Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1227/14.3TBPBL-Q.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
CAUSA PREJUDICIAL
PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 362.º; 368; 377.º A 409.º; 635.º E 639.º, DO CPC
Sumário: 1. O juiz não pode ordenar a suspensão da execução com fundamento na existência de uma causa prejudicial, sendo que, a não ser assim, iria obter-se um efeito de suspensão da execução por fundamento de mérito fora dos casos admitidos em sede de oposição à execução.
2. E também não se poderá obter idêntico efeito mediante procedimento cautelar comum dependente daquela causa (prejudicial).

3. Acresce o trânsito em julgado da decisão que negara a suspensão da instância executiva.

Decisão Texto Integral: Adjuntos: Moreira do Carmo
                  Carlos Moreira

 
                                                                    *  
                (…)

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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                    

           I. Em 20.10.2023, AA interpôs o presente procedimento cautelar comum contra BB, e Outros - “todos exequentes nos autos e neles melhor identificados” (sic) -, pedindo que seja decretada “a suspensão da presente execução até que seja proferida sentença na ação (declarativa) para mudança da servidão e a consequente extinção da servidão em referência”.

            Alegou, em síntese: corre termos execução para prestação de facto, que consiste na demolição de um muro e pilares que ocupam parcialmente o leito da serventia dos prédios dos exequentes; em 17.10.2022, intentou contra os exequentes ação de processo comum na qual pede a mudança da servidão e consequente extinção da mesma; naquela ação ainda não foi proferida sentença; a prossecução da execução vaza de qualquer utilidade a sentença que venha a ser proferida na ação para mudança de servidão e acarreta prejuízo para o requerente, superior ao proveito que resulta para os requeridos, que em nada ficam prejudicados (não estando impedidos de aceder às suas propriedades) com a suspensão da execução até prolação daquela sentença cível.

           Observado o contraditório (sobre o eventual indeferimento liminar), a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo[1], a 17.11.2023, indeferiu, liminarmente, o presente procedimento cautelar.

           Dizendo-se inconformado, o requerente apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Por sentença de 18/10/1993 proferida nos autos de ação declarativa com processo sumário distribuída com o n.º 99/91 no 1º Juízo do extinto Tribunal Judicial da Comarca ..., entendendo que a requerida servidão era absolutamente necessária para acesso dos prédios dominantes, foram o recorrente e a sua esposa (entretanto falecida) condenados, além do mais, a reconhecer que o seu prédio se encontrava onerado com uma servidão de passagem em benefício dos prédios dos autores e, ainda, a demolir o muro e pilares que edificaram sobre o leito da serventia em causa de forma a apresentarem-na totalmente livre e desimpedida.

            2ª - Não tendo o recorrente dado voluntariamente cumprimento ao decidido, viu instaurado contra si procedimento executivo na forma de execução para prestação de facto mais tarde convertido em execução para pagamento de quantia certa que pende termos.

            3ª - Tendo, desde a data da prolação dessa sentença e até hoje, ou seja, durante mais de 30 anos, sido operado diversas e significativas modificações nas confinâncias e na morfologia dos prédios dos autores e dos réus deixando, na decorrência, essa serventia de ser utilizada por desnecessidade, deu o recorrente a conhecer esta factualidade no processo, requerendo a extinção da servidão de que, na sua ótica, poderia resultar também a extinção da instância executiva, vindo a Mm.ª Juiz da causa, por despacho de 04/5/2022 a dizer que “o requerimento em apreciação não é o meio processual idóneo a alcançar tal desiderato ”.

            4ª - Procurando contornar essa dificuldade, propôs o recorrente contra os exequentes uma ação declarativa com processo comum que corre trâmites no Juízo Local Cível ... com o n.º 1257/22.... onde peticionou, com base nos factos supra relatados, a extinção da servidão e porque, se esse procedimento fosse julgado procedente, ocorreria a inutilidade da lide executiva, requereu também a suspensão da instância até que houvesse decisão de mérito definitiva na ação declarativa, tendo também requerido a prestação de caução.

            5ª - Por despacho de 17/11/2022 viria a Mm.ª Juiz a indeferir as requeridas suspensão da instância e a prestação da caução com o fundamento de que o Assento do STJ de 24/5/1960 (segundo o qual “a execução não é uma causa por decidir; é a sequência de uma decisão, quando não provém de um título com força executiva, decorre de um direito já declarado. Por isso, não pode ser suspensa ao abrigo do disposto na primeira parte do artigo 284º”) mantinha a sua vigência porquanto a ação executiva não pode ser suspensa com fundamento na pendência de causa prejudicial.

            6ª - É lamentável que, previamente à apreciação da factualidade invocada pelo recorrente e, por maioria de razão, à prolação do despacho então proferido, o juiz não tivesse dado cumprimento ao princípio do contraditório com a audição da contraparte para se pronunciar sobre a eventual desnecessidade da servidão (limitando-se a contraparte a “responder” a uma questão diversa sem qualquer expressa notificação para o efeito).

           7ª - O dispositivo do art.º 272º, n.º 1 do CPC, (“O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”), concedia ao Juiz o poder de ordenar a suspensão da instância (declarativa ou executiva, não se distingue) quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, ou seja, quando estiver pendente uma causa prejudicial e, portanto, se a decisão que vier a ser proferida na ação declarativa for suscetível de destruir ou modificar os pressupostos em que se suportou a executiva, atendendo também à razão de ser da suspensão (“a economia e a coerência dos julgamentos entre duas ações pendentes que apresentam entre si uma especial relação de conexão”),

           8ª - no sentido de obstaculizar a que se consumem as consequências da condenação, mais concretamente, a ordenada demolição de um muro e de alguns pilares que ocupam parcialmente o leito da serventia constituída (para mais com a probabilidade de terem de vir a ser, depois, reconstruídos), intentou procedimento cautelar comum que, ainda sem a conclusão da prestação coerciva dos factos da execução, permitisse prolatar sentença no processo onde havia sido requerida a extinção dessa servidão na medida em que se encontravam preenchidos os requisitos para o decretamento dessa providência.

           9ª - A decisão de indeferimento foi fundamentada no facto de com a propositura da referida ação declarativa se pretendeu pôr em crise direitos que tinham já sido reconhecidos no primitivo procedimento com base no que foi requerida a suspensão da instância executiva e também de acordo com o despacho de 17/11/2022, a ação executiva não pode ser suspensa com fundamento na pendência de causa prejudicial.

           10ª - A questão do decretamento da providência cautelar para suspensão da execução até ao trânsito em julgado da ação declarativa entretanto proposta deve procurar-se na instância onde se desenvolve a relação material controvertida jurídica e saber se essa relação, apesar das alterações operadas, se mantém a mesma ou diferente em resultado de tais alterações - in casu importa indagar se, por força dessas modificações nos prédios a servidão ajuizada se tornou desnecessária pelo que a questão a decidir tem, assim, não só natureza processual mas também material:

           11ª - processualmente, se a instância se mantiver a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir de harmonia com o dispositivo do art.º 260º do mesmo diploma, obviamente que não faz sentido pôr em crise a relação material existente;

           12ª - mas, releva também a relação material, uma vez que a constituição da mencionada servidão por usucapião e a sua declaração por sentença pressupôs a existência de determinados requisitos factuais, especialmente, uma situação de “encrave” relativamente ao prédio dos exequentes que, por isso, necessitava, para sua normal fruição dessa servidão.

           13ª - A factualidade agora invocada pelo recorrente, mais especificamente, a construção, entre os prédios, de uma larga praceta pavimentada onde desemboca a ajuizada serventia dos exequentes com saídas por estrada alcatroadas, para sul e para norte tem por objetivo comprovar a atual inexistência dos requisitos processuais e materiais que foram considerados necessários à constituição da servidão. Por isso, requereu a sua extinção dada a sua desnecessidade superveniente.

           14ª - Portanto, a questão em análise tem a ver com o sentido normativo da necessidade ou não das servidões constituídas por usucapião, designadamente, quando é que se tornam desnecessárias para o prédio dominante de molde a justificar que o titular do prédio serviente requeira a sua extinção. A resposta resulta diretamente do art.º 1569º, n.º 2, do Código Civil (CC).

           15ª - Não faz sentido o segmento do relatório em apreciação dizer que é pretensão do requerente postergar uma decisão já proferida e transitada em julgado, que reconheceu a existência de um direito aos exequentes/requeridos, em função de uma decisão a proferir; o que foi pedido ao tribunal foi que se pronunciasse sobre se subsistem ou não os pressupostos que determinaram a constituição da servidão ajuizada e se esses pressupostos não existissem, na previsão do dispositivo do n.º 2 do art.º 1569º do CC, devia a servidão ser declarada extinta, mantendo-se incólumes e intangíveis, até essa declaração, os direitos dos proprietários dos prédios dominantes.

           16ª - Inexiste qualquer irregularidade ou heresia: quando se pugna pela suspensão de um procedimento executivo que visa dar cumprimento a uma decisão transitada em julgado indagando-se se existem ainda razões para que essa decisão transitada continue a produzir os seus efeitos normais, legais e lógicos ou se, por força das modificações operadas, ao longo do tempo, na relação material em que se suportou, as consequências da decisão devem subsistir.

            17ª - A decisão em recurso entendeu - erradamente - que, com a propositura da providência cautelar, se pretendeu obter a suspensão da execução por fundamento de mérito fora dos casos admitidos em sede de oposição à execução o que não tem enquadramento nos pressupostos do art.º 362º do Código de Processo Civil (CPC), o que foi determinante do seu indeferimento.

           18ª - Ora, já no domínio do anterior CPC se admitia a possibilidade de deduzir providência cautelar como incidente de ação executiva (cf. Ac. RE de 16/02/1995, in CJ 1995, 1º, 280) sendo que o Novo CPC é explícito em permitir a instauração de procedimento cautelar como incidente da ação executiva sem quaisquer condições ou limitações no n.º 1 do art.º 364º.

           19ª - A ser assim, tem de reconhecer-se existir uma clara dependência entre a providência cautelar e a ação declarativa proposta em data anterior pelo que verificados os pressupostos legais definidos para as providências cautelares não especificadas, ao contrário do decidido, estão reunidos todos os princípios exigíveis para o decretamento da providência cautelar requerida dado que não subsiste qualquer obstáculo na utilização da ação cautelar, havendo tão somente de indagar se ocorrem fundamentos de natureza material que o impeçam.

           20ª - Na previsão do art.º 362º do CPC é assim definido o âmbito das providências cautelares não especificadas: a) probabilidade séria da existência do direito invocado (o “fumus boni júris ”); b) fundado receio de que outrem, antes da ação proposta ou na pendência desta, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (o “periculum in mora ”); c) adequação da providência à situação de lesão iminente e d) inexistência de uma providência específica que acautele aquele direito.

           21ª - Procedendo à análise de cada um desses pressupostos, verifica-se que: a) é indiscutível que existe (e é provável ser judicialmente declarado) o reclamado direito ao reconhecimento da extinção da servidão por desnecessidade, bastando que este seja aparente num juízo de prognose; b) é evidente que sendo executadas as obras emergentes da prestação de facto, nomeadamente, a destruição de um muro e alguns pilares situados no leito da serventia, essas obras - que constituirão facto consumado - delas decorrerão concretas desvantagens, despesas avultadas, que configuram um prejuízo objetivo para o requerente a que acrescerão os custos da reconstrução caso a decisão da ação declarativa seja julgada procedente, sendo incontroverso que, entre a demolição e a necessidade de provável reconstrução, será preferível, no caso, manter o status quo as coisas como estão sem constrangimentos para quem quer que seja; c) o meio processual requerido é adequado na medida em que estabelece uma proporcionalidade entre os direitos em conflito, em nada sendo os requeridos prejudicados com o seu decretamento que também não concede qualquer vantagem anormal ao requerente; e d) inexiste qualquer outra providência legal idónea a tutelar a situação,

           22ª - Estão verificados os pressupostos legalmente previstos para o decretamento da providência cautelar requerida.

            23ª - A decisão recorrida violou, entre outros, os art.ºs 9º, alínea b), 13º, n.ºs 1 e 2 e 20º, n.ºs 1 e 4 da CRP, 1569º, n.º 2 do CC e 260º, 272º, n.º 1, 284º, 362º, 364º, 547º e 615º, n.º 1, alíneas c) e d) do CPC, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que ordene a suspensão da execução até prolação de decisão definitiva da ação declarativa.

           Notificados para os termos do recurso, os requeridos não responderam.

           Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir, sobretudo, se é possível/admissível decretar, por via cautelar, a suspensão da instância executiva, ou, ao invés, se se justifica a rejeição/indeferimento liminar de um tal procedimento.


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           II. 1. Relevando a tramitação e a factualidade supra referidas, importa considerar, ainda[2]:

            a) Em abril de 1991, o requerente procedeu à vedação do (seu) prédio aludido nos autos com um muro de cimento com cerca de 2 metros de altura.

           b) Este muro foi construído por forma a interromper o acesso aos prédios dos requeridos situados a sul da propriedade do requerente.

           c) Levando os requeridos a instaurar contra o requerente (e mulher) a ação declarativa n.º 99/91, no Tribunal Judicial da Comarca ....

           d) Por sentença proferida na dita ação declarativa, foram os Réus condenados a reconhecer, além do mais, que os prédios dos AA./requeridos eram dominantes em relação ao prédio dos Réus, onerado com uma servidão de passagem de pé, carro e animais em benefício daqueles prédios, pelo que deviam demolir o muro e pilares que sobre o leito da serventia em causa edificaram, de forma a apresentarem-na totalmente livre e desimpedida e a absterem-se da tomada de atitudes ou da prática de quaisquer atos contrários ao uso da mesma serventia pelos donos dos prédios em cujo benefício se encontra(va) constituída.

            e) Os Réus apelaram, mas aquela decisão veio a ser confirmada por acórdão da Relação de Coimbra de ../../1993.

            f) O requerente/recorrente não deu voluntariamente satisfação ao decidido, pelo que os requeridos instauraram execução para prestação de facto (ação n.º 1227/14....).

            g) O requerente/executado não deduziu oposição à execução.

           h) Em 17.10.2022, o requerente/executado/recorrente intentou contra os requeridos ação declarativa comum (n.º 1257/22....) na qual pede “a mudança da servidão com despesas por conta do autor, se despesas houver”, alegando, nomeadamente, que “a servidão então constituída não tem agora qualquer utilidade uma vez que os réus dispõem de uma possibilidade alternativa”, “podendo estes passar dos seus prédios para o caminho público (Estrada ...) através da praceta construída que faz essa ligação mostrando-se a servidão em causa absolutamente desnecessária”.

            i) Após, requereu a suspensão da instância executiva até decisão de mérito na referida ação declarativa, e a prestação de caução, o que mereceu o seguinte despacho (de 17.11.2022) da Mm.ª Juíza do Tribunal a quo:

            «(...) o Executado pretende que o Tribunal suspenda a execução por causa prejudicial e, por outro lado, oferece-se para prestar caução com recurso a uma fiadora. / (...) 1. Quanto à causa prejudicial: / É consabido que a ação executiva não pode ser suspensa com fundamento na pendência de causa prejudicial pois “(…) não visa decidir, pelo que não pode estar dependente de qualquer decisão alheia a esse processo.” (...) / Em todo o caso, sempre se diga que no âmbito das ações declarativas, “[a]penas podem motivar a suspensão com esse motivo ações que tenham sido instauradas anteriormente à ação em causa (…)”. (...) / O que, claramente, não ocorre no presente caso. / Pelo que indefere-se o requerido. / 2. Quanto à prestação espontânea de caução: / (...) a execução só será suspensa se o Executado deduzir embargos de executado e, cumulativamente, prestar caução, suspensão que se mantém até ao trânsito em julgado da decisão final proferida no último recurso interposto (tal como a caução – vd. artigo 650º, n.º 3 do CPC, ex vi, artigo 733º, n.º 6 do CPC). / No caso vertente, o Requerente apresentou o presente incidente sem deduzir embargos de executado[3]cujo prazo, aliás, há muitos anos decorreu. / Pelo que, com o presente incidente de prestação espontânea de caução o Requerente pretende apenas parar a execução e por tempo indeterminado. / Note-se que o legislador foi suficientemente claro quanto às causas de suspensão da execução, nas quais não se incluem os prejuízos irreparáveis do Executado. / (...) / Assim, o presente incidente de prestação espontânea de caução não tem respaldo legal e, por isso, é legalmente inadmissível. / Termos em que se indefere o requerido.»

          j) O executado/requerente apelou, reclamou do despacho que não admitiu o recurso (de 31.01.2023)[4] e suscitou a intervenção da conferência na sequência de despacho do relator (de 18.3.2023) que manteve o decidido na 1ª instância.        

           k) Esta Relação, por acórdão de 16.5.2023 (transitado em julgado)[5], julgou improcedente a reclamação e confirmou, em conferência, o despacho do relator, condenando o reclamante/apelante nas custas.[6]

            l) Expendeu e concluiu, a Relação, além do mais, que a  Mm.ª Juíza do Tribunal a quo seguiu o entendimento, tido por unânime, segundo o qual o juiz não pode ordenar a suspensão da execução com fundamento na existência de uma causa prejudicial, sendo que, a não ser assim, iria obter-se um efeito de suspensão da execução por fundamento de mérito fora dos casos admitidos em sede de oposição à execução, e, bem assim, que a prestação de caução, causa especial de suspensão da instância executiva, só é admitida em caso de oposição à execução.[7]

            2. Cumpre apreciar e decidir.

            Depois de caracterizar, sumariamente, o procedimento cautelar comum, a Mm.ª Juíza ponderou e decidiu:

            «Executa-se, nestes autos, desde ../../1994, uma sentença, proferida em ../../1993, que declarou constituída, por usucapião, uma servidão de passagem de pé, de carros e animais a favor dos aí id. autores, através do prédio dos réus, aí melhor id., servidão com a configuração descrita nos n.ºs 12º a 17º do parágrafo II da sentença e condenou os réus a reconhecer tal servidão nos termos declarados e, assim, a demolirem o muro e pilares que sobre o leito da serventia edificaram de forma a esta ficar totalmente livre e transitável. / (...) / Com o presente procedimento cautelar o Requerente pretende que o Tribunal suspenda a execução, a que apensou o presente procedimento, com o objetivo de acautelar o efeito útil de sentença a proferir na ação declarativa que, na pendência da execução, intentou contra os Requeridos – Exequentes. / Ou seja: o Requerido pretende postergar uma decisão já proferida e transitada em julgado, que reconheceu a existência de um direito aos Exequentes/Requeridos, em função de uma decisão a proferir. / E, adicionalmente, que se suspenda a execução que visa dar cumprimento coercivo a essa decisão transitada em julgado. / (...) / Ademais - como já tivemos ensejo de referir - a execução só se suspende nos casos previstos na lei – despacho datado de 17.11.2022, objeto de recurso, confirmado pelo Tribunal Superior. / Deste modo, com a presente providência cautelar, o Requerente pretende obter a suspensão da execução por fundamento de mérito fora dos casos admitidos em sede de oposição à execução e, assim, contornar a lei e obter um efeito que a lei não permite. / Por todo o exposto, (...) a pretensão do Requerente não se enquadra nos pressupostos do art.º 362º do CPC e, por isso, terá de ser liminarmente indeferida.»

           3. Sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, afigura-se que a situação em análise é paradigmática do uso e abuso de meios e expedientes processuais para perpetuar (desde há aproximadamente 33 anos!) a violação do direito dos outros.

            Não será exagerado dizer estarmos no domínio do absurdo, de uma realidade porventura não imaginada por quem ao longo da história questionou o mundo do direito e a realidade do ordenamento jurídico (lembra-se o Príncipe D. Pedro, Duque de Coimbra - no Século XV -, Franz Kafka - no século XX -, etc.).

           Depois do que foi dito e decidido (cf., nomeadamente, II. 1., supra) e sabendo-se que o direito deverá responder “aos interesses da vida[8], tudo quanto possa ainda ser dito corre o risco de poder vir a ser ou a constituir mera palavra... (“Words, words, words” - Shakespeare, Hamlet, 1603).

            4. Mas, voltemos ao ordenamento jurídico...

           O requerente lançou mão do denominado procedimento cautelar comum.

O decretamento de uma providência cautelar comum/inominada depende da concorrência dos seguintes requisitos:

a) Probabilidade séria da existência do direito invocado [o requerente deve alegar e provar que tem um direito ou interesse juridicamente relevante relativamente ao requerido, embora no procedimento cautelar não seja necessário um juízo de certeza, mas apenas de verosimilhança ou de aparência do direito - fumus boni juris];

b) Fundado receio de que outrem, antes de a ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito [o procedimento cautelar tem por fim obviar ao perigo da demora da declaração e execução do direito, afastando o receio do dano jurídico, através de medidas que limitam os poderes ou impõem obrigações àqueles que se encontram em conflito com o requerente da providência - periculum ín mora];

c) Adequação da providência à situação de lesão iminente [que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado];

[art.ºs 362º e 368º do CPC].

d) Não existência de providência específica que acautele aquele direito [tipificadas nos art.ºs 377º a 409º do CPC].

A estes quatro requisitos principais, acresce uma derradeira exigência: que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.[9]

           5. Perante tais requisitos/pressupostos - e, obviamente, sem prejuízo do que se dirá adiante -, é irrecusável que nenhum deles se verifica!

           O que existe e se encontra judicialmente declarado e reconhecido, desde há cerca de 33 anos, é, apenas, o direito dos requeridos, no presente, em sede executiva.    O recorrente nunca cumpriu, manifesta e contumaz inação que deu azo à instauração de execução para prestação de facto [cf., nomeadamente, II. 1. alíneas a), b), c), d) e f), supra], sem que, sequer, se indicie um qualquer pretenso direito de sentido contrário, por parte do recorrente.

           É absurdo admitir uma qualquer (eventual) lesão grave e dificilmente reparável a um pretenso direito do requerente/recorrente, quando apenas temos por demonstrada a reiterada violação do direito dos requeridos, ininterruptamente, por tão longo período...

            Igualmente absurdo e abusivo dizer que o se requer estabelecerá uma proporcionalidade entre os direitos em conflito...

           6. Analisados os factos descritos em II. 1., supra, tudo indica que o requerente/executado/recorrente sempre pretendeu usar e abusar de expedientes e normas processuais desajustadas à situação que vemos configurada[10], quando estava/está verdadeiramente em causa a adequada e tempestiva atuação de normas que regulamentam a vida em comum de todos na sociedade e brotam do texto básico da vida dos homens comuns em comum[11], subjacentes à mencionada decisão declarativa.

           7. Acresce que o requerente/recorrente, de forma enviesada e usando dos meios que a lei só poderá/deverá conceder a quem exercita adequadamente os seus direitos (inclusive, no domínio cautelar)[12], pretende, ao fim e ao cabo, a suspensão da execução (“até prolação de decisão definitiva da ação declarativa”), o que, por decisão transitada em julgado, já lhe foi negado [cf. II. 1. alíneas j), k) e l), supra]!

           8. Não se verificam, nem vemos fundamentadas, quaisquer “nulidades” da decisão (ou processuais), nem foi minimamente fundamentado o pretenso desrespeito de normas da Lei Fundamental (a que se aludiu, apenas, na derradeira “conclusão” da alegação de recurso – cf. ponto. I., supra), pelo que, a esse respeito, nada mais se dirá (cf., designadamente, art.ºs 635º e 639º, n.º 1, do CPC).[13]

            9. A decisão sob censura, ao rejeitar o procedimento cautelar, não merece qualquer reparo.

           10. Soçobram, pois, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.


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           III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.        

            Custas pelo requerente/apelante.        


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19.3.2024


[1] Que deu conta, nos autos, de haver sido notificada da decisão proferida e que deu causa ao apenso R, pelo que nada obsta à prolação de decisão”.

   Daqui se conclui que vamos já no 17º ou 18º apenso de um processo executivo iniciado há aproximadamente 10 anos!...
[2] Atendendo, sobretudo, ao documento junto com a petição e ao anteriormente decidido nesta Relação.
[3] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[4] Rejeitou a pretendida apelação autónoma / imediata - se verificados os requisitos gerais da recorribilidade -, considerando apenas (eventualmente) admissível a impugnação (relegada para momento ulterior) prevista no art.º 644º, n.ºs 3 e 4, ex vi do art.º 852º, do CPC.

[5] Proferido na Reclamação 1227/14.... (mesmo relator) [com o sumário: «1. O juiz ´não pode ordenar a suspensão da execução com fundamento na existência de uma causa prejudicial`, sendo que, a não ser assim, ´iria obter-se um efeito de suspensão da execução por fundamento de mérito fora dos casos admitidos em sede de oposição à execução`. 2. A ´prestação de caução`, causa especial de suspensão da instância executiva, só é admitida em caso de ´oposição à execução` (art.º 733º, n.º 1, alínea a), do CPC). 3. O despacho que indefira a prestação de caução, por falta dos respetivos requisitos, ´apenas poderá ser impugnado conjuntamente com a decisão final, por se não enquadrar em nenhuma das alíneas do n.º 2 do art.º 644º nem do art.º 853º, n.ºs 2 e 3, do CPC` (art.º 644º, n.ºs 3 e 4, ´ex vi` do art.º 852º, do CPC).»].

   Tratou-se – sublinha-se – de decisão proferida no 14º ou 15º apenso da ação executiva!
[6] Sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que gozará desde ../../1992!
[7] Mencionou-se em nota: «Vide, nomeadamente, Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, págs. 953 e seguinte; J. Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 224 e seguintes e Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, Os artigos da reforma, Vol. II, Almedina, 2014, págs. 254 e seguinte. / cf. ainda, de entre vários, o acórdão do STJ de 31.5.2007-processo 07B864, publicado no “site” da dgsi.»
[8] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, Arménio Amado – Editor Sucessor, Coimbra, 1987, págs. 64 e 106.
[9] Vide, entre outros, A. Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, Vol. III, Almedina, 3ª edição, 2004, pág. 97 e seguinte e acórdão do STJ de 28.9.1999, in CJ-STJ, VII, 3, 42.
[10] Será porventura conveniente uma leitura (mais) alargada (tendo em conta as ações instauradas e contestadas e seus inúmeros incidentes, não tributados...) e extrair as devidas consequências, mormente, em matéria de litigância de má fé e custas!
[11] Vide Orlando de Carvalho, para uma teoria da relação jurídica civil/a teoria geral da relação jurídica - «seu sentido e limites», Centelha, 1981, pág. 87, “nota 88”.
[12] Vide, nomeadamente, A. Abrantes Geraldes, ob. e vol. citados, págs. 147 e seguinte.
[13] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 308 e seguintes e 358 e seguintes; J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33 e os acórdãos do STJ de 21.10.1993 e 12.01.1995, in CJ-STJ, I, 3, 84 e III, 1, 19, respetivamente.