Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/19.1T9ALD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: RECURSO
RETENÇÃO
ABSOLUTA INUTILIDADE
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTIGO 405º CPP
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - N.º 1 DO ARTIGO 407.º
Sumário: I – Não preenche o conceito de absoluta inutilidade, constante do n.º 1 do artigo 407.º do Código de Processo Penal, a situação em que a subida a final do recurso não evita a realização do julgamento, situação que se pretende evitar com a instauração do recurso.

II – Não basta verificar que ocorre alguma inutilidade, ela tem de ser absoluta e esta só existe como tal quando o recurso retido, seja qual for mais tarde o resultado, já não produz processualmente resultado algum útil.

Decisão Texto Integral:
Reclamação – artigo 405.º do Código de Processo Penal

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Reclamante/arguido/ …………………AA

Reclamados…………….……………...Ministério Público

……………………………………………BB


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Sumário

I – Não preenche o conceito de absoluta inutilidade, constante do n.º 1 do artigo 407.º do Código de Processo Penal, a situação em que a subida a final do recurso não evita a realização do julgamento, situação que se pretende evitar com a instauração do recurso.

II – Não basta verificar que ocorre alguma inutilidade, ela tem de ser absoluta e esta só existe, como tal, quando o recurso retido, seja qual for mais tarde o respetivo resultado, já não produz processualmente resultado algum útil.


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I. Relatório

a) A presente reclamação insere-se num processo comum singular em que é arguido o reclamante, o qual está acusado de um crime de falsidade de depoimento ou declaração agravado, previsto e punido pelo artigo 359.º, nº 1, do Código Penal, conjugado com o artigo 361.º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma legal.

Previamente ao despacho que recebeu a acusação, o tribunal analisou a questão suscitada pelo arguido relativamente à ilegitimidade do Ministério Público para proceder criminalmente contra si, a qual mereceu resposta negativa.

Face a esta resposta negativa, o arguido recorreu do respetivo despacho, datado de 16 de dezembro de 2022, tendo concluído que o tribunal devia ter declarado a ilegitimidade do Ministério Público para proceder criminalmente contra si e julgar extinto o procedimento criminal e anular todos os atos do inquérito, incluindo a acusação.

O tribunal proferiu de seguida, em 11-01-2023, o seguinte despacho.

«O arguido vem interpor recurso do despacho proferido a 16/12/2022 que indeferiu a nulidade por si arguida, relativa à ilegitimidade do Ministério Público para promover o procedimento criminal.

O despacho de que se recorre é recorrível artigo 399.º, a contrario, do Código de Processo Penal.

Por estar em tempo, ser legal e interposto por quem para tanto dispõe de legitimidade, tendo o recorrente junto ao seu requerimento as suas alegações e conclusões, admite-se o presente recurso interposto do despacho proferido, o qual deverá subir conjuntamente com o recurso que venha a ser interposto da decisão final e, nesse momento, nos próprios autos artigos 113.º, n.º 10, 411.º, n.º 1, 401.º, n.º 1, alínea b), 411.º, n.º 3, 412.º, n.º 1, 407.º, n.º 1, a contrario, 407.º, n.º 3, e 406.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal.

Notifique os demais intervenientes processuais para, querendo e no prazo de 30 dias, responderem artigos 411.º, n.º 6 e 413.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.»

b) A reclamação incide sobre este despacho e pretende-se com ela a alteração do efeito do recurso, para que o efeito seja suspensivo do processo, de modo a que o processo não prossiga para julgamento até haver decisão, pelo que no caso de procedência do recurso isso implica que não venha a existir julgamento.

Daí que o efeito útil do recurso consista em o reclamante não ser julgado, o que mostra logicamente que a retenção do recurso o converte em ato absolutamente inútil para efeitos do disposto no artigo 407.º do Código de Processo Penal, na medida em que não subindo de imediato não evita a realização do julgamento, que é precisamente o que se pretende evitar.

(Não se transcreveu o texto da reclamação por não se encontrar em formato editável)

c) O tribunal referindo que no despacho anterior não tinha indicado as razões da subida do recurso a final, justificou a subida nesses termos, do seguinte modo:

«(…) Conforme se constata do leque previsto nos artigos ora transcritos, vemos que o recurso do despacho em causa não se enquadra no elenco de decisões a que deve ser atribuído o efeito suspensivo e que deva subir imediatamente.

Invoca o recorrente que a retenção do recurso o torna absolutamente inútil, devendo ser-lhe atribuído suspensivo e com subida imediata.

Vejamos.

Cotejando o teor do despacho ora posto em crise e o elenco taxativo de decisões que consta dos indicados preceitos legais, impõe-se a conclusão que o mesmo não se evidencia subsumível à previsão de possibilidade de recurso com subida imediata.

Nessa sequência, vislumbra-se, apenas, essa possibilidade aquando da interposição de recurso da sentença que ponha termo à causa, sendo que, a nosso ver, não estamos perante uma situação de absoluta inutilidade na apreciação da decisão em crise.

Para definir o que seja a absoluta inutilidade a que se refere o preceito, devemos socorrer-nos quer do contributo da doutrina quer dos inúmeros acórdãos proferidos a respeito do momento da subida imediata ou deferida do recurso.

Assim, vem sendo entendimento pacífico que o uso do advérbio absolutamente «marca bem o nível de exigência imposto pelo legislador, (…), para efeitos de determinar ou não a subida imediata do agravo. Deste modo, não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso não passará de uma “vitória de Pirro”, sem qualquer reflexo no resultado da acção ou na esfera jurídica do interessado»

[Cfr. Abrantes Geraldes, página 211. Também Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 2008, pág. 81, se pronunciam no mesmo sentido, referindo que “a jurisprudência formada sobre o anterior art. 734.º, n.º 2, que previa a subida imediata do agravo cuja retenção o tornaria absolutamente inútil, era muito restritiva: considerava-se que a eventual retenção deveria ter um resultado irreversível quanto ao recurso, não bastando uma mera inutilização de actos processuais, ainda que contrária ao princípio da economia processual”]

Efetivamente, «a inutilidade … há-de produzir um resultado irreversível quanto ao recurso, retirando-lhe toda a eficácia dentro do processo, não bastando, por isso, uma inutilização de actos processuais para justificar a subida imediata do recurso»

[ Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 21-05-1997, BMJ 467.º, pág. 576, citado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 14.10.2014]

Dito de outro modo «o significado deste preceito não pode ser outro senão o de que (…) só pode ter lugar quando a retenção do recurso o torna absolutamente inútil para o recorrente, e não por qualquer outra razão, como a economia processual ou a perturbação que possa provocar no processo onde o mesmo recurso foi interposto»

[Cfr. Ac. STJ, de 27-11-1997, Processo n.º 771/97 - 2.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos, citado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 14.10.2014.]

O que a eventual procedência do recurso a final poderá determinar será a anulação de todos os atos subsequentemente praticados no processo, incluindo a sentença final, mas, como é jurisprudência pacífica, a economia processual não é o critério pelo qual se afere o comando legal concernente à avaliação da absoluta inutilidade do recurso.

Deste modo, para a absoluta inutilidade não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nela se inclua a sentença final.

Volvendo ao caso dos autos e analisando-o à luz destes ensinamentos, urge concluir que a interposição do recurso do despacho ora em crise apenas com a decisão final não tornaria o mesmo absolutamente inútil, ou seja, não tornaria o mesmo sem finalidade alguma para as mesmas e sem qualquer reflexo na sua esfera jurídica, não podendo concluir-se que a retenção produziria «um resultado irreversivelmente oposto ao efeito que se quis alcançar»

[Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 14-01-2003, in CJ, tomo I, pág. 10, citado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 14.10.2014]

Desta feita, sendo admissível recorrer do despacho proferido, ao abrigo do disposto no artigo 399.º, do Código de Processo Penal, esse recurso, porém, não terá subida imediata e não lhe poderá ser atribuído efeito suspensivo do processo ou da decisão, subindo e sendo instruído e julgado conjuntamente com o recurso que venha a ser interposto da decisão final – artigos 407.º, n.º 1, a contrario, e n.º 3, do Código de Processo Penal.»

II. Objeto da reclamação

A questão colocada na presente reclamação consiste em saber se interposto recurso de uma decisão que apreciou em sentido afirmativo a legitimidade do Ministério Público, para promover o procedimento criminal, tal recurso deve subir imediatamente e ter efeito suspensivo do processo porquanto, se assim não for, não se evita a submissão do arguido a julgamento, sendo esse o objetivo do recurso.

III. Fundamentação

(a) Matéria de facto processual

A matéria a considerar é a que consta do relatório que antecede.

b) Apreciação

Resumindo a argumentação do reclamante, subindo o recurso só no final, como foi decidido no despacho que admitiu o recurso, isso implica que se realize o julgamento.

Se o recurso subisse imediatamente e com efeito suspensivo, caso fosse procedente, isso implicava que o julgamento não se realizasse.

Daí que a não subida imediata do recurso, com efeito suspensivo, o torne absolutamente inútil, na hipótese de proceder.

Embora corresponda à realidade que ocorre aqui uma inutilidade no caso do recurso proceder, pois seja qual for o resultado do recurso ele não evita a submissão a julgamento, cumpre desde já referir que não é este o conceito de inutilidade que se encontra presente no n.º 1 do artigo 407.º do Código de Processo Penal, pois não basta verificar que ocorre alguma inutilidade, esta tem de ser absoluta.

Vejamos então.

1 – Nos termos do n.º 1 do artigo 407.º do Código de Processo Penal, «Sobem imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis», prevendo no n.º 2 do mesmo artigo diversos casos em que o recurso sobe imediatamente, nos quais não se contempla a presente situação.

Vejamos então se a retenção do recurso o torna absolutamente inútil.

A jurisprudência tem entendido que só é absolutamente inútil aquele recurso que subindo no final e procedendo já nenhum efeito poderia desencadear sobre o processo e de nada aproveitaria nesse momento ao recorrente.

Aponta-se como exemplo de inutilidade do recurso retido o caso da decisão que indefere o pedido de suspensão do processo

O recurso interposto se apenas subisse no final nenhum efeito teria sendo procedente, porquanto o fim a que ele se destinava, que era o de suspender o processo em determinada data, não poderia já ser alcançado, porquanto o processo não foi suspenso naquela data e prosseguiu.

Neste sentido, entre outros, além dos indicados pelo tribunal a quo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-01-2010, no processo n.º 102/08.5TBCDN-A.C1 onde se afirma que «Esta inutilidade verifica-se sempre que o despacho recorrido produza um resultado irreversível, de tal modo que, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, ela será completamente inútil, mas não quando a procedência do recurso possa conduzir à eventual anulação do processado posterior à sua interposição.»

Ou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 abril de 2011, no processo n.º 1473/08.9TASNT-A.L1-5, «A inutilidade a que se refere o art. 407, nº 1, do C.P.P. tem que ser absoluta, nada tendo a ver com o risco de virem a ser anulados determinados atos, designadamente o julgamento, caso a final venha a ser julgado procedente o recurso»  - Consultáveis em www.dgsi.pt

No caso dos autos, se for interposto recurso da decisão final, o presente recurso subirá nessa altura e se for procedente determina a anulação de todos ou alguns dos atos praticados entre os quais o julgamento

Ora, esta consequência, a anulação dos atos processuais praticados, mostra que o recurso não se tornou inútil, antes pelo contrário, ao gerara a anulação dos atos mostrou utilidade.

No caso do recurso proceder, a circunstância do reclamante ter sido submetido a um julgamento que se revelou inútil, é um efeito nefasto do regime processual que decorre do risco versus vantagens da retenção ou subida imediata dos recursos acompanhados da paragem da tramitação processual.

Quando o legislador optou pela retenção de alguns recursos, sabia que existiria o risco de se realizarem atos processuais que não se realizariam se o recurso subisse imediatamente e com efeito suspensivo da tramitação processual até à decisão do recurso, caso procedessem.

O legislador estava ciente desta possibilidade quando estabeleceu a norma relativa à subida dos recursos a final, ou seja, sabia que sempre se realizariam atos que seriam evitados se o recurso, procedendo, subisse logo e com efeito suspensivo do processo.

Daí que se entenda que só existe inutilidade absoluta quando o recurso retido, seja qual for o respetivo resultado, já não produz depois processualmente algum resultado útil.

O que não é o caso dos autos, como se disse, pois se o recurso proceder, anula os atos processuais posteriores à sua interposição e os que estão para trás.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se a reclamação improcedente e mantém-se o despacho recorrido.

Custas pelo Reclamante.


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Alberto Augusto Vicente Ruço

(Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, por competência delegada - Despacho do Ex.mo Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de março de 2022)