Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
213/15.0GACLB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA;
CRIME CONTRA AGENTE DE FORÇA DE SEGURANÇA
Data do Acordão: 05/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (J C GENÉRICA DE C. DA BEIRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 132.º, 143.º E 145.º DO CP
Sumário:
I – O simples facto da ofensa ser perpetrada contra os agentes das forças de segurança não significa uma verificação “automática” da qualificativa da conduta do arguido.
II – A qualidade das vítimas não é elemento, de per si, determinante, mas meramente indiciador, da necessária e exigida especial censurabilidade ou perversidade prevista no tipo.
III - A situação descrita no factualismo provado não justifica nem suporta a qualificação pretendida pelos recorrentes.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.

I
1. Nos autos de supra identificados, em que é arguido
AA, ---, natural de …, nascido em -/-/-, filho de --- e de --- , natural de …, residente em …
Imputa-lhes o Ministério Público a prática, em autoria material e em concurso efetivo, de dois crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181°, nº 1, 184° e 132°, nº 2, alínea I), dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos nos artigos 153°, nº 1 e 155°, nº 1, alínea a), dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143°, nº 1, 145°, nº 1, alínea a) e nº 2 e artigo 132°, nº 2, alínea 1) todos do Código Penal.
Os assistentes AS1 e AS2 deduziram acusação particular pelos factos e crimes constantes da acusação pública.

Procedeu-se a julgamento e a final foi decidido:
a) Absolver o arguido AA da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada;
b) Condenar o arguido AA pela prática de:
a. 1 (um) crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181º, nº 1, 184º e 132º, nº 2, alínea 1), todos do Código Penal, na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa;
b. 1 (um) crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181º, nº 1, 184º e 132º, nº 2, alínea 1), todos do Código Penal, na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa;
c. 1 (um) crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, nº 1, 155º, nº 1, alínea c) e 132º, nº 2, alínea 1), todos do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa;
d. 1 (um) crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º, nº 1, 155º, nº 1, alínea c) e 132º, nº 2, alínea 1), todos do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa;
e. 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa.
f. 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa.
c) Em CÚMULO JURÍDICO, condenar o arguido AA na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos);

2. Desta sentença recorrem os assistentes, que formulam as seguintes conclusões:
I - O Tribunal a quo entendeu que os factos dados por provados consubstanciam a prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143. °, nº 1, do Código Penal, havendo absolvido o recorrido da prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada;
II - Sustenta o Tribunal a quo que, atenta toda a factualidade provada, a conduta adoptada pelo recorrido não releva uma especial censurabilidade, não se verificando, in casu, uma culpa agravada;
III - Salvo o devido respeito, que é muito, sufragamos diverso entendimento;
IV - Não obstante também se considerar não ser bastante o facto de as vítimas serem agentes das forças de segurança, designadamente militares da GNR, para que o crime de ofensa à integridade física seja automaticamente qualificado, consideramos que, no caso vertente, conjugadas as demais circunstâncias, se verifica uma especial censurabilidade e perversidade do agente, aqui recorrido;
V - Em sede da audiência de discussão e julgamento, o recorrido AA confessou a prática de todos os factos pelos quais vinha acusado, pelo que se mostra assente a prática de dois crimes de ofensa à integridade física;
VI - No que ao presente recurso concerne, realçam-se os factos provados sob os nºs 1,2, 3, 4, 5, 8, 12 e 13 da, aliás, douta Sentença condenatória;
VII - Entre as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132.° do Código Penal, destaca-se aquela elencada sob a alínea 1), designadamente, a prática do facto contra agente das forças ou serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas;
VIII - Considerando os factos provados, extrai-se que as ofensas à integridade física foram perpetradas a agentes da autoridade pelo arguido/recorrido, devidamente uniformizados e identificados, em pleno exercício de funções, encontrando-se todos em lugar público (…, …, …);
IX - Indiferente à presença dos agentes da autoridade, o recorrido dirigiu-se ao militar AS2, munido de uma bengala de ferro com 90 cm de comprimento e 1,290 kg de peso, dizendo-lhe, "mas o que foi, já te deito abaixo";
X - Mesmo após lhe ter sido dado voz de detenção, o recorrido "desferiu um murro na face do assistente AS1 e diversos pontapés nas pernas de ambos os assistentes";
XI - A reacção do recorrido revela uma atitude de especial desprezo para com a função das vítimas e o poder de autoridade de que se encontravam investidos naquele momento;
XII - A atitude do recorrido é profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade;
XIII - O recorrido deveria ter sido condenado pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos termos do artigo 145° do Código Penal e não pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143° do Código Penal;
XIV - Ao não ter assim entendido, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 132°, nº 2, alínea 1), e 145°, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, pelo que se impõe, assim, a revogação parcial da Sentença proferida, substituindo-a por outra que considere a prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, com a consequente aplicação de pena;
XV - A, aliás, douta Sentença sob apreciação violou as seguintes disposições legais: artigos 71°, nºs 1 e 2, 132°, nº 2, alínea 1), e 145°, nº 1, alínea a), todos do Código Penal.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se parcialmente a Sentença recorrida, no que ao crime de ofensa à integridade física simples concerne, substituindo-a por outra que considere a prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, com a consequente aplicação de pena, assim se fazendo sã e inteira JUSTIÇA!!


3. O Ministério Público respondeu ao recurso dizendo, em síntese:
1. Os recorrentes vêm interpor recurso da sentença que absolveu o arguido da prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo artigo 143.°, nº 1,145º, nº 1, al. a) e nº 2 e artigo 132.°, nº 2, al. l) do Código Penal, e o condenou pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143°, nº 1 do Código Penal.
2. Alegam para tal que a conduta do arguido revela especial censurabilidade e perversidade. ao agredir as vítimas, militares da GNR, que se encontravam uniformizados e no exercício das suas funções, pelo que deveria ser condenado pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos artigos 143°, nº 1, 145°, 11º 1. al. a) e nº 2 e artigo 132°, nº 2, al, I) do Código Penal.
3. As circunstâncias em que os factos ocorreram e a factualidade provada não permitiram considerar como provado que a actuação do arguido demonstre um especial desprezo para com as funções exercidas pelos ofendidos e, consequentemente, revelem lima especial censurabilidade ou perversidade do arguido.
4. Não basta que os ofendidos sejam agentes das forças de segurança para se apurar de forma automática a demonstração de uma censurabilidade ou perversidade.
5. Assim sendo, a decisão recorrida não padece de qualquer vício.

4. Também o arguido respondeu dizendo:
1 - Em face da motivação do recurso e respectivas conclusões, deve o recurso improceder, como se procurará demonstrar.
2 - Os recorrentes, nas suas alegações, não põem em causa a matéria de facto dada por provada na sentença por eles recorridas.
3 - A sentença ora recorrida não merece qualquer censura, não tendo, pois, violado a legislação invocada pelos recorrentes.
4 - Dos factos dados como provados não resultam preenchidos os requisitos para a agravação do crime de ofensa à integridade física simples, pelo que o arguido não pode ser condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física agravada, conforme pretendem os recorrentes.
5 - Não basta o facto de as ofensas à integridade física terem sido praticadas nas pessoas que são agentes da autoridade, no caso elementos da Guarda Nacional Republicana, para que se verifique o agravamento do crime em causa.
6 - Não é pelo facto de os recorrentes, ofendidos nos autos, serem agentes das forças de segurança, que opera de forma automática a agravação da ofensa à integridade física, uma vez que, para que seja considerado que o recorrido agiu em circunstâncias que evidenciem especial censurabilidade ou perversidade, teria que se concluir da matéria de facto dada por provada na sentença recorrida que existiu uma especial baixeza da motivação da sua actuação ou um sentimento especificamente reprovado pela ordem jurídica, relacionados à particular função desempenhada pelos recorrentes.
7 - Não obstante as agressões praticadas pelo arguido terem tido lugar contra os recorrentes, militares da Guarda Nacional Republicana, não resultou provado na sentença que o arguido agiu contra aqueles por força das funções que estes exerciam, pelo que só se verificaria culpa agravada do recorrido se as ofensas praticadas revelassem especial baixeza da motivação, ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade das vítimas ou à função que os recorrentes desempenhavam.
8 - Da sentença recorrida não resultou provado que o arguido tivesse agido de forma a demonstrar especial desprezo para com o facto de os ofendidos serem agentes da autoridade e, em consequência, mostrasse especial censurabilidade ou perversidade.
9 - Deve, assim, ser confirmada a decisão recorrida, por falência dos argumentos vertidos no recurso interposto pelos recorrentes.

5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer, pugnando igualmente pela improcedência do recurso.
II
Questão a apreciar:
A eventual natureza de especial perversidade da conduta do arguido quanto aos crimes de ofensa à integridade física na pessoa de cada um dos assistentes.
III
1. São os seguintes os factos dados por provados e não provados:
Factos provados:
1. AS1 e AS2 são militares da Guarda Nacional Republicana, com os números --- e ---, respectivamente, e exercem funções no Posto Territorial a G.N.R. de …, do Destacamento Territorial da …;
2. No dia 21 de outubro de 2015, cerca das 15,00horas, no exercício das suas funções, deslocaram-se ao …, onde se encontrava o arguido;
3. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido dirigiu-se ao assistente AS1, que se encontrava devidamente uniformizado e identificado, e, munido com a bengala de ferro a seguir identificada, disse" mas o que foi, já te deito abaixo";
4. De seguida, o arguido desferiu uma pancada na perna esquerda do assistente AS2 com uma bengala artesanal em ferro, com 90 cm de comprimento e 1,290 kg de peso;
5. No acto da concretização da detenção do arguido, este desferiu um murro na face do assistente AS1 e diversos pontapés nas pernas de ambos os assistentes;
6. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido dizia aos assistentes "cobardes, corruptos de merda, estais fodidos comigo, não sabeis com quem vos estais a meter, se eu soubesse que era assim vinha para aqui de caçadeira e traçava-vos a todos";
7. Durante o transporte do arguido para o Posto Territorial da G.N.R. de … e no interior do Posto, o arguido dizia para os assistentes" tendes as coisas combinadas, não te mato eu mas há quem o faça, tendes boa arma mas há quem tenha melhor, nem que seja a última coisa que eu faça és um homem morto, já estais todos comprados";
8. Da pancada na perna com o aludido objecto, do murro na face e dos pontapés nas pernas resultaram dores para os assistentes;
9. O arguido proferiu as mencionadas expressões e atingiu fisicamente os assistentes
sabendo que as dirigia e actuava contra elementos de segurança pública, militares da G.N.R., em exercício de funções;
10. Sabia, ainda, que as expressões por si utlizadas eram ofensivas da honra pessoal e profissional dos assistentes e, não obstante, quis proferir e dirigir aquelas expressões aos mesmos, como efectivamente dirigiu, para ofender a honra pessoal e profissional que lhes é devida enquanto agentes de autoridade pública em exercício de funções profissionais;
11. O arguido também sabia que as expressões dirigidas aos militares da G.N.R. eram susceptíveis de lhes causar medo e inquietação, tendo agido com o propósito concretizado de lhe causar tal medo e inquietação, o que se repercute na sua vida pessoal e no exercício das suas funções;
12. Sabia, por outro lado, que com a sua conduta molestava o corpo e a saúde dos assistentes, tendo agido com o propósito de o fazer, o que conseguiu;
13. Ao praticar a descrita conduta, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que esta é proibida e punida por lei penal.
14. Os factos acima descritos causaram ao demandante AS2 intranquilidade e angústia;
15. O demandante receia que o demandado venha a concretizar a ameaça verberada, atentando contra a sua vida;
16. Receando, no seu dia-a-dia, cruzar-se com o demandado ou com outrem a mando deste, tal é o temor por si vivenciado;
17. Nas noites que se seguiram à ocorrência dos factos, o demandante padeceu de uma desordem de sono que inviabilizou o seu descanso, acordando por diversas vezes sobressaltado;
18. Mostrando nos dias que se seguiram, sonolência, irritabilidade e incapacidade para racionar com facilidade;
19. O que afectou a sua vida quer pessoal quer profissional;
20. Sentindo-se ainda hoje constrangido e envergonhado em virtude das expressões proferidas pelo demandado;
21. O demandante sentiu dores;
22. Dores aliviadas com analgésicos;
23. Os factos acima descritos causaram ao demandante AS1 intranquilidade e angústia;
24. O demandante receia que o demandado venha a concretizar a ameaça verberada, atentando contra a sua vida;
25. Tanto assim é que, aquando da saída do respectivo turno de trabalho do Posto Territorial de … e antes de se introduzir no seu veículo automóvel, o demandante olha sempre em seu redor, certificando-se que não se encontra ninguém nas imediações;
26. Procedendo, de igual modo, no seu dia-a-dia, tal é o temor por si vivenciado e justificado receio de se cruzar com o demandado ou com outrem a mando deste;
27. O que o atemoriza, considerando que tem uma filha menor a seu cargo;
28. Nas noites que se seguiram à ocorrência dos factos, o demandante padeceu de uma desordem de sono que inviabilizou o seu descanso, acordando por diversas vezes sobressaltado;
29. Recorreu a soníferos para induzir o seu sono;
30. Havendo vivido amargurado durante as noites seguintes;
31. Demonstrando nos dias que se seguiram sonolência, irritabilidade e incapacidade para raciocinar com facilidade;
32. O que muito afectou a sua vida pessoal e profissional;
33. Sentindo-se ainda hoje constrangido e envergonhado em virtude das expressões proferidas pelo demandado;
34. O demandante sentiu dores;
35. Dores aliviadas com analgésicos e anti-inflamatórios.
No que concerne à situação económica e social do arguido, provou-se ainda que:
36. O arguido não trabalha;
37. O arguido não aufere qualquer rendimento;
38. O arguido é casado;
39.A mulher do arguido trabalha numa fábrica de têxteis;
40.A mulher do arguido aufere o ordenado de, pelo menos, € 500,00;
41.O arguido e a sua mulher vivem em casa própria, pagando a mensalidade para liquidação do empréstimo para sua aquisição;
42. Mensalidade não concretamente apurada;
43. O arguido tem um veículo da marca ---, que está a ser pago;
44. O arguido não tem bens em seu nome;
45. O arguido tem a 4.a classe e frequentou as novas oportunidades;
46. O arguido passa os dias em casa, maioritariamente na cama ou no sofá;
47. O arguido é seguido regularmente em consultas de psiquiatria há mais de duas décadas, por um quadro distímico crónico cuja resposta às abordagens terapêuticas se revelou sempre insuficiente e com agudizações muito comprometedoras do seu desempenho quotidiano, mesmo doméstico e rural;
48. O arguido tem um bom suporte familiar por parte da mulher, que em muito tem impedido uma maior degradação pessoal e social;
49. Padeceu de meningite em junho de 2014;
50. O arguido formulou um pedido de desculpas aos assistentes.
No que concerne aos antecedentes criminais do arguido, mais se provou que:
51. O arguido foi condenado, por decisão proferida por este Tribunal, datada de 28/03/2017, por factos praticados em 21/10/2015, pelo cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00.

Com relevo para a boa decisão da causa, resultaram os seguintes factos não provados:
- O demandante AS2 é uma pessoa simples, pacata, humilde, educada e estimada por todos quanto o conhecem e que com ele lidam;
- O demandante foi humilhado diante do seu colega de trabalho;
- Bem como diante da população que se encontrava no Largo …;
- No descrito em 21 tenham sido fortes;
- O demandante AS1 é uma pessoa simples, pacata,
humilde, educada e estimada por todos quanto o conhecem e que com ele lidam;
- O demandante foi humilhado diante do seu colega de trabalho;
- Bem como diante da população que se encontrava no Largo …;
- Em 34 sejam fortes.
IV
Cumpre decidir:
1. A questão a apreciar visa tão só aquilatar se a conduta do arguido, no que respeita às ofensas à integridade física dos dois agentes, ora assistentes, se enquadra no conceito de especial perversidade da conduta do mesmo, no sentido de a qualificar como integrando a prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples – como foi condenado -, ou a prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada como pretendem os assistentes.
2. O tribunal recorrido decidiu a questão com os seguintes fundamentos:
“No caso do crime de ofensa à integridade física qualificada, a conduta criminosa do agente deve revelar uma censurabilidade ou perversidade acrescidas, tal como previsto no nº 2, do artigo 132° - aplicável por força do nº 2, do artigo 145°, ambos do Código Penal. Para o caso, deve atentar-se na alínea I), do nº 2, do artigo 132°.
Deste modo, "a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a "especial censurabilidade ou perversidade" do agente referida no n. o 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n° 2" (Jorge de Figueiredo Dias, "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 26).
O elenco de circunstâncias aí previsto é meramente exemplificativo e a sua aplicação não é automática (ao contrário do que se verifica nos crimes de injúria agravada e de ameaça agravada), devendo o aplicador partir da situação tal como ela foi representada pelo agente. E a partir dela perguntar se a situação, tal como foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente (Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., Tomo I, página 43).
Dos factos dados como provados resulta que o arguido de forma livre deliberada e consciente, no dia 21/10/2015, pelas 03H30, ofendeu a integridade física dos militares da G.NR, agredindo-os, que no exercício das suas funções, pretendia intervir junto do arguido.
Todavia, a actuação do arguido não revela, quanto a nós, uma especial censurabilidade. A culpa com que actuou, considerando toda factualidade apurada, não é, para este crime, uma culpa agravada, que não se enquadra num juízo de censurabilidade.
O T.R.G., em Acórdão datado de 09/05/2005, proferiu o seguinte "O facto de o ofendido ser agente das forças de segurança, militar da GNR, não opera de forma automática aquela agravação, pois, para que se possa considerar que o agente agiu em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, tem de concluir-se da matéria de facto provada que há uma especial baixeza da motivação ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade da vítima ou à função que ela desempenha" - disponível em www.dgsi.pt.
Do que vimos expondo, cremos estarem preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de ofensa à integridade física simples”.
3. Temos como assertiva a decisão recorrida.
Como refere ainda o Prof. Figueiredo Dias, na mesma obra - "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo I, Coimbra Editora, 1999 – agora na página 25, “o legislador seguiu…a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão.”
Acrescentado a fls. 26 que “elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica, sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos…aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador…que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no artigo 132º-2”.

4. Ou seja, o simples facto da ofensa ser perpetrada contra os agentes das forças de segurança, não significa uma verificação “automática” da qualificativa da conduta do arguido, como pretendem concluir os assistentes.
Neste sentido se pronuncia também o ac. do TRP de 30-04-2014:
“I. A qualificação dos crimes de ofensa á integridade física e de coacção não é automática, antes «deriva da verificação de um tipo de culpa agravado» o que obriga a que os elementos apurados revelem «uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta».

Atentemos para já, nos conceitos de especial censurabilidade e perversidade, que a jurisprudência tem considerado e relevado:
"A especial censurabilidade -- e é o conceito de censurabilidade que fundamenta a concepção normativa da culpa -- prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente” - acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10.12.2008, disponível em www.dgsi.pt.
- “VII - Por especialmente censuráveis deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores; e por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, o que pode reconduzir-se à atitude má, de crasso e primitivo egoísmo do agente. E esse juízo de especial censurabilidade só é sustentável se, subjectivamente, o dolo do agente também abranger a condição reveladora da especial censurabilidade ou perversidade” - Ac. do TRG de 20.03.2017.
Por fim, como refere o recorrido Ministério Público na sua resposta, em primeira instância, “ apesar de estarem verificadas as circunstâncias indiciadoras de um tipo de culpa agravado, pelo facto de a agressão ter sido praticada contra dois militares da GNR, …tal só acontecerá se à ofensa perpetrada "puder ligar-se uma especial baixeza da motivação, ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade da vitima ou à função que ela desempenhava”- ac. do Supremo 'Tribunal de Justiça de 05.09.2017, processo 07P2294, disponível em www.dgsi.pt.

5. Na verdade, o único elemento “perturbador” a suscitar a polémica e os fundamentos do recurso é a qualidade das vítimas. Mas não sendo este elemento de per si, determinante, mas meramente indiciador da necessária e exigida especial censurabilidade ou perversidade, constatamos que a situação descrita no factualismo provado não justifica nem suporta a qualificação pretendida pelos recorrentes.
É certo que a conduta do arguido é censurável. Tanto assim é que é tipificada como crime e o mesmo assim foi condenado. Afirmar que o mesmo (arguido), agiu de modo perverso, com uma baixeza de motivação ou com um sentimento que é censurado e repudiado particularmente pela comunidade, que é chocante, decididamente se entende que não.
Como se afirmou logo no início, esta especial censurabilidade ou perversidade, atua a nível do tipo de culpa do agente. E não só a conduta do arguido objetivamente considerada, quer quanto ao modo de agir quer quanto ao resultado da sua conduta, não revela aquela censura, como ainda se dá domo provado o seguinte na sentença:
47. O arguido é seguido regularmente em consultas de psiquiatria há mais de duas décadas, por um quadro distímico crónico cuja resposta às abordagens terapêuticas se revelou sempre insuficiente e com agudizações muito comprometedoras do seu desempenho quotidiano, mesmo doméstico e rural;
48. O arguido tem um bom suporte familiar por parte da mulher, que em muito tem impedido uma maior degradação pessoal e social;
49. Padeceu de meningite em junho de 2014;
50. O arguido formulou um pedido de desculpas aos assistentes.
Ora, estes factos, objetivamente apreciados (embora com uma componente subjetiva porque inerentes à culpa do arguido), apontam no sentido de que o arguido agiu com um tipo de culpa bem afastado da perversidade e da especial censurabilidade.
Pelo que a condenação do arguido apenas pela prática do crime de ofensa à integridade física simples quanto a cada um dos assistentes, não merece censura.
V
Decisão
Por todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso dos recorrentes AS1 e AS2, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes com a taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) Ucs para cada um deles.

Coimbra, 16 de Maio de 2018

Luís Teixeira (relator)
Vasques Osório (adjunto)