Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
8/08.8JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CRIME DE BURLA
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 217.º, N.º1 DO CÓDIGO PENAL
Sumário: Comete o crime de burla aquele que vende uma viatura aos ofendidos, comprometendo-se a fazer a transferência de propriedade durante o mês seguinte, bem como a entregar-lhes os documentos do veículo, recebendo destes como meio de pagamento cheques e um veículo de retoma, fazendo-os seus, e confiando os ofendidos que posteriormente seria formalizada a compra e venda da viatura, não o vindo a fazer.
Decisão Texto Integral:      Relatório

            Pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido

 A..., residente na Rua … , Marinha Grande;

imputando-se-lhe a prática de factos susceptíveis de integrarem, em autoria material e na forma consumada, um crime de burla qualificada,  previsto  e punido pelos artigos 217.º e  218.º n.º  2 al. a) do Código Penal (com referência ao art. 202.º, al. b) do Código Penal).

            Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 24 de Fevereiro de 2011, decidiu julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência:

- condenar o arguido A..., como autor material e na  forma consumada de um crime de burla qualificada, previsto e punido, pelos artigos 217º e  218.º, n.º 2 al. a) e 202.º, al. b), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois)  meses de prisão; e

- suspender-lhe a execução da referida pena, pelo período de dois anos e dois meses, nos termos do disposto no art.50º n.º 5 do Código Penal, por entender que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

            Inconformado com a douta sentença dele interpôs recurso o arguido A..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

A) Modificabilidade da decisão de facto:

1- Tribunal a quo não deveria ter dado como provado os seguintes factos:

O arguido apenas pretendeu efectuar a venda do veículo e receber a importância paga pelo B... e C.... Nunca foi sua intenção proceder á entrega dos valores recebidos à empresa  “W... - ., Lda., bem como entregar a B... e a C... os documentos da viatura .. e efectuar a regularização da compra e venda da mesma... O arguido actuou com o propósito de obter a entrega do valor de € 30.500,00 por parte de B... e C..., assim sendo alcançado um beneficio económico, com o correspondente prejuízo para aqueles e para a firma “W... - ., Lda. O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária sabendo que a sua conduta era proibida por lei.”

2- Analisando toda a prova produzida em sede de audiência e discussão de julgamento, não se pode imputar tal responsabilidade ao ora recorrente, nomeadamente que o mesmo tenha actuado com o propósito de obter a entrega dos montantes com o intuito de prejudicar e lesar os ofendidos.

3- Sucede que, por factos alheios a si próprio, o arguido não pôde proceder à entrega dos documentos do veículo por os mesmos ainda não se encontrarem na posse da sua proprietária W..., pois o veículo tendo sido importado da Alemanha, na data do acordo de compra e venda, ainda não tinha legalizado o veículo, sendo o registo do veículo em causa só foi efectuado a 29 de Junho de 2007.

4- O negócio foi celebrado entre os ofendidos e a U..., sendo os cheques passados a favor da empresa e depositados na conta bancária da firma.

Tudo em conformidade com os procedimentos normais da empresa, conforme declarações das testemunhas D... e F....

5- O arguido não podia movimentar as contas bancárias da empresa, quem detinha as funções de gerente era o D... e os cheques só podiam ser assinados pelo próprio. Mesmo que o arguido quisesse restituir tais montantes aos lesados não detinha poderes para o efeito, pois tais poderes não caíam no âmbito das suas funções.

6- Conforme certidão de registo comercial da U... junta aos autos, em 26/12/2006, houve cessão de quotas a favor de G... e H…, desempenhando os mesmos funções de gerentes, deixando nessa altura o arguido de exercer quaisquer funções na referida empresa.

7- A nova gerência ficou em resolver a situação dos lesados pois era a si que competia a resolução da situação em apreço, tendo inclusivamente encetado negociações com a W... para regularização da dívida existente e dado uma viatura Audi A6 a experimentar aos lesados para se proceder à substituição do veículo … .

8- O arguido ao ter intervindo no negócio, sempre teve a plena convicção que o negócio iria correr bem como os outros, sem sequer imaginar que teria o desfecho que a posterior se veio a verificar.

9- Perante os contornos do negócio e das circunstâncias que posteriormente se vieram a verificar, o insucesso do negócio não lhe poderá ser imputado, muito menos a responsabilidade criminal que veio a ser acusado, pois nunca obteve qualquer benefício com o mesmo e nunca teve qualquer intenção de prejudicar os lesados.

B) Impugnação de direito:

10- O recorrente entende que com a sua conduta não se verificou os elementos típicos do crime de burla, pois não usou de qualquer astúcia para induzir em erro os ofendidos, na realidade houve um atraso dos documentos do veículo por parte do proprietário que só veio a regularizar tal situação a 29 de Junho de 2007.

11- Muito menos obteve o arguido qualquer benefício/enriquecimento ilegítimo para si, os cheques foram passados à ordem da empresa U... e depositados à sua ordem.

12- Caso se tenha verificado um enriquecimento ilegítimo para a empresa, não se provou o arguido tenha agido com essa mesma intenção, daí não se verificar o elemento subjectivo tipificador do crime de burla.

13- Para que se verifique não basta o dolo e causar um prejuízo patrimonial é necessário que tenha agido com a intenção de o conseguir, através da sua conduta. O arguido ao indagar o ofendido da situação da carrinha A4 e oferecidos os seus ofícios: “ eu encontrei-o, não veio ter comigo de propósito a dizer que me ajudava...Se precisasse que ele testemunhava a meu favor...” a intenção do arguido nunca fora de não concretizar o negócio ou de obter um enriquecimento à custa de B... . A circunstância de se oferecer para sua testemunha demonstra a boa fé do mesmo aquando a celebração do negócio e mesmo no sentido de restituir a situação anterior até onde estivesse ao seu alcance3.

14- Na perspectiva do arguido, existe sem dúvida um dano patrimonial causado aos lesados, contudo a sua verificação não se deve a uma fraude penal, mas sim civil.

15- A assunção social de obrigação de salvaguardar bens alheios não pode deixar, pois, de ter um carácter subsidiário e residual. Neste caso, apenas haveria burla se lhe fosse prometido um bem que não existia, porque neste caso, haveria um mise en scene, intervenção de um bem não existente e um prejuízo causado pela aquisição de algo não existente.

l6- Tendo em consideração que o Direito Penal é a ultima ratio, ou seja, apenas intervém quando se lesam determinados bens jurídicos e quando nenhuma outra ordem jurídica acautela convenientemente o lesado, neste caso, a resolução da situação poderá ficar completamente acautelada pelo direito civil numa acção intentada contra a U....

17- Face ao exposto, entende o recorrente que não se verificam os pressupostos quer objectivos quer subjectivos tipificadores do crime de burla, pelo que a sentença denota um erro de interpretação e/ou aplicação, por isso violado, os ditames legais, mormente os artigos art. 217.º e 218.º, n.º 2 alínea a), todos do Código Penal.

Deve o presente recurso merecer provimento, absolvendo o arguido da prática do crime de burla qualificada e revogando-se a douta sentença e substituída por acórdão em conformidade.

            O Ministério Público na Comarca da Marinha Grande respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º2 do Código de Processo Penal.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados ( numeração atribuída pelo Tribunal da Relação)

1. Em data indeterminada do mês de Maio de 2006 o veículo automóvel, da marca .., de matricula …, encontrava-se nas instalações da empresa “U... - ., Lda.”, sita na …, Marinha Grande.

2. A referida viatura era pertença da empresa denominada “W... – ., Ldª”, da qual são sócios  …e … .

3. Esta sociedade tinha entregue a viatura ao arguido para que o mesmo, procedesse à sua venda, ficando com a obrigação de entregar o respectivo valor da venda à empresa proprietária.

4. Em finais do mês de Maio de 2006, B... e  C... dirigiram-se ao referido stand da “U... - ., Lda” e aí, depois de verem o veículo, de  marca .., acertaram com o arguido proceder à sua compra pelo valor de 30.500,00 €.

5. Visando a concretização deste propósito, nessa altura, entregaram ao arguido uma viatura Volkswagen, Pólo, com a matricula …, a qual foi avaliada em 2.500,00 €, um cheque do BPI com o nº … na quantia de 6.000,00 € e outro cheque do Banco Santander com o nº  … na quantia de 22.000,00€.

6. Na sequência da entrega da viatura Volkswagen Pólo e dos mencionados cheques, B... e  C... receberam do arguido o veículo .., de matricula … .

7. Os valores de tais cheques foram depositados, em conta da firma “U... - ., Lda”, sendo esta beneficiária dos mesmos.

8. O arguido, apesar de ter entregue a B... e a C... a viatura de marca .. não procedeu à entrega dos respectivos documentos, nem providenciou pela assinatura do contrato de compra e venda do veículo.

9. Neste acto de entrega referiu que posteriormente o faria, comprometendo-se a fazer a transferência de propriedade durante o mês seguinte, ou seja, em Junho de 2006.

10. Nessa ocasião, o arguido entregou àqueles apenas uma cópia do livrete da viatura .. e uma autorização de circulação datada de 8.06.2006, com a validade de trinta dias.

11. O B... e a C..., confiando que posteriormente seria formalizada a compra e venda da viatura .., receberam esta e entregaram ao arguido o veículo Volkswagen Pólo e os dois cheques supra-mencionados.

12. Porém, o arguido até momento não diligenciou pela regularização da referida compra e venda, nem lhes entregou quaisquer documentos.

13. O arguido apenas pretendeu efectuar a venda do veículo .. e receber a importância paga pelo B... e a C....

14. Nunca foi sua intenção proceder à entrega dos valores recebidos à empresa “W...-., Lda”, bem como entregar a B... e a C... os documentos da viatura .. e efectuar a regularização da compra e venda da mesma.

15. Caso o B... e a C... soubessem que o arguido não tinha a intenção de regularizar a situação do veículo junto da “W... -  ., Lda”, entregando-lhe os valores por si recebidos, nunca tinham adquirido o veículo .., pagando por ele o valor de 30.500,00€.

16. Não obstante o arguido ser apenas vendedor da “U... - ., Ld”, era o representante directo e efectivo pela venda de veículos que se encontravam na dita empresa, assumindo a sua realização e a forma como os mesmos eram efectuados.

17. Cabia ao arguido tomar as decisões referentes ao desenvolvimento e laboração da sociedade nesta área, tendo perfeita autonomia no exercício das suas funções.

18. O arguido estava ciente que o B... e a C... nunca lhe adquiririam o veiculo .., caso soubessem que não tinha intenção de entregar os valores recebidos, de imediato, à “W... - ., Lda.” e que dessa forma não seria possível formalizar o contrato de compra e venda da viatura.

19. Nos meses de Agosto e de Outubro de 2007 aqueles receberam novas autorizações de circulação da viatura .. e o Selo de Imposto Municipal sobre veículos do ano de 2007, através da nova gerência da “U... - ., Lda” composta por  … e ….

20. Apesar do arguido sair da firma “U... - ., Lda” em finais do ano de 2006 o B... e a C... continuaram, até ao momento, a não poder registar o veículo .. como sua propriedade, não possuindo quaisquer documentos do mesmo, o que impossibilitou também a realização da inspecção e, em consequência, a sua circulação.

21. Em 29 de Junho de 2007 o veículo .. foi registado em nome da “W... - ., Lda”.

22. O arguido actuou com o propósito de obter a entrega do valor de 30.500,00 € por parte de B... e C..., assim sendo alcançado um benefício económico, com o correspondente prejuízo para aqueles e para a firma “W... - ., Lda”.

23. O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

24. O arguido aufere cerca de 300 € ajudando a mãe com quem vive.

25. O arguido tem um filho de 11 anos de idade.

26. O arguido tem o 12º ano de escolaridade.

27. O arguido não tem processos pendentes.

28. Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:

Por decisão de 18.11.2005. foi o arguido condenado no âmbito do Processo nº 92/03.0IDLRA do 2º Juízo Criminal de Leiria,  pela prática de um crime de Abuso de confiança fiscal e um crime de fraude fiscal na pena única de 200 dias de multa á taxa diária de 5 €.

Por decisão de 2.06.2006, foi o arguido condenado no âmbito do Processo nº 66/00.3PAMGR do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande, pela prática de um crime de falsificação de documento pena única de seis meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de seis meses.

Por decisão de 18.11.2008. foi o arguido condenado no âmbito do Processo nº 231/05.7IDLRA do 3º Juízo Criminal de Leiria, pela prática de um crime de Abuso de confiança na forma continuada na pena de 60 dias de multa á taxa diária de 6 €.

Por decisão de 13.03.2009. foi o arguido condenado no âmbito do Processo nº 418/07.8TAMGR do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande pela prática de um crime de coacção agravada na pena única de 22 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período.

 Factos não provados

 Para além dos que ficaram descritos, não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

            Motivação da decisão de facto

Prima facie, importa salientar que entre nós, o julgador é livre na apreciação da prova, conquanto vinculado esteja aos princípios em que se consubstancia o direito probatório (art. 127º do CPP), pelo que, a liberdade concedida se trata de uma liberdade de acordo com um dever, qual seja o de perseguir a chamada verdade material, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto redutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo[1].

            À luz das considerações supra expostas temos que, in casu, a convicção do Tribunal formou-se a partir das declarações do arguido que referiu ao Tribunal que efectivamente foi ele quem vendeu a viatura e que tinha autonomia para fazer os negócios, no entanto referiu que era um trabalhador da “U...” e que depositou os cheques na conta da empresa, tendo-lhe sido dito pelo Sr.  …(gerente da W...) que os documentos estavam um pouco atrasados. No mais, o arguido referiu que a empresa foi vendida e os novos donos sabiam que a viatura ainda não estava legalizada.

            A versão do arguido, não logrou, contudo, convencer o Tribunal, uma vez que foi ele quem procedeu á venda da viatura, foi ele quem recebeu os cheques e o veiculo de retoma, sendo a ele a quem competiria também diligenciar pela documentação do .., o que não fez.

            Sopesado o depoimento das testemunhas: B..., que esclareceu o Tribunal sobre a forma como ocorreu o negócio e confirmou que procedeu ao pagamento da viatura .., tendo tudo sido tratado com o arguido, entregou o Volkswagen Pólo e dois cheques um no montante de 6.000 € e outro no montante de 22.000 € . Procederam ao contrato promessa de compra e venda, mas nunca foi assinado o definitivo. Por ultimo referiu que ficou sem o dinheiro e sem o carro (Volkswagen Pólo). Foi-lhes sempre sendo dito que havia três pessoas que tinham que assinar o contrato e que uma delas estava ausente no estrangeiro. Esclareceu também que, obviamente, não conseguiu registar a Audi porque não tinha a declaração de venda. O arguido sempre lhe disse que era a “U...” quem tratava de toda a burocracia. Foram-lhe sendo passadas declarações de circulação que tinham a validade de um mês. O arguido sempre lhe disse que a situação iria ser regularizada. C..., basicamente confirmou as declarações da testemunha B... e acrescentou que mais tarde lhes foi sugerido que experimentassem uma outra viatura. …, referiu que exportou o Audi da Alemanha e deixou-o na “U...” para venda. O arguido procedeu á venda e entregou-a a um comprador. Esclareceu que não recebeu qualquer dinheiro mas teve conhecimento que a viatura foi vendida por cerca de 30 mil euros. Como não recebeu qualquer quantia, não procedeu á entrega dos documentos. Esclareceu, por fim, que o negócio foi feito em Maio de 2006 e o registo foi efectuado em Junho de 2007.   …, referiu que trabalhou para a “U...” em 2006 e ainda lá ficou o arguido quando saiu da empresa. Recorda que a viatura estava á venda na “U...” e era propriedade de uma outra pessoa, cujo nome não recorda. No mais, pouco sabe esclarecer. …, irmão do arguido, exerceu também ele funções na “U...” mas cessou funções quando a empresa passou para outra gerência. O Sócio gerente era o Sr. …. …, esclareceu que desconhece se o vendedor foi o arguido uma vez que não acompanhou o negócio por não estar na empresa. Sabe que a viatura foi paga e que o pagamento foi feito através de cheques e de uma retoma. Referiu que quem comprava, quem vendia e quem recebia o dinheiro era o arguido e que era também este quem deveria ter diligenciado pela documentação. … ,  referiu que quando entrou para a empresa já os factos tinham ocorrido. Esclareceu que foi ele quem adquiriu a “U...” mas nunca chegou a ver os documentos da viatura, nem o dinheiro. Sabe que foram passadas guias de substituição.

Quanto aos antecedentes criminais do arguido no certificado de registo criminal junto a fls. 334 a 339.

 Ainda, na análise dos documentos de fls. 6 a 13, 14, 15 16 e 18, 27, 28, 97, 205, 54 a 66, 211 a 213, 23 a 26 e 262 a 268.

            Com efeito a versão trazida aos autos pelo arguido, não logrou convencer o Tribunal uma vez que não restaram dúvidas de que a “W...” colocou a viatura .. para venda na “U...” e que o arguido procedeu á sua venda e recebeu um outro carro como retoma e ainda determinado valor em cheque, que deveria ter entregue á W..., o que não fez. Por outro lado, ao arguido competia-lhe, diligenciar pelos documentos da viatura de molde a que o adquirente a pudesse legalizar.

            Em conclusão, a convicção do Tribunal sobre os factos, foi determinada pela consideração de toda a prova produzida, interpretada de acordo com juízos de experiência

                                                                      

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [2] e de 24-3-1999 [3] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [4], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente A... as  questões a decidir são as seguintes :

- se o Tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto ao dar como provados os factos que constam dos pontos n.ºs 13, 14, 22 e 23, uma vez que deveriam ter sido considerados não provados; e

- se não se verificam todos os pressupostos objectivos e subjectivos, tipificadores do crime de burla, p. e p. pelos artigos art. 217.º e 218.º, n.º 2 alínea a), todos do Código Penal, pois apenas existirá uma fraude civil.

           

Passemos ao conhecimento da primeira questão.
            O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428.º , n.º1 do C.P.P. ) .
No entanto, a modificabilidade da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar , sem prejuízo do disposto no art.410.º , do C.P.P. , se se verificarem as condições a que alude o art.431.º do mesmo Código , ou seja :
 « a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base ;
    b) Se , havendo documentação da prova , esta tiver sido impugnada , nos termos do art.412.º , n.º 3 ; ou
    c) Se tiver havido renovação de prova .» .
Em conjugação com este preceito legal importa atender ao disposto no art. 412.º, n.º3 do Código de Processo Penal, que impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida  sobre a matéria de facto o dever de  especificar:

    « a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;

       b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
       c) As provas que devam ser renovadas.»

E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal:
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação

O recorrente deverá indicar a sessão de julgamento em que as declarações ou depoimentos constam e localizar a passagem na gravação, entre os minutos em que se produziu prova oralmente, de modo a deixar claro qual a parte da declaração ou depoimento que pretende que o Tribunal de recurso ouça ou aprecie.

Actualmente, face à redacção que foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, ao art.417.º, n.º 3 do C.P.P., é inequívoco que as especificações do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do mesmo Código, devem constar das conclusões da motivação, uma vez que « Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.».  
Deste preceito resulta ainda que se a falta das indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, atinge quer as conclusões, quer a motivação, não há lugar ao convite de aperfeiçoamento das conclusões.
Nos termos do n.º 6 do art.412.º do C.P.P., tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e, ainda, de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

No presente caso, o arguido A... especifica, nas conclusões da motivação, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, e indica as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, mas não o faz por referência ao consignado na acta da audiência de julgamento.
Porém, uma vez que na motivação do recurso localiza a passagem na gravação dos depoimentos em que funda a impugnação, transcrevendo segmentos dessa prova gravada, o Tribunal da Relação considera que o recorrente deu cumprimento mínimo ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P.. e, por uma questão de economia processual, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, vamos conhecer da impugnação da matéria de facto e verificar se deve ser modificada a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo.
Antes de passar ao conhecimento directo da questão, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse.
É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal, que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.»[5].

Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”[6].

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.355.º do Código de Processo Penal. È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.

O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.

Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação  diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos  e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) . Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”.[7]

Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

Para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções, segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.

 “ Quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.[8]  

O preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve, pois, ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

O arguido A... sustenta que, em face da prova produzida, não devia ter sido dada como provada a factualidade dada como provada na sentença recorrida ora descrita nos pontos n.ºs 13, 14, 22 e 23, alegando para o efeito e em síntese:

O veículo .., propriedade da “ W...”, encontrava-se na “U...” a título de consignação para a venda e, como director comercial desta empresa, negociou a sua venda.

Por factos alheios a si não pôde entregar os documentos, pois o veículo foi importado da Alemanha e na data do acordo de compra e venda ainda não estava legalizado e, na realidade, o registo do veículo só foi efectuado a 29 de Junho de 2007. Conforme declarações das testemunhas  … e F... os cheques foram depositados na empresa  “U...” e dos depoimentos das testemunhas  … e D..., resulta que o arguido não podia movimentar as contas bancárias da empresa.

Da certidão de registo comercial da empresa  “U...” consta que em 26/12/2006 houve cedência de quotas a favor da testemunha G... e H..., que passaram a desempenhar as funções de gerentes. Conforme declarações das testemunhas G... e D... houve transmissão do activo e passivo e houve negociações com a “W...” para regularização da dívida, mas as negociações não tiveram sucesso, e os ofendidos não pretenderam adquirir um Audi A6, como troca, conforme declarações das testemunhas  G..., B... e C.... 

Em suma, o arguido/recorrente teve sempre a  convicção que o negócio iria correr bem e o seu insucesso não lhe pode ser imputado pois nunca obteve qualquer benefício com o negócio e nunca teve qualquer intenção de prejudicar os lesados. 

Para prova do alegado, transcreve segmentos dos depoimentos das testemunhas B..., C..., ……….. .

Dos segmentos dos depoimentos que transcreve resulta, no essencial, o seguinte:

- a testemunha B... declarou que o arguido dizia que não tinha os documentos do veículo, desculpando-se sempre que o carro pertencia a uma sociedade e era preciso três assinaturas para a vinda da carrinha e uma das pessoas não estava presente. Encontrou o arguido no hospital e este disse-lhe que o ajudava e se precisasse testemunhava a seu favor. A testemunha  … passou-lhe guias de circulação e assumiu a responsabilidade de resolver o problema do .. depois do arguido ter deixado a empresa.

- a testemunha C... declarou que a testemunha  … lhe disse que tinha comprado a “U...” e que ia tentar pagar o .. à empresa “W...-., Lda”, uma vez que não tinha sido pago ou então lhe daria outro carro para resolver a situação, tendo chegado a andar algum tempo com um Audi A6.    

- a testemunha  … declarou que lhe disseram que a carrinha já tinha sido vendida e que ia ser paga mais tarde, mas não recebeu dinheiro nenhum. A carrinha foi registada a favor da “W...-., Lda”, admitindo que foi em 29 de Junho de 2007, se o Ministério Público diz que assim em face do referido no processo. Quando lhe foi apresentada a nova gerência numa  reunião na  “U...” a testemunha  … disse-lhe que ia pagar, mas depois não pagou dizendo que apareciam cada vez mais dívidas e, nessa circunstância, colocou o carro em seu nome.

- a testemunha  … declarou que o arguido não podia movimentar as contas, pois quem assinava os cheques da empresa era a testemunha … .

Tendo sido perguntado à testemunha F... , pelo Digno Magistrado do Ministério Público, que se ele fosse à sua empresa e comprasse lá um carro, quem tinha de diligenciar pela obtenção dos documentos do carro, respondeu que “era a firma, eu simplesmente sou empregado da firma”.

- a testemunha  … declarou que o dinheiro entrou no circuito normal da empresa. Foram renovando a declaração de circulação do carro por haver qualquer entrave com a aquisição de documentos, sendo que a empresa nunca entregava o dinheiro sem ter os documentos. A única pessoa que tinha hipóteses de pagar o carro à “W...” era a nova gerência. A única forma de movimentar o dinheiro da empresa “U...” era com a sua assinatura.

- por fim, a testemunha  … declarou que enquanto gerente da “U...” procurou resolver a situação do ofendido B... e para isso foi ter com a testemunha  … e aí soube que os documentos da carrinha estavam pendentes de pagar-lhe a dívida. Quando quis fazer o primeiro pagamento da carrinha , com um cheque de € 20 000, para resolver o problema do rapaz, ele disse que não, que só entregava os documentos no fim de pagar a totalidade da dívida, que era de cerca de € 50 000. 

Vejamos.

Os segmentos dos depoimentos das testemunhas transcritos nas conclusões da motivação do recurso, correspondem, genericamente, embora surjam por vezes algo desenquadrados, ao que consta das gravações efectuadas em audiência de julgamento, sendo que o Tribunal da Relação os ouviu integralmente.

A versão do arguido/recorrente A..., de ser um simples vendedor de uma empresa de venda de veículos, só com autonomia na área comercial, que não obteve qualquer benefício com o negócio, pois nem sequer podia movimentar as contas bancárias da empresa, não corresponde de todo à realidade.

O depoimento da testemunha D..., gerente da “U...” quando foi realizado o negócio entre o arguido A...e os ofendidos B... e C..., é muito clarificador, a este propósito, ao declarar, designadamente: “ figuro como sócio-gerente da empresa, por uma questão de favor ao Sr. A...porque o dono da empresa era o Sr. … .”.

A testemunha é T.O.C. e só fazia ali a contabilidade e assinava o movimento bancário, libertando os cheques se havia dinheiro, provisão, para esse efeito. O arguido é que fazia os depósitos e decidia quando é que havia que pagar. A empresa era do arguido e quem tratava de todos os negócios e tratava da documentação era o arguido. Foi o arguido A...quem arranjou a quem ceder as quotas da empresa.

A testemunha não acompanhava a empresa, só assinava, mas sabe que o carro em causa, um .., era da “W...” e que estava no stand à consignação. Era recebido do cliente e ficavam com uma percentagem. Sabe que o .. foi pago em cheque e através de uma retoma. Era ao senhor A...que incumbia obter a documentação do veículo. Houve outros negócios com o “W...”. Eles vendiam e nós pagávamos.

A testemunha Olga Saraiva, que trabalhou na  “U...” uns 10 ou 12 anos e saiu da empresa após o negócio em causa, mas antes do final do ano, porque não lhe pagavam na empresa, deixou claro que a testemunha D... “ no papel” era o gerente, mas o arguido era o “ administrador da empresa”, onde estava a tempo inteiro.

A testemunha D... era o “contabilista da empresa” e não tem conhecimento que esta testemunha tivesse qualquer intervenção no negócio do ...

Perante os depoimentos das testemunhas D... e … , o depoimento da testemunha …, irmão do arguido, que exerceu também funções na “U...”, não merece qualquer credibilidade.

O recebimento pela empresa “U...”, da quantia constante dos cheques, bem como de um veículo de retoma entregues pelos ofendidos B... e C..., constitui, assim, um enriquecimento da empresa de que o arguido é  “dono”.

O arguido A... só não entregou os cheques à “W...” porque não quis e após ter depositado os montantes dos cheques recebidos dos ofendidos, só não movimentou a conta da empresa  “U...” em favor da proprietária do .., por intermédio da testemunha D..., porque também assim o entendeu fazer.

Para além do evidente interesse económico do arguido A... no recebimento dos ditos cheques e dum veiculo retoma, o negócio em causa não foi sentido pela testemunha …, gerente da “W...”, como um negócio normal, considerando o modo como decorreu. Pelo contrário.

A testemunha  … declarou que após ter entregue no stand da “U...”  uma carrinha .., que tinha comprado na Alemanha,  para exposição  e de lhe terem dito que havia um interessado na carrinha “ a carrinha desaparece do stand”, dizendo-lhe que entregaram a carrinha .. ao interessado e que havia sido vendida.

Esta testemunha não deixa de se mostrar algo surpreendida com a situação, pois era ela quem devia vender o veículo, quem tinha de passar a declaração de venda do veículo .. e de entregar os documentos do veículo. Ela não tinha vendido o veículo e tal só devia suceder com o recebimento pela testemunha do preço da venda do veículo. Em lado algum do seu depoimento refere a testemunha  … que o arguido diligenciou pela emissão da declaração de venda aos ofendidos B... e  C… ou pela entrega dos documentos da viatura, sempre mencionando que o arguido nunca lhe pagou o preço da veículo.

A testemunha  … menciona no seu depoimento que nos veículos automóveis importados fica-se à espera da venda para fazer o registo. Só registou em 2007 o veículo a  favor da empresa “W...”, porque foi nessa altura que o novo gerente da “U...”  disse que não ia pagar as dívidas desta empresa. A testemunha  … não refere, em momento algum, que a  “W...”,   não vendeu e entregou os documentos da carrinha porque entre finais de Maio de 2006 e a saída do arguido da empresa “U...”, a “W...”,  ainda não havia legalizado a situação do veículo.

Aliás, as testemunhas e dos ofendidos B... e C... declararam que o arguido A... apresentava sempre uma desculpa para não entregar os documentos e que era com o facto do .. pertencer a uma sociedade e que uma das pessoas que devia assinar o negócio não estava presente.   

O que se passou a seguir, com a entrada da nova gerência da “U...”, na sequência da cessão de quotas da empresa de que o arguido era o “dono”, está para além dos factos imputados ao arguido, pois o que importa é saber se o arguido ao entregar o .. e receber a contrapartida dos ofendidos agiu com intenção de obter para a “U...” uma enriquecimento a que sabia não ter esta direito, através do engano do B... e da C... e em prejuízo destes e da empresa proprietária do mesmo veículo.

A intervenção da nova gerência, designadamente da testemunha G..., que diz ter recebido a empresa sem dinheiro, já só tem em vista a possibilidade de resolver a situação criada pelo arguido aos ofendidos/queixosos e à proprietária do veículo, “W...”. Sem relevância e interesse é a declaração feita ao ofendido B..., pelo arguido, quando recentemente encontra aquele no Hospital, e lhe diz que se precisasse ele testemunhava a favor do ofendido.  

A intenção com que o arguido agiu, pertencendo ao mundo interior, deve retirar-se de elementos objectivos.

Considerando a fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida e o ora exposto, cremos ser racional e lógico que o Tribunal a quo, no âmbito da imediação e da oralidade, tenha concluído, que  “O arguido apenas pretendeu efectuar a venda do veículo .. e receber a importância paga pelo B... e a C...” ( ponto n.º 13); que “Nunca foi sua intenção proceder à entrega dos valores recebidos à empresa “W...-., Lda”, bem como entregar a B... e a C... os documentos da viatura .. e efectuar a regularização da compra e venda da mesma” ( ponto n.º 14);  que “O arguido actuou com o propósito de obter a entrega do valor de 30.500,00 € por parte de B... e C..., assim sendo alcançado um benefício económico, com o correspondente prejuízo para aqueles e para a firma “W... - ., Lda” ( ponto n.º 22); e que “O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária sabendo que a sua conduta era proibida por lei” ( ponto n.º 23).
Sendo perfeitamente admissível, em face da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum, a versão dada como provada na sentença recorrida e impugnada no ponto A), 1, das conclusões da motivação, improcede esta questão.

           

A questão seguinte é saber se não se verificam os pressupostos objectivos e subjectivos, tipificadores do crime de burla, p. e p. pelos artigos art. 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a), todos do Código Penal.

O recorrente A... sustenta, em síntese, que não usou de qualquer astúcia para induzir em erro os ofendidos, e não obteve qualquer benefício/enriquecimento ilegítimo para si, pois os cheques foram passados à ordem da empresa U... e depositados à sua ordem e, caso se tenha verificado um enriquecimento ilegítimo para a empresa, não se provou que o arguido tenha agido com essa mesma intenção e daí não se verificar o elemento subjectivo tipificador do crime de burla.

Na realidade, houve um atraso dos documentos do veículo por parte do proprietário e admite que existe um dano patrimonial causado aos lesados, contudo a sua verificação não se deve a uma fraude penal, mas sim civil.

A assunção social de obrigação de salvaguardar bens alheios não pode deixar, pois, de ter um carácter subsidiário e residual. Neste caso, apenas haveria burla se lhe fosse prometido um bem que não existia, porque neste caso, haveria um mise en scene, intervenção de um bem não existente e um prejuízo causado pela aquisição de algo não existente.

Neste sentido Júlio Fabbrini Mirabete ensina no “Manual de Direito Penal II, 19.ª Edição, pág. 297-8, o seguinte: «Afirma-se que existe esta (fraude penal) apenas quando: há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena; há fraude capaz de iludir o diligente pai de família; há evidente perversidade e impostura; há uma mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há o intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.».

No presente caso, a resolução da situação poderá ficar completamente acautelada pelo direito civil numa acção intentada contra a “U...”.
Vejamos.
Os elementos constitutivos do crime de burla, enunciados no art.217.º, n.º1, do Código Penal,  são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados, para determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou a terceiro, prejuízo patrimonial, e a intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
Acrescem a estes elementos, o dolo genérico, traduzido no conhecimento e vontade de realização da factualidade antijurídica, com conhecimento da ilicitude.
A burla, delito de execução vinculada, pressupõe um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio e, depois, entre estes e a verificação do prejuízo.
E se é certo que, para estarmos perante um crime de burla, não bastará uma qualquer mentira do agente, já será suficiente que essa mentira, a astúcia, seja suficiente para iludir o cuidado que, no sector da actividade em causa, normalmente se espera de cada um. A experiência do dia  a dia revela que a conduta do agente, longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, se limita muitas vezes, numa “ economia de esforços”, ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima.
A propósito da conclusão de um contrato, o Prof. Almeida Costa, escreve que “ se uma parte se abstiver de declarar que não se encontra em condições de o cumprir, comete burla por actos concludentes, uma vez que a celebração de um negócio leva implicada a afirmação de que qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele emergentes.”. O aspecto fulcral ou, dito de outro modo, “ a essência do crime reside na desconformidade entre as verdadeiras representações do agente e a “imagem” que das mesmas reflete para o exterior, por força do conteúdo comunicacional que o seu comportamento reveste no contexto em causa.” [9]

De acordo com os factos dados como provados, quando o arguido A... entregou aos ofendidos B... e C... o veículo .., recebendo como meio de pagamento cheques e um veículo de retoma, comprometeu-se perante os ofendidos a fazer a transferência de propriedade durante o mês seguinte, ou seja, em Junho de 2006, bem como a entregar-lhe os documentos do veículo.

O B... e a C... receberam  a viatura .. e entregaram ao arguido o veículo Volkswagen Pólo e os dois cheques supra-mencionados, confiando que posteriormente seria formalizada a compra e venda da viatura

O arguido enganou astuciosamente os ofendidos uma vez que nunca foi intenção dele  proceder à entrega dos valores recebidos à empresa “W..., Lda”, proprietária do .. exposto no stand da “U...”, bem como entregar a B... e a C... os documentos da viatura .. e efectuar a regularização da compra e venda da mesma, razão pela qual não diligenciou, até sair da empresa já no final de 2006, pela regularização da referida compra e venda, nem lhes entregou quaisquer documentos.

A capacidade enganosa do arguido resulta da circunstância de se ter dado como provado que “Caso o B... e a C... soubessem que o arguido não tinha a intenção de regularizar a situação do veículo junto da “W... -  ., Lda”, entregando-lhe os valores por si recebidos, nunca tinham adquirido o veículo .., pagando por ele o valor de 30.500,00€.” ( ponto n.º15).

O arguido apenas pretendeu efectuar a venda do veículo .. e receber a importância paga pelos B... e C..., estando ciente de que estes nunca lhe adquiririam o veiculo .., caso soubessem que não tinha intenção de entregar os valores recebidos, de imediato, à “W... - ., Lda.” e que dessa forma não seria possível formalizar o contrato de compra e venda da viatura ( pontos n.ºs 13 e 14).
O arguido, ao agir com a intenção de não cumprir a declaração contratual feita aos ofendidos, causou um prejuízo aos ofendidos B... e a C... e à firma “W..., e obteve através do modo descrito, um beneficio ilegítimo, directo, para a firma “U…”, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Preencheu, deste modo, todos os elementos constitutivos do crime de burla, p. e p. pelo art.217.º, n.º1 do Código Penal.
Os factos provados permitem ainda concluir pela existência de uma situação de fraude penal nos termos definidos por Júlio Fabbrini Mirabete , e não de existência um simples de ilícito de natureza civil.
A burla em causa é agravada pelo valor, termos da alínea a), n.º2, do art.218.º do Código Penal.

Assim, não merece censura a decisão recorrida ao condenar o arguido A... pela autoria material de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e  218.º, n.º 2 al. a), este com referência art. 202.º, al. b), do mesmo Código.
Improcede deste modo a questão e o recurso.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e manter a douta sentença recorrida.

             Custas pelo recorrente, fixando em 6 Ucs a taxa de justiça.

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).                                                                   

   *

                                                                                        Coimbra,


[1] Ac. da RC, 13.01.99, CJ, 1999, I, 44 e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1981, I, 202.
[2]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[3]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[4]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[5] cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. 
[6]  cfr.“Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.
[7] Obra citada, páginas 233 a 234
[8]  Cfr. acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002 , in C.J. , ano XXVII , 2º , página 44.
[9] Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, página 304.