Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2085/15.6T8LRA-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
SEPARAÇÃO DE BENS
CONSTITUIÇÃO DE MANDATÁRIO
PATROCÍNIO OBRIGATÓRIO
COMINAÇÃO LEGAL
NOTIFICAÇÃO À PARTE
LINGUAGEM CLARA E PERCEPTÍVEL
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 03/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: UÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 40, 41, 42, 195, 740 Nº1 CPC, 17 CIRE, DL Nº 97/2019 DE 26/7
Sumário: I – O princípio da utilização de linguagem clara e perceptível nas notificações às partes já fazia parte dos princípios fundamentais do processo civil, mesmo antes da sua consagração expressa no artigo 9.º- A do CPC, aditado a este diploma pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 97/2019, de 26-07.

II – Não observa este princípio a notificação feita à parte sobre os efeitos da não constituição de advogado, sendo obrigatória a constituição, que remete para “… as advertências previstas no art. 41º do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE…”, por não ser exigível a um destinatário medianamente instruído que conheça os termos do artigo 41.º, nem ser exigível à parte que leia o preceito ou que procure alguém que lhe explique o sentido dele.

III - O tribunal é que tinha o dever de mencionar claramente na notificação que, no caso de a parte não constituir advogado no prazo que lhe foi assinalado (20 dias), ficava sem efeito o requerimento que apresentara.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

No apenso de liquidação do processo de insolvência de C (…), o Meritíssimo juiz do tribunal a quo ordenou a notificação de C (…) para efeitos do disposto no artigo 740.º, n.º 1, do CPC.

Citada, C (…) requereu lhe fosse reconhecido o direito à separação de bens relativamente a todos os bens que identificava no requerimento (4 prédios urbanos) e que fosse ordenada a separação de bens comuns.

Para o efeito alegou, em síntese:

1. Que ela contraiu casamento com o ora insolvente na data de 31 de Março de 1968, no regime supletivo;

2. Que o casamento havia sido dissolvido em 22.04.2010;

3. Que os bens imóveis apreendidos no processo foram adquiridos na pendência do casamento, pelo que constituíam bens comuns;

4. Que não era responsável pelo pagamento do passivo do insolvente, reconhecido no processo.

Requereu ainda que fosse admitido o apoio judiciário pedido por ela ao Instituto da Segurança Social, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, conforme cópia do pedido que juntava.

Visto que num anterior requerimento, apresentado em 9 de Abril de 2019, a requerente, citada nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 119.º do Código do Registo Predial, viera declarar que três dos quatros prédios urbanos apreendidos no processo de insolvência lhe pertenciam por lhe terem sido adjudicados aquando da partilha dos bens após o seu divórcio, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo notificou a requerente para esclarecer o que tivesse por conveniente.

Respondendo à notificação, C (…) veio dizer o seguinte:

1. Que em data que não conseguia precisar efectuou a partilha dos bens comuns com o seu ex-marido, sendo que, posteriormente, um credor do marido havia impugnada a mesma em tribunal e foi-lhe explicado, então, que a partilha havia ficado sem efeito, embora os imóveis que lhe foram adjudicados na referida partilha continuavam registados em seu nome;

2. Que em face desta explicação das duas uma: ou o tribunal aceitava e reconhecia a partilha já realizada com o marido e nessa medida os bens eram dela, ou o tribunal não aceitava a partilha e nessa medida pretendia que a parte que lhe cabia nos bens que tinha em comum com o ex-marido, lhe fosse salvaguardada, uma vez que nada tinha a ver com as dívidas daquele;

3. Que o bem constante da verba n.º 4 do auto de apreensão não havia sido objecto de partilha, porque o ex-marido lhe havia dito que o mesmo não lhes pertencia;

4. Que se agora o tribunal decidisse que o bem lhe pertencia e que foi adquirido por aquele na vigência do casamento, então metade também seria dela, pelo que solicitava que a parte dela fosse salvaguardada.

O Meritíssimo juiz do tribunal a quo entendeu que os requerimentos apresentados por C (…), concretamente aquele em que declarava que os bens eram dela por lhe terem sido adjudicados aquando da partilha após o divórcio e aquele em que ela pedia a separação de bens, careciam de ser subscritos por advogado e, por tal razão, determinou a notificação da requerente para, no prazo de 20 dias, constituir advogado, nos termos e com as advertências previstas no artigo 41.º do CPC, e para juntar declaração de ratificação do advogado, em relação aos mencionados requerimentos.

Em cumprimento deste despacho, C (…) foi notificada nos seguintes termos:

Fica notificado, na qualidade de Rquerente, relativamente ao processo supra identificado, do conteúdo do despacho de que se junta cópia, nomeadamente, para, no prazo de 20 dias, constituir advogado, nos termos e com as advertências previstas no art. 41º do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE, e, para além da atinente procuração forense, juntar declaração de ratificação do Exmº Advogado que venha a ser constituído em relação aos requerimentos já apresentados nos autos.

Mais fica notificada de que não é necessária a junção das referenciadas cópias da escritura de partilha e da decisão do Tribunal da Marinha Grande, pois tais elementos já se encontram nos autos.

O prazo corre em férias – artº 9º CIRE”.

Uma vez que, decorrido o prazo assinalado, a requerente não juntou procuração nem fez qualquer requerimento, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo determinou que ficasse sem efeito o requerimento de separação de bens apresentado em 23 de Abril de 2019.

Notificada deste despacho, C (…) fez a seguinte exposição:

1. Quando recebeu a notificação percebeu, para grande espanto seu, que ainda não tinha advogado no processo, quando, na verdade, no dia 18-04-2019, foi aos serviços da segurança social e pediu apoio judiciário;

2. Que quando fez o pedido junto da Segurança Social, com a entrega do respectivo formulário, informou a funcionária que a atendeu sobre o que pretendia, ou seja, não ter de pagar quaisquer despesas no processo e ainda pedir que lhe fosse nomeado um advogado;

3. Que quando, na data de 22-04-2019, enviou para o processo um requerimento, juntou-lhe um requerimento comprovativo do pedido de apoio judiciário que fez na segurança social, no qual acreditou estar escrito o que havia pedido à Segurança Social, ou seja, a isenção total de pagamento das despesas do processo e a indicação de um advogado que a defendesse;

4. Que a funcionária da segurança social informou-a que, quando houvesse decisão sobre o pedido, o tribunal e ela iriam receber uma carta;

5. Que quando recebeu a carta em 30-07-2019, percebeu que a segurança social ainda não tinha comunicado ao processo o advogado, pelo que se dirigiu imediatamente àqueles serviços da segurança social, sendo que a resposta que ali obteve foi a de que a decisão ainda não tinha sido dada, mas que iria sair brevemente e que o tribunal iria ter conhecimento;

6. Que ficou descansada e que em poucos dias ia sair a decisão da segurança social sobre o pedido de apoio judiciário para a isenção total das despesas do processo e para a indicação do advogado, sendo que foi informada pela segurança social de que a resposta ia directa para o tribunal;

7. Que em meados de Agosto dirigiu-se novamente à segurança Social e ali foi informada que o apoio tinha sido concedido e que a decisão tinha ido para tribunal;

8. Que ficou descansada e acreditou que a questão do advogado que lhe foi comunicada em 30-07-2019 estava resolvida;

9. Que foi com grande espanto que recebeu uma nova decisão do tribunal, na qual constava que ela não havia informado sobre quem era o seu advogado, mas a verdade é que acreditou que esse advogado tinha sido indicado pela segurança social;

10. Quando se apercebeu de que alguma coisa não estava bem, voltou à segurança social e mostrou a carta que recebeu do tribunal, onde lhe disseram que o advogado não estava pedido, tendo ela perguntado como era possível, mas não lhe souberam dar resposta e até lhe disseram que se ela quisesse um advogado teria de fazer um novo pedido par o processo, o que estranhou pois já havia feito um pedido de apoio judiciário para o processo e havia sido aceite;

11. Que a segurança social fez uma grande confusão e não a esclareceu correctamente, como deveria ser, e então apresentou um novo pedido para que lhe fosse entregue um advogado para o presente processo;

12. Que não conseguiu perceber a leitura da primeira decisão do tribunal de que o requerimento que antes mandou para o processo podia ficar sem efeito e que os meus interesses não iriam ser considerados, se o advogado não fosse nomeado;

13. Que pedia desculpa, que teria sido uma falta dela, pois às vezes os seus 72 anos de idade e a 4.ª classe não lhe permitem entender correctamente tudo o que lê;

14. Que se o tribunal o permitisse, iria dia sim dia não à segurança social para ver quando é que lhe indicavam um advogado, para depois poder levar ao mesmo as decisões do tribunal para aquele poder dar o devido seguimento.

O Meritíssimo juiz do tribunal a quo proferiu a seguinte decisão sobre a anterior exposição: “O aí alegado não tem a virtualidade de alterar o fundamento do determinado por despacho de 09/10/19, sendo certo que se encontra esgotado o poder jurisdicional do ora signatário sobre a questão em apreço – cfr. Arti.º 613.º, n.ºs 1 e 3, do CPC”.

A requerente não se conformou com a decisão e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse o despacho proferido por outro que determinasse o suprimento da falta de patrocínio judiciário.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. Não tinha a ora recorrente, aquando da notificação para constituir mandatário capacidade de entender as cominações previstas no artigo 41.º do CPC, porquanto as mesmas não se encontravam elencadas na referida comunicação;

2. Não esclareceu o despacho datado de 10.10.2019 de forma clara e concisa, a ora recorrente, conforme legalmente se impunha, o facto de a não constituição de mandatário ter como consequência a impossibilidade de continuação do exercício do direito de defesa da recorrente;

3. Remeter perante o cidadão comum, como se trata da ora recorrente, para as cominações apostas no CPC, não permite que o mesmo compreenda o que lhe está a ser comunicado, bem como as eventuais consequências que daí advenham;

4. A referida notificação judicial dirigida à ora recorrente, devê-lo-ia ter sido feito de forma simplificada, tanto ao nível da linguagem usada, como ao nível da estrutura da informação, permitindo à mesma, enquanto destinatária da notificação perceber, da melhor forma, o que estaria a ser comunicado;

5. Tratando-se de uma acção em que se impõe a constituição obrigatória de mandatário, por força das questões de direito suscitadas e que importava decidir, cabia ao tribunal nomear oficiosamente um defensor/patrono, a fim de à recorrente puderem ser salvaguardados os seus interesses/direitos, atendendo a que a mesma em momento anterior e quando foi notificada para o efeito tomou posição quanto ao património que possui e possuía em comum com o insolvente, sendo que a aceitação ou não aceitação da defesa apresentada pela recorrente terá consequências patrimoniais na esfera jurídica da mesma;

6. O despacho de que se recorre devia ter revogado o despacho anteriormente proferido e nessa medida devia ter ordenado a sanação do vício da falta de patrocínio judiciário, atendendo a que a lei impunha o suprimento dessa falta, violando, assim, as disposições conjugadas dos artigos 40.º, 41.º e 42.º, do CPC, enfermando tal despacho de nulidade, a qual fica aqui expressamente invocada para os devidos efeitos.

Não foi apresentada resposta ao recurso.


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Questões suscitadas pelo recurso:

A questão suscitada pelo recurso é a de saber se o despacho recorrido violou as disposições conjugadas dos artigos 40.º, 41.º e 42.º do CPC, se enferma de nulidade e se deve ser revogado e substituído por outro que determine o suprimento da falta de patrocínio judiciário da recorrente.


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Quanto aos factos relevantes para a decisão do recurso, eles são constituídos pelos antecedentes processuais narrados no relatório deste acórdão.

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Passemos à resolução das questões supras referidas.

Em primeiro lugar cabe dizer que não tem sentido imputar à decisão recorrida a violação dos artigos 40.º, 41.º e 42.º, todos do CPC. Com efeito, resulta das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que só tem sentido imputar à decisão recorrida a violação das normas que constituíram fundamento jurídico do que foi decidido e, no caso, nenhuma norma dos artigos citados serviu de base à decisão de indeferir o requerimento da ora recorrente.

Em segundo lugar não vale contra a decisão recorrida a alegação de que o Meritíssimo juiz estava obrigado a suprir a falta de patrocínio judiciário da ora recorrente e que, ao não fazê-lo, cometeu uma nulidade, consistente na omissão da prática de um acto que a lei lhe impunha.

A alegação não procede essencialmente pelas seguintes razões:

Primeira: fora dos casos expressamente previstos na lei (n.º 2 do artigo 275.º e n.º 2 do artigo 420.º, ambos do CPC), ao juiz só cabe nomear oficiosamente advogado à parte em situações de urgência (n.º 3 do artigo 51.º do CPC), que não era o caso da situação dos autos.  

Segunda: no requerimento sobre que recaiu o despacho recorrido a ora recorrente não pediu ao tribunal que lhe fosse nomeado um advogado para a patrocinar. A recorrente pediu – recorde-se - que o tribunal a quo aguardasse que a segurança social lhe nomeasse um advogado, ao abrigo do regime do apoio judiciário. Ao fazer este pedido, a ora recorrente requereu implicitamente que o Meritíssimo juiz do tribunal a quo desse sem efeito o despacho proferido em 9 de Outubro de 2019 que, invocando o disposto no artigo 41.º do CPC, dera sem efeito o requerimento de separação da massa insolvente da meação da requerente nos bens comuns dela e do insolvente.

O que procede contra a decisão recorrida é a alegação da recorrente relativa aos termos da notificação que lhe foi feita para constituir mandatário [alegação constante das 4 primeiras conclusões]. Vejamos.

A decisão sob recurso afirmou que o alegado pela requerente não tinha a virtualidade de alterar o fundamento do que foi determinado pelo despacho de 9 de Outubro de 2019, ou seja, os fundamentos da decisão que determinou que ficasse sem efeito o requerimento de separação de bens, sendo certo que se encontrava esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em questão, conforme n.ºs 1 e 3 do artigo 613.º do CPC.

É exacto que, segundo n.º 1 do artigo 613.º do CPC – aplicável aos despachos com as devidas adaptações por remissão do n.º 3 do mesmo artigo – “proferida sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”. Este princípio significa, socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis, em anotação ao artigo 666.º do CPC de 1939, cujos termos são iguais aos do n.º 1 do artigo 613.º que o “o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível [Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, página 126].

E, assim, visto que o Meritíssimo juiz do tribunal a quo dera sem efeito o requerimento de separação de bens, em princípio estava-lhe vedado alterar a decisão, oficiosamente ou a requerimento da parte.

Só assim não seria se a decisão não fosse passível de recurso e a parte viesse arguir a sua nulidade ou pedir a reforma ao abrigo do n.º 2 do artigo 616.º do CPC. Nestas hipóteses resulta do n.º 2 do mesmo preceito, combinado com o n.º 4 do artigo 615.º e com o n.º 2 do artigo 616.º do CPC, que era lícito ao juiz alterar o que decidiu. Não foi, no entanto, o que sucedeu no caso dos autos.

Por outro lado, a decisão podia ser anulada se a parte viesse arguir uma nulidade do processo anterior à decisão, não coberta por ela, e se o tribunal anulasse o acto anterior à decisão bem como os termos subsequentes a esse acto que dele dependessem absolutamente e entre os actos posteriores a anular figurasse a decisão. É o que resulta dos números 1 e 2 do artigo 195.º do CPC.

Era o que se passava no caso. Vejamos.

Através da exposição/requerimento que motivou o despacho sob recurso, a ora recorrente expôs as razões pelas quais não juntou aos autos procuração a favor de advogado, como lhe fora determinado pelo Meritíssimo juiz do tribunal a quo.

Essas razões foram essencialmente as seguintes:

Em primeiro lugar, estava convencida de que quem ia indicar o advogado ao tribunal era a segurança social e que, quando se apercebeu que esta não lhe tinha nomeado um advogado, requereu de imediato a nomeação dele.

Em segundo lugar, não percebeu que o requerimento que apresentou a pedir a separação de bens ficava sem efeito se não fosse nomeado um advogado.

A primeira razão era irrelevante para alterar a decisão. Com efeito, a convicção errada em que laborou a ora recorrente não é imputável ao tribunal.

O mesmo já não se se pode dizer da segunda razão. Com efeito, ao alegar que não tinha percebido que o requerimento de separação de bens ficava sem efeito se ela não juntasse procuração a favor de advogado, no prazo que lhe foi assinalado, a requerente pôs em causa a clareza da notificação. Ora, pôr em causa a clareza da notificação é arguir implicitamente a sua irregularidade. Assim sendo, era de qualificar a alegação da requerente como uma arguição de nulidade da notificação.

E a verdade é que havia razões para considerar irregular a notificação feita à ora recorrente para constituir advogado. Vejamos.

Apesar de, aquando da notificação em causa, o Código de Processo Civil não conter uma norma como a que vigora neste momento, que afirma que “o tribunal deve em todos os seus actos, e em particular, nas citações, notificações e outras comunicações dirigidas directamente às partes e a outras pessoas singulares e colectivas, utilizar preferencialmente linguagem simples e clara” [artigo 9.º- A aditado ao CPC pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 97/2019, de 26-07, cuja entrada em vigor ocorreu em 16 de Setembro de 2019], é de entender que o princípio da utilização de linguagem clara e perceptível nas notificações às partes já fazia parte dos princípios fundamentais do processo civil.

Assim sendo devia o tribunal a quo utilizar, na notificação efectuada à ora recorrente, uma linguagem que permitisse compreender o sentido dela a um destinatário medianamente instruído.

Não foi, no entanto, o que sucedeu em relação à parte da notificação sobre os efeitos da não constituição de advogado no prazo de 20 dias. Nesta parte a notificação remeteu para “… as advertências previstas no art. 41º do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE…”.

 Ora, não é exigível a um destinatário medianamente instruído que conheça os termos do artigo 41.º, como não era exigível à ora recorrente que fosse ler o preceito ou que procurasse alguém que lhe explicasse o sentido dele.

O tribunal é que tinha o dever de mencionar claramente na notificação que, no caso de a ora recorrente não constituir advogado no prazo que lhe foi assinalado (20 dias), ficava sem efeito o requerimento de separação de bens que havia apresentado em 23 de Abril de 2019.

Ao não conter esta menção expressa, deve entender-se que a notificação não foi feita com a observância das formalidades legais.

Resulta do n.º 1 do artigo 195.º do CPC que a prática de um acto sem observância das formalidades que a lei prescreve produz nulidade quando a lei o declare (o que não é o caso dos autos) ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Era o caso dos autos. Com efeito, a omissão era susceptível de influir no cumprimento da notificação por parte da ora requerente e de influir no destino do requerimento de separação da massa insolvente da sua meação nos bens comuns.

Havia, pois, razão para o tribunal anular a notificação remetida à ora recorrente para constituir advogado e os termos subsequentes que dele dependessem absolutamente, por aplicação da 1.ª parte do n.º 2 do artigo 195.º do CPC. E entre os actos que dependiam absolutamente da notificação anulada contava-se a decisão de declarar sem efeito o requerimento de separação de bens. E, como se referiu acima, a anulação da decisão sob recurso não implicava a violação do princípio enunciado no artigo 613.º do CPC.

Segue-se do exposto que, ao indeferir a pretensão da recorrente com o fundamento de que o que ela alegar na sua exposição não tinha a virtualidade de alterar a decisão que declarara sem efeito o pedido de separação da massa insolvente da sua meação nos bens comuns e que já estava esgotado o poder jurisdicional, a decisão recorrida incorreu em erro.

Em caso de erro, compete ao tribunal de recurso revogar a decisão recorrida e substituí-la por decisão que esteja de acordo com a lei. No caso, a decisão conforme à lei é a de anular o despacho que declarou sem efeito o requerimento de separação da massa da meação nos bens comuns. E a decisão conforme à lei seria ainda a que ordenasse a repetição da notificação com utilização de linguagem simples e clara. Sucede que já foi nomeado um advogado à requerente, no âmbito do apoio judiciário, pelo que a repetição da notificação da requerente para constituir advogado é um acto inútil, o que é proibido por lei (artigo 130.º do CPC).   


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência:

1. Revoga-se a decisão recorrida;

2. Substitui-se a mesma por decisão a anular a decisão que declarou sem efeito o requerimento de separação da massa da meação nos bens comuns.

Sem custas

Coimbra, 3 de Março de 2020

Sumário elaborado pelo relator:

I- O princípio da utilização de linguagem clara e perceptível nas notificações às partes já fazia parte dos princípios fundamentais do processo civil antes da sua consagração expressa no artigo 9.º- A, aditado ao Código de Processo Civil pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 97/2019, de 26-07.

II- Não observa este princípio a notificação feita à parte para constituir advogado que remete, em matéria de efeitos da não constituição de advogado, para “… as advertências previstas no art. 41º do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE…”.

III- A não utilização de linguagem clara e perceptível nas notificações produz a nulidade destas visto que é susceptível de influir no cumprimento da notificação por parte do destinatário.

Emídio Santos (Relator)

Catarina Gonçalves

Maria João Areias