas frações autónomas designadas pelas letras “A” e “B”;

4.1.10.2. Enquanto proprietária, submeter ao regime da propriedade horizontal o prédio descrito em 4.1.7., composto pelas frações autónomas designadas pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E” e “F”;

4.1.10.3. Instituir legatários os Réus, BB e CC, a favor de quem, por conta da quota disponível dos seus bens, declarou fazer os seguintes legados:

4.1.10.3.1. Ao Réu BB, a fração autónoma designada pela letra “A” do prédio descrito em 4.1.6., e as frações autónomas designadas pelas letras “A”, “C” e “E” do prédio descrito em 4.1.7.;

4.1.10.3.2. À Ré CC, a fração autónoma designada pela letra “B” do prédio descrito em 4.1.6., e as frações autónomas designadas pelas letras “B”, “D” e “F” do prédio descrito em 4.1.7.;

4.1.10.3.3. Declarou constituir a favor de ambos os Réus, o usufruto simultâneo e sucessivo do prédio descrito em 4.1.8.

5.2.2.

Quanto ao pedido de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal.

A julgadora desatendeu-o aduzindo o seguinte discurso argumentativo:

«O artigo 1416.º do Código Civil dispõe que

“1. A falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418.º ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção.

2. Têm legitimidade para arguir a nulidade do título os condóminos, e também o Ministério Público sobre participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções”.

A sobredita norma legal prevê uma especialidade face ao regime geral da nulidade previsto no artigo 286.º do Código Civil, dizendo a doutrina e jurisprudência que se está perante uma nulidade especial, mista ou típica, visto que, in casu, a impugnação do título constitutivo por falta de requisitos legais compete apenas aos condóminos e ao Ministério Público, não podendo, portanto, tal nulidade ser arguida pelos demais interessados, nem ser declarada oficiosamente pelo tribunal.

«…atendendo à matéria de facto provada, é manifesto que a Autora carece de legitimidade para invocar a nulidade do título constitutivo dos prédios descritos nos factos 4.1.6. e 4.1.7., na medida em que não figura como condómina, nem assumiria tal posição caso o título constitutivo, em abstrato, não fosse inválido, não tendo igualmente o Ministério Público invocado tal nulidade nos termos da parte final do n.º 2 do artigo 1416.º do Código Civil.

Já a recorrente alega que:

«… tem legitimidade para invocar, como invocou, a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal dos prédios identificados em 4.1.6. e 4.1.7 dos factos provados, uma vez que por via da procedência da nulidade dos legados que aqui peticiona, passará a ser a única proprietária dos referidos prédios, passando como tal a ter a posição de condómina, caso o título constitutivo da propriedade horizontal fosse válido. »

Naturalmente que este entendimento é insustentável.

O pedido da concessão de uma pretensão/direito, implica, logicamente, que os pressuposto/fundamentos/requisitos/qualidades jurídicas  inerentes aos mesmos e necessárias ao sucesso  do peticionado,  já se encontrem, no momento da formulação do pedido, insertos na  esfera jurídica do impetrante.

Destarte, a argumentação da recorrente é insubsistente.

Pois que, pretende fundamentar um dos pedidos com o sucesso que venha a ter noutro pedido.

O que não pode ser concedido, quer por motivos de lógica atinente à prévia existência dos requisitos do pedido, como se viu, quer por razões  práticas de simples incerteza e aleatoriedade, pois que, à partida, nada garantia que pudesse vir a ter sucesso no  pedido que é condição da procedência do outro.

Como efetivamente, e parcialmente, não teve.

5.2.3.

Quanto ao mais.

A Julgadora decidiu com arrimo na seguinte, essencial,  argumentação:

«é inegável, decorrendo indubitavelmente da factualidade provada, que os bens imóveis mencionados na referida deixa testamentária integram … considerando o regime de bens do casamento, o património comum do casal que a testadora formou com o seu falecido cônjuge … e que, atualmente, compõem o acervo hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta com o falecimento de EE, …donde, necessariamente, …a testadora legou bens imóveis certos e determinados que não lhe pertenciam por inteiro, tratando-se sim de um legado de coisa comum.

Nesta sequência, a respeito do legado de coisa pertencente só em parte ao testador, o artigo 2252.º do Código Civil, prevê o seguinte:

“1. Se o testador legar uma coisa que não lhe pertença por inteiro, o legado vale apenas em relação à parte que lhe pertencer, salvo se do testamento resultar que o testador sabia não lhe pertencer a totalidade da coisa, pois, nesse caso, observar-se-á, quanto ao restante, o preceituado no artigo anterior.

2. As regras do número anterior não prejudicam o disposto no artigo 1685.º quanto à deixa de coisa certa e determinada do património comum dos cônjuges”.

Na medida em que está em causa uma deixa testamentária referente a património comum indiviso do casal, formado pela falecida testadora e pelo seu falecido cônjuge, tem-se que o referido  artigo 1685.º do Código Civil dispõe que

1. Cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários.

2. A disposição que tenha por objeto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor em dinheiro.

3. Pode, porém, ser exigida a coisa em espécie:

a) Se esta, por qualquer título, se tiver tornado propriedade exclusiva do disponente à data da sua morte;

b) Se a disposição tiver sido previamente autorizada pelo outro cônjuge por forma autêntica ou no próprio testamento;

c) Se a disposição tiver sido feita por um dos cônjuges em benefício do outro”.

Sendo o património comum um património coletivo (também designado por “comunhão de mão comum”), o mesmo pertence a ambos os cônjuges em bloco/em conjunto mas sem que possam afirmar, antes da sua divisão/partilha, dispor de um direito próprio e específico sobre os bens que integram o seu acervo. Devido a essa sua natureza, esse património não “confere a nenhum dos seus titulares, nem direitos sobre coisas certas e determinadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas.

O facto de um prédio pertencer em comum a ambos os cônjuges não significa, por outras palavras, que qualquer deles se possa intitular do prédio ou sequer titular do direito a metade desse prédio”, que só acontecerá, repete-se, após a sua partilha”.

No caso concreto, …Tendo a liberdade de dispor da sua meação nos bens comuns, bem como dos seus bens próprios (onde se insere o seu quinhão hereditário na herança aberta por morte do seu cônjuge), isto não significa que tivesse direitos sobre as coisas certas e especificadas.

Desta feita, ao abrigo dos artigos 2252.º e 1685.º do Código Civil, …tem-se que a disposição testamentária …lhes legou os bens imóveis certos e determinados, bem como o usufruto de bem imóvel certo e determinado, devidamente descritos no facto 4.1.10.3., por conta da sua quota disponível, é válida na parte que lhe pertence, ou seja, na que respeita à sua meação nos bens comuns do casal …e na parte correspondente à sua quota-parte ideal (o quinhão hereditário) na herança aberta por morte do seu cônjuge, …sem prejuízo das regras relativas à sucessão legitimária que limitam a porção de bens de que o testador não pode dispor por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários.

No que integra o excedente da meação da testadora e da sua quota parte na herança do falecido cônjuge, as disposições testamentárias são nulas, pelo que a ação terá de proceder parcialmente.»

Já a recorrente entende que:

19.ª Daqui que, contrariamente ao que foi decido pelo Tribunal a quo, não se aplicar ao caso em concreto, o regime geral do nº 1 do artigo 2252º do Código Civil, mas sim o regime específico da norma do artigo 1685º do mesmo diploma legal (aplicável por remissão do disposto no nº 2 do artigo 2252º).

20.ª E face a este regime específico, a disposição testamentária em causa é nula, embora automaticamente convertível em obrigação de valor. Quer isto dizer que não há qualquer fundamento legal para reduzir o alcance do legado ao direito que a testadora podia dispor sobre o imóvel, como se decidiu na decisão recorrida.

21.ª O regime que se aplica ao caso em apreço é o do nº 2 do artigo 1685º do Código Civil, o que significa que a disposição testamentária através da qual a testadora instituiu os Réus como legatários dos bens em causa é nula quanto à substância, sendo somente válida, por conversão ope legis, enquanto fonte de obrigação de valor (transformação ope legis de uma disposição em substância num legado de valor).

Analisemos.

Como alega a recorrente, e versus o que entendeu a julgadora, porque se trata de legado de bens determinados, o caso não se integra na previsão do nº1 do artº 2252º do CC, mas sim na do seu nº2.

Assim e como é mencionado no Acórdão da RC de 15.05.2018, p. 3884/16.7T8VIS.C1, mencionado pelo recorrente:

«… à luz do que resulta do disposto no citado artº. 1685º, nº. 2 ex vi artº. 2252º, ambos do CC, a disposição testamentária que incida sobre bens certos e determinados pertencentes à comunhão do património comum (efetuada quer na pendência do matrimónio, quer depois da sua dissolução e enquanto esse património comum se mantiver indiviso) é sempre válida quanto ao valor e, em princípio, nula quanto à substância (transformação ope legis de uma disposição em substância num legado de valor).

 Desse modo, não ocorrendo nenhuma das exceções previstas no nº. 3 do artigo 1685º (que a ocorrerem, …conferiam ao comtemplado o direito de exigir a coisa em substância) a disposição que tenha por objeto coisa certa e determinada do património comum, embora se reconduza a faculdade legal, apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor da deixa.»

No mesmo sentido se inclinando a maioria da jurisprudência.

Assim:

« Um legado feito por um dos cônjuges que incide sobre um bem concreto e determinado que integra(va) o património comum de um casal configura uma disposição que é sempre válida quanto ao valor (portanto, o contemplado pode sempre exigir o valor em dinheiro), mas, em princípio, será nula quanto à substância (portanto, ao beneficiário estará, por regra, vedada a possibilidade de exigir a entrega da coisa)» -Ac.  RP de 17.04.2023, p. 286/22.0T8VCD.P1, in dgsi.pt.

Ou ainda:

«…incidindo a referida disposição sobre bem certo e determinado pertencente a herança não partilhada, é a mesma “apenas” válida quanto ao valor - e nula quanto à substância – conferindo ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro.

 Em face do referido, não dispõe a legatária de título que obste à restituição da fracção ao seu proprietário uma vez efectuada a partilha.» - Ac. RL de 23.02.2023, p. 1009/21.6T8MTA.L1-6, in dgsi.pt.

Nesta conformidade, a decisão, na parte em que declarou a nulidade das disposições testamentárias, bem como dos legados no correspondente ao excedente da meação da testadora nos bens comuns do casal composto por si e pelo seu falecido cônjuge e da sua quota parte ideal na herança aberta por morte deste, não se alcança como a mais curial.

Pois que,  numa interpretação a contrario sensu, de tal decisão dimana que as disposições testamentárias dos legados são válidas, em substancia ou espécie, na parte em que possam ser integradas naquela meação.

O que, como se viu, a lei não permite.

 Pois que ela, quanto a bens certos e determinados, não distingue entre as situações em que os bens concretos legados se integrem, ou não integrem, na meação ou na quota ideal disponível, sendo, em qualquer das situações,  os legados sempre nulos em substância.

Na verdade:

« As limitações às disposições, para depois da morte, feitas pelos cônjuges, de bens certos e determinados, visam proteger o património comum e as expectativas que enquanto seus titulares sobre o mesmo detêm.» - Ac. RL de 15.03.2011, p. 6330/09.9TBCSC.L1-7, in dgs.pt.

 E, assim, devendo tais bens certos e determinados permanecer no acervo hereditário a dividir e partilhar.

 Sendo que a lei salvaguarda, até certo ponto, a posição dos legatários, os quais, não obstante tal nulidade em espécie, podem exigir o valor dos bens legados.

Procede, nesta vertente, recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder parcial provimento ao recurso e, agora, declarar a nulidade da disposição testamentária que instituiu os Réus como legatários dos bens identificados em 14.º da petição inicial, bem como os legados efetuados a seu favor, ficando eles com o direito  de exigir o valor  dos bens em dinheiro. .

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2023.12.13.