Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3161/12.2TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS COMPLEMENTARES
FACTOS INSTRUMENTAIS
CONTRADITÓRIO
LETRA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 5, 729, 731 CPC, 342 CC
Sumário: 1. - Ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 2, do NCPCiv., na sentença podem ter assento factos não alegados que, embora ainda essenciais, não são os nucleares, mas antes complemento ou concretização dos alegados, desde que resultem da instrução da causa e sobre eles tenha havido a possibilidade de as partes se pronunciarem, mesmo que nenhuma delas manifeste vontade de os aproveitar.

2. - Só está, pois, afastada a intervenção oficiosa do tribunal, neste âmbito, quanto aos factos essenciais nucleares/principais – os que constituem a causa de pedir ou que fundam as exceções deduzidas –, continuando aí a manter-se integralmente o princípio do dispositivo.

3. - Já quanto aos demais – factos instrumentais (os substantivamente indiferentes), factos essenciais complementares (os que têm papel completador dos nucleares) ou concretizadores (com função de pormenorizar ou decompor os nucleares) dos alegados –, podendo, mesmo sem alegação, ser atendidos na sentença, ocorre restrição ao princípio do dispositivo, no escopo da obtenção de soluções de justiça material.

4. - É de considerar que as partes tiveram a possibilidade de se pronunciar se os factos novos resultantes da instrução da causa emergem de prova testemunhal cuja produção foi sujeita ao imediato contraditório, com ambas as partes a questionar a(s) testemunha(s) sobre essa factualidade.

5. - Compete ao executado/embargante, que invoca a exceção do preenchimento abusivo da letra de câmbio emitida em branco ou outros meios de defesa relativos à relação extracartular, o ónus da alegação e prova da factualidade constitutiva da exceção/meios de defesa (art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.).

6. - Perante o vigente regime cartular, cabe, pois, a tal embargante demonstrar a inexistência ou inexigibilidade da dívida exequenda, não se impondo ao exequente, portador legítimo do título de crédito, assinado/subscrito pelo demandado, a prova – como teria de fazer em ação declarativa, se destituído de título executivo – da realidade/exigibilidade da dívida.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Por apenso aos autos de execução que lhe move “S.(…), S. A.”, com os sinais dos autos,

veio o executado R (…), também com os sinais dos autos, deduzir oposição a tal execução (mediante embargos de executado),

concluindo pela procedência da oposição.

Alegou, para tanto, em síntese:

- não dever o montante peticionado, desconhecendo o motivo do valor inscrito na letra de câmbio dada à execução, emitida em 04/12/2007 e vencida em 20/04/2012, tendo o Executado exercido atividade comercial em Portugal apenas até 31/01/2008, data em que emigrou, do que deu conhecimento à Exequente, tendo as partes acordado em compensar contas, nada tendo ficado em dívida;

- não se encontrar a letra, aquando da sua assinatura, completamente preenchida (estava em branco o local e data de emissão, a data de vencimento e o montante/valor), sendo que não celebrou qualquer convenção quanto ao seu preenchimento, pelo que não poderia ocorrer o preenchimento sem o seu conhecimento e acordo, donde que, faltando esse acordo, ocorra preenchimento abusivo.

Contestou a Exequente/Embargada, concluindo pela total improcedência da oposição e alegando, no essencial:

- ter celebrado um contrato (denominado “Contrato de Compra Exclusiva N.º 37504”) com o Executado, que produziu efeitos desde 01/08/2007, referente ao estabelecimento denominado “Bar H (...) ”, explorado pelo Executado, onde eram vendidas bebidas ao público;

- por força desse contrato, o Executado obrigou-se a comprar à Exequente os produtos objeto do contrato e nas quantidades ali descritas, recebendo, como contrapartida, € 7.500,00 mais IVA da Exequente e alguns produtos, quantia que tal Exequente lhe entregou;

- porém, no termo do contrato, 31/07/2011, o Executado não tinha adquirido os 45.000 litros de produtos acordados, mas apenas 9.150 litros, assim incumprindo o contrato e ficando obrigado a indemnizar a contraparte;

- como garantia do contrato, o Executado aceitou uma letra de câmbio com data de vencimento e valor em branco, tendo autorizado o seu preenchimento quanto à data e valor devido em resultado do contrato celebrado, pelo que a Exequente nega qualquer necessidade de comunicação do preenchimento da letra, tendo-a preenchido, ante o incumprimento da contraparte, com o valor considerado devido (€ 25.379,75), sendo que o valor remanescente, devido a título de cláusula penal, será peticionado em sede de ação declarativa.

Dispensada a realização de audiência prévia ([1]), foi saneado o processo e foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida decisão de meritis – datada de 15/07/2016 –, pela qual foi julgada totalmente procedente a oposição à execução, absolvendo-se o Executado/Embargante do pedido executivo, com a consequente extinção da execução.

Inconformada, a Exequente/Embargada apelou da sentença absolutória, tendo apresentado alegação recursória, onde formula as seguintes

Conclusões ([2]):

(…)

Não foi junta contra-alegação de recurso.

Este foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime e efeito fixados. 

Nada obstando, na legal tramitação recursória, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados das partes – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável quanto ao regime do recurso (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([4])([5]) –, está em causa na presente apelação, reportada à apreciação de matéria de facto e de direito, saber:

a) Se ocorreu erro de julgamento quanto à fixação da matéria de facto, a dever ser corrigido pelo Tribunal ad quem – mediante o aditamento do pretendido ponto F) ao quadro fáctico provado (com o seguinte teor: “À data da caducidade o preço do litro/barril de € 1,782”) e a eliminação do ponto 5) da factualidade julgada não provada;

b) Se, assim não se entendendo, deve ampliar-se a base fáctica da causa, de molde a incluir o facto daquele ponto F);

c) Se o Tribunal a quo incorreu em errada interpretação do clausulado contratual;

d) Se (in)existe preenchimento abusivo e inexigibilidade da obrigação exequenda.

III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada:

«A) – A exequente é portadora de um título com a palavra “letra” nele inscrita, constando como sacador no mesmo, com o valor de € 25.379,75, data de emissão em 4/12/2007, em Leiria, data de vencimento em 20/4/2012, onde se diz, para além do mais, “no seu vencimento, pagará/(ão) V. Exª(s) por esta única via de letra a nós ou à nossa ordem a quantia de vinte e cinco mil trezentos e setenta e nove euros e setenta e cinco cêntimos, subscrita pelo executado, constando nela a expressão “transacção comercial” (requerimento executivo e art. 4.º da petição inicial de embargos);

B) Exequente e Executado outorgaram um escrito, datado de 23/11/2007, intitulado “Contrato de compra exclusiva n.º 37504”, constando aquela como S (...) e aquele como Revendedor, com domicílio em Rua (...) Leiria, onde consta, na parte que importa: “(…) Considerando que: a) a S (...) produz e/ou representa e comercializa cervejas, refrigerantes e águas, doravante designadas produtos; b) o revendedor desenvolve no estabelecimento designado por “Bar H (...) ” (…) a actividade de revenda de bebidas, ao público e para consumo no local, e propõe-se realizar os seus próprios objectivos de vendas, através do desenvolvimento da sua actividade, para o que considera adequados os incentivos propostos pela S (...) (…) é ajustado e reciprocamente aceite, de boa fé e sem reserva, o presente contrato que se consubstancia nas cláusulas seguintes:

“Cláusula Primeira”

1. A S (...) obriga-se a vender e o revendedor obriga-se a comprar, directamente à S (...) ou ao(s) distribuidor(es) por esta indicado(s) em cada momento, para revenda ao público e consumo no estabelecimento, os produtos constantes do anexo I nas quantidades e dentro dos prazos previstos na cláusula terceira. (…)

3. O estabelecimento deverá manter ininterruptamente ao longo do período contratual a sua actual actividade de bar (…) salvo se por qualquer circunstância, (…) as partes acordarem, por escrito, em sentido contrário.

4. O revendedor efectuará as compras dos produtos supra referidos de forma regular e contínua, aferindo-se tal regularidade em função da litragem efectivamente consumida num determinado período, ou no final de cada ano de vigência do contrato, e a que resulta da relação litragem contratual/período de duração do contrato fixadas na cláusula terceira. (…)

8. O revendedor não poderá ceder a terceiro(s) a posição contratual que para si decorre do presente contrato sem prévio consentimento por escrito da S (...) , qualquer que seja o negócio e forma que serve de base à cessão, incluindo transmissão do estabelecimento comercial ou da sua exploração, sob pena de incorrer em responsabilidade solidária pelo incumprimento.

Cláusula segunda

1. A título de contrapartida pela celebração do presente contrato, a S (...) presta apoio à actividade de comercialização do revendedor, através da concessão dos seguintes incentivos: a) mediante entrega ao revendedor de um incentivo pecuniário de € 7.500,00 (…) acrescidos de IVA (…) de que este dá recibo; b) mediante entrega a este, contra assinatura do presente contrato, dos seguintes produtos: 15 barris de cerveja Sagres na assinatura do contrato; 10 barris de cerveja Sagres por ano de contrato; c) mediante entrega a este dos seguintes incentivos: na compra de 400 litros de cerveja e refrigerantes de produtos S (...) , a S (...) oferece ao revendedor 50 litros de cerveja e refrigerantes de produtos S (...)

Cláusula terceira

1. Sem prejuízo do disposto no n.º 1 da cláusula primeira, o presente contrato vigorará até que o revendedor compre: a) 45000 litros dos produtos constantes do anexo I, ou pelo prazo de 4 anos a contar de 1 de Agosto de 2007, consoante o que primeiro ocorrer, salvo se as partes acordarem por escrito na sua prorrogação.

2. Durante a vigência do contrato o revendedor deverá adquirir anualmente o mínimo de 5.625 litros dos produtos referidos na al. a) do n.º anterior.

3. Se no termo do prazo referido no n.º 1 da presente cláusula, o revendedor não tiver efectuado o volume de compras aí estabelecido, a S (...) poderá exigir uma indemnização, pelo incumprimento, que por acordo se estipula ser igual ao valor dos produtos não adquiridos, considerando-se para o efeito, o PVR praticado pela S (...) , à data do incumprimento, para a cerveja Sagres de barril, descontados os montantes eventualmente já pagos a título de sanção pecuniária ao abrigo da cláusula quinta. (…)

Cláusula Quinta

1. Sem prejuízo da eventual responsabilidade do revendedor pelo incumprimento das demais obrigações emergentes deste contrato, o incumprimento por aquele da obrigação de aquisição anual da litragem de produtos indicada no n.º 2 da cláusula terceira, confere à S (...) o direito de exigir, no final de cada ano, a título de sanção pecuniária, o pagamento de uma penalidade equivalente à parte proporcional da contrapartida total, já entregue, ao abrigo do n.º 1 da cláusula segunda, que corresponda à litragem de produtos não adquirida. (…)

Cláusula Sexta

1. Caso se verifique incumprimento, ou atraso no cumprimento, de qualquer das obrigações emergentes do contrato, a parte não faltosa deverá avisar a outra, por carta registada com aviso de recepção, para pôr termo a tal situação no prazo de 15 dias, podendo ainda estabelecer a cominação de que o contrato se considerará resolvido, sem necessidade de qualquer outra comunicação, se não se verificar a cessação do incumprimento ou mora dentro daquele prazo.

2. Na falta de indicação da cominação atrás referida e se a parte faltosa não puser termo à situação de incumprimento ou mora dentro daquele prazo, poderá a parte não faltosa proceder à posterior resolução do contrato através de carta registada com aviso de recepção.

3. Constitui fundamento de resolução do contrato, o incumprimento pelo revendedor de quaisquer obrigações por si assumidas perante o Distribuidor, incluindo sem limitar as obrigações de aquisição dos produtos e de pagamento do preço dos mesmos.

4. A resolução do contrato fará incorrer a parte faltosa na obrigação de pagar à outra parte uma indemnização, a título de cláusula penal, cujo montante desde já se estipula ser igual ao dobro do incentivo total entregue pela S (...) ao abrigo do n.º 1 da cláusula segunda acrescido do valor proporcional desse incentivo correspondente à litragem não adquirida para efeitos do cumprimento da obrigação assumida nos termos do n.º 1 da cláusula terceira, descontadas de quaisquer quantias eventualmente pagas a título de sanção pecuniária ao abrigo da cláusula quinta.

5. A resolução do contrato por incumprimento do revendedor implicará ainda o imediato vencimento de todas as quantias em dívida acrescidas de juros de mora à taxa legal para as operações comerciais desde a data do incumprimento até integral pagamento.

6. Para garantia do cumprimento de todas as obrigações emergentes do presente contrato, incluindo as referidas na presente cláusula, o revendedor entrega à S (...) , contra a entrega do incentivo referido na cláusula segunda, uma letra de câmbio com a data de vencimento e o valor em branco, letra que aceitou de boa fé e livre vontade com intenção expressa de contrair tal obrigação cambiária, autorizando desde já a S (...) a preencher a mesma letra apondo-lhe como data de vencimento, qualquer data posterior à cessação do contrato, por qualquer causa, e como valor o que corresponder a quaisquer indemnizações que sejam devidas nos termos do presente contrato. (…)

Cláusula Oitava

O presente contrato foi celebrado por ambas as partes de boa fé, sem qualquer reserva e com observância da legislação em vigor (…) devendo qualquer alteração ao seu clausulado, obrigatória no caso de modificação das normas sobre concorrência, constar de documento escrito, assinado por ambas as partes, de onde conste a referência expressa às disposições revogadas, sob pena de ineficácia ou de nulidade das alterações efectuadas e das cláusulas contrárias à lei da concorrência.

(…)

Cláusula Décima

Quaisquer comunicações entre as partes só se considerarão validamente realizadas e só poderão ser invocadas, no âmbito do presente contrato e para todos os efeitos legais, desde que se mostrem efectuadas por escrito e enviadas para as entidades e moradas aqui constantes ou, ocorrendo alteração destas, para as entidades e moradas que qualquer das partes tiver indicado à outra, em tempo útil e por escrito. (…)” (requerimento executivo, arts. 6.º, 7.º, parte do art. 8.º da petição inicial de embargos, arts. 1.º a 7.º, 16.º 19.º, 32.º, 37.º da Contestação);

C) O executado exerceu actividade até 31/1/2008, data em que emigrou, não tendo exercido mais actividade em Portugal (art. 5.º e parte do art. 10.º da petição inicial de embargos);

D) A Exequente não deu conhecimento ao Executado do preenchimento da letra referida em A) (parte do art. 8.º da petição inicial de embargos);

E) O executado não adquiriu a litragem de 45.000 referida no escrito mencionado em B) até 31/7/2011 mas apenas 9.150 (arts. 11.º e 12.º da Contestação).».

E foi julgado não provado:

1) – Que o executado nada deva à exequente (art. 2.º, parte do art. 11.º, parte do art. 13.º da petição inicial de Embargos); [ponto suprimido pela Relação, por não factual, mas conclusivo, como infra explicitado];

2) – Que o executado não celebrasse qualquer convenção quanto ao preenchimento da letra referida em A) (parte do art. 8.º da petição inicial de Embargos);

3) – Que nunca houvesse qualquer acordo de preenchimento entre as partes relativamente aos elementos de montante, tempo de vencimento, juros (art. 9.º da petição inicial de Embargos);

4) – Que quando encerrou actividade, em 3/1/2008, o executado disso desse conhecimento à exequente, tendo então as partes acordado a compensação entre ambos (parte do art. 13.º da petição inicial de Embargos);

5) – Que a exequente não tivesse de comunicar ao embargante que iria preencher a letra (art. 34.º da Contestação); [ponto suprimido pela Relação, por não factual, mas conclusivo, como infra explicitado].

B) Impugnação da decisão de facto e ampliação da base fáctica

1. - Começa a Apelante por esgrimir que ocorreu erro de julgamento quanto à fixação da matéria de facto (cfr. ponto I da sua alegação recursória, onde alude a um “errado julgamento da matéria de facto”, e respetiva conclusão 1.ª), pretendendo, desde logo, que seja agora aditado um novo facto – almejado ponto F) – ao quadro fáctico provado, com o seguinte teor: “À data da caducidade o preço do litro/barril de € 1,782”.

Ora, liminarmente se constata que o pretendido novo facto não foi alegado nestes autos (em nenhum dos articulados dos embargos), nem a Recorrente se preocupa em mostrar que haja sido alegado, antes se limitando a invocar que o facto foi afirmado por uma testemunha em audiência de julgamento, como mencionado em sede de fundamentação da decisão de facto da 1.ª instância.

Por isso, acrescenta (cfr. conclusões 2.ª a 4.ª) que há insuficiência da matéria dada como provada face à prova produzida, pelo que seria de proceder à sua ampliação, com inclusão daquele “ponto F)”.

Seguro é que às partes cabe o ónus de alegar os factos (art.º 5.º do NCPCiv. e, anteriormente, os art.ºs 664.º e 264.º, ambos do CPCiv. revogado), sem prejuízo de, excecionalmente, o Tribunal poder considerar factos não articulados por tais partes.

Assim, dispõe o art.º 5.º do NCPCiv. que cabe às partes o ónus de alegar os factos essenciais constituintes da causa de pedir e fundantes das exceções deduzidas (n.º 1), acrescentando serem ainda considerados pelo Tribunal (n.º 2), para além de outros (que para o caso não relevam), os factos instrumentais que resultem da instrução da causa (al.ª a)), bem como os (essenciais) que sejam complemento ou concretização dos alegados e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham as partes tido a possibilidade de se pronunciar (al.ª b)).

Como refere Abrantes Geraldes ([6]), «importa reflectir nas modificações operadas em sede de delimitação dos “temas da prova”, por contraposição com o anterior sistema assente em “pontos de facto da base instrutória” ou com o anacrónico sistema dos “quesitos”, impondo-se agora se atenuem os efeitos de um determinado e frequentemente excessivo rigorismo formal, já criticável perante o sistema anterior», determinando o novo sistema «que a produção de prova em audiência tenha por objecto “temas da prova”(art. 596.º) enunciados na audiência prévia, em vez de incidir sobre “factos” sincopados, tendo-se optado por inscrever a decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença (art. 607.º, n.º 3)», perante o que será de admitir «uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais que deixem a justiça à porta do tribunal» ([7]).

E o próprio CPCiv. revogado – já desde a redação dada pela Lei n.º 180/96, de 25-09 – previa a “consideração, mesmo oficiosa, de factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa” (respetivo art.º 264.º, n.º 2), bem como dos “factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das exceções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório” (n.º 3 do mesmo normativo).

Como vem entendendo o STJ ([8]):

«Com as últimas reformas do processo civil, porém, as partes, por um lado, perderam o quase monopólio que detinham sobre a lide, e, por outro, o Tribunal passa a assumir uma posição muito mais activa, por forma a aproximar-se da verdade material, ou seja, a alcançar a justa composição do litígio que é, em derradeira análise o fim último de todo o processo.

(…) Reconhece-se, agora, ao Juiz a “possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, os factos meramente instrumentais e [d]os utilizar quando resultem da instrução e julgamento da causa”».

No mesmo sentido se chama a atenção para a necessidade de «considerar de uma forma inovadora em face do NCPC que a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto. Para o efeito já não valem, como valiam em face do art. 646º, nº 4, do anterior CPC (…), os argumentos de pendor formalista. Mais do que nunca, é possível agora o juiz optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5º, nº 2.

O modelo processual introduzido pela reforma é o da prevalência do fundo sobre a forma, de acordo com uma nova filosofia que vê no processo um instrumento, um meio de alcançar a justa composição do litígio, de chegar à verdade material pela aplicação do direito substantivo.

Atribui-se ao juiz um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório. Na verdade, continua a caber às partes a definição do objecto do litígio (…).

Certo é, porém, que (…) o juiz tem agora a possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, e de considerar na decisão, os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.

Esta simples afirmação logo aponta para uma evidente conclusão: a de que, relativamente aos factos instrumentais – ao contrário do que sucede quanto aos factos essenciais (à procedência da pretensão do autor e à procedência da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu), relativamente aos quais funciona o princípio da auto-responsabilidade das partes – o tribunal não está sujeito à alegação das partes, podendo oficiosamente carreá-los para o processo e sujeitá-los a prova» ([9]).

O tribunal pode agora, ao abrigo do dito art.º 5.º, n.º 2, do NCPCiv., acolher para a decisão factos que, embora ainda essenciais, já não são os nucleares, mas antes complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar e mesmo que a parte nenhuma vontade tenha manifestado quanto à sua utilização (seja por os não ter alegado ou por não ter manifestado tal vontade na sequência do respetivo conhecimento no âmbito da instrução).

Assim, só está afastada a intervenção oficiosa corretiva do tribunal, neste âmbito, quanto aos factos essenciais “nucleares” ou “principais” (aqueles que constituem a causa de pedir ou que fundam as exceções deduzidas), continuando a manter-se de forma irrestrita o princípio do dispositivo. Já quanto aos demais (factos instrumentais ou factos essenciais que sejam complementares ou concretizadores de outros alegados pelas partes) poderão os factos não alegados ser tidos em conta pelo tribunal, sem limitações relativamente aos instrumentais e com sujeição à possibilidade de exercício do contraditório no concernente aos restantes (essenciais).

Como refere Paulo Pimenta ([10]), os factos essenciais nucleares – diversamente e por contraposição aos factos essenciais complementares e concretizadores – «constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da excepção, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de a respectiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da excepção», enquanto os “complementares” e os “concretizadores”, «embora também integrem a causa de pedir ou a excepção, não têm já uma função individualizadora» ([11]) ([12]).

Quanto aos factos meramente instrumentais, serão eles os não substantivamente relevantes, os que, «por não contenderem com a definição, densificação ou substanciação da fattispecie normativa em que assentam as pretensões dos litigantes, podem ser, mesmo que não alegados, objecto de consideração oficiosa pelo julgador, bastando que resultem da instrução e discussão da causa» ([13]).

Ora, revertendo ao caso dos autos, parece claro que o facto mencionado não é meramente instrumental, já que, obviamente, dotado de relevância substantiva, mas também não constitui factualidade essencial nuclear/principal, donde que haja de caber na categoria dos factos essenciais complementares ou concretizadores a que alude a al.ª b) do n.º 2 do art.º 5.º do NCPCiv..

Donde que possa ser atendido se alegado – ainda que de forma implícita/tácita ([14]) – ou, mesmo oficiosamente, se resultante da instrução/discussão da causa e as partes tiveram a possibilidade de sobre ele se pronunciar.

Vejamos, então.

Já se disse que o facto não foi alegado – expressa ou tacitamente –, cabendo, porém, no âmbito dos enunciados temas da prova (cfr. fls. 49 dos autos em suporte de papel).

Resta saber se, resultando o facto da instrução/discussão da causa, as partes (no caso, importa o Embargante) tiveram a possibilidade de sobre ele se pronunciar.

Ora, nada nos autos alude a tal facto, a não ser a dita fundamentação da convicção probatória, onde o Tribunal recorrido expendeu (quanto à valoração da prova testemunhal):

«A testemunha (…), gestor de vendas da exequente, apenas conhecia o dossier do executado, nunca tendo tido contacto com ele, fazendo também um relato credível dos factos, sem que o tribunal notasse qualquer tendência nas suas afirmações. Sabia relatar que existiram 9150 litros de consumo até 2009, tendo havido notícia ao supervisor que o executado se tinha ausentado e que ficaria a assumir o contrato a pessoa que passou a explorar o bar, o que não veio a ocorrer, nem o executado entregou qualquer documentação. (…) Referiu ainda o preço do litro/barril de 1.782. (…)» (cfr. fls. 93 v.º, com itálico aditado).

A testemunha (…) foi inquirida em audiência de julgamento, na presença das Mandatárias judiciais das partes (também do Embargante), tendo até a Mandatária do Executado/Embargante, no decurso da respetiva inquirição, pedido a palavra para requerimento, onde aludiu à “prova testemunhal efectuada por esta última testemunha” e às suas afirmações, para requerer a notificação da contraparte para prestação de informação em sede probatória, tida por “útil para a descoberta da verdade material”, o que viria a ser deferido (cfr. ata de fls. 58 e seg.).

Ouvida a gravação deste depoimento, constata-se que a testemunha aludida afirmou que o preço do litro de barril era de 1.782 ([15]) e que poderia até fornecer a tabela (de preços e respetivas datas).

O contraditório foi observado quanto à produção de tal prova testemunhal, pelo que logo o Embargante, através da sua Mandatária, tomou conhecimento do dito relato testemunhal, mormente quanto à afirmação referente ao preço de litro de barril.

A instâncias desta Mandatária foi exercido o princípio do contraditório, inclusive sobre esta matéria de preço, pelo que só pode concluir-se que o Embargante teve a possibilidade de se pronunciar sobre a afirmação de tal facto.

Mas, sendo o facto aproveitável, será de o dar como provado?

O Tribunal a quo não o teve como provado, apenas dizendo que a testemunha mencionada referiu ainda o preço de litro/barril de 1.782, sem, pois, uma análise crítica concreta a esta afirmação, apesar da genérica alusão a “um relato credível dos factos”.

A testemunha foi ouvida em 20/06/2016, referindo-se ao preço em aplicação à data do incumprimento – aludiu, neste âmbito, a janeiro de 2009.

Apesar da distância temporal – consabidamente adversária, por regra, de uma memória rigorosa (mormente quanto a números) –, não foi pedido à testemunha que justificasse/fundamentasse essa sua afirmação, de molde a aquilatar-se da exatidão da sua memória neste aspeto (e da veracidade do afirmado), omissão compreensível atendendo à expectativa de fornecimento da dita tabela (de preços e respetivas datas).

Só que a tabela não foi junta, restando, então, um único depoimento testemunhal, que, embora positivo, apresenta uma simples afirmação, sem, pois, uma concreta/plausível justificação/fundamentação e sem qualquer corroboração, o que seria necessário ante o tempo transcorrido e as consabidas limitações normais da memória humana.

Donde, assim, que, em autónomo juízo/convicção probatório desta instância recursória, não possa aquele facto ser julgado provado, quedando-se nesta parte inalterado o quadro fáctico da sentença.

Improcedem, pois, as conclusões da Apelante em contrário.

2. - Pugna ainda a Recorrente pela eliminação do ponto 5) da factualidade julgada não provada, por o considerar conclusivo.

Nesta parte, assiste-lhe razão.

Com efeito – e salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo –, é conclusiva, e não factual, a asserção de que a Exequente não tinha (ou não tivesse) de comunicar ao Embargante que iria preencher a letra. Trata-se de matéria de deveres de comunicação entre as partes, logo matéria de fundamentação de direito e não material fáctico. Por isso, não deveria constar da parte fáctica da sentença (a provada ou a improvada).

O mesmo se diga relativamente ao ponto 1) daquela factualidade julgada não provada.

Como é patente, resulta conclusivo o segmento segundo o qual “o executado nada deva à exequente” (dito ponto 1) do elenco “não provado”). Se deve ou não deve, é questão que se reporta à existência, ou não, do crédito exequendo, matéria jurídica nuclear dos autos, que, por isso, só em sede de apreciação de direito pode ser decidida, sob pena de se decidir a sorte dos autos fora da sede própria, isto é, não no âmbito da apreciação de direito, mas logo na decisão de facto.

Assim, por conclusivos, determina-se, em reapreciação recursória, a supressão daqueles pontos 1) e 5) da factualidade julgada não provada, aliás, já anteriormente sinalizada, aquando da exposição do quadro fáctico da causa.

Donde que apenas parcialmente proceda a impugnação recursória da decisão de facto, que subsiste intocada em tudo o mais.

 

         C) O Direito

1. - Da errada interpretação do clausulado contratual

Perante a dinâmica e economia do clausulado contratual, tal como vem apurado, o Tribunal recorrido procedeu a interpretação da disciplina contratual (mormente quanto às cláusulas terceira, n.º 3, e sexta, n.º 1) no sentido de o preenchimento da letra de câmbio dada à execução depender da prévia notificação pela aqui Embargada/Exequente à contraparte para pôr termo à situação de incumprimento, em que se encontrava, quanto à obrigação de aquisição do total da litragem convencionada (volume de compras estabelecido, de 45.000 litros).

Discorda a Apelante, considerando não estar obrigada a tal interpelação para o cumprimento, por a contraparte não estar em situação de mora nem de incumprimento definitivo, uma vez que podia adquirir o volume contratado a todo o tempo, dentro do prazo de vigência do contrato.

Pretende, assim, a Recorrente centrar a discussão na cessação contratual pelo decurso do prazo (caducidade) – em vez de na resolução por incumprimento –, de molde a afastar a aplicação das cláusulas 6.1, 6.2, 6.3, 6.4, 6.5, para se socorrer apenas da cláusula 3.3.

Não nos parece – salvo o devido respeito – que assista razão nesta parte à impugnante.

Com efeito, na sentença em crise não se considerou que o caso seja de resolução do contrato, embora se tenha entendido que o Executado incumpriu o acordado quanto à sua obrigação contratual de aquisição de determinada litragem de bebidas, «sendo certo que as partes estipularam contratualmente o valor da indemnização nesse caso, pois que findou o prazo contratual sem que a exequente resolvesse o contrato e anunciando ela que não peticionou nestes autos a cláusula penal, mas unicamente a indemnização pelo incumprimento» ([16]).

Assente, pois – como pretende a Recorrente e como também entendido na sentença –, que expirou o prazo contratual, sem resolução, mas com a verificação de não ter o aqui Executado/Embargante cumprido aquilo a que se vinculou quanto ao volume de compras estabelecido (cfr. cláusula terceira, n.ºs 1 e 3, e al.ªs C) e E) dos factos provados), tem de operar, como é incontroverso, a disciplina daquela cláusula terceira, n.º 3.

Isto é, findo o prazo contratual e incumprido aquele dever (de atingimento do volume de compras a que se obrigou), ficou o Embargante sujeito ao poder da contraparte de lhe exigir indemnização por esse incumprimento, indemnização essa a quantificar de harmonia com os parâmetros estabelecidos na mesma cláusula (terceira, n.º 3).

Porém, como bem interpretado na sentença recorrida, tal cláusula não pode deixar de ser conjugada com a subsequente cláusula sexta, n.º 1, que se apresenta, nos moldes em que formulada, com um pendor genérico.

Na verdade, tal n.º 1 reporta-se a qualquer incumprimento ou mora debitoris de quaisquer obrigações emergentes do contrato, de molde a conferir, em qualquer caso, à parte faltosa a possibilidade de ainda cumprir (“cessação do incumprimento ou mora” dentro do prazo admonitório de 15 dias convencionado), quer o credor quisesse, ou não, usar da faculdade de resolução do contrato.

O segmento final desse n.º 1 da cláusula sexta mostra, sem margem para dúvidas, que essa disciplina contratual (interpelação à parte faltosa) não é prevista exclusivamente para a situação de opção resolutiva, mas para qualquer incumprimento ou mora, podendo dar lugar – ou não – à “cominação de o contrato se considerar resolvido”, isto é, independentemente das respetivas consequências.

Assim, pretendendo o credor (aqui Exequente/Embargada) exigir, findo o contrato pelo decurso do prazo, indemnização pelo incumprimento daquele dever, não estava exonerado de, previamente, e como convencionado, dar à contraparte a possibilidade de sanar a falta (cessação do incumprimento ou mora), nos moldes gerais daquela cláusula sexta, n.º 1.

Matéria esta, referente à relação subjacente ao título cambiário e executivo, que podia ser discutida nos autos, por se estar no plano das relações imediatas.

A questão é então de determinação do ónus da prova: saber se cabia à Exequente/Embargada provar a interpelação ou à contraparte provar a sua omissão, ou melhor, quais as consequências de nada se ter provado nessa matéria ([17]).

O Tribunal recorrido enquadrou a questão no âmbito da exceção do preenchimento abusivo da letra de câmbio, concluindo que competia à exequente fazer a prova não só do incumprimento, como também do estabelecido na dita cláusula sexta, n.º 1, sem o que não seria lícito considerar exigível a obrigação.

Por isso, entendendo que “a Exequente não interpelou o executado para cumprir” e que sem essa interpelação a letra não poderia ser preenchida, se julgou, na 1.ª instância, procedente a exceção invocada do preenchimento abusivo.

Todavia, sem deixar de aludir a “que quando a execução foi apresentada, a dívida não era ainda exigível” ([18]).  

2. - Do preenchimento abusivo

Invocou o Embargante/Apelado a inexistência de qualquer pacto de preenchimento da letra, bem como nada dever à contraparte, daí retirando a conclusão de preenchimento abusivo.

É diversa e mais específica, como visto, a argumentação da decisão em crise, que se sustentou na conclusão de que, patente o acordo de preenchimento ([19]), cabia à Exequente/Embargada o ónus da prova da dita interpelação (formalidade prévia necessária), ónus que aquela não satisfez (ficou a incerteza sobre a realização, ou não, dessa interpelação), daí partindo para o formulado juízo de procedência da exceção do preenchimento abusivo.

Porém, afigura-se-nos – salvo o devido respeito – caber ao Embargante o ónus da alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar a violação do pacto de preenchimento e o consequente preenchimento abusivo do título cambiário (no caso, uma letra).

Com efeito, é pacífico que, alegado pelo executado/embargante o preenchimento abusivo do título cambiário, a ele caberá o ónus da prova desse abuso de preenchimento – através da violação do acordo de preenchimento existente –, bastando à execução a não demonstração de tal abuso.

Na verdade, uma letra emitida parcialmente em branco, uma vez integralmente preenchida, constitui um título cambiário e executivo, valendo, pois, por si, como título executivo.

A letra em branco destina-se a ser preenchida pelo seu adquirente, sendo essa aquisição acompanhada da atribuição de poderes para o seu preenchimento (pacto ou contrato de preenchimento).

É indispensável à letra em branco que dela conste a assinatura do aceitante (para além de outros possíveis obrigados cambiários) e que essa assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária, bastando – repete-se – à execução, fundada em título cambiário, a apresentação desse título e a não demonstração pelo demandado de ter sido incumprido o pacto de preenchimento, pelo que não é ao exequente que cabe o ónus de demonstrar a regularidade do preenchimento, mas ao embargante o ónus de demonstrar, com factos bastantes de suporte, o preenchimento abusivo.

Se, assim, o executado, em sede de defesa/oposição, excecionar, com cabimento, a violação do pacto de preenchimento de letra ou livrança entregue em branco, então deve discutir-se a factualidade que seja alegada – desde logo a título de exceção, com o ónus probatório a cargo, naturalmente, do excecionante – pelas partes quanto a essa matéria de exceção.

Cabe, pois, ao opoente/excecionante o ónus da prova dos factos constitutivos dessa exceção, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 2, do CCiv. ([20]) ([21]).

Ora, in casu, como visto, não resulta, ante o alegado, desde logo, e os factos apurados, que tenha ocorrido violação da convenção de preenchimento da letra: a incerteza sobre a existência, ou não, da dita interpelação, não prejudica a Exequente/Embargada, pela razão de que era à contraparte/opoente (o Embargante) que cabia provar a inexistência de interpelação (isto é, que a letra foi preenchida sem tal prévia interpelação).

À execução bastava, como ocorreu, que não se provasse a omissão de interpelação, não se exigindo a prova positiva da interpelação, termos em que não pode acompanhar-se nesta parte a fundamentação da sentença impugnada.

3. - Da (in)exigibilidade da obrigação exequenda

Como também já visto, a sentença aponta a inexigibilidade da obrigação/dívida exequenda, ainda por via da falta da dita interpelação.

E trata-se de válido fundamento de oposição à execução (cfr. art.ºs 731.º e 729.º, al.ª e), do NCPCiv., tal como, anteriormente, os art.ºs 816.º e 814.º, n.º 1, al.ª e), do CPCiv. revogado), que, todavia, não foi expressamente invocado em sede de petição de embargos.

Só que, ainda aqui, sempre se trataria de matéria de defesa por exceção (perentória), os “outros meios de defesa relativos à relação extra-cartular”, a que aludia o citado Ac. do STJ de 31/03/2009, relatado pela Cons.ª Maria Pizarro Beleza, cabendo – repete-se – ao Embargante (como opoente) o ónus probatório dos factos constitutivos da exceção/meio de defesa (art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.).

Em suma, improcede a matéria de exceção, devendo manter-se incólume a execução.

Nesta conformidade, haverá de conferir-se procedência à apelação, com a decorrente revogação da sentença recorrida e, na improcedência dos embargos, manutenção da execução.

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 2, do NCPCiv., na sentença podem ter assento factos não alegados que, embora ainda essenciais, não são os nucleares, mas antes complemento ou concretização dos alegados, desde que resultem da instrução da causa e sobre eles tenha havido a possibilidade de as partes se pronunciarem, mesmo que nenhuma delas manifeste vontade de os aproveitar.

2. - Só está, pois, afastada a intervenção oficiosa do tribunal, neste âmbito, quanto aos factos essenciais nucleares/principais – os que constituem a causa de pedir ou que fundam as exceções deduzidas –, continuando aí a manter-se integralmente o princípio do dispositivo.

3. - Já quanto aos demais – factos instrumentais (os substantivamente indiferentes), factos essenciais complementares (os que têm papel completador dos nucleares) ou concretizadores (com função de pormenorizar ou decompor os nucleares) dos alegados –, podendo, mesmo sem alegação, ser atendidos na sentença, ocorre restrição ao princípio do dispositivo, no escopo da obtenção de soluções de justiça material.

4. - É de considerar que as partes tiveram a possibilidade de se pronunciar se os factos novos resultantes da instrução da causa emergem de prova testemunhal cuja produção foi sujeita ao imediato contraditório, com ambas as partes a questionar a(s) testemunha(s) sobre essa factualidade.

5. - Compete ao executado/embargante, que invoca a exceção do preenchimento abusivo da letra de câmbio emitida em branco ou outros meios de defesa relativos à relação extracartular, o ónus da alegação e prova da factualidade constitutiva da exceção/meios de defesa (art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.).

6. - Perante o vigente regime cartular, cabe, pois, a tal embargante demonstrar a inexistência ou inexigibilidade da dívida exequenda, não se impondo ao exequente, portador legítimo do título de crédito, assinado/subscrito pelo demandado, a prova – como teria de fazer em ação declarativa, se destituído de título executivo – da realidade/exigibilidade da dívida.

***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, decidem revogar a decisão recorrida, julgando, em substituição do Tribunal a quo (art.º 665.º, n.º 1, do NCPCiv.), improcedentes os embargos, subsistindo incólume a execução.

Custas da apelação e na 1.ª instância a cargo do Embargante/Apelado.

Escrito e revisto pelo relator.

Elaborado em computador.


Coimbra, 17/01/2017

        

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Havia sido designada para tentativa de conciliação, que se mostrou infrutífera.
([2]) Que se deixam transcritas (com negrito retirado).
([3]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Processo executivo instaurado em 2012, oposição à execução deduzida em 20/03/2014 (cfr. fls. 01 a 09 dos presentes autos em suporte de papel), e decisão recorrida datada de 15/07/2016 (cfr. fls. 98 v.º dos autos, bem como os art.ºs 6.º, n.ºs 1 e 4, 7.º, n.º 1, este por argumento de maioria de razão, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16).
([5]) De notar, porém, que, se em matéria recursória, tal como de tramitação da oposição à execução/embargos, é aplicável o NCPCiv., já tem aplicabilidade o CPCiv. revogado (CPCiv./2007) quanto a títulos executivos (tal como requerimento executivo e tramitação da fase introdutória da execução), tendo em conta que se trata de procedimento/incidente declarativo no âmbito de execução intentada anteriormente à data de entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26/06, e, consequentemente, do NCPCiv. – cfr. art.ºs 6.º, n.º 3, e 8.º, ambos daquela Lei n.º 41/2013.
([6]) Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 238.
([7]) Se o Autor aludido se reporta diretamente à questão da admissibilidade de integração na decisão fáctica de asserções que sejam mais do que puras “questões de facto”, a verdade é que o quadro de opções legislativas – e de filosofia inerente – que invoca também vale, do mesmo modo, para o esclarecimento do que agora nos ocupa.
([8]) Cfr. Ac. de 07/05/2015, Proc. 4572/09.6YYPRT-A.P2.S1 (Cons. Orlando Afonso), em www.dgsi.pt.
([9]) Assim o Ac. STJ, de 10/09/2015, Proc. 819/11.7TBPRD.P1.S1 (Cons. João Trindade), disponível em www.dgsi.pt.
([10]) Cfr. Comunicação intitulada “Temas de Prova”, em www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Texto_comunicacao_Paulo_Pimenta.pdf.
([11]) Nesta perspetiva, “factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma excepção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma excepção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele. Por sua vez, os factos concretizadores têm por função pormenorizar a questão fáctica exposta sendo, exactamente, essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da acção (ou da excepção)”.
([12]) Com entendimento essencialmente semelhante, cfr., na doutrina, Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, ps. 19 a 25. Também na mesma perspetiva, na jurisprudência, pode ver-se ainda o Ac. STJ, de 24/04/2013, Proc. 403/08.2TBFAF.G1.S1 (Cons. Lopes do Rego), em www.dgsi.pt.
([13]) Vide mencionado Ac. STJ de 24/04/2013, aludindo a factos “instrumentais ou probatórios”.
([14]) A alegação traduz uma declaração de existência (ou inexistência) de um facto (de que se pretende aproveitar na lide), donde o entender-se que, como tal, pode ser expressa ou tácita/implícita, podendo, pois, deduzir-se um facto não expressamente articulado de factos alegados que, com toda a probabilidade, o revelem (cfr., mutatis mutandis, art.º 217.º, n.º 1, do CCiv.). Assim, se o ónus de alegação em sede de articulados se basta com os factos essenciais (cfr. art.ºs 552.º, n.º 1, al.ª d), e 572.º, al.ª c), ambos do NCPCiv.), parece, se bem se vê, que nada impede que da alegação dos factos essenciais nucleares possa deduzir-se factualidade complementar ou concretizadora, desde que esta resulte, com toda a probabilidade, revelada por aqueles.
([15]) Subentende-se que se pretendia reportar a € 1,782/litro.
([16]) Cfr. fundamentação de direito de fls. 97 v.º dos autos em suporte de papel.
([17]) Se vem provado que a Exequente não deu conhecimento do preenchimento da letra – facto da al.ª D) –, já nada se apurou quanto à existência, ou não, de interpelação para cessação do incumprimento ou mora em 15 dias.
([18]) Vide fundamentação de fls. 98 dos autos em suporte de papel.
([19]) Ele transparece na cláusula sexta, n.º 6, do contrato celebrado.

([20]) Cfr. Ac. do STJ de 31/03/2009, Proc.º 08B3815 (Cons.ª Maria Pizarro Beleza), em www.dgsi.pt, considerando que cabe ao executado/opoente/embargante, excecionando o preenchimento abusivo de título cambiário “e, naturalmente, outros meios de defesa relativos à relação extra-cartular”, “o ónus da prova em relação aos factos constitutivos daquela excepção, ou destes outros meios de defesa, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil (assim, por exemplo, os acórdãos de 24 de Maio de 2005, 14 de Dezembro de 2006, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 05A1347 e 06A2589 ou o já citado acórdão de 17 de Abril de 2008)”; no mesmo sentido, vide ainda o Ac. do STJ de 13/04/2011, Proc. 2093/04.2TBSTB-A L1.S1 (Cons. Fonseca Ramos); o Ac. STJ de 30/09/2010, Proc. 2616/07.5TVPRT-A.P1.S1 (Cons. Alberto Sobrinho); o Ac. da Rel. Lisboa de 19/06/2007, Proc. 3840/2007-7 (Rel. Pimentel Marcos); o Ac. da Rel. Lisboa de 17/11/2009, Proc. 6501/07.2YYLSB-A.L1-7 (Rel. Luís Espírito Santo); e o Ac. da Rel. Lisboa, de 04/06/2009, Proc. 64872/05.1YYLSB-B.L1 (Rel. Ana Luísa Geraldes), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
([21]) Tal como é à parte embargante que cabe o ónus da alegação e prova de ter sido aposto no título cambiário (emitido em branco), como em dívida, um montante superior ao realmente devido.