Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2321/21.0T8VIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: ADEQUAÇÃO FORMAL
CONVITE DO JUIZ A APRESENTAR PROVA TESTEMUNHAL
IGUALDADE DAS PARTES
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 4.º, 411.º E 547.º, TODOS DO CPC
Sumário: Em acção de divórcio sem consentimento, na qual o autor não ofereceu rol de testemunhas na petição inicial, terminada a fase dos articulados e não tendo a ré apresentado contestação, era lícito ao juiz convidar o autor a apresentar rol de testemunhas, devendo, no entanto, em obediência ao princípio da igualdade substancial das partes, notificar a ré para, querendo, apresentar também o mencionado rol.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Sílvia Pires
Adjuntos: Henrique Antunes
Mário Rodrigues da Silva

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Nos presentes autos de processo especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, após a realização, sem êxito, da tentativa de conciliação, a Ré não contestou, tendo sido proferido o seguinte despacho em 14.02.2022:
Compulsados os autos verifico que na petição inicial o Autor alude a vários factos cuja prova não é suscetível de ser realizada por documento, sendo que não requereu a produção de prova testemunhal.
Por outro lado, é sabido que a revelia da Ré é inoperante, conforme previsto no art.º 568.º, al. c), do C. P. Civil.
Assim sendo, ao abrigo do disposto no art.º 590.º, n.º 3, do Cód.Proc.Civil, convido o Autor a, querendo, suprir a detetada irregularidade em 5 (cinco) dias.

Perante tal despacho a Ré, em 18.2.2022, requereu:
Face ao exposto, a Ré não pode aceitar que a não indicação de prova testemunhal na petição inicial pelo A. seja considerada uma irregularidade, logo não pode conformar-se com este despacho que convida ao seu suprimento, o qual caso venha a permitir, agora, ao A., a apresentação de rol de testemunhas que não apresentou quando o deveria ter feito, ou seja, com a petição inicial, será objeto do competente recurso.

E, em 3.3.2022 a Ré interpôs recurso daquele despacho, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O art.º552º, nº 6 do C.P.C., sob a epígrafe “Requisitos da petição inicial”, estabelece que: “6 - No final da petição, o autor deve apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova; caso o réu conteste, o autor é admitido a alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, podendo fazê-lo na réplica, caso haja lugar a esta, ou no prazo de 10 dias a contar da notificação da contestação.”
2ª – No caso em apreço, o A. apresentou a sua petição inicial e requereu a produção de prova documental (que juntou).
3ª – Realizada a tentativa de conciliação entre as partes, a mesma frustrou-se e a Ré foi citada para contestar.
4ª – Face à petição inicial do A., aos factos por si alegados e ao respetivo requerimento probatório, a Ré definiu a sua estratégia processual de não apresentar contestação, por ter concluído, dessa análise, que seria absolvida da instância, face à falta de prova testemunhal e à impossibilidade de fazer prova dos factos alegados pelo A. na petição inicial através dos documentos por si juntos.
5ª – Porém, ao invés de uma decisão absolutória da instância, veio o despacho recorrido convidar o A. a suprir aquilo que, aparentemente, considera ser uma irregularidade da petição inicial: a não indicação de prova testemunhal.
6ª – A Ré não concorda em absoluto com este entendimento.
7ª – A gestão inicial do processo prevista al. b) do no nº 2 do art.º590º C.P.C. legitima o juiz a findos os articulados, proferir, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes.
8ª – Os números seguintes para os quais aquela norma remete, são os n.os 3 e 4 que estabelecem que o juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa; incumbindo ainda ao juiz convidar as partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente apresentado.
9ª – Mas a petição inicial do A. não se subsume a nenhum dos preceitos legais que possibilitam o convite ao aperfeiçoamento.
10ª – Por um lado, não é inepta, face ao estatuído no art.º186º, nº 2, al. a) b) e c) C.P.C..
11ª – Por outro lado, cumpre todos os requisitos legais impostos pelo disposto no art.º552º, nº 1 C.P.C..
12ª – Ou seja, contrariamente ao sustentado no douto despacho recorrido, não estamos perante um articulado irregular.
13ª – Não sendo um articulado irregular, do ponto de vista jurídico-formal, não poderia haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento, como sucedeu por via do despacho recorrido, ao abrigo do disposto no nº 3 do art.º590º C.P.C., até porque esta norma não serve para caucionar a apresentação extemporânea de requerimentos probatórios.
14ª - O A. deveria ter, querendo, apresentado prova testemunhal na sua petição inicial – art.º552º, nº 6 C.P.C.
15ª – Todavia, deliberada ou negligentemente, não o fez.
16ª – O que não legitima o juiz a vir agora substituir-se-lhe, convidando-o a indicar o rol de testemunhas que deveria ter apresentado e que não apresentou, porque senão o que o juiz está a fazer é a suprir um “lapso” da parte, o que não pode fazer.
17ª – O rol de testemunhas tem que ser imperativamente apresentado com a petição inicial, sendo que, após esse momento, apenas poderá ser alterado e nunca apresentado ex novo, nos termos do art.º552º, nº 6 C.P.C.
18ª – Sem prescindir, o despacho recorrido violou o princípio da igualdade de armas entre A. e Ré – art.º4º C.P.C., ao permitir que o A. tenha a possibilidade de apresentar, “ex novo”, prova testemunhal para provar factos por si alegados com a petição inicial, já depois da Ré ter definido a sua estratégia processual de não apresentar contestação face à não indicação de prova testemunhal pelo A. com a petição inicial.
Termos em que,
Respeitosamente se requer que o douto despacho seja anulado e proferida decisão que, dando provimento ao presente recurso, ordene o prosseguimento dos autos, cumprindo-se os demais termos até final.

Não foi apresentada resposta.

As partes foram ouvidas sobre a possibilidade do recurso ser julgado extinto por inutilidade, face à não apresentação pelo Autor do rol de testemunhas no prazo que lhe foi concedido, tendo ambas as partes chamado a atenção que o Autor apresentou um rol de testemunhas em 22.02.2022.

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1. Da utilidade do recurso
Por lapso resultante da dificuldade de acesso às certidões eletrónicas não se constatou que o Autor tinha efetivamente aproveitado a faculdade que lhe foi concedida pelo despacho recorrido, tendo em 22.02.2022 apresentado um rol de testemunhas, pelo que não se verifica qualquer inutilidade do recurso interposto, o qual deve ser apreciado.

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2. Do objeto do recurso
Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações do recorrente e o conteúdo do despacho recorrido cumpre decidir se, em ação de divórcio sem consentimento, terminada a fase dos articulados e não tendo a Ré apresentado contestação, o Juiz da 1.ª instância podia ter convidado o Autor a apresentar rol de testemunhas, face à não indicação de prova testemunhal na petição inicial.

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3. Os factos
Os factos a ponderar correspondem à tramitação processual acima descrita.

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4. O direito aplicável
Numa ação de divórcio sem consentimento não contestada, após o juiz ter verificado que não foi apresentada contestação no prazo legal, proferiu despacho a convidar o Autor a apresentar o rol de testemunhas, uma vez que este não constava da petição inicial.
Esse convite foi dirigido, invocando-se o disposto no art.º 590º, n.º 3, do C. P. Civil.
Dispõe este preceito, relativamente ao conteúdo possível de um despacho pré-saneador: o juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
A indicação pelas partes dos meios de prova que pretendem que sejam considerados ou produzidos com vista à fixação da matéria de facto provada é um ónus que sobre elas recai, devendo o seu cumprimento, que se encontra na disponibilidade das partes, ser efetuado nos tempos e modos processuais legalmente definidos.
Não sendo obrigatória a apresentação de prova testemunhal, a não inclusão na petição inicial de um rol de testemunhas não constitui uma irregularidade processual, mas sim uma opção do autor, pelo que a invocação do disposto no art.º 590º, n.º 3, do C. P. Civil, para fundamentar o convite formulado, como fez o despacho recorrido, não se mostra adequada.
No entanto, o juiz tem poderes para adaptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa, tendo apenas como limite o respeito pelo modelo do processo equitativo - art.º 547º do C. P. Civil.
Assim, perante uma situação em que, não se encontrando a matéria da ação na disponibilidade das partes e não tendo o Autor apresentado prova testemunhal com a petição inicial e o Réu sequer contestado, não se veem obstáculos a que o juiz, perante um vazio probatório, conceda às partes a oportunidade de, num prazo estabelecido ad hoc, apresentarem prova testemunhal relativa aos factos em discussão na presente ação.
Além disso, em matéria de produção de prova rege o princípio do inquisitório, incumbindo ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer - art.º411º do C. P. Civil -, pelo que encontra-se abrangido pela generosa amplitude dos poderes do juiz em matéria de prova, face à necessidade de apurar a veracidade de determinados factos e à não indicação de meios de prova pelas partes, a notificação destas para indicarem testemunhas que conheçam a realidade desses factos.
A Ré alega que o despacho recorrido defrauda as suas expetativas, uma vez que, face à petição inicial do A., aos factos por si alegados e ao respetivo requerimento probatório, a Ré definiu a sua estratégia processual de não apresentar contestação, por ter concluído, dessa análise, que seria absolvida da instância, face à falta de prova testemunhal e à impossibilidade de fazer prova dos factos alegados pelo A. na petição inicial através dos documentos por si juntos.
A expetativa invocada não é legítima, uma vez que a Ré, estando representada por advogada, estava consciente que na audiência de julgamento, o juiz sempre poderia determinar a produção de meios de prova, pelo que nunca poderia partir do princípio que, além do meios de prova documentais indicados pela Autora, mais nenhuma prova seria produzida. Não sendo a expetativa alegada legítima, a mesma não é idónea a fundamentar a alegação da violação do princípio da proteção da confiança das partes enquanto elemento integrante do modelo do processo equitativo.
Se é legítimo, ao abrigo dos princípios da adequação formal e do inquisitório que o juiz conceda às partes um prazo ad hoc para apresentarem o rol de testemunhas antes de marcar a audiência de julgamento em ação de divórcio sem consentimento não contestada, essa possibilidade deve ser concedida a ambas as partes, sob pena de violação da igualdade de oportunidade das partes, consagrado no art.º 4º do C. P. Civil.
Assim apesar da concessão daquele prazo não ter fundamento válido no dever do juiz conceder oportunidade às partes de corrigirem as irregularidades sanáveis, não deixa de ter fundamento na possibilidade do juiz adaptar a tramitação processual às especificidades do caso e de oficiosamente determinar a produção de meios de prova relativamente aos factos em discussão, desde que essa oportunidade seja concedida a ambas as partes.
A consequência deste raciocínio não é revogação do despacho recorrido, cujo conteúdo como vimos é admissível, mas sim a extensão do convite à Ré, cumprindo-se o princípio da igualdade de partes.

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Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência, em complemento do despacho recorrido, determina-se que a Ré seja notificada para no prazo de cinco dias, após o trânsito em julgado desta decisão, apresentar, querendo, rol de testemunhas na presente ação.

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Custas pelo vencido a final.

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                                                                     11.10.2022.